Sartre: O confronto de ideologias entre o homem e Deus na peça As

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Sartre: O confronto de ideologias entre o homem e Deus na peça As
Moscas
Sartre: The clash of ideologies between man and God in the play The Flies
Ester da Silva Gomes1
Resumo: Segundo Sartre, o homem está condicionado a ser livre para escolher e tomar
decisões. Porém, essa mesma liberdade é regida por consequências que recaem sobre sua
exclusiva responsabilidade. Este pensamento está presente na peça teatral, As Moscas de 1943.
Nesse drama, Sartre, além de expor sua filosofia existencialista, constrói uma metáfora de seu
tempo já que a peça faz alusão à invasão alemã no território francês, conhecido por “governo de
Vichy”. Ela é uma releitura do mito de Orestes, e se a história deste mito permanece imutável, o
que muda é o tratamento que o escritor dá a seu drama, transformando a tragédia da fatalidade
em tragédia da liberdade. Esta comunicação se debruça em alguns aspectos da filosofia sartriana
para compreender a composição dos conceitos transpostos da filosofia à literatura. Objetiva-se
também, confrontar as ideologias de Orestes e o deus Júpiter. Enquanto Orestes é a
representação do homem existencialista, aquele que se responsabiliza por suas ações e se coloca
como sujeito em constante mudança, o deus Júpiter é a representação da crença de um plano
metafísico, com o qual Orestes rompe definitivamente o vínculo ao final da peça.
Palavras-chave: Sartre. Existencialismo. As Moscas.
Résumé: Selon Sartre, l’homme est conditionné à être libre pour choisir et prendre des
décisions. Cependant, cette liberté a des conséquences qui retombent sur la responsabilité de
l’homme. Cette pensée est présente dans la pièce théâtrale Les Mouches de 1943. Dans ce
drame, Sartre montre sa philosophie existentialiste, et en outre, il construit une métaphore de
son temps puisque la pièce fait allusion à l’invasion allemande dans le territoire français,
épisode connu comme le “Régime de Vichy”. Cette pièce est une adaptation du mythe d’Oreste,
comme l’histoire de ce mythe continue immutable, ce qu’il change est le traitement que
l’écrivain donne à son drame, il transforme la tragédie de la fatalité en tragédie de la liberté.
Cette communication se consacre à quelques aspects de la philosophie sartrienne pour
comprendre la composition des concepts philosophiques dans la littérature. Nous avons aussi
l’intention de confronter les idées d’Oreste et du dieu Jupiter. Le personnage Oreste est la
représentation de l’homme existentialiste, c’est-à-dire, il est responsable de ses actions et ce
sujet est en changement constant; le dieu Jupiter à son tour est la représentation de la foi d’un
plan métaphysique avec lequel Oreste rompt de façon permanente à la fin de pièce.
Mots-clés: Sartre. Existentialisme. Les Mouches.
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Graduanda em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Assis. Bolsista
FAPESP. Orientadora: Carla Cavalcanti e Silva. E-mail: [email protected]
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Sartre: o confronto de ideologias entre o homem e Deus
1. Introdução
A literatura proporciona ao homem viajar no tempo e conhecer as mazelas que
perpassam a história da humanidade. Diversas questões tratadas na literatura ainda
afligem a sociedade e o homem, dessa forma uma obra literária escrita num determinado
momento histórico, numa cultura distinta pode retratar nosso presente, porque os livros
em diferentes assuntos como conflitos existenciais, sociais, psicológicos ainda retratam
o homem em sua complexidade arrastando por séculos essas dúvidas, perturbações e
injustiças. A literatura proporciona momentos de emoções e de reflexões, um modo de
enxergar o homem em determinada situação.
A Europa no século XX foi marcada por desastres, um deles é a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). Com ela houve um abalo em diversos setores, como o social, a
política, o financeiro e o moral. Numa situação como essa, de calamidade, o homem se
perde e fica sem reação diante de um mundo movido apenas por guerra, poder,
ideologia e desastres. O escritor-filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980), conhecido por
seu sistema filosófico, foi expoente da filosofia existencialista. Nos interessa desse autor
o entrelaçamento de sua filosofia com sua literatura, sendo esta um meio de difundir seu
pensamento filosófico, de modo que por trás do enredo, das metáforas, dos discursos
dos personagens, são encontrados os vestígios do pensamento desse filósofo.
