PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS A CONSTRUÇÃO DE INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS EM TEXTOS ESCRITOS DO PORTUGUÊS CULTO DO BRASIL EDNA MARIA SANTANA MAGALHÃES Belo Horizonte, Dezembro de 1998. EDNA MARIA SANTANA MAGALHÃES A CONSTRUÇÃO DE INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS EM TEXTOS ESCRITOS DO PORTUGUÊS CULTO DO BRASIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa. Orientador: Professor Doutor Milton do Nascimento Belo Horizonte, Dezembro de 1998. Esta Dissertação foi aprovada pela BANCA EXAMINADORA constituída pelos seguintes professores: Esta pesquisa foi realizada com o apoio financeiro da FAPEMIG que me concedeu bolsa de estudos de mestrado durante o ano de 1996. Agradeço, pois, a esta instituição por esta contribuição, sem o que teria sido difícil concluir, com dedicação total, esta pesquisa. AGRADEÇO ao meu orientador, MILTON DO NASCIMENTO, grande MESTRE, pelo NASCIMENTO de uma pesquisadora, pelo crescimento pessoal, pela confiança, segurança e paciência e, principalmente, pelo constante aprendizado proporcionado pela sua firme orientação; aos colegas de curso, amigos das horas de angústia e de alegrias, pelas contribuições diversas e críticas ao trabalho; aos professores do curso, pelo amadurecimento dos meus verdes conhecimentos e pelas muitas manifestações de amizade; às funcionárias da Secretaria do Mestrado, Vera, Marieta e Cristina, pela eficiência e paciência no trato conosco, os estudantes; ao André, pela serenidade e presteza; a Reinildes, pela colaboração neste trabalho, sem, ao menos, conhecer-me; aos colegas da Escola Fundamental do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais, pela liberação durante o ano de 1997; em especial, aos amigos do Núcleo de Letras, pelas cobranças veladas, pelo incentivo e o carinho tantas vezes manifestados; aos meus alunos, que alimentam meu desejo de descobertas; a D. Ângela, exemplo de força, persistência, sabedoria, ética, pelo afeto e amizade com que me acolheu desde o nosso primeiro encontro e, do fundo do coração, pela ajuda tão preciosa e oportuna; aos meus pais, pela minha existência e aos meus irmãos, por serem os filhos que eu não fui. a Ana Maria, Edenize e Regina, Sem palavras, pois o silêncio também significa; a Paulo, amigo e companheiro incondicional, pela tolerância com minhas intolerâncias, pelo “apoio moral”, pelas cobranças e, sobretudo, pelo seu imenso amor; a Fabiana e ao Felipe, pessoas em construção, pelos momentos de lazer subtraídos, pela “colaboração e substituição” nas atividades domésticas e, sobretudo, por serem o que são hoje: uma promessa de humanidade. a Deus, por todos os vínculos criados e firmados ao longo destes anos, por ter-me mostrado que ainda há pessoas de verdade a minha volta, por ter-me criado e dado tantas dádivas sem exigir nada em troca. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................12 2. CONSTRUÇÃO E TRATAMENTO DO CORPUS...........................................................................15 3. O CORPUS ............................................................................................................................................16 4. JUSTIFICATIVA DO CORPUS.........................................................................................................17 5. OS OBJETIVOS...................................................................................................................................20 6. A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO...............................................................................................21 PARTE I – O pólo do enunciado ........................................................................................................22 1.1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................22 1.2. GRAMÁTICA TRADICIONAL ......................................................................................................22 1.2.1. AS FORMAS DO DISCURSO NA GRAMÁTICA TRADICIONAL........................................24 1.2.2. A CARACTERIZAÇÃO DAS FORMAS DE DISCURSO NA GT. ..........................................29 1.2.3. O PRODUTO – O TEXTO LITERÁRIO - COMO OBJETO DE ANÁLISE ..........................32 1.3. UMA PERSPECTIVA DE OBSERVAÇÃO DA CIE ....................................................................33 1.4. POR UMA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO ......................................................................................34 1.4.1 A TEORIA DA COMUNICAÇÃO ................................................................................................35 1.4.2 A TEORIA DAS FUNÇÕES DA LINGUAGEM..........................................................................36 1.4.3 A TEORIA DOS ATOS DE FALA ................................................................................................39 1.4.4. A TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGÜÍSTICA....................................................43 1.4.5. AS TEORIAS DO DISCURSO......................................................................................................45 PARTE II - O pólo da enunciação......................................................................................................47 2.1. A INTERAÇÃO LINGÜÍSTICA NUMA VISÃO PROCESSUAL...............................................47 2.2. A CONSTRUÇÃO DE INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS - CIE ...................................................48 2.3. A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM...............................................................................................49 2.4. O DISCURSO COMO INTERDISCURSO ....................................................................................52 2.5. A CONCEPÇÃO DE TEXTO ..........................................................................................................53 2.6. AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ................................................................................................55 2.7. POR UMA TEORIA MODULAR DA LÍNGUA............................................................................56 2.7.1. A VISÃO DE MORRIS..................................................................................................................57 2.7.2. A VISÃO DE ROULET .................................................................................................................58 2.7.3. A VISÃO DE CASTILHO .............................................................................................................60 2.7.3.1. CONSTRUÇÃO POR ATIVAÇÃO...........................................................................................63 2.7.3.2. CONSTRUÇÃO POR REATIVAÇÃO .....................................................................................64 2.7.3.3. CONSTRUÇÃO POR DESATIVAÇÃO ...................................................................................64 2.8. SÍNTESE ............................................................................................................................................66 PARTE III – As pistas do processamento discursivo..........................................................................69 3.1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................69 3.2. O SISTEMA DÊITICO.....................................................................................................................69 3.2.1. OS “SHIFTERS” DE JAKOBSON...............................................................................................71 3.2.2. OS ÍNDICES DA ENUNCIAÇÃO DE BENVENISTE ...............................................................75 3.2.3. AS EXPRESSÕES INDICIAIS DE BAR-HILLEL .....................................................................76 3.2.4. OS “EMBRAYEURS” DE DUCROT...........................................................................................78 3.3. AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NA CIE ................................................................................80 3.4. A POLIFONIA NO DISCURSO ......................................................................................................81 3.5. A CONCEPÇÃO DE AUTOR/LOCUTOR/ENUNCIADOR ........................................................83 3.6. SÍNTESE ............................................................................................................................................86 PARTE IV – A dêixis temporal/espacial na CIE ................................................................................88 4.1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................88 4.2. TEMPO E ESPAÇO NO PROCESSAMENTO DISCURSIVO....................................................89 4.3. TEMPO/ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DE PLANOS ENUNCIATIVOS ..................................93 4.4. A CONFIGURAÇÃO DA INE NA TEORIA MODULAR............................................................97 4.4.1. A ARTICULAÇÃO DE TEMPOS/ESPAÇOS ENUNCIATIVOS...........................................100 4.5. SÍNTESE ..........................................................................................................................................102 5. Conclusões do capítulo ................................................................................................................102 1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................105 2. O PROCESSAMENTO DISCURSIVO E A SELEÇÃO LEXICAL .............................................106 2.1. A ATIVAÇÃO/REATIVAÇÃO/DESATIVAÇÃO DO LÉXICO ...............................................106 2.2. A SELEÇÃO LEXICAL .................................................................................................................108 3. IDENTIFICAÇÃO DOS PROCESSOS DE CIE .............................................................................113 3.1. FORMAS DE ATIVAÇÃO DE PLANOS ENUNCIATIVOS E CIES .......................................114 3.2. ATIVAÇÃO DAS “FORMAS DE DIZER” NO PROCESSAMENTO DISCURSIVO ............122 vii 3.2.1. A ATIVAÇÃO DA “SITUAÇÃO DEFAULT” E A CONSTRUÇÃO DO PLANO BASE DE INTERLOCUÇÃO .................................................................................................................................123 3.2.2. A “SITUAÇÃO DEFAULT” EM PLANOS SUBALTERNOS ................................................129 3.2.3. PESSOALIZAÇÃO/IMPESSOALIZAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE EN1 ..........................131 3.3. VERBOS “DICENDI”.....................................................................................................................138 3.3.1 . VERBOS “DICENDI” NA REFERENCIAÇÃO DE INES .....................................................142 3.3.2. VERBOS “DICENDI” E MODALIZAÇÃO DOS TIPOS DE DISCURSO ............................144 3.4. VERBOS NÃO-DICENDI ..............................................................................................................147 3.5. DEVERBAIS....................................................................................................................................150 3.7. PARÊNTESES, ASPAS, TRAVESSÕES ......................................................................................158 4. OPERAÇÕES NO MÓDULO GRAMATICAL NA CIE ...............................................................165 4.1. FORMAS DE ARTICULAÇÃO DA CIE .....................................................................................167 4.1.1. USO DA DÊIXIS ESPAÇO/TEMPORAL .................................................................................172 5. A ATIVAÇÃO DO MÓDULO SEMÂNTICO NA CIE ..................................................................175 5.1. A MODALIZAÇÃO NA CIE .........................................................................................................176 5.1.1 MODALIZADORES DO DISCURSO E SEMANTIZAÇÃO DE INES...................................178 6. A CIE E O MÓDULO DISCURSIVO ..............................................................................................184 7. TAXIONOMIA DAS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE CIES ................................................186 7.1. ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE CIES ..................................................................................188 8. SÍNTESE .............................................................................................................................................193 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................196 2. OS PRESSUPOSTOS DA PESQUISA .............................................................................................197 3. AS CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA...........................................................................................202 CONTRIBUIÇÕESS EMPÍRICAS ......................................................................................................202 CONTRIBUIÇÕES METODOLÓGICAS...........................................................................................203 CONTRIBUIÇÕES PRÁTICAS ...........................................................................................................204 CONTRIBUIÇÕES PARA AS ÁREAS DO CONHECIMENTO......................................................206 viii SUMÁRIO LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Esquema da Teoria da Comunicação: fatores envolvidos ................ 35 Figura 2 Esquema da Teoria da Comunicação: funções da linguagem .......... 37 Figura 3 Esquema de uma Teoria Modular .................................................. ... 62 Figura 4 O tempo da enunciação ..................................................................... .. 90 Figura 5 Articulação de instâncias enunciativas ................................... .......... 96 Figura 6 Hierarquia dos planos enunciativos de (8) ........................................ 99 Figura 7 Multiplicidade de tempo/espaço de INEs ......................................... 101 Figura 8 A Construção de instâncias enunciativas em (10) .......................... 110 Figura 9 Classificação I dos verbos “dicendi” ................................................. 141 Figura 10 Classificação provisória dos verbos “dicendi” ................................ 177 INOPSE Numa perspectiva discursiva, fundamentada em uma concepção de linguagem como atividade, esta pesquisa propõe identificar, classificar e analisar as “formas de dizer” implementadas na construção de instâncias de enunciação, na modalidade escrita do Português culto do Brasil. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.” (Bakhtin) xi CAPÍTULO 1 Por uma análise das estratégias discursivas de construção de instâncias enunciativas 1. Introdução Nossa decisão de estudar as marcas lingüísticas utilizadas para a construção de instâncias de enunciação (CIE)1 de um texto escrito nasceu da observação de textos produzidos por alunos das 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental (antigo 1º grau). Constatamos que, apesar das condições em que são produzidos e da supremacia do discurso escolar, esses textos possuem, em seu corpo, um conjunto de pistas (marcas lingüísticas) que consideramos como índices de estratégias discursivas reveladoras do trabalho do seu autor com e na linguagem. Essas estratégias discursivas não são consideradas como objeto de ensino/aprendizagem. Como hipótese de trabalho - que justificaremos posteriormente - postulamos que tais pistas remetem a estratégias discursivas adotadas pelo próprio autor do texto, ao instituir-se como enunciador, ou ao agenciar outros enunciadores a quem dá voz, na construção de seu texto. Os profissionais do ensino não dão a importância devida a essas estratégias, que são fundamentais na construção de textos. Constata-se a presença dessas mesmas marcas no exame de qualquer texto escrito, no Português considerado culto do Brasil. Em vista disso, parte-se das seguintes premissas nesta pesquisa: (a) um texto evidencia, em sua materialidade, as marcas lingüísticas de estratégias discursivas adotadas pelo seu autor na CIE; (b) tais estratégias envolvem mecanismos e/ou princípios de construção de textos que carecem de um estudo mais sistematizado, constituindo-se justificadamente como um objeto de estudo. Essas premissas assumem grande importância, se consideradas como pistas do processamento discursivo de um texto. O leitor poderá constatar esse fato, ao longo 1 Utilizaremos CIE quando se fizer referência à construção de instâncias de enunciação. 