Natalidade e Política: Hannah Arendt leitora de Agostinho

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Marcelo de Mello Rangel; Marcelo Santos de Abreu; Rodrigo Machado
da Silva (Orgs.). Anais do 8º Seminário Brasileiro de História da
Historiografia - Variedades do discurso histórico: possibilidades para além
do texto. Ouro Preto: EDUFOP, 2014. (ISBN: 9788528803372)
Natalidade e Política: Hannah Arendt leitora de Agostinho
Carolina Bertassoni dos Santos*
A primeira obra de Arendt foi sua dissertação intitulada O Conceito de Amor em Santo
Agostinho. Ela foi escrita quando a autora estudava na Alemanha sob orientação de Martin
Heidegger e, posteriormente, de Karl Jaspers. Nesta obra ela segue a tendência de seus
orientadores de buscar nos filósofos cristãos, como Agostinho, fontes para repensar o problema
da existência.
Arendt estava interessada no Agostinho filósofo que discorreu sobre o amor. O conceito
de amor mundi, amor ao mundo, apresentado pela autora nessa obra permeará toda sua
produção futura. Neste momento sua preocupação não era política, era filosófica e existencial.
Ela encontrará na noção de amor ao próximo, trabalhada no terceiro capítulo da dissertação, a
chave para pensar a existência humana em sua condição plural, a vida em sociedade. Na
dissertação os conceitos de memória e nascimento, de inspiração agostiniana são utilizados por
Arendt para pensar o Ser em relação com sua origem.
A experiência traumática da Segunda Guerra Mundial, em especial a existência dos
campos de concentração, levou a autora a alterar sua trajetória intelectual. Sua reflexão sobre
os acontecimentos que marcaram este período deu origem à obra Origens do Totalitarismo.
Nela a autora adentra o campo da política e da reflexão historiográfica. Em suas obras
posteriores a autora dará continuidade à sua reflexão política, notadamente em obras como A
Condição Humana, nos ensaios reunidos em Entre o Passado e o Futuro, e em Sobre a
Revolução.
Busco demonstrar como a leitura de Agostinho parece ter sido fundamental para que
Hannah Arendt chegasse a conceitos chave para desenvolver uma concepção de política cuja
razão de ser é a liberdade. Na medida em que seu pensamento será marcado pela recuperação
*
Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro, mestranda em História Social da Cultura.
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Marcelo de Mello Rangel; Marcelo Santos de Abreu; Rodrigo Machado
da Silva (Orgs.). Anais do 8º Seminário Brasileiro de História da
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do caráter inaugural da ação, investigo qual papel o conceito de natalidade, de inspiração
agostiniana, teria representado para esta empreitada da autora. Procuro também, evidenciar
como os conceitos de natalidade e memória parecem determinantes para a construção de uma
temporalidade propriamente política que permite à autora pensar a novidade, e transitar entre
passado e futuro mantendo sua preocupação no presente.
Acredito que no pensamento de Agostinho Arendt encontrou conceitos que lhe
auxiliaram na construção de sua concepção de política que dá ênfase à novidade, à ação, à
pluralidade, e à liberdade. O pensamento e a experiência cristã permitiram à Arendt pensar a fé
e a esperança relacionadas à natalidade e à liberdade. Nesse sentido, a investigação dessas
influências permite traçar um fio condutor que demonstra a passagem da autora de uma primeira
fase de sua carreira, dedicada à filosofia existencialista1, para uma segunda fase dedicada à
reflexão do político, e atravessada pelo conceito de natalidade.