Segundo Sartre, a condição do homem é ser livre para escolher, contudo, seus
atos e suas consequências são responsabilidade exclusivamente do homem que os
escolheu, pensamento presente em sua peça teatral As Moscas, de 1943. Nesse drama,
Sartre expõe sua filosofia existencialista, além de construir uma metáfora de seu tempo,
pois essa peça faz alusão à invasão alemã no território francês, conhecido por “governo
de Vichy” durante a Segunda Guerra Mundial. Essa peça teatral representa sua fase
engajada tendo como influência seu contexto histórico, e seu conceito de liberdade
repousa em comprometer-se numa causa, ou seja, escrever era uma maneira do escritor
se engajar. Assim, seu pensamento filosófico ofereceu suporte ao escritor para que ele
pudesse criar um modo diferente de falar sobre a liberdade e ele o conseguiu por meio
do teatro. Nesta modalidade Sartre alcança seu propósito, pois mostra numa
determinada situação o homem em ação. Nessa peça em especial Sartre evidencia como
os conflitos individuais podem interferir no outro indivíduo.
Desse modo, o teatro se torna um lugar propício para a realização de seu
pensamento e de sua arte. É compreensível pensar que o teatro sartriano é muito mais
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lido do que encenado, pois o autor não tinha tanta experiência cênica para dar ao teatro
ares em função do seu projeto filosófico, assim, seu teatro se encaixa melhor à leitura do
que à representação. No livro, Un Théâtre de situations de 1973, Sartre afirma que o
caráter principal da peça teatral está na situação, pois, como o homem é livre, consegue
desfrutar dessa liberdade em determinada situação, por isso o teatro se encaixa
perfeitamente no conceito sartriano. Uma vez que a vida do homem é feita de várias
situações em que ele é compelido a escolher, decidir, o teatro mostra o momento dessa
escolha quando o homem está para fazer algo. Assim, a cada decisão tomada, a pessoa
cria para si uma moral.
O mito é uma forma de representar e dar significado a existência humana, assim
como as coisas a sua volta, Sartre utiliza do mesmo princípio, por meio do mito ele quer
mostrar algo, porém, ele acaba por subvertê-lo, suprimindo a ideia estagnada do mito e
conferindo ao seu drama um novo modo de ver e compreender o mundo.
Essa peça sartriana é uma releitura do mito de Orestes, e se a história deste mito
permanece imutável, o que muda é o tratamento que o escritor dá a seu drama,
transformando a tragédia da fatalidade em tragédia da liberdade. Resumidamente, o
mito é o retorno de Orestes ao seu lar para vingar a morte de seu pai, para isso o jovem
com a ajuda de sua irmã mata sua mãe e seu amante, libertando a cidade e sua irmã
desses assassinos.
Para compreender a composição dos conceitos transpostos da filosofia à
literatura, teremos como apoio uma conferência estritamente filosófica do escritor,
intitulada L’existentialisme est un Humanisme, 1946, para reconhecer na peça teatral
seu pensamento. Nosso objetivo será mostrar e observar o confronto das ideologias
entre Orestes e o deus Júpiter e como foi possível Orestes chegar a esse embate.
A peça representa naquele momento histórico uma ferramenta para difundir a
filosofia, e mais, era um modo de expressar à plateia a não inibição de sua liberdade. A
peça foi uma metáfora para mostrar o domínio alemão na França, conferindo à peça um
caráter político. As Moscas, de acordo com Welsh (2003), foi a única forma de
resistência encontrada por Sartre, para ele o teatro era um fenômeno coletivo, porque é
justamente o coletivo que faz do teatro uma arte importante durante a ocupação alemã.