12 desta dissertação, principalmente, no capítulo que trata da análise do corpus, visando à construção de uma taxionomia das estratégias discursivas utilizadas na CIE. Conforme dissemos, as estratégias discursivas não pertencem ao elenco dos conteúdos tradicionalmente privilegiados pelos professores e, por extensão, pelo sistema escolar, apesar de envolverem, de maneira decisiva, o conhecimento lingüístico do falante, manifestando-se, a todo momento, no seu desempenho, enquanto ser de linguagem, na produção de qualquer tipo de texto - quer no padrão culto (como se verificará nos textos jornalísticos), quer em outras situações de interação verbal (na escrita e na fala). Sabe-se que o maior interesse de grande parte dos professores de língua materna, na leitura das redações escolares, diz respeito à correção ortográfica e à obediência às normas gramaticais cultas. Assim, esses professores debruçam-se sobre as produções escritas de seus alunos na busca de “erros”, sem se preocupar em entender os mecanismos utilizados pelos aprendizes no registro escrito ou em explicitar outros mecanismos que ajudem estes a aprimorar-se em tal atividade. Perpetua-se, dessa forma, “um grave problema: alunos (e professores) com muitos anos de escola enfrentam traumáticos momentos sempre que têm que produzir um texto escrito” (Possenti, 1998, no prelo)2. E mais: no final do tempo escolar, os alunos, de uma maneira geral, continuam a apresentar alguns “erros” inconcebíveis e não conseguem construir um texto coeso e coerente quando as situações efetivas de uso exigem deles um bom desempenho escrito. O uso adequado de expressões, como “é claro”, “certamente”, “é evidente”, o uso de citações, de parênteses, o uso de elementos dêiticos (os pronomes pessoais e demonstrativos, os advérbios, as desinências verbais), o uso de modalizadores temporais, espaciais e de atitudes e o uso de verbos “dicendi” são alguns dos recursos discursivos utilizados pelos autores para a CIE e são negligenciados pelos professores e pelos manuais utilizados no ambiente escolar. Esses mecanismos lingüísticos, que constituem parte do conhecimento dos alunos, são representativos do seu desempenho no uso da linguagem escrita ou oral. No entanto tais 13 mecanismos não são tomados sequer como ponto de partida para a organização e implementação do processo de ensino e aprendizagem do Português culto do Brasil. Caberia à escola oferecer aos alunos recursos que os ajudassem a interagir, com mais facilidade, com interlocutores reais, em situações efetivas de uso da linguagem. Este estudo pretende, dentre outros objetivos, contribuir para que se focalizem, no ensino de língua, as referidas estratégias discursivas. Essa questão da relação escola e do ensino da língua, apesar de não se constituir como o objeto desta pesquisa, será considerada no momento de se avaliar as possíveis implicações desse estudo. Sua conseqüência maior, cremos, será evidenciar a importância de uma mudança do que, hoje, considera-se relevante no contexto escolar, pelo menos no que tange ao ensino/aprendizagem da língua: o deslocamento do foco no enunciado para enfatizar a enunciação (CASTILHO, 1989). Em suma, procurar-se-á responder à seguinte pergunta: que mecanismos são ativados, na escrita, pelo autor, para constituir-se, ou a outros, como enunciador(es) de um texto escrito? Ao definir tal objeto de estudo - os mecanismos de CIE - pretende-se, também, contribuir para o avanço da pesquisa lingüística, no que se refere à descrição do português contemporâneo. Note-se, ainda, que o recorte que define esse objeto de estudo coaduna-se com o de trabalhos que vêm sendo realizados por pesquisadores de várias universidades brasileiras, que elegeram a língua falada como objeto de estudo, no intuito de se elaborar uma gramática do português falado do Brasil. Resguardadas as diferenças existentes entre este estudo e o de tais pesquisadores, podemos dizer que comungamos objetivos comuns, ao tentarmos descrever o português contemporâneo abordando a organização Textual-Interativa, a partir de uma perspectiva funcional da linguagem. 2 . Texto intitulado “Discurso, sujeito e trabalho de escrita”. In.: O SUJEITO FORA DO ARQUIVO que ainda se encontra no prelo. 14 2. Construção e tratamento do corpus De acordo com o que foi mencionado no item 1, a motivação para empreendermos esta pesquisa foi, inicialmente, a verificação de um uso recorrente de determinados itens lexicais, que remetiam à identificação de seus enunciadores, nos textos escritos de alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública de Belo Horizonte. Num segundo momento, procedemos a uma pesquisa, em textos jornalísticos, com o intuito de observar como os enunciadores desses textos eram indiciados. O resultado dessa pesquisa foi a constatação de que os autores dos textos escolares e dos textos jornalísticos utilizavam, de forma semelhante, alguns recursos lingüísticos para indiciar os seus enunciadores. Em conseqüência dessa observação, definimos o nosso objeto de estudo: explicitar, de forma sistemática, como os autores de textos escritos no português contemporâneo construíam os enunciadores de seus textos. Em suma, partimos da relevância dos dados verificados nos textos produzidos no cotidiano escolar e nos textos jornalísticos. Esses dados foram tomados como índices da atividade lingüística de seus autores, e, nesse sentido, definimos como metodologia de trabalho o paradigma indiciário. De acordo com Tfouni (1992, p.211) “A concretização de tal metodologia implica que o(a) próprio(a) pesquisador(a) deve colocar-se sempre três parâmetros básicos. Em primeiro lugar, ele(a) deve considerar que o dado é um indício (Ginzburg, 1989); em segundo lugar, que a situação de testagem sempre se constitui em uma situação discursiva (Tfouni, 1988 a), e, em terceiro lugar, que a posição do(a) pesquisador(a) exige uma série de deslocamentos e posicionamentos em pontos de vista diversos, o que lhe dará como conseqüência perspectivas diferentes de onde olhar os dados e a situação discursiva da testagem (Freire, 1990)”. Em conformidade com essa metodologia de trabalho, Tfouni postula que seguir o paradigma indiciário significa restituir ao texto suas qualidades individuais, restituirlhe os contextos em que foi produzido, a(s) história(s) de suas condições de produção (Idem, p. 212). Por essa razão, partimos do pressuposto de que os recursos lingüísticos que motivaram nossa pesquisa devam ser tratados como índices do trabalho de 15 linguagem dos autores de textos escritos. Citando Orlandi e Guimarães (1988), observamos a relevância de se considerar essas pistas, pois “As marcas são pistas. Não são encontradas diretamente. Para se atingi-las, é preciso teorizar. Além disso, a relação entre as marcas e o que elas significam é tão indireta quanto é indireta a relação do texto com suas condições de produção. No domínio discursivo não se pode, pois, tratar as marcas ao modo “positivista”3 como na Lingüística.” (p. 18) Encontramos, ainda, nesses autores, maiores razões para a utilização do método indiciário, porque ele nos possibilita uma movimentação dinâmica, em termos de perspectivas de observação do fenômeno a ser investigado. É nesse sentido que eles afirmam que o pesquisador deve “passar por diversos lugares discursivos ou diversos posicionamentos de observação desses dados e de análise desses contextos” (Idem, p.212). A partir do momento em que, nesta pesquisa, nos propomos a estudar um dado singular – a construção de instâncias de enunciação em textos escritos – e a analisar esse dado como um índice de interação verbal, justifica-se adotarmos um paradigma indiciário como método de pesquisa. 3. O corpus O corpus dessa pesquisa constituir-se-á de um conjunto representativo de textos jornalísticos, argumentativos4, extraídos de jornais de grande circulação no país. A escolha desse tipo de texto justifica-se por duas razões. Primeiramente pelo fato de serem escritos no português culto do Brasil. E, em segundo lugar, pelo fato de os textos argumentativos evidenciarem melhor o caráter polifônico do discurso. É na argumentação que mais facilmente verifica-se a utilização de estratégias discursivas de CIE. 3 O modo “positivista” corresponde ao método galileano, segundo o qual o dado é objetivo e pode ser observado diretamente. De acordo com Tfouni, seguir esse método significa, na visão de Ginzburg, efetuar “... uma progressiva desmaterialização do texto, continuamente depurado de todas as referências sensíveis” (Ginzburg, 1989, p.:157). 4 Foram utilizados alguns textos narrativos, também jornalísticos, devido à natureza de alguns dos recursos utilizados em sua produção. 16 Selecionamos uma amostra significativa de textos de jornais de grande circulação no país: a Folha de São Paulo, O Globo, O Jornal do Brasil e o Estado de Minas. Na construção desse corpus, não se levaram em conta fatores como autores, assuntos abordados, cadernos e a data de circulação dos textos selecionados. Os dados considerados no corpo desta dissertação, apresentar-se-ão: a) numerados em ordem crescente; b) seguidos de parênteses, que trazem o seguinte sistema de notação: • T, da palavra texto, seguido de um número identifica os textos segundo a ordem em que se apresentam no anexo; • L, da palavra linha, seguido de número(s) identifica a(s) linha(s) que possibilitam a localização do trecho no texto referido por T. É importante registrar que um mesmo dado poderá ser arrolado mais de uma vez, conforme seja necessário ilustrar fenômenos distintos. Quando isso ocorrer, ele receberá uma nova numeração. Assim, obter-se-á, por exemplo, a seguinte notação: (T45, L12). Essa notação nos informa que o excerto foi extraído do texto 45, linha 12; 4. Justificativa do corpus A escolha de um corpus dessa natureza – os textos jornalísticos – deve-se estritamente ao pressuposto de que os interlocutores, em toda e qualquer atividade discursiva, interagem através de textos, que são produzidos levando-se em conta diversos fatores de natureza verbal e não verbal. Além disso, caracterizam-se por uma construção formal, tendo em vista que revelam a preocupação em respeitar a norma culta da língua. Caracterizam-se, também, por apresentarem vestígios de informalidade, que os aproximam de uma linguagem mais informal, próxima da fala. Essa última característica de tais textos garante uma maior proximidade com o leitor e visa a convencê-lo, persuadi-lo da veracidade de suas notícias, informações, opiniões. Nesse sentido, a mídia impressa revela o caráter interacional da linguagem. 17 É importante frisar que, ao adotarmos tal tipo de texto como fonte de observação, não excluímos, de forma alguma, o caráter dialógico de que se reveste a língua em todas as suas utilizações. Ao contrário, ao tomar como objeto de estudo recursos e estratégias discursivas utilizadas em textos escritos, pretendemos reforçar a tese de que todo texto é essencialmente dialógico. Essa postura, significa assumir, como afirma Bakhtin (1929), que “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.” (p.: 123) Baseamo-nos, também, em Perini (1995) para justificar a nossa escolha do corpus. Esse autor apresenta as seguintes considerações sobre os textos jornalísticos: apresentam uma linguagem padrão; há neles uma grande uniformidade gramatical e estilística, pois são isentos de regionalismos. Essas seriam razões que, segundo o autor, justificam a utilização de textos jornalísticos no ensino/aprendizagem de língua e subsidiam uma análise lingüística em que a “gramática seja (...) uma descrição do português padrão tal como se manifesta na literatura técnica e jornalística” (p.:88). Estamos assumindo, ainda, que, apesar das diferenças inerentes à organização e à forma de um determinado tipo de texto, decorrentes de suas condições de produção, a escrita revela marcas da atividade lingüística de seu autor. Essa foi uma das hipóteses de que partimos para definir o objeto deste nosso estudo. Assumimos, também, que essas marcas do trabalho de linguagem dos autores de textos escritos podem ser tomadas como indícios das estratégias discursivas implementadas na produção desses textos. As estratégias discursivas, neste trabalho, não se restringem à utilização dos “Shifters”5 (terminologia usada por Jakobson (1963)), como tradicionalmente concebidos, mas abrangem um conjunto de procedimentos mais variados. Esses procedimentos e/ou 5 Essa terminologia será apresentada mais detalhadamente a seguir no capítulo 2. 18 estratégias discursivas indiciam, lingüisticamente, a construção dos enunciadores de um texto. Em decorrência disso, concebemos a existência de um Autor-Modelo, entendido, nesta pesquisa, como o interlocutor responsável pela produção dos enunciados e que, obviamente, institui-se como um dos enunciadores de um texto. Essas duas instâncias caracterizam-se como estratégias textuais que revelam papéis actanciais6 (termos emprestados de Eco (1986)). Tais estratégias, como entidades lingüísticas, só se explicam em função dos enunciados que as indiciam, evidenciando as condições em que foram produzidas e, conseqüentemente, o processo de sua enunciação. Com a finalidade de explicitar a importância de tais papéis actanciais no processo de produção discursiva, propusemo-nos a empreender uma análise dos recursos utilizados em sua implementação, visando a construir uma taxionomia das estratégias discursivas básicas envolvidas na construção de instâncias de enunciação. Isso significa, pois, conceber o Autor-Modelo como instância a partir da qual os enunciadores se constituem. Tal concepção reconhece o Autor-Modelo, os enunciadores e seus respectivos alocutores como instâncias ativas, em função dos quais a enunciação se define. Tais estratégias revelam-se como resultantes das escolhas do autor, enquanto actor maior, responsável por colocar em cena os actores os quais ele irá “dirigir” e com os quais irá contracenar. Ao darmos ênfase às estratégias textuais que indiciam os enunciadores de um texto escrito, remetemo-nos a um conjunto diversificado de itens lexicais que apontam para uma dimensão polifônica do discurso. Esse conjunto de itens lexicais - os embreantes7 ou a dêixis – que se configuram como elementos lingüísticos com que o autor opera para indiciar, através do texto, aspectos de sua atividade discursiva são fundamentais para o trabalho de produção de sentido, por parte de seu(s) interlocutor(es). 6 Para maiores esclarecimentos sobre o conceito de autor, enunciador e papéis actanciais, ver a Parte III no capítulo 2. 7 Embreantes é uma tradução portuguesa de “embrayeurs”, que é a tradução do inglês shifter adotado por Jakobson, utilizada na versão portuguesa de Maingueneau (1986). 19 Nesse ponto de vista, os embreantes8, bem como as estratégias discursivas que envolvem sua utilização, são importantes indícios que revelam as condições de produção de uma enunciação. O sistema dêitico constitui-se, pois, como um dos principais fatores constituintes da competência lingüística do falante e, por tal, tem uma importância fundamental na implementação das operações necessárias à efetivação do processo da enunciação. É pela ativação desse sistema que os usuários da língua distinguem as vozes que perpassam a enunciação e a constituem, garantindo, desse modo, a sua unicidade, ou seja, o fato de que não há possibilidade de se repetir uma enunciação. 