1
Neste trabalho defendo a ideia de que a primeira obra de Arendt, O Amor em Santo Agostinho, tem um viés
existencialista. No entanto, a partir dos anos 50 Arendt irá criticar o que ela chama de “filosofia da Existenz”. Em
A Dignidade da Política encontramos um capítulo intitulado “O que é a filosofia da Existenz?”. Esta filosofia teria
alcançado um grau de consciência ainda insuperado, na Alemanha do pós-guerra, com Scheler, Heidegger e
Jaspers. Arendt ressalta que não é por acaso que o termo “Ser” foi substituído pelo “Existenz”, e que “nesta
mudança terminológica está oculto um dos problemas fundamentais da filosofia moderna”. (p.15) Antes da
modernidade, Ser e pensamento eram considerados idênticos. Quando essa identificação é rompida a essência
deixa de ser relacionada à existência e a filosofia moderna afasta-se das ciências que investigam o Quê das coisas.
“A unidade de Ser e pensamento pressupunha a coincidência pré-estabelecidada entre essência e existência, ou
seja, pressupunha que tudo o que é pensável também existe e que todo existente, porque é cognoscível, deve ser
também racional. Essa unidade foi destruída por Kant”. (P.20) Quando Kant “destruiu a concepção de Ser (...) ele
estava ao mesmo tempo pondo em questão a realidade de tudo que está para além do indivíduo”. (P.21) Segundo
Arendt, Kant procurou estabelecer a autonomia do homem, ele foi o “primeiro filósofo a querer entender o Homem
segundo sua própria lei, o primeiro a libertá-lo do contexto universal do Ser, no qual o Homem seria uma coisa
entre outras.” (P.21) Para a autora “era decisivo para o desenvolvimento da filosofia pós-kantiana que nada deveria
ser mais rapidamente demolido do que este novo conceito do Homem”. (P.22) Heidegger é um dos autores que
busca criar um novo conceito de Ser, que Arendt irá criticar neste capítulo. Heidegger caracteriza o “Ser do Homem
como ser-no-mundo”, e a questão para este Ser é manter-se no mundo, mas isto lhe é negado, assim ele é
caracterizado “pela ansiedade no duplo sentido de desabrigo e medo. Na ansiedade, que é fundamentalmente
ansiedade perante a morte, o não-estar-em-casa no mundo torna-se explícito”. (P.30) Apesar de sua crítica posterior
considero que no momento da dissertação Arendt fora muito influenciada pelo existencialismo. Seus dois
orientadores neste período, Heidegger e Jaspers, são considerados pela própria autora neste capítulo, como dois
grandes nomes da filosofia do Existenz. Arendt segue um caminho diferente de Heidegger, ela foca no nascimento
e não na morte. Mas acredito que esta mudança de foco é melhor compreendida por seu interesse pelo amor, e pela
vida em sociedade, à qual ela relaciona o amor ao próximo; e não, neste momento, por uma tentativa de se afastar
da filosofia existencialista. Afinal a investigação do amor feita pela autora em sua dissertação se desenvolve em
torno de uma temporalidade do eu pensante que será diretamente influenciada por Heidegger, além de Agostinho.
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Em O Conceito de Amor em Santo Agostinho a autora investiga o problema da existência
humana combinando os discursos agostiniano e heideggeriano para pensar a tensão entre
contexto e transcendência. Os três modos de temporalidade fundamentais para a dissertação de
Arendt - o passado ou “não-mais”, o futuro ou “ainda-não”, e o presente que de certa forma não
é – também o foram para Ser e Tempo, de Heidegger. E a temporalidade das duas obras deve
muito a Confissões de Agostinho. É o bispo quem nos apresenta o aspecto de interioridade do
tempo em sua análise. Sua teoria é explicada através do trio: memória, atenção e espera, que se
encontra presente na alma humana. O bispo confere papel importante à memória por seu poder
de presentificar passado e futuro, através da lembrança e da expectativa, e também pelo seu
poder de nos levar de volta às nossas origens.
A temporalidade agostiniana examinada por Hannah Arendt em sua dissertação parece
ter sido essencial tanto para a elaboração de sua própria temporalidade, como para a
caracterização do ser-humano como um ser natal, através da noção de memória.
A memória é um conceito muito trabalhado por Agostinho em sua obra Confissões.