Essa peça possui sua importância, pois cada personagem representa a projeção
da filosofia sartriana, de modo que a escolha do mito como fonte alude ao momento
pelo qual a França passava, a invasão das tropas alemãs, como dito anteriormente. Uma
das leituras feitas deste drama relata que Clitemnestra representaria o colaboracionista
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francês, Egisto o usurpador estrangeiro (alemão) e Orestes o indivíduo que liberta seu
povo, exercendo o seu papel de escolha e não se arrependendo do que fez, ele carrega o
peso de suas responsabilidades (MACIEL, 1970, p. 102). Temos ainda Electra e o povo
argivo que representam na perspectiva sartriana a má-fé. A exposição feita da peça foi
essencial para mostrar como cada personagem tem sua importância e como eles se
comportam ao longo da trama.
2. Alguns aspectos da filosofia existencialista
Um dos aspectos que Sartre (s/d, p.3, tradução nossa) aborda em sua conferência
é a responsabilidade do indivíduo: “se verdadeiramente a existência precede a essência,
o homem é responsável por tudo o que ele é”2. Percebe-se que Orestes se transforma
durante a peça, Sartre construiu um personagem que cria consciência de suas ações e as
mudanças acontecem mediante o contexto no qual está localizado.
Acrescenta ainda que o homem não é responsável somente por sua
individualidade, mas também é responsável por todos os homens. Podemos entender
essa citação da seguinte forma: o personagem Orestes ao colocar em prática sua escolha
rompe com as leis divinas e com as leis da sociedade, esse fato desequilibrou a ordem
mantida pelos governantes, de forma que um indivíduo pode interferir na vida de outros
com sua ação. Para Orestes, não é errado querer vingar seu pai e sua decisão é tomada
até o final, diferentemente da decisão de sua irmã. Porém, ele tem consciência do que
seu ato provocou, ele interferiu na vida da cidade.
Dostoievsky escreveu “se Deus não existisse tudo seria permitido”, para Sartre
esse é o ponto de partida do existencialismo, diante do qual o homem está desamparado,
pois não encontra em si e nem fora algo em que possa se agarrar e, assim, não encontra
desculpas. E se realmente a existência precede a essência, não podemos explicar o
homem por uma natureza humana dada e definitiva. Não existe um determinismo, o
homem possui sua liberdade e como Deus não existe de acordo com a filosofia
existencialista, não encontramos valores ou ordens que legitimem nossa conduta, assim
os homens estão sozinhos e sem apoio. Por isso Sartre (s/d, p. 5, tradução nossa) afirma
que “o homem está condenado à ser livre. Condenado, porque ele não criou a si mesmo
2
Mais si vraiment l’existence précède l’essence, l’homme est responsable de ce qu’il est.
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e contudo livre, porque uma vez lançado no mundo ele é responsável por tudo o que
fizer”3.
O homem existencialista nunca pensará que encontrará ajuda num sinal dado
para orientá-lo no mundo, pois é o homem quem decifra esse sinal da forma que lhe
convém, como acontece com Orestes, que não aceita o sinal divino diante dele,
enquanto as pessoas de Argos quando veem a pedra da caverna rolar sentem medo,
pensando tratar-se de um sinal. Como disse Sartre, a pessoa decifra o sinal, logo, o
homem sem apoio e sem ajuda está condenado a inventar a cada instante a si mesmo.
3. Os personagens como projeção filosófica
O personagem Júpiter aparece materializado na peça, nesse caso, sua presença é
uma forma de desmistificar o sobrenatural, na tentativa de quebrar a barreira existente
entre o mundo terrestre e o mundo metafísico, já que a vontade dos deuses não interfere
nas atitudes humanas, pois o ser humano é responsável pelo que faz.
Dessa forma, esse deus é colocado em carne e osso no plano terrestre para que
Sartre proceda a sua desconstrução, mas, Júpiter não é representado como uma figura
suprema que detém para si poderes extraordinários, na peça sartriana ele possui
características humanas. Uma delas aparece na rubrica da peça: “Júpiter aparece no
fundo da cena e se esconde para escutá-los” (SARTRE, 2005, p. 57). Um deus não
precisaria se esconder para saber o que os humanos falam ou pensam, Sartre quer
afastar o homem do plano divino e isto é feito pela fala e atitude de Orestes: “A justiça é
um assunto de homens, e não preciso de um Deus para me ensiná-la” (SARTRE, 2005,
p. 79). Ele ainda afirma que Júpiter pode ser o deus de tudo, menos do homem: “Mas
não és o rei dos homens” (SARTRE, 2005, p. 102) e mais “Assim que me criaste eu
deixei de te pertencer” (SARTRE, 2005, p. 103). Assim, o deus é colocado no mesmo
nível que o homem, sem poderes sobrenaturais, e mesmo que Júpiter possa fazer
algumas coisas que os homens não conseguem, como por exemplo espantar as moscas,
“poder” que logo em seguida é explicado diante de todos, isso o desmistifica, fazendo-o
passar apenas por um mágico.