5. Os objetivos O quadro teórico utilizado nesta pesquisa (que será explicitado no capítulo 2) foi especificado visando : 1. à identificação e à descrição de processos e/ou procedimentos lingüísticos utilizados na CIE em textos jornalísticos argumentativos, tais como: o processamento dêitico, a articulação de verbos “dicendi”, os modos de articulação de “vozes”, de citação etc.. O trabalho realizado nessa etapa resultará em uma taxionomia de tais processos e ou procedimentos; 2. a uma análise dessa taxionomia com o objetivo de explicitar as estratégias discursivas que possam ser tomadas como evidências de fatores constituintes da “competência textual” de autores de textos escritos no português culto do Brasil; 3. à tentativa de redução de tais estratégias discursivas a princípios e/ou mecanismos lingüísticos constituintes da competência textual de autores de textos escritos no português culto contemporâneo; 4. ao exame da possibilidade de sugestões para o tratamento a ser dado às referidas estratégias no processo de ensino/aprendizagem do português culto, no contexto escolar, a partir dos resultados obtidos na tarefa a que alude 3, acima, 8 Utilizaremos, neste estudo, “shifters”, termo emprestado de Jakobson (1963), referindo-nos aos elementos que indiciam os enunciadores no discurso. No capítulo seguinte, explicitaremos esse conceito. 20 De uma forma mais específica, este trabalho pretende discutir formas de CIE na produção de textos escritos, visando, inclusive, a rediscutir estudos realizados sobre tópicos tais como “discurso direto”, “discurso indireto” e “discurso indireto livre”. De uma forma mais geral, a pesquisa pretende apresentar novos dados que possam favorecer outros trabalhos sobre o estudo da escrita, do ponto de vista de seu funcionamento discursivo. 6. A organização do trabalho Esta dissertação compõe-se de quatro capítulos. Neste primeiro, que tem um caráter introdutório, faz-se a apresentação do objeto de estudo desta pesquisa, definindo-o em termos da sua justificativa, dos objetivos pretendidos, da escolha do corpus e da metodologia empregada e do tratamento desse corpus. No segundo capítulo, faz-se uma resenha de teorias que dão suporte à pesquisa, com o intuito de se definir a terminologia e especificar o quadro teórico a ser utilizado no tratamento do corpus. Em função da delimitação do quadro teórico, palavras-chave, tais como: autor, locutor, alocutário, interlocutor, enunciador, enunciatário, enunciação, polifonia, vozes enunciativas serão explicitadas, ocorrendo o mesmo com o conceito de texto, linguagem, discurso e estratégias discursivas. Com isso, tentar-se-á explicitar melhor o objeto da pesquisa: os mecanismos envolvidos na CIE na produção de textos escritos no Português culto contemporâneo, situando-o em uma perspectiva discursiva, em uma visão processual de linguagem como uma atividade interativa. No terceiro capítulo, empreende-se uma análise das estratégias de CIE identificadas na produção dos textos do corpus, com o fim de explicitar processos envolvidos na CIE, na produção de textos escritos no Português culto do Brasil. No último capítulo, serão apresentadas as conclusões da pesquisa e as possíveis contribuições para os estudos lingüísticos e para o redimensionamento do ensino de língua materna, no que concerne ao ensino e à aprendizagem da produção de textos. 21 Capítulo 2DO PÓLO DO ENUNCIADO AO PÓLO DA ENUNCIAÇÃO PARTE I – O pólo do enunciado 1.1. Introdução O objeto de estudo desta pesquisa, embora já tenha sido abordado sob diferentes perspectivas, ainda apresenta questões que necessitam ser elucidadas, como a que ora se propõe: explicitar que conhecimentos lingüísticos são implementados, na escrita, pelo autor, para a construção de instâncias enunciativas - CIEs - de um texto. Há, em quase todos os trabalhos que abordam o discurso, tanto na Gramática Tradicional, quanto nas teorias mais recentes da Lingüística, como é o caso da Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso, referências à possibilidade da existência de enunciadores diferentes num texto. No entanto, pelo que sabemos, até o momento não se tratou o objeto dessa pesquisa, de forma mais sistematizada, em uma visão mais funcional da língua. Em vista disso, neste capítulo, consideraremos algumas abordagens lingüísticas do objeto desta dissertação. Partiremos de estudos centrados numa visão de língua enquanto produto, passando, a seguir, por outras abordagens que consideram o processamento discursivo. Nesse sentido, não nos preocuparemos em considerar tais abordagens lingüísticas seguindo um critério cronológico, embora os desdobramentos decorrentes de uma determinada concepção de língua possam estar direta ou indiretamente relacionados a momentos anteriores. Iniciaremos pela abordagem da Gramática Tradicional. 1.2. Gramática Tradicional 22 A Gramática Tradicional concebe a língua como um código lingüístico ou um sistema de signos vocais e significativos utilizados pelo homem para expressar seus pensamentos. Tal conceito está presente, também, nos estudos lingüísticos desenvolvidos por Saussure. Nesse sentido, na Gramática Tradicional, constata-se uma ênfase grande na estrutura da frase, identificada na materialidade dos enunciados. Não se focaliza o conhecimento das estruturas da frase enquanto fator constituinte do processo de produção dos enunciados. Além disso, os exemplos arrolados nos manuais de gramática9, geralmente extraídos de textos de autores consagrados na literatura brasileira e portuguesa, também não ilustram o processamento discursivo da língua. A abordagem é de tal forma centrada na estrutura desses textos que todo “uso” de fatos lingüísticos estranhos aos eternizados por aqueles autores não são considerados, pelos gramáticos, como forma de expressão da norma culta. Nesse sentido, os textos que manifestam alguma variação lingüística ou fujam da chamada norma culta, manifestada nesses, são atribuídos ao estilo do autor. Vale a pena observar como Cegalla (1989:536) define esse termo: “Estilo é a maneira típica de cada um exprimir seus pensamentos através da linguagem”, ou seja, é “o espelho onde se reflete a alma do escritor, a tela em que se projeta a personalidade do artista” e “revela também os traços psicológicos da raça e as tendências dominantes das diversas correntes literárias que marcaram época através dos tempos”. Nessa perspectiva tradicional, o tratamento da constituição de enunciadores, ou seja, como dá-se a CIE, é abordado como propriedades do texto, do produto, e não em uma perspectiva discursiva, como se verá a seguir. 9 O termo gramática é utilizado, nesse caso específico, para designar os manuais utilizados com o fim de ditar as normas do bom uso e “funcionamento” da língua culta. 23 1.2.1. As formas do discurso na Gramática Tradicional10 Não há, nos manuais de gramática pesquisados, concordância no que concerne à terminologia empregada - discurso/estilo- para a representação escrita das “falas” ou “pensamentos” dos enunciadores no texto literário. Muitas vezes os dois termos são utilizados como sendo equivalentes, podendo-se ler discurso direto/discurso indireto/discurso indireto livre em alguns autores, como Garcia (1967), Cegalla (1989) e Cunha (1980), e em outros, estilo direto/estilo indireto/estilo indireto livre, como se encontra em Lima (1957). Além disso, não há como definir o que diferencia os seguintes termos discurso/estilo/fala, tendo em vista serem eles utilizados como se, entre eles, houvesse uma equivalência de sentidos. Assim, podemos encontrar as seguintes menções: “ (...) o narrador, após introduzir o personagem, o guaximim, deixa-o expressar-se “lá na língua dele”, reproduzindo-lhe a fala tal como a teria organizado e emitido. A essa forma de expressão, em que o personagem é chamado a apresentar as suas próprias palavras, denominamos discurso11”. (CUNHA, 1980). e “Para fazer-nos conhecer, no curso de uma narrativa, palavras ou pensamentos de outrem12, dispõe a técnica da redação de três processos típicos. I.(...) estilo direto. II. (...) estilo indireto. III. (...) estilo indireto livre.” ( LIMA, 1957: 496-98) Nota-se que o termo discurso, tal como concebido na citação de Cunha (1980), remete à Retórica, à arte da persuasão, cujos princípios remontam a Aristóteles. No capítulo 2 de sua RHÉTORIQUE, Aristóteles postula que “a retórica é a faculdade de descobrir especulativamente o que, em cada caso, pode ser apropriado à persuasão” (p.12). 10 Utilizaremos GT para nos referirmos à Gramática Tradicional. Os itálicos são nossos, o sublinhado no termo “discurso”, no entanto, é do próprio autor. Nessa citação, o autor define o discurso direto. 12 Os itálicos são nossos. 24 11 Nesse sentido, o papel do orador é fundamental para se conseguir o efeito desejado no ouvinte, porque “Persuade-se pelo caráter, quando o discurso é de natureza a tornar o orador digno de fé, pois as pessoas honestas nos inspiram a maior e mais pronta confiança sobre todas as questões em geral e uma inteira confiança sobre aquelas que não comportam nada de certo, e permitem a dúvida. Mas é preciso que esta confiança seja efeito do discurso, não de uma prevenção sobre o caráter do orador.” (Aristóteles. RHETORIQUE I, cap. 2, 76-7). Por seu turno, “A persuasão é produzida pela disposição dos ouvintes, quando o discurso os conduz a provar uma paixão. (..) É o discurso que produz a persuasão, quando fazemos aparecer o verdadeiro e o verossímil daquilo que cada tema comporta de persuasivo.” (Ibid., 77). Dessa forma, discurso é empregado referindo-se à expressão oral, cujo fim específico é garantir a adesão dos ouvintes através dos efeitos do próprio discurso. Discurso é também utilizado para referir-se a enunciado. Como sinônimo de enunciado, discurso seria constituído por uma seqüência de vocábulos que forma uma mensagem, com início, meio e fim. Essa caracterização do termo discurso, aludindo a sua organicidade, não se coaduna com a concepção estruturalista de fala. Segundo essa visão, a fala não possui sistematicidade, principalmente, por não ser planejada, tendo em vista as condições em que se produz e se manifesta. O que distingue essas duas concepções de discurso – a que se refere explicitamente à fala e a que se refere à escrita - como postula Osakabe (1979: 135), é o fato de que, a primeira dessas “... se refere não ao domínio frasal, mas ao domínio discursivo, cujas finalidades e motivações, mesmo que possam ser 25 classificadas, não poderiam jamais ser sistematizadas lingüisticamente, em virtude de sua natureza complexa.”13 Confundindo-se com o termo estilo, o termo discurso contrapõe-se à concepção de Saussure. A dicotomia entre língua e fala, introduzida por esse autor, reside na perspectiva formal que separa o material lingüístico do não-lingüístico. Dessa forma, a concepção de estilo, citada acima, aproxima-se do conceito de fala e não do conceito de enunciado/discurso, entendido no âmbito da delimitação frasal. A utilização do termo estilo, na GT, coloca em foco uma dimensão individual da produção/recepção de textos, ou características textuais ligadas a uma determinada época, ou a uma estratificação social. Nesta perspectiva, as definições sobre as “formas do discurso” referem-se a fatores psicológicos e individuais que podem manifestar-se de uma ou de outra forma. Assim, a questão da utilização de recursos para dar voz a outros enunciadores, no discurso, é tratada, na GT, como um assunto à parte do qual poucos autores se ocupam. E, quando o fazem, destinam-lhe um espaço pequeno, muitas vezes através de definições suscintas, referindo-se apenas ao universo da escrita. A escolha do corpus recai sobre os textos literários, privilegiados como lugar ideal para o estudo dos fatos da língua. Considere-se, por exemplo, o que afirma Cegalla (1989:538), quando enfoca as figuras do narrador e dos personagens como fatores constituintes da polifonia: “O discurso: a transmissão ou a referência que o narrador faz da fala ou do pensamento das personagens.” Rocha Lima (1957) não reduz a utilização do que chamou “o estilo direto, o estilo indireto e estilo indireto livre” ao domínio da literatura. Mas, por outro lado, limita-se ao texto narrativo escrito, quando se refere aos três processos como “técnica de 13 Osakabe (1979) faz um estudo sobre as diversas formas de se conceber o termo discurso. Nessa citação, o autor analisa esse termo de acordo com o que postulam Pêcheux (1969), Grimes (1972) e Ducrot (1969). 26 redação”. Diz, dessa forma, que a língua possibilita a inserção de vozes na escrita. Ao ilustrar os tipos de estilo, o autor não se distingue dos demais autores pesquisados. Garcia (1969) refere-se à questão do discurso como uma “técnica do diálogo”, utilizada pelo narrador para tornar conhecido o pensamento de personagem real ou fictícia. Essa concepção vem de encontro ao que já se verificou nos outros autores acima citados: o texto narrativo é o espaço ideal para verificar a existência de outros enunciadores, ou seja, daqueles de quem o narrador reproduz a fala, quer de um modo direto, quer indireto, quer mesclando essas duas formas de discurso. A técnica do diálogo, como mencionada por Garcia, traduz-se como uma técnica de redação utilizada pelo autor ou pelo narrador para demarcar as possíveis “falas” dos personagens. Essa técnica possibilitaria a reprodução das variações de estilo. Como uma técnica estilística, ela contribuiria para o enriquecimento da obra, evidenciando as características próprias de uma determinada sociedade, em determinada época. Constituir-se-ia o “estilo” como um importante instrumento para a expressão das diferenças sociais entre os personagens e os traços distintivos específicos dos diversos escritores entre si. Em SAID ALI (1966), no capítulo intitulado Pontuação, a menção às vozes presentes no discurso se faz explícita quando o autor descreve as normas de utilização dos seguintes sinais de pontuação: os “dous pontos”, as “aspas”, os “parênteses” e o ‘travessão”. Extrapolando os limites do referido capítulo, não se encontra nesse autor nenhuma outra referência às formas de indicar os pensamentos e as falas dos participantes de um discurso. De acordo com SAID ALI (1966), em relação à polifonia, são as seguintes as funções desses sinais de pontuação: “OS DOUS PONTOS usam-se: 1º depois de verbo que signifique “dizer”, “responder”, “perguntar”, ou de expressões de sentido análogo, para mostrar que vamos referir palavras textuais ou exatamente conformes à enunciação do declarante: (...) 27 As ASPAS usam-se no princípio e no fim das citações, para distingui-las da parte restante do discurso: Ao brado “Cristo e avante!” todos obedeceram. (...) PARÊNTESES são dois sinais arqueados, ou angulares, de abertura oposta, entre os quais se colocam dizeres meramente explicativos com que às vezes se interrompe o discurso. (...) Os parênteses usuais são arqueados. Os de forma angular, ou colchetes reservam-se para casos especiais, por exemplo em obras científicas quando o autor quer intercalar uma observação própria em meio da transcrição de opinião alheia. (...) TRAVESSÃO é um traço de certa extensão com que se indica desvio de pensamento ou, em parágrafo diferente, a mudança de interlocutor.” (p.: 231-4) Em suma, o que se verifica na GT é uma importância muito grande à forma de reprodução escrita do diálogo entre os personagens ou à manifestação do narrador/autor. De acordo com a GT, só é possível detectar a presença de enunciadores, na escrita, através das técnicas básicas já tradicionalmente instituídas como discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. Nesse sentido, tais técnicas possibilitariam a reprodução do diálogo entre personagens ou a reprodução, por parte do narrador/autor, da fala ou do pensamento dos mesmos. Como a referência da Gramática Tradicional são os textos literários, necessária se faz a figura do narrador , a quem cabe a missão de introduzir a “fala” ou o pensamento dos personagens participantes da narrativa por meio das representações do discurso acima citadas. Nesse sentido, a técnica do diálogo conferiria ao texto uma maior autenticidade, o que aproximaria a realidade materializada na ficção da realidade do leitor ou apresentaria a este um mundo diferente do seu, porque estariam ali representados, na escrita, traços da linguagem afetiva, características de falares regionais ou de grupos, específicos de um outro tempo, como afirma Garcia (1967). 