Segundo o bispo de Hipona é com a alma que medimos o tempo, só ela é capaz de tornar
presentes as coisas que não-são-mais, o passado, e as que ainda-não-são, o futuro: “Há três
tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, o
presente respeitante às coisas futuras. Existem na minha alma estas três espécies de tempo e
não as vejo em outro lugar.”(AGOSTINHO, 2008: 117) Mas esta presentificação é efetuada
através da memória, é nela que vamos buscar as imagens das coisas gravadas na alma após sua
passagem pelos sentidos:
Ainda que se narrem, como verdadeiras, coisas passadas, o que se vai buscar
à memória não são as próprias coisas que já passaram, mas as palavras
concebidas a partir das imagens de tais coisas, que, ao passarem pelos
sentidos, gravaram na alma como que uma espécie de pegadas.
(AGOSTINHO, 2008: 115)
Nós não medimos o que não é mais, mas a memória que ficou fixada dele. Assim o
tempo só existe quando chamamos passado e futuro ao presente através de nossas lembranças
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e expectativas, nos diz Arendt em sua dissertação. O presente, o agora, mede o tempo porque
está fora do tempo. No agora, passado e presente se encontram, são simultâneos em um
momento para que possam ser guardados pela memória que lembra das coisas passadas e guarda
as expectativas das coisas futuras. Esse agora é o modelo de eternidade de Agostinho.
O contato da autora com o tempo agostiniano foi inicialmente mediado por Heidegger.
Mas a autora se distancia deste, pois Heidegger, ao considerar o homem temporal, foca na
mortalidade humana.2 A análise do tempo agostiniano por Arendt a levará em outra direção. A
memória nos leva de volta às nossas origens, e é lá que devemos procurar os fatos definidores
de nossa existência. Assim o fato definidor do homem, para a autora, é o nascimento, e não a
morte.
Porque o mundo, e assim qualquer coisa criada, tem que ser originado, seu ser
é determinado pela sua origem (fieri) – ele se torna, ele tem um começo.
Porém a partir de então ele está sujeito à mutabilidade... A criatura é
governada no tempo pelo fato de ter começado. (ARENDT, 1996: 132)
A autora considerou que Heidegger não havia levado sua investigação longe o
suficiente, pois ele não apresentou a força do passado e a presença de inícios. Para Arendt,
notadamente a partir de A Condição Humana nós somos fundamentalmente moldados pelas
2
De acordo com Benedito Nunes, quando Heidegger estuda a constituição existencial do Dasein (o Ser-aí), em
Ser e Tempo, afirma acerca do caráter ontológico da existência humana que o Dasein tem como sua primeira
possibilidade um estado de ânimo – a abertura afetiva que condiciona a imediata compreensão de si mesmo e do
mundo, e à qual é inerente dada compreensão do Ser. Essa compreensão desenvolve-se numa interpretação das
coisas. As categorias utilizadas por Heidegger - o encontrar-se existindo, a compreensão, e a interpretação –
derivam de um fenômeno originário, a “pré-ocupação”, através da qual se descerra um segundo fenômeno, a morte,
e um terceiro, o tempo, que aponta a direção na qual a pergunta do Ser adquire sentido, a direção da temporalidade
da existência. Esta compreensão do ser faz parte do movimento temporal de sua existência. NUNES, Benedito. O
Dorso do tigre. -2.ed.- São Paulo: Editora Perspectiva, 1976, p.84 e 85. No capítulo de Nunes em Artepensamento
encontramos a seguinte passagem a esse respeito “Ser humano é ser temporal. Por isso, a temporalidade é não só
a condição da possibilidade de representar várias modalidades do tempo, como também a condição de
possibilidade da compreensão do ser. Temporalidade significa igualmente o caráter histórico do Dasein, o
acontecer de sua existência, embrionário no futuro e passado persistindo no presente. Daí a finitude do homem,
mortal e sem fundamento último, metafísico ou teológico.” NUNES, Benedito. Poética do pensamento. In:
NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 393. É importante ressaltar
que foco aqui na influência de Agostinho em Heidegger, mas o conceito de tempo heideggeriano teve grande
influência de Aristóteles. Assim pretendo incluir uma análise da influência aristotélica na temporalidade de
Heidegger na dissertação. Acredito que possivelmente esta análise permitirá elucidar melhor o distanciamento
entre Arendt e Heidegger. A este respeito, ver, por excelente: FRANCO, Volpi. “Heidegger e Aristóteles”;
tradução de José Trindade dos Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
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condições de nosso nascimento, é pelo fato de nosso nascimento ser um início e uma novidade
que somos capazes de começar algo novo.