O personagem Orestes é a representação do homem existencialista, ele é
responsável pelas suas ações, mostrando que o sujeito está em constante mudança, já o
[…] l’homme est condamné à être libre. Condamné, parce qu’il ne s’est pas créé lui même, et par
ailleurs cependant libre, parce qu’une fois jeté dans le monde, il est responsable de tout ce qu’il fait.
3
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deus Júpiter representa a crença de um plano metafísico, com o qual no final da peça
Orestes rompe definitivamente. No drama sartriano, os irmãos Orestes e Electra passam
por transformações que podem ser vistas nas ações e nos discursos dos personagens.
Sendo assim, existe uma diferença entre os irmãos e ela repousa justamente na ação, já
que ambos passam por um processo de modificação. A mudança que atua neles está de
acordo com as circunstâncias, ou seja, a situação, pois é nela que o homem tomará seu
posicionamento. Assim, só podemos confirmar o comportamento de má-fé de Electra
por meio de sua ação, que provoca uma mudança no seu ser, desse modo, sua atitude
mais sua ação dão vazão a seus sentimentos: o arrependimento e o medo do que fez.
Como cada irmão vê seu ato depois do crime, um se torna livre e o outro não,
assim, a escolha se manifesta na ação, pois mesmo que Electra tenha participado
indiretamente do assassinato, ela não admite o que seu irmão fez, não quer ter parte na
responsabilidade desse ato. A escolha está intimamente ligada com a ação porque
reconhecemos no indivíduo o que ele é devido a sua ação, o discurso de uma pessoa é
um posicionamento dela, porém, o sentimento ou a vontade são legitimados na ação,
nas palavras de Sartre (s/d, p. 7, tradução nossa): “você é livre, escolha, ou seja,
invente”4.
Portanto, o discurso e a ação na personagem Electra não estão em sintonia,
porque um não se efetiva no outro, já que Electra foge de sua liberdade, negando sua
atitude. A personagem é representada dentro do sistema filosófico sartriano como a máfé. Assim, a passagem na qual temos a revelação da mudança de Electra – antes e depois
de matar a mãe – demonstra a contradição da moça, pois no começo da peça seu
comportamento era outro. No início da peça, nota-se em Electra um sentimento de ódio
e o máximo que ela consegue nesse primeiro momento é gesticular alguns insultos e
jogar detritos na estátua de Júpiter, mas quando se trata de fazer algo, de ter atitude, ela
atribui as ações ao seu irmão, sendo ele responsável por fazer o que ela deseja. Nesse
momento ela tem uma personalidade forte, sem medo e hesitação . Deste modo, existe a
contraposição do discurso anterior com a ação após o crime e isto fica visível quando
ela se submete às leis de Júpiter. Isto posto, são colocados na peça satriana dois
personagens que representam seu pensamento, um que vai ao encontro de sua liberdade
e outro que dela foge.
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[…] vous êtes libre, choisissez, c’est-à-dire inventez.
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O personagem Orestes, em determinado momento, assume sua verdadeira
identidade, reconhecendo seu nome e sua origem negados por ele no início da peça com
a justificativa de não pertencer ao lugar, o que o fazia ser apenas um estrangeiro em sua
terra natal. A mudança está no comportamento do personagem e também no seu
discurso, torna-se senhor de si e de seu caminho, não é mais levado por caminhos e
situações como acontecera até esse momento. Percebemos um Orestes ativo, querendo
participar do que lhe pertence, não ignorando os problemas de sua cidade. Percebe-se,
de modo gradativo, como ele passou de observador da cidade a participante ativo dela.