28 1.2.2. A caracterização das formas de discurso na GT. Uma pesquisa em alguns autores - Garcia (1967), Lima (1957), Cegalla (1989) e Cunha (1980)14 revela que esses já acenam para a existência da polifonia no texto literário. Isso, no entanto, não é bastante explorado nos manuais desses autores e não há interesse em fazê-lo, uma vez que, na abordagem da GT, os traços que indicam as “vozes” dos personagens não se constituem como objeto primordial de estudo dos sintaticistas. Esse é um assunto tratado pela Estilística como já se disse anteriormente. Feitas essas observações, proceder-se-á a uma síntese da caracterização dos mecanismos que, segundo os autores citados, constituem-se como formas de discurso15 na GT: (1) Discurso direto: - utilização de verbos dicendi16 ou similares ; - utilização de pontuação adequada: dois pontos, travessão ou aspas. - predomínio da parataxe: períodos compostos por orações justapostas, independentes; - ausência de conectivos entre as orações, pois a pequena pausa - marcada por vírgula ou travessão cumpre a função de uni-las; - quanto à localização em relação à fala do interlocutor; os verbos dicendi podem ser colocados em qualquer posição: início, fim ou nela intercalada; - em caso de diálogos pequenos, permite a omissão dos verbos dicendi; - possível a transposição para o discurso indireto. 14 Os quadros abaixo resumem o que esses autores aventam como características do discurso direto, do discurso indireto e do discurso indireto livre. 15 Neste item, a concepção de discurso que se utiliza é a mesma já explicitada em parágrafos anteriores. 16 Os verbos “dicendi” ou os verbos “de dizer” indiciam uma situação discursiva. Os verbos dicendi mais comuns são: dizer, acrescentar, perguntar, responder . O uso, no entanto, favorece a utilização de outros verbos com semelhante status, como é o caso dos verbos lamentar-se, queixar-se, gemer e outros. 29 Os verbos dicendi são tidos, nessa abordagem, como o fator básico para a caracterização do discurso direto, por terem a função de pôr em cena a narração de fatos por enunciadores diversificados, atualizá-los, mantendo intacta a expressividade do interlocutor, além de contribuir para diferenciar social e culturalmente os personagens. (2) Discurso indireto: - os verbos dicendi constituem o núcleo da oração principal; - predomínio de hipotaxe: períodos compostos por orações subordinadas entre si, porque o autor encaixa no seu discurso a fala dos personagens; - presença de conectivos subordinativos - que e o se ou os pronomes e outro itens interrogativos indiretos quem, qual, onde, como, quando, etc.. - adaptação de tempos verbais, de advérbios modalizadores e locativos ao distanciamento caracterizado pela mudança de locutor; - utilização de pronomes demonstrativos de 3ª pessoa; - transposição possível para o discurso direto. A utilização dessa forma de discurso – o discurso indireto -, possibilita, segundo Rocha Lima (1968), transmitir somente o “sentido intelectual e não a forma lingüística” utilizada pelos personagens. 30 (3) Discurso indireto livre: - os verbos dicendi não são utilizados; - as orações que contêm a fala das personagens são independentes; - há adaptações de tempos verbais, advérbios modalizadores e de pronomes; - conserva a afetividade e a expressão características do discurso direto; - aproxima narrador e personagem; - é impossível a transposição para o discurso direto ou o indireto. Com essa forma de discurso – o discurso indireto livre, postula-se ser possível mesclar a fala e o pensamento dos personagens e do narrador. A fala dos personagens, ou fragmentos, dela inserir-se-iam no discurso indireto do narrador. De acordo com Nicola Vita17 (apud Cunha (1980: 629-30)), com esse recurso, (i) no plano formal, há “absoluta liberdade sintática do escritor ( fator gramatical) e a sua completa adesão à vida do personagem (fator estético)” e, (ii) no plano expressivo, observam-se algumas vantagens, tais como: a narrativa se torna mais fluente, de ritmo e tom mais artisticamente elaborados, é ideal para o monólogo interior nas narrativas de memória e nem sempre aparece isolado em meio da narração. De acordo com Díaz (1970: 149), pelo fato de o discurso indireto livre estar, às vezes, incorporado à narrativa sua “riqueza expressiva aumenta quando ele se relaciona, dentro do mesmo parágrafo, com os discursos direto e indireto puro”, confluindo para o enunciado, “numa soma total , as características de três estilos diferentes entre si”. 17 Cf.: Nicola Vita, In.: CULTURA NEOLATINA, XV. Editora Moderna, 1955, p.18. 31 Díaz, no entanto, adverte que “Seu emprego por parte dos personagens literários e dos falantes não pode reger-se por capricho. É necessário que tanto uns como os outros - personagens literários e falantes - se encontrem diante de situações idôneas para poderem expressarse em discurso indireto livre. Quando se faz um uso adequado do discurso indireto livre, este se torna natural, tão natural como qualquer dos métodos de reprodução já conhecidos, embora menos usado que eles nas obras literárias e na linguagem coloquial. Quando se abusa do estilo em causa, ou melhor, quando não se tem domínio sobre ele - não importa qual seja a razão - violenta-se a sintaxe e o seu emprego passa a constituir mais um defeito do que uma qualidade literária.” (Ibidem, p. 156). Esse item - Caracterização das formas de discurso na GT - teve como objetivo, além de apresentar sumariamente as formas de inserção de vozes na escrita segundo visão da GT, servir como parâmetro para uma comparação entre o que é estabelecido como norma e o que se verifica no português contemporâneo. Essa comparação visa a explicitar quais recursos lingüísticos são utilizados e como são construídas as instâncias de enunciação, pelos autores de textos escritos. Em outras palavras, que tipo de recursos são utilizados na implementação de CIE. A GT não aborda exaustivamente o aspecto funcional da língua. Tal aspecto é focalizado, a partir do advento das teorias do texto e de outras correntes da Lingüística moderna. Dentre essas abordagens lingüísticas, a Teoria da Enunciação, a Teoria dos Atos de Fala e as Teorias do Discurso são as que vêm apresentando trabalhos de grande relevância para os estudos da linguagem. 1.2.3. O produto – o texto literário - como objeto de análise É importante notar que a GT, conforme se destacou no item anterior, enfatiza a língua enquanto forma. Nesse sentido, a ela importa, predominantemente, o produto, o texto em si, sem considerar suas condições de produção. 32 Ao eleger o texto literário como corpus, a GT privilegia a escrita como objeto de estudo e, dessa forma, subtrai de sua análise os dados lingüísticos que evidenciam o processamento discursivo da linguagem. A variação lingüística é abordada como uma questão de estilo e o seu reconhecimento, enquanto uma possibilidade de uso, está atrelado à expressão artística. A Literatura, então, lugar, por excelência, da ocorrência de textos narrativos, possibilita a manifestação lingüística dos autores de texto, pois “Todo escritor tem seu próprio estilo, isto é, sua expressão reveste uma forma característica, através da qual se manifestam seus impulsos emotivos, sua sensibilidade e a feição peculiar de seu espírito. Podemos, pois afirmar que o estilo é o espelho onde se reflete a alma do escritor, a tela em que se projeta a personalidade do artista.” (Cegalla, 1989: 536) Então, segundo Cegalla (Ibidem, p.538), o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre caracterizam-se como estratégias lingüísticas que possibilitam aos autores de textos literários “a transmissão ou referência que o narrador faz da fala ou do pensamento das personagens.” Só a narração, lugar por excelência da existência de interlocutores nas situações de diálogo, dispõe de recursos polifônicos. Aliás, o recurso da polifonia, como evidência do processamento discursivo, não é relevante para os autores pesquisados: a postura formal adotada por eles assume grande importância nesta pesquisa, devido ao fato de não corroboramos essa perspectiva de análise, conforme se verá a seguir. 1.3. Uma perspectiva de observação da CIE Na construção do quadro de referência teórica a ser utilizado na análise pretendida, levar-se-á em conta o fato de que o enunciado não pode ser analisado sem se considerar as condições de sua produção. Tal posicionamento implica adotar, como suporte, teorias que focalizam o processamento discursivo como variável indispensável na análise do enunciado. É com essa finalidade que, neste trabalho, utilizaremos contribuições da Teoria dos Atos de Fala, da Teoria da Enunciação, da AD, de uma Teoria Modular 33 desenvolvida por Castilho (1997, 1998) e, quando necessário, de outras teorias que tratem o discurso do ponto de vista de seu processamento. Em vista disso, faz-se necessário que explicitemos as concepções de linguagem, de texto, de enunciação e de discurso que subsidiam uma noção de língua escrita como representação do processo de interação, ou seja, como representação de uma atividade com/sobre a língua. Isso implica uma abordagem da língua em uma perspectiva funcional, tendo em vista que a análise do produto (o enunciado/texto) orientar-se-á pela análise do processo que o constituiu. Nessa perspectiva, pode-se dizer que procuramos inserir nosso estudo na dinâmica da produção de análises lingüísticas a que alude Castilho, ao afirmar que tais análises vêm “... deixando o pólo da linguagem como enunciado, e se desloca para o pólo da linguagem entendida como enunciação. Já não se postula mais a linguagem como um código abstrato, e se incorporam às análises do enunciado as condições de produção. Em conseqüência, o eixo da indagação científica se desloca da análise taxionômica dos produtos lingüísticos para a análise dos processos psicossociais que constituem esses produtos.” (CASTILHO: 1989). 1.4. Por uma Teoria da Enunciação Segundo Castilho (1993: 8), em decorrência de uma visão de língua como atividade social, surgiram teorias auxiliares preocupadas em descrever a língua em funcionamento. O resultado dessa preocupação foi a gramática funcional, concebida como “um conjunto de regras em que se procura correlacionar as classes e as funções com as situações concretas em que elas foram geradas” (Ibidem, p.: 9). Castilho menciona cinco teorias que comungam dessa visão de língua enquanto atividade social: a Teoria da Comunicação, a Teoria das Funções da Linguagem, a Teoria dos Atos de Fala, a Teoria da Variação e da Mudança Lingüística e as Teorias do Discurso. Essas teorias trazem grandes contribuições para a análise que se pretende, 34 neste estudo, sobre a construção de instâncias enunciativas a partir do processamento discursivo da língua. Em vista disso, proceder-se-á uma breve abordagem dessas teorias. 1.4.1 A Teoria da Comunicação A Teoria da Comunicação, segundo Jakobson (1952), erige-se com base numa realidade fundamental para os lingüistas: a interlocução - a troca de mensagens entre emissor e receptor, entre remetente e destinatário, entre codificador e decodificador (1952: 22). De acordo com o autor, toda atividade de comunicação pressupõe a existência desses dois pólos básicos que intercambiam entre si o papel de protagonista no ato de comunicação. Isso não impossibilita que, dependendo dos fatores envolvidos no ato de fala, a ênfase possa recair em outros elementos que compõem o esquema da comunicação proposto por Jakobson (1960:123): o código, a mensagem, o contexto e o contato. CONTEXTO DESTINADOR MENSAGEM DESTINATÁRIO CONTATO CÓDIGO Figura 1 - Esquema representativo dos fatores que compõem a Teoria da Comunicação segundo Jakobson. Nesse esquema, o autor introduz a noção de contexto (ou referente), que é captado pelo destinatário, e a noção de contato, que habilita o destinador e o destinatário a estabelecerem e manterem a comunicação. A noção de contexto abarca fatores verbais e não verbais que interferem no processo de comunicação, tais como as representações pré-concebidas. A noção de contato, por sua vez, refere-se ao canal físico em que se dará a conexão psicológica entre os protagonistas do ato de comunicação. Assim, 35 conceber a língua como instrumento de comunicação, pressupõe uma ação do usuário com a língua. Na visão de Castilho (1990:113), pode-se abstrair dessa Teoria da Comunicação bases para se construir um conceito de enunciação como o conjunto das circunstâncias que cercam a produção da linguagem, tais como o locutor, o interlocutor, o assunto, o código lingüístico, o canal utilizado e a mensagem. Nessa leitura de Castilho sobre a teoria de Jakobson, percebe-se a importância dos elementos lingüísticos que evidenciam as condições de produção de um ato de comunicação. 1.4.2 A Teoria das Funções da Linguagem Partindo do que se afirmou em 1.4.1, constata-se que fatores externos e internos à língua interferem no processo de comunicação e configuram-se como fatores intrínsecos, definitórios, da atividade de comunicação. Isso se deve, segundo Jakobson (1952), ao fato de que qualquer conduta verbal tem uma finalidade, mas os objetivos variam de acordo com os meios utilizados e com o efeito visado pelos participantes do processo de comunicação. Embora constatando-se que Jakobson desenvolveu um trabalho importante sobre as funções da linguagem, deve-se observar que cabe a Bühler (1934) o crédito de ter lançado as bases de uma abordagem funcional da linguagem. Para esse autor, a “linguagem, que é um sistema de sinais, funciona como instrumento por meio do qual uma pessoa se comunica com a outra”. Bühler propôs um modelo triádico, a partir de que seriam derivadas as demais funções da linguagem. O seu modelo tinha como elementos constitutivos: o remetente, correspondente à 1ª pessoa; o destinatário, correspondente à 2ª pessoa; e alguém ou algo de que se fala, correspondente à “3ª pessoa”. Esses três elementos corresponderiam 36 basicamente às funções expressiva (emotiva), apelativa (conativa) e representativa (referencial)18, podendo recair sobre cada um deles a ênfase comunicativa. Jakobson amplia esse modelo triádico propondo que, a cada um dos elementos identificados no processo de comunicação19, corresponda uma das funções da linguagem. Assim, as funções básicas da linguagem seriam seis e não apenas três, conforme Bühler tinha postulado. Desse redimensionamento resultou um esquema das funções da linguagem como correspondentes aos fatores essenciais da comunicação. Para Jakobson, então, a cada vez que um dos fatores presentes na comunicação fosse colocado em foco, seria evidenciada uma função a ele correspondente. O autor chama a atenção para o fato de o foco comunicativo poder recair sobre mais de um dos fatores ao mesmo tempo, havendo sempre a supremacia de um fator em relação a outros. O modelo proposto por Jakobson postula que a “linguagem deve ser estudada em toda a variedade de suas funções” (Jakobson,1960:122) e, ao interpretar os estudos de Boas (1938)20, o autor busca elementos que corroborem a sua concepção de linguagem e a importância de se levar em consideração as funções de um ato de comunicação. REFERENCIAL EMOTIVA POÉTICA CONATIVA FÁTICA METALINGÜÍSTICA Figura 2 - Esquema representativo das funções da linguagem segundo modelo proposto por Jakobson (1960:129). 