No início dos anos 50 Arendt começou a elaborar uma nova reflexão sobre o político
para um mundo em que os eventos – as guerras, o totalitarismo, os campos de concentração demandavam séria atenção dos filósofos. Segundo André Duarte em Pensamento a Sombra da
Ruptura, para Hannah Arendt o totalitarismo efetivou a ruptura da tradição, e com isso surge o
problema de como proceder na compreensão dos eventos políticos do presente sem poder contar
com as categorias teóricas do passado, sem a autoridade da tradição. A ruptura traz consigo o
risco de tornar o passado inacessível. Ela aparece como a perda radical de orientação pela
tradição, por isso a necessidade de uma nova reflexão política para uma nova experiência
histórica. Mais do que gerar uma necessidade, a ruptura se apresentava como uma oportunidade
perfeita para este empreendimento, pois o pensamento se vê livre dos pressupostos arraigados
pelos grilhões da tradição3.
As concepções de história do século XIX, influenciadas pela noção de processo,
subjacente à noção de progresso das filosofias da história do século XVIII interpretaram os
movimentos revolucionários que se seguiram à Revolução Francesa como manifestações de
uma força única, autônoma em relação aos autores envolvidos, assim “consolidaram a inversão
do voluntarismo iluminista: a história deixava de ser vista como o resultado da ação humana
para ser representada enquanto processo autônomo, independente dos homens e cuja força não
se podia contrariar.”(JARDIM, 1997: 12) Para Arendt tal interpretação fazia perder de vista a
capacidade política mais importante dos homens que ficara demonstrada pela própria ruptura
causada pelos movimentos revolucionários: esta capacidade era a ação, a capacidade de
começar algo novo cujo resultado é imprevisível.
3
Para Arendt nos encontramos numa posição privilegiada de poder realizar um projeto de pensamento e
compreensão da política que caminha pelo presente e pelo passado sem os olhos obstruídos pela tradição. Em “O
que é a Autoridade?” Arendt dirá “Com a perda da tradição, perdemos o fio que nos guiou com segurança através
dos vastos domínios do passado; esse fio, porém foi também a cadeia que mais aguilhoou cada geração sucessiva
a um aspecto predeterminado do passado. Poderia ocorrer que somente agora o passado se abrisse a nós com
inesperada novidade e nos dissesse coisas que ninguém teve ainda ouvidos para ouvir”. ARENDT, Hannah. Entre
o Passado e o Futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. – São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. p. 140
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Segundo André Duarte, após a dissertação a maior preocupação de Arendt será de
âmbito político: uma crítica à concepção de política que teve origem com Platão, que acaba por
privá-la de sua dignidade própria4 ao relegá-la a um status inferior ao da vida contemplativa,
que seria o modo de vida ideal do filósofo. A autora irá criticar alguns autores, como seu antigo
orientador, Heidegger, quem ela considera que tal como Platão, não dá atenção à pluralidade, à
ação e à capacidade humana de começar algo novo cujo resultado é imprevisível. Assim, após
a dissertação o conceito de nascimento será dotado de um valor especial, relacionado à
capacidade humana de agir, que Arendt considera própria do âmbito político.