No decorrer da peça temos uma inversão de pensamento e atitude nos dois
irmãos, porém essa inversão não é a troca de um pelo outro, cada um tem suas
particularidades. O que os mantém unidos, e que posteriormente se extingue em Electra,
é o pensamento de matar os assassinos do pai, mas é importante destacar que essa
vontade é originada de maneira diferente. Em Electra, ela é vista como vingança de seu
pai, para Orestes, além da vingança, ela tem um propósito maior, pois ele não
compromete somente a si e a sua irmã, mas também a cidade inteira. Percebemos como
Orestes se preocupa com o povo, já sua irmã mesmo se mostrando encorajada como
quando aparece na festa, seu motivo é bem mais individual e sem o comprometimento e
a consciência do que seu ato pode gerar.
4. Ruptura do personagem Orestes
O segundo ato da peça sartriana corresponde ao momento em que Orestes pede
ajuda divina por não saber o que fazer. Nessa passagem, percebemos sutilmente o
intuito de Sartre, pois muitas vezes as decisões são difíceis para o homem e por conta do
desamparo ele clama por uma ajuda sem saber que ele mesmo é o único capaz de ajudálo. Porém, mais importante do que Orestes pedir ajuda e ter obtido como um “truque”
de Júpiter, é a recusa em aceitar esse sinal, pois, mesmo depois dele, o personagem pode
escolher. Na verdade, ele sempre pode escolher e, ele escolhe não aceitar, episódio que
evidencia um recado de Sartre: sempre temos escolhas. O trecho a seguir mostra o apelo
do personagem e a partir daqui temos a mudança de Orestes:
Se ao menos eu enxergasse com clareza! Ah! Zeus, Zeus, rei do céu
eu raramente me voltei a ti e nunca me foste favorável, mas és
testemunha de que jamais desejei senão o bem. Agora estou cansado,
não distingo mais o Bem do Mal e preciso que me tracem meu
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caminho. Zeus, é preciso de fato que um filho de rei, expulso de sua
cidade natal, se resigne santamente ao exílio e a abandone com a
cabeça baixa, como um cão rastejante? É esta tua vontade? Não posso
acreditar. […] Zeus, eu te imploro […] manifesta-me tua vontade por
algum sinal, pois não consigo mais enxergar com clareza. (SARTRE,
2005, p. 60)
O desespero de Orestes é mostrado quando ele pede por um sinal, pois ele
raramente clama por uma ajuda divina, ilustrando que, nos momentos mais difíceis, até
a pessoa mais afastada dos princípios da religião acaba pedindo por um sinal, por sentirse deslocada e sem saber o que fazer em certas situações. Mas Orestes não aceita esse
sinal, aqui temos uma característica importante, ele tem consciência da sua liberdade e
de suas escolhas. Nada pode traçar seu caminho senão ele próprio e mesmo
reconhecendo isso, sente-se angustiado porque suas escolhas e atitudes dependem dele.
E nem sempre escolher é uma tarefa fácil, por isso “a liberdade, na concepção sartriana,
é fonte de angústia do “para-si” (PENHA, 1986, p. 80). Pois, “livre, consciente disto, o
homem se angustia porque se vê compelido a escolher. A angústia da liberdade é a
angústia de optar, de fazer escolhas” (PENHA, 1986, p. 80).
Antes da transformação, ou seja, de ser o Orestes existencialista, é registrado,
como vimos, seu desespero em pedir uma ajuda divina para saber se volta ao seu exílio.
Não sabe o que fazer e recorre à única alternativa à qual raramente se dirige, a Zeus. E
então, Júpiter aproveita da situação e rapidamente mostra um sinal a Orestes.
Quintiliano (2010, p. 52-53) aborda esse momento da transformação do personagem:
Nesse momento crucial, opera-se a “conversão” de Orestes ao
existencialismo sartriano e ele se sente esvaziado de qualquer
esperança ou sentimentos exteriores a ele próprio, disposto a ser
Orestes custe o que custar. […], o herói rejeita a resposta de Zeus,
abolindo qualquer crença religiosa ou sobrenatural […]. Observa-se
que foi dado o primeiro passo em direção à assunção plena do Ser,
que emerge inicialmente da consciência do Nada, à qual o herói
ascende nesse momento.