18 Os parênteses encerram a terminologia empregada por Jakobson e que correspondem às funções básicas identificadas por Bühler. 19 Cf. o esquema proposto no item 1.4.1. 20 Cf. BOAS, Franz. “Language”. In.: GENERAL ANTHROPOLOGY. Boston: 1938. 37 De acordo com Jakobson (Ibidem: 92-3): “Estava claro, para Boas, que toda diferença nas categorias gramaticais conduz informação semântica. Se a linguagem é um instrumento que serve para transmitir informação, não se podem descrever as partes constituintes de tal instrumento sem referir-lhes as funções, assim como a descrição de um automóvel sem qualquer menção às tarefas de suas partes ativas seria incompleta e inadequada.” Nota-se que Boas constrói a sua teoria semântica com base no aspecto gramatical, postulando que a utilização dos recursos lingüísticos se orientam por conceitos culturalmente determinados por seu uso, numa comunidade lingüística. No conjunto de teorias que concebem a língua como usos, há de se considerar, ainda, Halliday21 (Apud Castilho, 1990:118), que postula a existência de três funções da linguagem, as quais devem ser levadas em conta na descrição das estruturas gramaticais. Segundo esse autor, não há como explicitar a estrutura das línguas sem apreender simultaneamente e numa relação de explicação o conjunto das funções que uma língua realiza e o conjunto de suas características estruturais. Halliday (Apud Castilho, ibdem) estabelece, então, as seguintes funções: “(1) Função ideacional: é a capacidade de informar e obter coisas informando. Halliday acredita que o falante representa na língua “diferentes tipos de processos do mundo exterior, incluindo os processos materiais (ação, acontecimento, criação, operação), mentais (percepção, reação, cognição) e abstratos (relação) de todo tipo”. (2) Função interpessoal: “abrange todos os usos da língua para expressar relações sociais e pessoais, incluindo todas as formas de intervenção do falante na situação da fala e no ato de fala”. (3) Função textual: Essas duas funções praticamente esgotam as situações de uso da língua. Entretanto precisaríamos postular a função textual, “que preenche a exigência de que a língua seja operacionalmente relevante, que tenha textura, em 21 HALLIDAY, M. A. K..(1970) “Estrutura e função da linguagem”. In.: LYONS, J.. (Org.) NOVOS HORIZONTES EM LINGÜÍSTICA. São Paulo: Cultrix-EDUSP, 1976, pp. 134-60. (Trad. de NEW HORIZONS IN LINGUISTICS). 38 contextos situacionais concretos, que distinga uma mensagem viva de um mero item numa gramática ou dicionário”. As teorias das funções da linguagem de Jakobson e de Halliday privilegiam o aspecto semântico, mas sua relevância recai sobre um conjunto de fatores que definem a comunicação, tais como os recursos lingüísticos, o contexto e a situação dos falantes. Nessa perspectiva, na determinação das funções da linguagem, há de se considerar as informações lingüísticas e as informações extralingüísticas que interferem em sua produção. 1.4.3 A Teoria dos Atos de Fala A Teoria dos Atos de Fala está assentada sobre os estudos do funcionamento da linguagem de Austin (1962) e Searle (1969). Tendo como foco a ação do locutor na língua, essa teoria considera qualquer enunciado efetivamente realizado por um determinado falante, numa dada situação, como um ato de fala. Segundo Castilho (1990:17), nessa teoria, qualquer “ação realizada por um falante, através de um enunciado, considerando as intenções de sua realização e os efeitos que visa alcançar no alocutário” é um ato de fala. Ao colocar uma ênfase maior no locutor, a Teoria dos Atos de Fala não privilegia a atividade lingüística enquanto interação entre locutor e alocutário. No entanto a contribuição desses estudos sistematiza-se na descrição que propõem sobre os tipos de ações que estão na base da atividade dos locutores sobre a língua. Para Austin (1962), usar a língua é sempre um ato, é sempre fazer algo com palavras. Diante disso, colocam-se as perguntas: “em que sentido dizer alguma coisa é realizála? (...) em que sentido fazemos alguma coisa pelo fato de dizer algo?” (Austin, 1962:107). A busca de respostas para essas questões leva o autor à concepção de três atos que possibilitam a produção de um ato de fala: 39 a) ato locutório refere-se ao próprio ato de o falante emitir um enunciado: a produção dos sons; a produção de certos vocábulos (que fazem parte de um Léxico) de acordo com uma certa organização ( ou seja, uma Sintaxe), usando uma entonação; empregar os itens lexicais num sentido mais ou menos determinado, com uma dada referência (sentido e referência compõem a Semântica). De acordo com isso, essa ação do locutor já apresentaria, então, uma significação. b) ato ilocutório refere-se ao ato que se realiza quando se diz algo a alguém. Significa dizer que esse ato diz respeito ao efeito que se consegue sobre o interlocutor com o ato de fala: a ação do locutor produz o efeito de ser compreendida e produz o efeito de criar um compromisso, por exemplo. c) ato perlocutório refere-se à fala enquanto um instrumento e implica a produção de algum efeito decorrente do tipo de interlocução estabelecido. Esse ato não tem a força de convencimento pretendido pelo ato ilocutário, porque nem sempre a enunciação primeira que se pretende é percebida nessa dimensão. No ato ilocutório concentram-se, portanto, as três dimensões fundamentais da linguagem: a descrição da ação, da forma dos enunciados e da conseqüência do ato de fala produzido, obtendo-se, dessa forma, as coordenadas da dimensão da linguagem como atividade. De acordo com Osakabe (1979:178): “Uma das características mais importantes dos atos ilocucionários, segundo Austin, é sua convencionalidade, isto é, sua forte ligação com as convenções socialmente dadas através das quais um ato de linguagem tem êxito ou não.” Seguindo a hipótese austiniana de que falar uma língua é realizar certos atos, Searle (1969) postula que todo ato lingüístico é também uma revelação do conhecimento que o seu produtor possui. Assim, “falar uma língua é adotar uma forma de comportamento 40 regida por regras” (Ibidem, p.: 48). O autor orienta a sua investigação visando a responder a pergunta: “Quais são os tipos de atos que permitem aos indivíduos agir no mundo, pelo uso da língua?” e “como a significação dos diferentes elementos de uma frase determina a significação da frase toda?” (Ibidem, p.: 55). Sua resposta se constrói levando em conta que as duas perguntas se referem a um conjunto de fatores que atuam simultaneamente e são ativados em relação ao momento de produção do ato de fala. Assim, as duas perguntas “são ligadas porque a todo ato de linguagem possível corresponde uma frase ou um conjunto de frases possíveis cuja enunciação literal em uma situação particular constitui a realização de um ato de linguagem.” (Searle, 1969) Searle parte de uma concepção comunicativa da linguagem, considerando a força do ato de linguagem. Em decorrência disso, o ato de fala significa uma ação que tem como fim provocar uma resposta - verbal ou não. De acordo com isso, o autor identifica quatro atos de linguagem: a) ato da enunciação, correspondente à realização formal do enunciado ou do ato de fala, abrangendo, então, a realização sonora, morfológica e sintática do ato de linguagem produzido. Esse ato refere-se sobretudo à capacidade de falar. b) ato locutório, correspondente à função a que se destina o ato de fala: “afirmar”, “referir”, “pedido”, “ordem”, “asserção”, etc.. É neste ato que se encontra a principal distinção entre o que se propõe na teoria de Searle e na teoria de Austin, haja vista que, para Austin, o ato ilocutório refere-se à capacidade de se fazer alguma coisa pela fala. c) ato perlocutório, correspondente às intenções do falante de, por exemplo, “irritar”, “informar”, “advertir”, “repreender”, etc., o ouvinte. Ou seja, através do ato perlocutório busca-se uma reação no ouvinte, mas isso não implica que tal reação se realize ou não. d) ato proposicional, correspondente à capacidade de fala tomada idealmente. Esse ato, de acordo com Vilela (1995:347), “diz respeito ao estado de coisas subjacente: isto é, o 41 que pode ser verdadeiro ou falso, na medida em que a proposição se encontra ligada com a ilocução (“asserção”)”. De acordo com Guimarães (1995:41), as distinções entre Searle e Austin concentram-se nos seguintes aspectos: • Austin concebe a existência dos atos locucionais como responsáveis pela significação, excluindo essa propriedade dos atos ilocucionais. O autor postula a propriedade de significar como a distinção básica entre esses dois atos de fala. • Searle concebe que a significação mesma dos enunciados é bastante para a realização dos atos de linguagem: basta dizer para se significar o que se quer significar, ou melhor, fazer o que se quer fazer. • Austin postula que a significação se constrói na relação entre sentido e referência. • Searle postula que a significação não se limita a sentido e referência, pois há atos, distintos do de referir, como o de predicação e os ilocucionais, e que são realizados em virtude da significação que possuem os elementos lingüísticos usados na sua realização. A Teoria dos Atos de Fala coloca em foco a ação do locutor na língua e, apesar de considerar alguns fatores extralingüísticos, como a intenção do locutor e a função da produção de um ato de fala, ainda não considera o contexto real de uso da linguagem. Deve-se notar que, ao dar ênfase na ação do locutor, “A concepção ativa da linguagem não se define, portanto, por ela mesma, mas está indissoluvelmente ligada à sociedade e individualidade que caracteriza o ato de fala. Em outras palavras, o ato de linguagem tem uma definição social à medida que não pode ser pensado fora das relações entre os indivíduos.” (Osakabe, 1979: 182) Segundo Koch (1995:23), os pontos mais criticados na Teoria dos Atos de Fala são, por um lado, a ênfase em apenas um dos pólos da enunciação, ou seja, no locutor e, por outro, na concepção de linguagem vinculada à função social. Segundo a autora, os pesquisadores, em geral, se baseiam nesses dois pontos para propor reformulações a 42 essa teoria, levando-se em conta que essas considerações afastam a possibilidade de se conceber a linguagem como fator de interação entre os usuários. 1.4.4. A Teoria da Variação e Mudança Lingüística A Teoria da Variação e Mudança Lingüística corrobora as concepções das teorias, acima, que a antecederam e, como afirma Castilho (1990:17), sistematizou muitas das intuições nelas contidas. Essa sistematização foi apresentada inicialmente em 196622, quando Weinreich, Labov e Herzog propuseram os princípios que fundamentavam a Teoria da Mudança Lingüística. Segundo eles, os pontos que mais se destacavam nos estudos lingüísticos, até então conhecidos, tinham como princípios básicos (i) a heterogeneidade e (ii) a comunidade lingüística. Estabelecidos os princípios norteadores, Labov (1982: 17) os concebe como “1.1 Normal heterogeneity. The normal condition of the speech community is a heterogeneous one: we can expect to find a wide range of variants, styles, dialects, and languages used by members. Moreover, this heterogeneity is an integral part of the linguistc economy of the community, necessary to satisfy the linguistic demands of every-day life. (...) The heterogeneous character of the community appears in the fact that there are many alternate, semantically equivalent ways of saying “the same thing” 1.2 Linguistic community. The object of linguistic description is the grammar of the speech community: the system of communication used in social interaction.” 23. 22 No ano de 1966, foi realizada a primeira conferência intitulada DIRECTIONS in HISTORICAL LINGUISTICS da qual participaram Weinreich, Labov e Herzog [WLH]. Dessa conferência resultou o artigo “Empirical Foundations”, de 1966. 23 (Nota de tradução) 1.1 Heterogeneidade normal. A condição normal de uma comunidade de fala é a heterogeneidade: podemos encontrar uma grande diversidade de variantes, estilos, dialetos e linguagens usadas pelos membros. Além disso, esta heterogeneidade é uma parte integrante da economia lingüística da comunidade, necessária para satisfazer as demandas lingüísticas da vida diária. (...) O caráter heterogêneo da comunidade aparece no fato de que existem alternativas, que são formas semanticamente equivalentes de se dizer “a mesma coisa”. 1.2 Comunidade lingüística. O objeto da descrição lingüística é a gramática da comunidade de fala: o sistema de comunicação usado em interação social. 43 Tais princípios, no entanto, evidenciaram a existência de paradoxos que forneceram as bases para o desdobramento dessa teoria em duas vertentes: a Teoria da Variação Lingüística e a Teoria da Mudança Lingüística. Na concepção da Teoria da Variação, os falantes, tendo em vista a interação lingüística, usam os mecanismos lingüísticos de acordo com fatores externos (o espaço geográfico, o espaço social e o espaço temático) e fatores internos (as variações decorrente de operações efetuadas no plano lexical) que estão envolvidos na produção de sua comunicação. Ao dar relevância aos fatores que atuam na caracterização das possíveis variações que ocorrem na língua, essa teoria fundamenta uma análise gramatical que considera o caráter dinâmico da língua, pois como afirma Labov (1972), é possível estudar a língua em situações reais de uso, porque a heterogeneidade da língua é estruturada (Apud Castilho (1990)). Segundo Castilho (1990: 19), a partir dessa concepção “Admite-se hoje que os falantes de uma língua operam com uma variedade de gramáticas, de acordo com a situação lingüística particular em que estão envolvidos.” A Teoria da Mudança Lingüística, por sua vez, concebe que os falantes atuam num determinado tempo ou espaço de acordo com o contexto histórico em que se inserem. Nesse sentido, a época em que eles se encontram inseridos reflete-se na sua manifestação lingüística, uma vez que “All language is an historical residue”24 como atesta Labov (1988) no seu estudo sobre como se manifesta a aquisição das regras lingüísticas por crianças. Nessa abordagem, o objeto de estudo da lingüística é o conjunto de materiais que servem como dados que atestam o uso lingüístico numa época específica. De acordo com as abordagens dessas teorias, na análise lingüística devem ser consideradas as variáveis que constituem o espaço sócio-cultural e temporal em que se realiza a 44 interação, pois a linguagem revela os traços que distinguem a fala dos indivíduos de um determinado contexto para outro. 1.4.5. As Teorias do Discurso Conforme postulam Koch (1983), Possenti(1988 ) e Castilho (1994), o que se observa em relação às Teorias do Discurso é a existência de diversas teorias do discurso, e cada uma delas se servindo de uma metodologia. Possenti (op. cit.) afirma que esta profusão de teorias do discurso nasceram da tentativa de (1) delimitar o objeto da lingüística, (2) levar em conta a natureza das línguas; e (3) da necessidade de um diálogo entre a Lingüística e as outras ciências humanas. Em comum, todas elas têm a “determinação de ultrapassar a sentença como limite máximo da análise lingüística” (Castilho, 1994: 20). Faz-se aqui um resumo das diversas noções de “discurso” que orientaram o surgimento dessas teorias. Utilizamo-nos, para isso, de Castilho (1994): (i) “Discurso é a execução individual do sistema lingüístico, é o mesmo que fala e corresponde à parole de Saussure”. Essa é a caracterização do objeto de estudo da Estilística e contemporaneamente de algumas tendências da Análise do Discurso. (ii) Discurso ou enunciado (“utterance”) é uma combinatória de sentenças sujeitas a uma regularidade. Essa noção está presente nos estudos empreendidos pela Lingüística Estrutural, principalmente nos trabalhos de Harris, Pike e Grimes. (iii) Discurso é o mesmo que texto, entendido como uma estrutura acabada, de que se podem identificar as unidades. Essa noção caracteriza o objeto de estudo dos formalistas russos e da Sociolingüística. (iv) Discurso é o mesmo que interação lingüística em presença, discurso é conversação. Essa noção introduz a concepção de língua como atividade, implicando um “aparato enunciativo”, que introduz o locutor, o alocutário, o assunto, as representações que os interlocutores fazem de si e as pressuposições relacionadas ao assunto. 