Eduardo Jardim em Hannah Arendt Pensadora da Crise e de Novos Começos, nos diz
que a atmosfera política após a segunda guerra mundial favorecia avaliações negativas sobre a
vida política. Para Arendt essas avaliações encerravam uma série de preconceitos que
precisavam ser examinados e descartados. Um destes preconceitos reside na crença de que o
Estado é a sede da política. Tal crença acabaria por levar a uma dissociação entre política e
liberdade, pois relaciona a liberdade à esfera privada, e individual, enquanto considera que a
política é própria da esfera estatal. De acordo com Jardim um abismo separava liberdade e
política, chegando a opor uma à outra, mas para Arendt a liberdade era o próprio sentido da
política. Segundo Jardim, a autora teria encontrado na obra de Agostinho, para quem “o homem
foi criado para que houvesse um novo começo”, a inspiração para a elaboração de um novo
conceito de ação, que sustenta sua compreensão da política.
Já a partir de Origens do Totalitarismo o tema da natalidade aparecerá relacionado com
o agir e a liberdade. Ao agir o homem inicia um processo cujo fim não pode ser previsto. Esta
relação aparecerá de maneira recorrente em sua obra. Desde então considerar o homem como
um ser que age, e procurar as condições para a ação humana se tornarão uma tarefa central da
4
André Duarte coloca que para a autora nossa tradição de filosofia política é marcada por um conflito entre o saber
filosófico e a política que privou os assuntos humanos que concernem ao âmbito comum-público de sua dignidade
própria. DUARTE, André. Pensamento à Sombra da Ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo:
Paz e Terra, 2000. p.131 e 132. Arendt postula a “pluralidade humana” como fundamento de toda atividade
política, que tem a ver com a construção de um “mundo comum” por uma “pluralidade” de homens preocupados
com a edificação do “artifício humano”. DUARTE, André. Pensamento à Sombra da Ruptura: política e filosofia
em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 47
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nova reflexão sobre o político de Arendt. Segundo Young-Bruehl, Arendt manteve uma vigília
sobre a ação, ela levantou a questão do significado da ação humana, mantendo vigilância sobre
as palavras e os feitos do homem.
Assim, em Origens do Totalitarismo, encontramos a seguinte passagem:
O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do
homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo
creatus est — "o homem foi criado para que houvesse um começo", disse
Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade,
cada um de nós. (ARENDT, 1989: 531)
Aqui o tema da natalidade aparece associado à capacidade do homem para começar no
âmbito da política. A capacidade iniciadora do homem equivale à sua liberdade, porque pode
gerar algo novo. Isto permite à Arendt relacionar liberdade e política e enxergar a história com
esperança, pois o homem pode superar o horror do totalitarismo.
Em A Condição Humana Hannah Arendt cita poucas vezes Agostinho, embora seja
possível observamos a influência do pensamento agostiniano em diversas passagens. Aqui
ressalto aquela em que Arendt aborda o tema da revelação do agente no discurso e na ação. Ela
nos diz que é com palavras e atos que nos inserimos no mundo, no que se configura como uma
espécie de segundo nascimento. O ímpeto desta inserção decorre do começo que vem ao mundo
com nosso nascimento, e ao qual respondemos começando algo novo por iniciativa própria.
Segundo a autora, agir, de maneira geral, significa tomar iniciativa, iniciar, imprimir
movimento a alguma coisa.
Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores em
virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas, são
impelidos a agir. (Initium) ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus
fuit (<<portanto, o homem foi criado para que houvesse um começo, e antes
dele ninguém existia>>). (ARENDT, 2007:190)
Este início do homem difere do início do mundo porque não é o início de alguma coisa,
mas o início de alguém que é, ele próprio, um iniciador. Arendt completa dizendo que “com a
criação do homem, veio ao mundo o próprio preceito de início; e isto, naturalmente, é apenas
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outra maneira de dizer que o preceito de liberdade foi criado ao mesmo tempo, e não antes, que
o homem.”(ARENDT, 2007: 190)
Novamente o conceito de nascimento aparece relacionado ao agir e à liberdade. Para
Arendt todo nascimento traz a possibilidade do novo: os novos homens trazem consigo o
milagre da esperança, pois trazem em si a ação livre de que são capazes por nascimento. Esta
esperança é a possibilidade real de mudança. Para Arendt a capacidade de realizar milagres
deveria ser incluída na gama de faculdades humanas, pois a ação ao interromper o automatismo
do processo começando algo novo que não podia ser esperado representa um milagre.