Orestes obtém uma resposta quanto ao seu pedido, uma luz se faz ao redor da
pedra, porém não aceita e indaga: “Então… é isso o Bem? (pausa. Olhar fixo sobre a
pedra) Obedecer sem resistir. Docemente. Dizer sempre “perdão” e “obrigado” … é
isso?” (SARTRE, 2005, p. 61). Nessa passagem, a natureza se revela a Orestes, uma vez
que ele mesmo pede por um sinal por não saber o que fazer, porém, mesmo a natureza
se mostrando para ele por meio do deus Júpiter, ele não aceita. Desta forma, Sartre
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Sartre: o confronto de ideologias entre o homem e Deus
utiliza o mito para desconstruí-lo. Faz parte do sistema filosófico de Sartre a
inexistência de Deus e ao ter como fonte um mito, as forças sobrenaturais fazem parte
da peça sartriana como ferramenta de criação de um discurso para mostrar que o mundo
metafísico não interfere no mundo dos homens. Portanto, o rapaz ignora a luz,
entendemos aqui a rejeição a qualquer tipo de envolvimento com o sobrenatural, aqui se
extingue qualquer aproximação ou busca por sinais para saber o que o homem deve
fazer. Em seguida, os dois irmãos, juntos, decidem matar Clitemnestra e Egisto.
O personagem Orestes rompe o laço que tem com o divino e isto é revelado pela
sua ação de matar os assassinos e não ter remorsos pelo ato cometido, como vemos em
sua fala: “Não voltarei à tua natureza: mil caminhos nela estão traçados que conduzem a
ti, mas não posso seguir senão meu caminho. Pois eu sou um homem, Júpiter, e cada
homem deve inventar seu caminho” (SARTRE, 2005, p. 105). Orestes compreende que
está sozinho no mundo, como Sartre (s/d, p. 7, tradução nossa) comenta na sua
conferência: “O abandono implica que nós escolhemos nós mesmos nosso ser”5, por
conta de seu desamparo entende onde está o verdadeiro significado das coisas. Ele está
em suas atitudes e assim, mais adiante, o personagem rejeita o sinal, entendido como
uma força sobrenatural, e sem mais pedir ajuda, ele reconhece sua liberdade e trata de
vivê-la. Desse modo, o ser humano se encontra desamparado, sendo ele responsável por
si, havendo sempre uma construção do sujeito e é esse aspecto que a filosofia de Sartre
(SARTRE, s/d, p. 14, tradução nossa) privilegia, pois: “o existencialista jamais toma o
homem como um fim, pois ele está sempre por fazer”6.
Por isso, em determinado momento Júpiter diz a Egisto: “Nós fazemos reinar a
ordem, tu em Argos, eu no mundo, e o mesmo segredo pesa fundo em nossos corações”.
(SARTRE, 2005, p. 76). O segredo dos deuses, e consequentemente o dos reis, é a
liberdade dos homens. Eles são livres, mas não sabem, por isso Egisto encena todos os
anos a festa dos mortos para esconder o poder e a liberdade que o povo tem.
5. O confronto entre o homem e deus
A liberdade se faz pelo indivíduo, mas devemos lembrar que “A liberdade como
definição do homem não depende do outro, mas logo haja um engajamento, sou
5
6
Le délaissement implique que nous choisissons nous-mêmes notre être.
[…] l’existentialiste ne prendra jamais l’homme comme fin, car il est toujours à faire.
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Sartre: o confronto de ideologias entre o homem e Deus
obrigado a querer ao mesmo tempo minha liberdade e a liberdade dos outros”7, assim,
“querendo a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos
outros e que a liberdade dos outros depende da nossa”8 (SARTRE, s/d, p. 12, tradução
nossa). Percebemos como esse conceito de liberdade individual e coletiva é ilustrado
pelo personagem Orestes, que ao escolher e colocar em ação o assassinato da dupla de
governantes, mudou toda a dinâmica da cidade. Não somente sua vida, mas a daquelas
pessoas agora libertas da tirania e submissão impostas por Egisto. Orestes abalou a
ordem estabelecida, pois Egisto extraía a liberdade do povo enquanto Orestes a restitui.