24 (Nota de tradução) Toda linguagem é um resíduo histórico. 45 (v) Discurso é a articulação ideológica contida nos textos. A análise lingüística tem como objetivo depreender do texto suas “formações discursivas”. Assim sendo, todo discurso veicula uma ideologia, porque o processamento semântico é definido historicamente, nas representações que os indivíduos têm dos lugares sociais que ocupam. Para Castilho, as noções acima podem ser arroladas em duas tendências maiores da Análise do Discurso que possibilitam a apreensão do discurso, enquanto objeto, nessa altura, ainda muito amplo: a “Anglo-Saxã”, “que considera as conversações do dia-adia, com o objetivo de descrever suas propriedades formais” e a “Francesa”, “que parte dos textos inscritos num quadro institucionalizado, com o objetivo de interpretálos”. A Análise do Discurso Francesa focaliza a língua escrita como objeto de análise. A concepção de discurso, enquanto uma interação lingüística, está presente na Análise do Discurso Anglo-Saxã, que tem a conversação como objeto. Importante notar que os dois objetos - a escrita e a fala – aproximam-se, uma vez que, na análise da forma, a AD25 focaliza o aspecto discursivo da língua. Em relação às formações sociais e suas transformações, interessa à AD as representações que os indivíduos fazem em termos do seu funcionamento na produção de sentidos. Castilho cita Jakobson e Benveniste como precursores dessa vertente teórica da lingüística – a AD. A Jakobson devem-se os estudos das classes de palavras dependentes de uma ancoragem na enunciação; e a Benveniste, a caracterização das categorias de pessoa, tempo e espaço como fatores básicos na constituição do aparelho formal da enunciação. A consideração do aspecto formal e do aspecto pragmático, na análise lingüística, está estreitamente relacionada à concepção de que a forma de articulação do texto se dá em 25 Utilizaremos AD ao nos remetermos à Análise do Discurso. 46 função das condições de sua produção. Nesse sentido, as concepções de linguagem em que se baseiam a Teoria da Enunciação, a Análise do Discurso e a Teoria dos Atos de Fala26 põem em foco o caráter discursivo e pragmático da linguagem, considerando como fator relevante, na interação lingüística, um sistema de referências, as condições de produção, que instituem os enunciadores numa instância de enunciação. PARTE II - O pólo da enunciação 2.1. A interação lingüística numa visão processual A Lingüística da Enunciação, como se destacou em 1, acima, sem deixar de levar em conta o enunciado, já focaliza como objeto de estudo também os mecanismos envolvidos em sua produção. Constata-se isso, por exemplo, em Austin (1962) com a Teoria dos Atos de Fala -, em Searle (1969), em Jakobson (1957) com suas funções da linguagem e nos textos de Benveniste (1966, 197027) com seu “aparelho formal da enunciação” e outros. Esses são alguns dos autores que, além do aspecto estrutural da língua, já consideram as condições de uso de tais estruturas lingüísticas, ou seja, instituem como objeto de estudo o funcionamento da linguagem. Benveniste (1966), por exemplo, postula que se considere como objeto de estudo a atividade lingüística dos falantes. Uma atividade que evidencia os pilares que constituem o “aparelho formal da enunciação”: 1. um locutor ( aquele que institui a atividade lingüística - a alocução - ); 2. um alocutário ( aquele instituído como o outro pelo locutor); 3. uma referência (“a necessidade (para o locutor) de referir pelo discurso e, para o alocutário, a possibilidade de co-referir identicamente no e pelo discurso); 26 A Teoria dos Atos de Fala, apesar de enfatizar a ação do locutor, postula a importância de se considerar o contexto extra-verbal na análise lingüística. 27 Publicado em LANGAGES, Paris, Didier-Larousse, 5º ano, nº 17 (março de 1970), p.12-18. 47 4. outras “entidades lingüísticas” (aquelas criadas na e pela enunciação, tais como tempo, lugar e alguns elementos dêiticos). Benveniste (1966) refere-se à mobilização da língua na enunciação nos seguintes termos “ ... na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente28, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação.” (1974: 84) Para Benveniste, “a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (1974:82) e “supõe a conversão individual da língua em discurso.” (Ibidem, p.83). Mais recentemente, tomam-se como objeto de estudos as condições de produção de um enunciado ou, num sentido mais amplo, de um texto. Tais condições - a intenção do enunciador ( os objetivos visados); a imagem que o enunciador faz do seu interlocutor e vice-versa; o conhecimento prévio e enciclopédico compartilhado pelos interlocutores; e a situação de interlocução - são tidas como fatores que definem a enunciação. Assim, a enunciação se caracterizaria pelo conjunto de fatores e atos que determinam a produção de enunciados. Nessa perspectiva, a enunciação, a linguagem, em suma, é caracterizada como uma atividade em processo - um processo que visa à interação lingüística entre interlocutores. 2.2. A construção de instâncias enunciativas - CIE É relevante ressaltar que o que se propõe na Teoria da Enunciação, principalmente na visão de Benveniste, é mostrar a ação do locutor com/sobre a língua e que, nesse sentido, cada enunciado por ele proferido é único, tendo em vista que as condições de produção, também, definem cada enunciação como única e irrepetível. Mesmo que um 28 Grifo meu. 48 enunciado possa ser repetido diversas vezes, a enunciação será outra, pois as condições de produção serão sempre outras a cada nova atividade do falante sobre a língua, pois “O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno.” (Benveniste, 1974:84) Vale notar que Benveniste postula a existência de instâncias de discurso e que cada uma delas tem o seu próprio centro de referência interno. O autor identifica um conjunto de termos lingüísticos produzidos na e pela enunciação que seriam responsáveis pela identificação dessas instâncias do discurso: (i) os índices de pessoa; (ii) os índices de ostensão; (iii) os “tempos” verbais29. Tal conjunto de elementos lingüísticos abrangem, respectivamente, a classe dos ditos (i) “pronomes pessoais”, (ii) dos pronomes demonstrativos, (iii) o presente lingüístico e (iv) os tempos verbais. De acordo com Benveniste, esses elementos constituem os recursos lingüísticos cambiáveis no processo de interlocução, possibilitando, em situações distintas, a apropriação do discurso por aquele que, no momento, assume a posição de locutor. A construção de instâncias enunciativas, segundo Benveniste, dar-se-ia com base na utilização desses recursos lingüísticos. Propomos expandir o universo desses elementos lingüísticos, aventando que, no funcionamento discursivo da língua, outros recursos lingüísticos são utilizados para indiciar a CIEs. 2.3. A concepção de linguagem A proposta de tratar a CIE em uma perspectiva enunciativa/discursiva implica a adotar uma concepção de linguagem como lugar de interação verbal, segundo postula a 29 Esse conjunto de elementos lingüísticos serão tratados mais profundamente no item 2.2 do próximo capítulo desta dissertação. 49 Lingüística da Enunciação. A linguagem, assim concebida, institui-se, pois, como ponto de partida para a constituição do enunciador e do enunciatário no processo de enunciação e, nesse sentido, “( ... ) a atividade lingüística, além de envolver a realização de funções sociais exteriores em que a linguagem aparece como possibilitando tarefas de ocasião, realiza-se em uma multiplicidade de operações (em sentido intuitivo) subjacentes, interiores ao sujeito, de que a configuração superficial das expressões é traço revelador.” (Franchi, 1977, p.20) Embora a interação verbal pressuponha, inicialmente, uma interlocução oral entre os indivíduos no discurso, entende-se, neste estudo, que toda e qualquer expressão lingüística, que tenha como fim a interlocução entre um eu e um tu, possa ser considerada uma forma de interação verbal. Conceber, dessa forma, a interação verbal implica adotar uma perspectiva discursiva da linguagem: uma “atividade” que se desenvolve numa relação dialógica entre um enunciador que se enuncia como eu e um enunciatário que é enunciado como tu. Esse dialogismo pode ocorrer de duas formas: a) na presença dos alocutores, como se verifica numa situação de fala, em que os mesmos se colocam como enunciadores no momento em que se dá a interlocução; b) na ausência física do alocutário, como é o caso da escrita ou dos monólogos. Em b), apesar de encontrarem-se distantes os alocutários, eles se constroem como enunciadores/enunciatários, uma vez que, quem enuncia, traz para a cena enunciativa o outro a quem sua enunciação se dirige, instituindo uma instância de enunciação. Isso significa que toda interação verbal pressupõe um diálogo construído em uma relação de interlocução entre interlocutores reais ou imaginários, pois “Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social30. (Bakhtin, 1977: 109) 30 Itálico do autor. 50 Em conseqüência disso, o processo de enunciação pode ser considerado, em si, como dado de análise, focalizando-se especificamente o seu caráter dialógico: “Do ponto de vista de sua natureza, o discurso caracteriza-se inicialmente por uma maior ou menor participação das relações entre um eu e um tu; em segundo lugar, o discurso caracterizase por uma maior ou menor presença de indicadores da situação; em terceiro lugar, tendo em vista sua pragmaticidade, o discurso é necessariamente significativo na medida em que só se pode conceber sua existência enquanto ligada a um processo pelo qual eu e tu se aproximam pelo significado; e, finalmente, o discurso tem sua semanticidade garantida situacionalmente, isto é, no processo de relação que se estabelece entre suas pessoas (eu/tu ) e as pessoas da situação, entre seus indicadores de tempo, lugar, etc. e o tempo, lugar, etc. da própria enunciação.” (Osakabe, 1979a:21) Conceber a linguagem como eminentemente dialógica é reconhecer o seu caráter social, por um lado e, por outro, reconhecê-la como mecanismo revelador da atividade lingüística do locutor e do alocutário em uma dada situação de interação verbal. Assim, considera-se que: “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.” (BAKHTIN; 1977, p. 123). Toda comunicação verbal pressupõe, nessa perspectiva, um diálogo entre interlocutores e, dessa forma, a construção de instâncias de enunciação – CIEs - oferece-se como um objeto de estudo de fundamental importância, em se tratando de elucidar os princípios e/ou mecanismos constituintes da atividade lingüística. 51 2.4. O discurso como interdiscurso Na construção do quadro de referência teórico deste trabalho, adotamos, também, contribuições de Possenti (1988) e Maingueneau (1987), que propõem conceber o discurso como interdiscurso, ampliando a noção de enunciação de Benveniste. Enquanto este enfatiza a ação do locutor na linguagem, Possenti postula que a enunciação se caracteriza por estar marcada pela ação do sujeito31 com e sobre a linguagem simultaneamente. Concebendo a enunciação como um processo de “constituição, em qualquer instância, de enunciados”, Possenti chama a atenção para as diversas possibilidades de uso que a “língua oferece à atividade do locutor a cada discurso” (op. cit., p.:58), pois “... dizer que o falante constitui32 o discurso significa dizer que ele, submetendo-se ao que é determinado (certos elementos sintáticos e semânticos, certos valores sociais) no momento em que fala, considerando a situação em que fala e tendo em vista os efeitos que quer produzir, escolhe, entre os recursos alternativos que o trabalho lingüístico de outros falantes e o seu próprio, até o momento, lhe põem à disposição, aqueles que lhe parecem os mais adequados.” (Idem, idem: 59) A tese de Possenti é a de que “o discurso é basicamente interdiscurso” e, nesse sentido, “... quando um locutor qualquer produz um discurso qualquer, este discurso não provém apenas de um lugar, mas de vários lugares. Este discurso é construído sobre e a partir de outros discursos (...). Os discursos têm entre si relações que são determináveis (...). ” É por isso que o leitor não é apenas um decodificador dos sinais de uma cadeia lingüística, mas um perspicaz caçador de pistas de interdiscursividade, daí porque ler um texto é em grande parte dar-se conta de como ele é construído, de que materiais ele é feito, isto é, de como outros textos estão no texto.33. A palavra chave relativa ao discurso, ou à língua, 31 Sobre a noção de sujeito: usamos este termo nas citações, mas não é relevante para nós tal noção, na extensão em que é utilizada na AD. Neste trabalho, preferimos os termos locutor/ enunciador. 32 Sublinhado nosso 33 Grifo nosso. 52 é heterogeneidade ( ou polifonia, ou dialogismo) 34...”( Idem, 1994:6 ) Em Maingueneau (1987), encontra-se também essa noção de interdiscurso. O autor enfatiza que o discurso do outro, quer de forma implícita, quer de forma explícita, sempre está presente na superfície discursiva. Isso se explica, segundo ele, pelo fato de que “Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada, toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial com uma outra, aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua identidade.” ( p.120 ) Assumir o discurso como polifônico, nesse ponto de vista, pressupõe aceitar o discurso como jogo de representações, no qual o autor assume uma voz e/ou a situa entre outra(s) voz(es). Nessa perspectiva, consideramos, aqui, os conceitos de enunciação e de discurso como intercambiáveis, tendo em vista a concepção de língua e de texto que os corrobora. Com o termo “discurso” poderemos, pois, referirmo-nos ao processo de enunciação. Isso significa considerar enunciação/discurso como sendo a “atividade comunicativa de um falante, numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto de enunciados produzidos pelo locutor (ou por este e o seu interlocutor, no caso do diálogo) e o evento de sua enunciação” (Koch, 1983:25). 2.5. A concepção de Texto O texto é concebido, nesta pesquisa, como produto do processo de enunciação. Sua forma e tipo são funções de suas condições de produção. Nesta abordagem, o texto, no 34 Negritos nossos. É importante lembrar que a noção de heterogeneidade discursiva relaciona-se à de dialogismo em Bakhtin (1977). O dialogismo ou polifonia é “a relação necessária entre um enunciado e outros enunciados” [Stam, (s/d):72]. Para Bakhtin : “Qualquer desempenho verbal inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do mesmo autor como de outros autores, originando um diálogo social e funcionando como parte dele.” (1977) 53 processo de enunciação, pode ser entendido como lugar onde se materializam os recursos lingüísticos da interação verbal, tornando possível a identificação do processo de sua produção. Assim, a noção de texto com a qual esta pesquisa opera pode ser explicitada através de KOCH (1983:25): "... o texto, em sentido lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. (...) O discurso é manifestado, lingüisticamente, por meio de textos (em sentido estrito). Neste sentido, o texto consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão.” É esta também a visão de Schimidt (1973:170)35 apud Koch (1983:21) para quem o texto é “cada porção lingüística manifesta de um ato de comunicação em um jogo de ação comunicativa - tematicamente orientada e que preenche uma função comunicativa capaz de ser reconhecida.” Nesta dissertação, analisaremos textos jornalísticos escritos, levando-se em conta o que se disse anteriormente, pois consideramos que a atividade dos locutores e de seus alocutários pode ser percebida em toda e qualquer forma de enunciação. Assim, entendemos a escrita como uma das formas de representação da linguagem e, nessa visão, na e pela escrita explicita-se a atividade ou a ação do interlocutor na construção do(s) enunciador(es) e o processo de enunciação. Nessa atividade lingüística, então, revela-se a “voz autoral” ou a “polifonia” – os recursos pelos quais o autor/enunciador ativa outras vozes ou outros enunciadores, com o objetivo de (re)velar a sua própria voz enunciativa. O texto materializa uma determinada enunciação, portanto é o lugar em que se torna possível identificar os índices das operações realizadas em sua produção. 