Na obra Entre o Passado e o Futuro Arendt recorre a Agostinho diversas vezes5, mas é
no capítulo “Que é a liberdade?” que a sua influência é mais notável. Primeiro Arendt discute
a noção de liberdade como livre-arbítrio. Para Jardim esse questionamento da visão cristã da
liberdade foi decisivo para Arendt, pois ela considerava que por essa via poderia superar os
entraves que dificultavam a definição do estatuto político da liberdade. Para a autora a liberdade
pertence ao âmbito público enquanto a liberdade relacionada com o livre-arbítrio ficava situada
no âmbito interior, da vontade.
Mais adiante no capítulo Arendt irá apontar outra discussão da liberdade efetuada por
Agostinho que terá grande importância em sua obra. O bispo não discute a liberdade apenas
como liberum arbitrium. Em seu único tratado político, A Cidade de Deus, surge uma noção
concebida de modo inteiramente diverso. Aqui a liberdade é vista como um caráter da existência
humana no mundo, e não uma disposição humana íntima. Agostinho equaciona a aparição do
homem no mundo com o surgimento da liberdade no universo. Assim nos diz Arendt, inspirada
por Agostinho:
o homem é livre porque é um começo, e, assim, foi criado depois que o
universo passara a existir: [Initium] ut esset, creatus est homo, ante quem
5
Por exemplo, no capítulo sobre o conceito de história antigo e moderno Hannah Arendt cita Agostinho ao
contestar a tese de que a moderna consciência histórica possui uma origem religiosa cristã. (p. 96-98) E no
capítulo “O que é a autoridade?”, Agostinho aparece como um grande responsável pela transformação que
religara a Igreja ao mundo, politizando-a, e transformando-a em herdeira da tríade romana de religião, autoridade
e tradição. (p. 169)
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nemo fuit. (De Civitate Dei, livro XIII, cap.20) No nascimento de cada homem
esse começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já
existente alguma coisa nova que continuará a existir depois da morte de cada
indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser
livre são uma única e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no
mundo a faculdade de começar: a liberdade. (ARENDT, 1972: 216)
Essa noção de liberdade teria inspirado Arendt na elaboração de sua concepção de
política. A liberdade humana não ocorre no âmbito interno, ela só ocorre na política, em meio
a outros homens, na capacidade de iniciar algo inteiramente novo, que é inerente ao homem
devido ao fato da natalidade.
Para finalizar, em Sobre a Revolução Agostinho é citado em dois momentos. Falo aqui
do segundo momento, que ocorre no capítulo intitulado “Foundation II: Novus Ordum
Saeclorum” para falar da capacidade do homem de instituir novos começos. A autora aborda
um poema de Virgílio, que para ela parece elaborar, a sua maneira, o que Agostinho
desenvolverá cinco séculos depois numa linguagem cristã, e que a autora imagina tenha ficado
claro no decurso das revoluções da era moderna, isto é: para que houvesse um começo, o
homem foi criado. O que interessa para a autora é a ideia de que os homens estão equipados
para fazer um novo começo:
os homens são equipados para a tarefa paradoxalmente lógica de construir um
novo começo por serem, eles próprios, novos começos, e, portanto,
inovadores, e de que a própria capacidade de iniciação está contida na
natalidade, no fato de que os seres humanos aparecem no mundo em virtude
do nascimento.(ARENDT, 1990: 169)
Nesta obra, acredito, Arendt expõe de maneira definitiva a concepção política da
natalidade ao associar a capacidade iniciadora do homem, derivada do nascimento, às
revoluções.
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Artigos:
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