Entretanto, diferentemente do herói trágico, o personagem não instaura outra ordem no
lugar; ele somente diz ao povo: “Adeus, meus homens, tentai viver: tudo é novo aqui,
tudo está começando” (SARTRE, 2005, p. 112).
O confronto das ideologias entre Orestes e Júpiter é uma maneira lúcida de
entender o pensamento filosófico de Sartre, enquanto Orestes é a representação do
homem existencialista, um ser em constante mudança com a responsabilidade de seus
atos, o deus Júpiter representa a crença de um plano metafísico, com o qual Orestes
rompe definitivamente no final da peça. A existência humana ou o viver implica um
escolher, a todo momento as pessoas escolhem, seja uma escolha pequena ou uma
escolha que interfere na vida de outros e, aquele que escolhe deve perceber que mesmo
se eximindo da escolha, ele ainda está escolhendo.
Observamos um discurso novo por Orestes e após Sartre mostrar a mudança do
personagem, chega o momento de enfrentar Júpiter, no terceiro ato da peça. Para isso, o
personagem representa nesse momento a projeção da filosofia sartriana, que discorre
sobre questões acerca do homem e da liberdade. Nessa parte, observa-se um embate,
como já mencionado entre Orestes (um humano) e o Júpiter (um deus), em que o
primeiro representa o herói da liberdade, enquanto o deus representa a força opressora.
Segundo Pierre-Henri (apud SOARES, 2005), As Moscas tem um significado profundo
em tratar a rebelião “luciferiana”, uma criatura de Deus, uma vez recebido sua liberdade
ele recusa o próprio Deus, como podemos ver nos trechos seguintes:
Júpiter: Não sou teu rei, larva imprudente. Quem então te criou?
Orestes: Tu. Mas não devias ter me criado livre.
Júpiter: Eu te dei tua liberdade para me servir.
[…] la liberté comme définition de l’homme ne dépend pas d’autrui, mais dès qu’il y a engagement, je
suis obligé de vouloir en même temps que ma liberté la liberté des autres.
8
[…] en voulant la liberté, nous découvrons qu’elle dépend entièrement de la liberté des autres, et que la
liberté des autres dépend de la notre.
7
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Sartre: o confronto de ideologias entre o homem e Deus
Orestes: Pode ser, mas ela se voltou contra ti sem que pudéssemos
fazer nada, nem eu nem tu. (SARTRE, 2005, 102)
A presença de um deus é justamente para desmistificar, com algumas
características peculiares que Sartre conferiu a este personagem divino, como já
abordado na análise da peça. A presença do deus se explica na construção do duelo de
diálogos, sobretudo quando Orestes reafirma sua liberdade enquanto Júpiter tenta
mostrar-se o senhor dos homens: “És o rei dos deuses, Júpiter, o rei das pedras e das
estrelas, o rei das ondas do mar. Mas não és o rei dos homens” (SARTRE, 2005, p.
102).
Orestes não só afirma sua liberdade como ele a defende do Deus. Enquanto que
na tragédia grega Orestes é defendido por Apolo de seu crime, aqui é o próprio Orestes
quem defende não o seu crime, mas a sua liberdade. O personagem ilustra claramente
um dos pontos tratados na conferência sobre a ideia de Deus. A existência humana parte
do princípio que o homem existe para uma finalidade e deus o criador do ser humano na
sua força suprema conhece e sabe o destino de cada um. Sartre refuta a ideia de Deus e
articula que o homem está sozinho nesse mundo e seu caminho cabe somente ao sujeito.
Esse ser supremo pode ser o deus de tudo, mas não do homem, porque uma vez o
homem lançado no mundo ele deve escolher o que fazer, sabendo que não há amparo
que o ajude a decidir, como o próprio Orestes fez, pois sendo livre, ele pode decidir qual
escolha tomar e essa foi a rejeição de qualquer força sobrenatural. Assim “ Nenhuma
moral geral pode te indicar o que fazer. Não existe nenhum sinal no mundo”9
(SARTRE, s/d, p. 7, tradução nossa).