35 Cf. TESTTHEORIE. PROBLEMEINER LINGUISTIK SPRACHLICHEN KOMMUNIKATION. Trad. bras. LINGÜÍSTICA E TEORIA DE TEXTO, Pioneira, 1978. 54 Em decorrência dessa visão de texto, o enunciador, na perspectiva que este estudo contempla, é uma “entidade” lingüística construída na e pela enunciação, definindo-se como fator básico na instituição do próprio processo de enunciação. A utilização do termo autor está estritamente relacionada à concepção de Eco (1979: 43) sobre “Autor e Leitor-modelo”, tendo em vista que ambos só se definem enquanto “tipos de estratégia textual36”. 2.6. As condições de produção O conceito de condições de produção é básico para a compreensão do que se afirmou em 2.4: no texto materializam-se os índices que revelam e/ou propiciam a atividade lingüística dos interlocutores na interação verbal, sendo a forma e tipo de texto determinados em função de suas condições de produção. Essas condições se caracterizam como o conjunto de fatores, quer os de natureza lingüística, quer os de natureza extralingüística, que atuam simultaneamente no processo de enunciação e definem a produção e a recepção de textos. Fazem parte desse conjunto: 1) o conhecimento lingüístico dos interlocutores que envolve o conhecimento gramatical e os conhecimentos pragmáticos; 2) os objetivos da interação; 3) a situação, o tempo e o espaço em que se realiza a interação; e 4) o conhecimento de mundo e o conhecimento enciclopédico dos interlocutores. A conjunção desses fatores fornece aos interlocutores informações precisas sobre as circunstâncias em que se realiza a enunciação, tais como: as representações mentais dos interlocutores em relação às expectativas; aos interesses e aos conhecimentos diversos dos interlocutores, partilhados ou não; o contexto de produção e de recepção do texto; o suporte ou o veículo de sua transmissão. O conhecimento gramatical e os conhecimentos pragmáticos articulam-se na produção e na recepção de textos. Enquanto o conhecimento gramatical envolve a competência dos interlocutores em relação aos recursos formais da língua nos níveis lexical, sintático e 36 Na 3ª parte deste capítulo, trabalharemos esse conceito de “estratégias textuais”. 55 semântico, os conhecimentos pragmáticos envolvem a competência dos interlocutores para usar esses recursos lingüísticos, adequando-os à situação de interlocução. Em decorrência disso, como afirma Villela (1998:68), “... compreender a dinâmica textual implica, pois, perceber como se dá a transformação de informações novas37 em informações adquiridas, através da entrada de novos elementos. Isso significa que, na análise de um enunciado, deve-se considerar, além de suas condições de produção, as dimensões lexical, sintática e semântica que o constituem.” O enunciado deve, pois, ser analisado como parte integrante do processo que o constituiu e, nessa perspectiva, revela a competência discursiva dos usuários de uma língua. Essa é a razão por que se procura explicitar um quadro teórico que corrobore uma análise do enunciado que considere os fatores de naturezas diversas, que necessariamente operam no processo de enunciação. 2.7. Por uma Teoria Modular da língua De acordo com Castilho (1990), as diversas teorias lingüísticas, resguardadas as diferenças metodológicas, possuem um traço comum: reconhecem a língua como um conjunto de signos. Assim, tais estudos privilegiam, de acordo com seus respectivos métodos de pesquisa, três ângulos distintos da linguagem: “(1) relação dos signos com os usuários: dimensão pragmática da linguagem; (2) relação dos signos com os referentes: dimensão semântica da linguagem; (3) relação dos signos com outros signos: dimensão sintática da linguagem” (Castilho, 1990:118). No prefácio do livro de Ilari (1992), Castilho retoma esses ângulos sob os quais a língua é estudada, traduzindo-os em questões do seguinte tipo: 37 Segundo Villela, “O termo informação está sendo entendido como uma unidade informativa significativa, um conjunto organizado de pistas materiais que possibilitem a construção do sentido 56 “qual é a relação entre a face estrutural e a face funcional da língua? O sintático, o semântico e o pragmático ordenam-se em alguma hierarquia visível ou constituem-se em esferas autônomas de organização da linguagem? Como as línguas naturais processam a informação, e que importância tem isso em sua articulação gramatical.” Assim, Castilho sinaliza para a necessidade de se utilizar uma teoria que, ao invés de excluir um ou outro aspecto da linguagem, aborde a língua considerando três dimensões, concebidas como módulos lingüísticos. Essas dimensões envolvem fatores que operam, simultânea e concomitantemente, no processamento de textos. Na reelaboração que propõe da Teoria Modular, Castilho considera contribuições de estudos desenvolvidos por Morris (1938), que consideraremos a seguir, aludindo também às contribuições oferecidas por Roulet (1991, 1995, 1996, 1997, 1997a). Basearemos, no entanto, nossa análise do corpus nos desdobramentos propostos por Castilho (1997. 1998). 2.7.1. A visão de Morris Morris (1938) postula que toda língua natural é composta de três módulos interligados entre si pelo léxico. Nessa sua concepção, o léxico abrange um conjunto amplo de itens que caracterizam o conhecimento lingüístico do indivíduo. De acordo com o autor, são os seguintes os módulos a partir dos quais pode-se explicitar o conhecimento de língua do interlocutor: o módulo Pragmático (discursivo), definido como o módulo que revela o trabalho dos falantes sobre a língua, numa dada situação de comunicação; o módulo Semântico, que se refere aos processos de criação de sentidos; e o módulo Sintático (gramatical), que se ocupa das relações entre os itens lexicais e das funções que estes desempenham no enunciado. naquilo que se poderia chamar de um esquema mental.” As informações novas, de acordo com essa autora, “são aquelas pressupostas como não partilhadas pelos interlocutores”. 57 Considerando-se o que se afirmou anteriormente, é importante levar em conta a visão de Morris sobre o fato de o conhecimento lingüístico dos falantes envolver uma gama de recursos lingüísticos diversos, que são ativados de acordo as especificidades da atividade discursiva. O que corresponde a dizer que a competência lingüística envolve operações com os três módulos do discurso: o Pragmático, o Semântico e o Sintático. 2.7.2. A visão de Roulet 38 Roulet (1996: 4) postula a necessidade de se adotar uma hipótese modular que permita explicar o funcionamento discursivo da linguagem. A partir dessa hipótese, o autor constrói seu modelo teórico, que, segundo ele, é concebido como um instrumento metodológico. Na visão de Roulet, toda forma de comunicação verbal, nas suas dimensões lingüísticas, textuais e situacionais, caracteriza-se como um discurso. O que o autor concebe como dimensões do discurso corresponde, em parte, ao que Morris chama de “módulos do discurso”. Roulet39, no entanto distingue as dimensões do discurso daquilo que chama de “formas de organização”. Segundo o autor, as diferentes dimensões do discurso são as seguintes: 1) a dimensão hierárquica, que compõe o módulo Textual, resulta das ligações de dependência entre os constituintes de base da estrutura das interações verbais - a troca, 38 Incorporam-se a este item observações de Villela (1998) e Lopes (1998) que se propõem, também, descrever o português contemporâneo na modalidade culta escrita. 39 Citação da nota apresentada por Lopes (1998: 110): “O modelo de análise de Roulet aqui apresentado é a versão atual, correspondente à 3ª etapa das pesquisas que desenvolve sob a perspectiva modular desde 1995. O 1º modelo (1979 a 1989) encontrou, na “extrema diversidade” dos discursos, seu maior problema e apontou para a necessidade de um novo paradigma: "a hipótese modular”. O 2º modelo (1990-1995) objetivou a articulação das 3 dimensões discursivas, com seus respectivos módulos: (i) lingüístico (fono-prosódico, lexical, sintático e semântico); (ii) textual (hierárquico, relacional, enunciativo, polifônico, periódico, 58 as intervenções e os atos discursivos -; revelando os diferentes planos de organização do discurso: hierárquico, relacional, enunciativo, polifônico, informacional, periódico e composicional; 2) a dimensão sintática, que compõe o módulo Lingüístico, diz respeito à sintaxe, ao léxico, à semântica e à fonologia; 3) a dimensão referencial, que compõe o módulo Situacional, diz respeito aos recursos que possibilitam resgatar o conjunto das referências, do contexto social, da situação de interação verbal e do contexto psicológico. Para Roulet, o módulo discursivo ou textual ocupa papel central no sistema modular, tendo em vista que ele se relaciona com os módulos sintático e fonográfico (na delimitação dos constituintes discursivos) e com o os módulos social e interacional (na determinação de certas estruturas dialógicas). Essas dimensões são regidas por princípios independentes e podem, por isso, ser estudadas separadamente. Ele chama a atenção, porém, para dois aspectos importantes: (i) as estruturas produzidas por cada uma das dimensões do discurso estão relacionadas entre si e combinam-se na produção e interpretação de um discurso particular; (ii) para se chegar a uma interpretação adequada do enunciado é necessária uma descrição sistemática das articulações entre as dimensões do discurso. Nessa Teoria Modular, é de interesse para a análise da CIEs como se dá a organização polifônica do discurso. De acordo com Roulet, a “polifonia é uma forma de organização complexa, que compreende os discursos de vozes diversas identificadas em diferentes níveis de interação” (Roulet, 1997: 11), os quais explicitam a articulação entre as três dimensões discursivas. informacional e composicional); (iii) interacional, social e psicológico). situacional (referencial, 59 O conceito de polifonia de Roulet ecoa o conceito de Bakhtin (1977), uma vez que para ambos, a polifonia é uma forma de representação do discurso do outro. Em decorrência da importância que Roulet dá às formas de articulação das três dimensões do discurso, ele concebe a existência dos planos de enunciação40, que resultam das representações dos discursos dos personagens e das estratégias de articulação entre eles. Os planos de enunciação evidenciam a estrutura polifônica do discurso. 2.7.3. A visão de Castilho A visão de Castilho (1998) sobre um modelo modular para a análise da língua falada se constrói a partir do modelo proposto por Morris. Ele reelabora a teoria modular de Morris, considerando os seguintes princípios: “(1) A língua é uma atividade, uma forma de ação que se manifesta em toda sua plenitude no texto. (2) Para pôr em ação a língua, o falante/ouvinte opera sobre os módulos discursivo, semântico e gramatical, mediados pelo léxico. (3) No coração da capacidade lingüística está alojado um programa computacional, pré-verbal, alimentado pela continuada análise da situação discursiva em que o ouvinte falante está operando.” (Castilho, 1998:37-8) Note-se que, de acordo com o principio (3), Castilho atribui ao módulo discursivotextual uma importância muito grande nas “reflexões sobre o sistema gramatical de uma língua”. Segundo o autor, na análise lingüística devem ser identificados, em primeiro lugar, os processos conversacionais, para, em seguida, proceder à identificação dos processos de construção do texto e, por último, à identificação dos processos de construção das sentenças. Baseado em Morris e em outros teóricos, Castilho postula que o sistema lingüístico é constituído por três domínios, o Gramatical, o Semântico e o Pragmático (Discursivo), 40 O conceito de Planos de Enunciação será utilizado no momento da análise dos dados e se constitui como um importante conceito na CIE. 60 que são articulados pelo Léxico. Castilho caracteriza cada um desses três domínios (ou módulos) da seguinte forma: “O módulo discursivo abriga as negociações intersubjetivas que se encadeiam no momento da enunciação: a constituição do locutor e do interlocutor, a seleção e elaboração de um tópico conversacional e as rotinas da conversação. Da conversação resultam os textos. O módulo semântico se define como diferentes processos de criação de sentidos lexicais (denotação, conotação, sinonímia, antonímia, hiperonímia, etc.) dos significados componenciais (referenciação, predicação, dêixis, foricidade, etc.) e das significações interacionais (inferências, pressuposições, etc.). O módulo gramatical se ocupa das classes, das relações que podemos estabelecer entre elas e das funções que as classes desempenham no enunciado. Esse módulo compreende a Fonologia, a Morfologia e a Sintaxe. O fonema, o morfema, o sintagma e a sentença, como unidades de cada um desses subsistemas, dispõem cada um de propriedades descritivas.” (Castilho, 1998:9-10) Castilho chama a atenção para o fato de que essa divisão da língua em módulos é uma divisão artificial – com fins metodológicos -, pois as “propriedades do Discurso, da Semântica e da Gramática alojados no Léxico são ativadas num mesmo ato de fala” (1997:9). Adotando essa versão da Teoria Modular, destacamos, de Castilho (1997), a idéia de que na base de toda atividade discursiva está a ativação de um item lexical. Quer dizer, o ofício de criar um texto é um ofício de reunir palavras. Para Castilho, no entanto, “o Léxico não é uma mera lista de palavras. É um conjunto de itens dotados de propriedades semânticas e gramaticais41 alternadas ou confirmadas no momento da interação discursiva.” (1998, p. 37). Significa conceber que cada item lexical possui propriedades semânticas, propriedades sintáticas (ou gramaticais) e propriedades fonológicas. Nessa perspectiva, poderíamos esquematizar a proposta modular de Castilho da seguinte maneira: 41 O grifo é de Castilho enfatizando as propriedades inerentes ao Léxico. 61 SEMÂNTICO DISCURSIVO LÉXICO TEXTO GRAMATICAL Figura 3. A figura ilustra o texto como resultante das relações entre o sistema lexical e os três módulos que compõem o sistema computacional numa atividade discursiva. Segundo Castilho (op. cit.;8), a divisão da língua nesses três módulos – o Discursivo, o Semântico e o Gramatical – pode ser explicada pela concepção de que no “coração da atividade lingüística está alojado um programa computacional, pré-verbal, alimentado por continuada análise da situação discursiva em que o falante/ouvinte está operando” (op. cit. p.:38). Em decorrência dessa análise feita pelos interlocutores, dá-se a seleção do Léxico, cuja administração, na visão de Castilho (Idem, idem), “configura um conjunto de momentos mentais, no sentido etimológico de “movimentos””, tendo em vista o fato de que os interlocutores decidem que propriedades do Léxico devem ser ativadas, reativadas ou desativadas. Para o autor, a construção de textos e de sentenças decorre, então, de três momentos ou processos discursivo-computacionais, que, como na configuração dos módulos, atuam simultânea e concomitantemente: a ativação, a reativação e a desativação. De acordo com o autor, se a hipótese sobre o funcionamento desses três processos discursivo-computacionais for verdadeira, isso significa que “... teremos de admitir que nosso cérebro não processa a língua num ritmo unilinear, aplicando instruções seqüenciadas. Ao 62 contrário, ele deve ativar ao mesmo tempo42 conjuntos de regras semânticas e gramaticais, avançando, voltando atrás, e até mesmo abandonando atividades de processamento que estavam em pleno curso.” (1998:38) Em linhas gerais, essa hipótese baseia-se no fato de que em toda e qualquer interação lingüística, os indivíduos que dela participam, durante todo o processo discursivo, tomam decisões sobre como administrar o Léxico: que palavras se adequam à situação discursiva, que propriedades dessas palavras devem ser ativadas, reativadas ou desativadas. Assim, os três momentos identificados pelo autor “se constituem em mecanismos suficientemente fortes para revelar a maquinaria de constituição do texto e da sentença” (Idem:39). 