6. Conclusão
Com a segunda guerra, Sartre foi levado a colocar suas ideias em prática. A
intenção da peça era mostrar, por meio da encenação, a liberdade das pessoas, mesmo
quando há uma barreira imposta pelo contexto histórico da França. No entanto, o
escritor não poderia encenar abertamente seu propósito porque os alemães entenderiam
a finalidade do teatro, por isso também Sartre recorre ao mito grego (PENHA, 1986, p.
105). O personagem principal tem um peso importante porque ele mostra a escolha
comprometida num ato e desse ato a total responsabilidade. Diz o autor (1986, p. 108):
9
Aucune morale générale ne peut vous indiquer ce qu’il y a à faire. Il n’y a pas de signe dans le monde.
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Sartre: o confronto de ideologias entre o homem e Deus
Orestes simboliza a liberdade individual. Seu gesto de vingança é um
convite à luta. Sartre já observara, em O Ser e o Nada, que a liberdade
vazia se anula como liberdade – é preciso comprometê-la num ato para
que exista. E é a esse comprometimento que conduz o herói da peça.
Na peça As Moscas, a situação-limite encontra-se no assassinato da mãe, Orestes
deve escolher entre matá-la ou não. Sartre mostra a liberdade do homem até mesmo
num crime hediondo, pois independentemente de a situação se apresentar abominável, o
homem é forçado a escolher e a liberdade repousa não somente na escolha, mas no
reconhecimento da responsabilidade de sua ação, pois o homem é livre para escolher e
essa é sua única condição, e, portanto, não deve buscar circunstâncias para justificar
seus atos, tampouco dizer que não teve escolha.
Esses dois personagens representam os conceitos sartrianos postos em ação, eles
ganham vida na literatura, não se restringindo somente ao pensamento filosófico. Sartre
conseguiu transformar e exemplificar sua filosofia na literatura, inserindo muitas
metáforas nessa peça, caminhando e mesclando diferentes áreas do conhecimento como
a literatura, a história, a filosofia, além de conseguir que o discurso da peça se
sobressaísse, pois sua ideia era difundir seu pensamento, ou seja, falar da liberdade do
ser humano.
Existe o entrelaçamento da filosofia com a literatura em Sartre, pois ele é
reconhecido como filósofo e expoente da corrente existencialista, e muitas vezes não
enxergamos seu potencial como escritor e vulgarizamos como uma esquematização de
sua filosofia. Suas obras literárias possuem, sem questionamentos, sua filosofia, porém
encontramos um tratamento que Sartre confere a seus livros, construindo
simultaneamente, em vias paralelas, um alinhamento dessas duas áreas e formas que
estão presentes no mundo: a literatura e a filosofia.
A literatura não é um acessório da filosofia, mas com o direcionamento de
Sartre, um engajamento em si. Por isso, tanto a filosofia quanto a literatura possuem um
papel diverso de compreender o ser humano e o mundo, além de possuírem uma
linguagem própria criando dois modos de ver sob um mesmo assunto. Mesmo Sartre
empregando nas suas obras literárias a exposição de sua filosofia, encontramos um novo
modo de explorar e mostrar a realidade humana com a ajuda de imagens que são
próprias da literatura.
Vol. 8, 2015.
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Sartre: o confronto de ideologias entre o homem e Deus
Foi possível com as duas modalidades haver o entrelaçamento, uma vez que para
analisar a peça foi necessário recorrer a filosofia e, ao tratar dos conceitos sartrianos
podemos encontrar como isso se concretiza na peça teatral, ou seja, na forma literária.
Desta forma, escolhemos um personagem para compreender a exposição da filosofia
existencialista satriana.
Referências
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o bom Deus. Rio de Janeiro: DP et alii/Faperj, 2010.
SARTRE. J-P. As Moscas. Tradução de Caio Liudvik. Rio de Janeiro. Ed. Nova.
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WELSH, K. L’influence de l’occupation allemande sur la littérature, le théâtre et le
cinéma français. Dissertação (Mestrado) – Universidade da Georgia, 2003. Disponível
em: <https://getd.libs.uga.edu/pdfs/welshkimberly_b_200308_ma.pdf> Acesso em : 13
abril 2015.
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