2.7.3.1. Construção por ativação A construção por ativação é um processo básico de constituição da língua em qualquer uma das suas formas de manifestação – quer a falada, quer a escrita. Nesse sentido, esse processo possibilita ao usuário organizar o texto e as suas unidades, as sentenças e suas estruturas sintagmática, funcional, semântica e informacional, dando-lhes uma representação fonológica, administrando assim uma bateria de regras (Idem:38). Em relação ao objeto de estudo desta dissertação, a CIE, a identificação desse processo assume uma importância central. Isso porque o processo de construção por ativação evidencia a organização do discurso, e, por conseguinte, das instâncias de enunciação que o compõem. Por organização, entendemos a propriedade que é manifestada por relações de interdependência que se estabelecem simultaneamente em dois planos: no plano hierárquico, conforme as relações de coordenação e/ou subordinação entre as instâncias enunciativas; no plano seqüencial, de acordo com as articulações dessas instâncias em termos de sua localização - adjacentes ou intercaladas - no discurso. 42 O itálico é do próprio autor. 63 2.7.3.2. Construção por reativação Na fala, é muito comum utilizarmo-nos do processo de construção por reativação, pois retomamos o tópico conversacional para refazê-lo, para descontinuá-lo, para interpolar outros tópicos, ou para omitir aqueles pragmaticamente considerados desnecessários (Castilho, 1998:38). O mesmo acontece na escrita, tendo em vista ser essa construção um tipo de “processamento anafórico”, por meio do qual voltamos atrás, retomando e repetindo formas, ou repetindo conteúdos (Idem, idem). A construção por reativação, segundo o autor, é, pois, uma sorte de “momento parafrástico” (e, portanto, anafórico) do discurso (op. cit., p.:51). Nesse momento discursivo-computacional, são utilizados dois processos: a repetição ou recorrência de expressões, que consiste na repetição literal dos enunciados; a paráfrase ou a recorrência de conteúdos, que se caracteriza pela repetição de uma idéia, sem, contudo, repetir as palavras que a exprimiram. No que diz respeito ao nosso objeto, tais processos mostram-se muito usuais, tendo em vista que identificamos, no Léxico, um conjunto de itens que evidenciam, dentre as estratégias discursivas de construção de instâncias enunciativas, a ação do enunciador de reconstruir o(s) discurso(s) de outro(s) enunciador(es) e/ou o seu próprio, incorporandoo(s) no fluxo do texto. 2.7.3.3. Construção por desativação A construção por desativação é, como o próprio nome sugere, um processo em que se verifica um corte no fluxo do discurso. Nesse sentido, de acordo com Castilho (op. cit.: 39), a construção por desativação se caracteriza como “o processo de ruptura na elaboração do texto e da sentença, de que resultam o abandono de segmentos textuais, as digressões, os parênteses, e, no domínio da sentença, a ruptura da adjacência por 64 meio de pausas, de hesitações, de inserção de elementos discursivos, etc.. Também as elipses, e os anacolutos são fenômenos sintáticos atribuíveis à descontinuação43”. Para o autor, os processos que caracterizam a construção por desativação implicam dois movimentos simultâneos: por um lado, tem-se a desativação de palavras principais e, por outro lado, a imediata ativação de outras. Desses dois movimentos decorrem dois fenômenos: a digressão, que é de natureza relacional, devido a “sua característica de elemento encaixado e desviante só se ressalta por contraposição a um contexto, recortado com base na dominância de um tópico discursivo” (Jubran, 1996:411); os parênteses, devido a sua função de introduzir esclarecimentos, observações rápidas, pequenos comentários, focalizam os interlocutores e inserem, no discurso, um discurso outro. Em geral, os discursos demarcados pelos parênteses mantêm-se sintaticamente independentes do discurso em que se inserem. O processo de construção por reativação, como apresentado por Castilho, guarda relação com o nosso objeto, pelo fato de entendermos a digressão e os parênteses como recursos lingüísticos de CIE, pois esses dois fenômenos, tal como foram definidos, introduzem novas vozes na malha discursiva. Isso posto, voltamos à discussão da relevância dos módulos lingüísticos44. Nascimento (1993) postula que “para pôr em ação a língua, o falante/ouvinte opera sobre os módulos discursivo, semântico e gramatical”, mas, para isso, faz-se necessário que o interlocutor possua os instrumentos básicos para ativá-los: o Léxico. A configuração dos processos de ativação, de reativação e de desativação, por sua vez, evidenciam o caráter dinâmico da enunciação, que é sempre um novo evento discursivo. 43 Castilho (1998) utiliza na página 38, num primeiro momento, o termo “desativação”, ao introduzir “os três conjuntos simultâneos de instruções”, e, num segundo momento, o termo “descontinuação”, ao caracterizar esses mesmos conjuntos. Optamos por usar o primeiro termo, com o fim de manter uma simetria com os outros dois termos: ativação e reativação. 44 A discussão sobre os módulos lingüísticos voltará no próximo capítulo como subsídio para a análise dos dados. 65 Tal característica da enunciação revela-nos que a relação de um indivíduo com a sua língua é sempre uma experiência nova que se soma às anteriores. Esse caráter dinâmico da língua está presente em cada novo texto produzido e explicita as condições de sua produção. Importante ter sempre em mente que, sejam quais forem os sistemas de referência (o conjunto de conhecimentos lingüísticos, os conhecimentos prévios de cada enunciador e as informações extraverbais) utilizados numa situação de interlocução, esses só se justificam em relação a esta situação de enunciação, definida de acordo com estratégias de ajustes utilizadas pelos falantes num determinado momento de interlocução. 2.8. Síntese Essa parte pretendeu ser uma introdução do trabalho que aqui se propõe. Com o fim de situá-lo no contexto das pesquisas lingüisticas, procuramos esclarecer a abordagem feita pela GT acerca das formas de indiciar o discurso relatado (referenciado) na escrita, reproduzindo, resumidamente, as regras que orientam a utilização dos recursos lingüísticos usados para esse fim, de acordo com a tese de teóricos e gramáticos que privilegiam a forma. Nessa ocasião, ressaltamos que o tratamento dado a esses recursos lingüísticos como recursos polifônicos está centrado numa análise lingüística que privilegia o produto. Em seguida, abordamos as diversas teorias que tratam da atividade verbal, dando ênfase àquelas que, em nosso ponto de vista, trouxeram contribuições relevantes para uma visão de língua como atividade. No recorte dessas teorias, enfatizamos como se modificou a noção de linguagem e, em conseqüência, a de texto, em decorrência das novas abordagens da Análise do Discurso. Enfatizamos, ainda, o fato de a análise lingüística ter se deslocado do foco no enunciado e ter passado a considerar, para a sua análise, elementos lingüísticos e extralingüísticos envolvidos em sua produção. Assim, o texto passou a ser concebido como o lugar de materialização e de explicitação de fatores envolvidos no processo de sua produção. Ele traz as marcas da enunciação e tal 66 propriedade indicia o trabalho do seu enunciador na e com a língua. Nesse sentido, a enunciação é concebida como um evento único, pois ela se define em função das condições de sua produção. Por esse caráter unívoco da enunciação, depreende-se que, a cada vez que alguém se enuncia, renova-se o discurso, haja vista a instauração de uma nova instância de enunciação. Além disso, a CIE evidencia que um discurso se situa num sistema de referências que está articulado a outras instâncias enunciativas. Essa articulação de instâncias de enunciação põe em jogo os diversos discursos, trazendo à luz os seus “actores”, evidenciando o caráter dialógico da linguagem que se traduz pelas vozes que ecoam pela cena enunciativa. A CIE, então, é apresentada como uma condição inerente da própria atividade discursiva, porque um discurso ocorre sempre em relação a um outro discurso, constituindo cada um desses discursos um plano enunciativo. Por fim, resenhamos alguns estudos feitos no Brasil relacionados às pistas, do trabalho dos enunciadores, no texto oral, mostrando a relevância de empreendermos esta pesquisa, que busca explicitar as pistas do trabalho dos enunciadores de textos escritos. O recorte do estudo - a análise das estratégias discursivas utilizadas na CIEs evidencia o caráter polifônico da linguagem e a necessidade de se construir um quadro teórico que considere o enunciado como um dado material que possibilite a apreensão do processo - enfim, da enunciação - que o gerou e não, apenas, como um dado abstrato que revela “os mecanismos psicológicos ou do funcionamento do “espírito humano” (Roulet, 1997: 07). Tomamos como base as contribuições da Teoria Modular, segundo os desdobramentos propostos por Castilho. Nessa abordagem, parte-se do pressuposto de que a capacidade lingüística é estruturada em módulos computacionais, ativados simultânea e concomitantemente, em cuja base está o módulo do Discurso responsável pela “mediação entre o Léxico, concebido como um ponto de partida”, e os módulos Semântico e Gramatical concebidos “como ponto de chegada” (Castilho,1998, p.38). Conceber o Léxico como ponto de partida da atividade discursiva é pertinente para a 67 noção de língua que se adota nesta pesquisa e justifica o tratamento dado ao texto escrito, isto é, a língua como atividade de interlocução e “o texto como o produto de uma interação” (Castilho, (1997)). Essa interação remete à atividade dos interlocutores na e com a língua. Assim, “para produzirmos textos, ativamos recursos lingüísticos adquiridos” (Castilho (1997)) ao longo de nossa vida e, dessa forma, a seleção lexical dar-se-á em virtude da situação de interlocução. Em virtude disso, focalizamos a propriedade dêitica de que se revestem certos itens lexicais como “shifters” da atividade discursiva, podendo ser tomados como indiciadores das instâncias enunciativas constituintes de um texto. Na Parte III, buscando ampliar as noções até aqui apresentadas, procuraremos explicitar os termos básicos com os quais operamos nesta pesquisa. Com isso, pretendemos evidenciar que uma abordagem discursiva da linguagem não pode prescindir de considerar as operações lingüísticas básicas que se evidenciam no espaço textual e que revelam o trabalho de linguagem dos seus enunciadores. 68 PARTE III – As pistas do processamento discursivo 3.1. Introdução Para melhor caracterizar o objeto de estudo desta pesquisa, faz-se necessário definir, num primeiro momento, dentro da perspectiva adotada, quatro conceitos: 1. sistema dêitico; 2. pistas ou índices reveladores do trabalho de linguagem; 3. estratégias discursivas; 4. polifonia discursiva. Como afirmamos no capítulo anterior, adotamos a hipótese de que o texto guarda as marcas de seu(s) enunciador(es), revelando, conseqüentemente, aspectos de sua “atividade”45 lingüística. Procuraremos definir, repetimos, os mecanismos lingüísticos que explicitam as marcas do(s) enunciador(es) de um texto, para além do conceito de dêixis como índices de “mostração”, ou seja, como meros índices de localização do locutor/enunciador. Consideraremos, então, neste capítulo, alguns trabalhos que tratam de mecanismos envolvidos na atividade de construção de textos e da terminologia utilizada para a sua identificação. 3.2. O sistema dêitico O termo “dêixis” tem sua origem no grego e significa “apontar” ou “indicar”. Na Lingüística, a sua aplicação está relacionada, segundo Lyons (1977), “to the function of personal and demonstrative pronouns, of tense and a variety of other grammatical and lexical features which relate utterances to the spatio-temporal co-ordinates of the act of utterance”46. 45 As aspas foram utilizadas para mostrar que o termo “atividade” não tem o mesmo sentido nas duas expressões seguintes: atividade do locutor, “atividade” do enunciador. Isto se deve ao fato de que, no primeiro uso, atividade está relacionado ao trabalho do falante/escritor na e com a língua. 46 (Nota de tradução) A dêixis refere-se “à função dos pronomes pessoais e demonstrativos, do aspecto verbal e a uma variedade de itens lexicais que relacionam o discurso às coordenadas espaço-temporais do ato de fala”. Esse conceito é, segundo o autor, desenvolvido em Antinucci (1974), Benveniste (1946, 69 Os elementos dêiticos indiciam, no enunciado, as informações essenciais para que os interlocutores possam fazer as operações adequadas a seu processamento. Nesse sentido, a dêixis é responsável por assinalar, dentro das várias operações enunciativas, aquela(s) que melhor se aplica(m) ao processamento do enunciado. Lyons (Idem, 637) define assim dêixis “is meant the location and identification of persons, objects, events, process and activities being talked about, or referred to, in relation to the spacio-temporal context created and sustained by the act of utterance and the participation in it, typically, of a single speaker and at least one addressee”47. De acordo com essa definição, é dêitico todo elemento lingüístico que faz referência; (1) à situação em que um enunciado é produzido; (2) ao momento da enunciação; (3) aos interlocutores. Inicialmente, eram considerados dêiticos os pronomes pessoais e os demonstrativos, os verbos, através de suas desinências modo-temporais e, em extensão, os advérbios de lugar e de tempo e os artigos. Tais classes de palavras, de acordo com o que postulam muitos estudiosos, fornecem as coordenadas para situar o enunciado, funcionando como um modo particular de atualização que usa ou o gesto, ou o próprio sistema lingüístico e/ou esses dois juntos. Mais recentemente, essa questão da dêixis tem sido retomada para além da sua função como elemento mostrativo, e é nessa perspectiva, como já afirmamos, que nos situamos. Em nossa concepção, a dêixis possibilita traduzir na e pela linguagem as condições de produção de uma atividade discursiva. Os elementos dêiticos fazem parte, portanto, da língua e abarcam uma classe muito grande de termos lexicais e gramaticais que têm como função fornecer as pistas lingüísticas que nos permitem identificar os 1956, 1958a), Bühler (1934), Collinson (1937), Fillmore (1966,1970) Frei (1944), Hjelmslev (1937), Jakobson (1957), Kurylowicz (1972), entre outros. 47 (Nota de tradução) Por dêixis é entendida a localização e a identificação de pessoas, objetos, eventos, processos e atividades sobre que se falou ou a que se referiu, em relação ao contexto espaço-temporal criado e sustentado pelo ato de fala e a participação nele, tipicamente, de um falante específico e o seu destinatário. 70 enunciadores e o sistema de referência de um texto e instituir o processo de enunciação em que são produzidos. A dêixis introduz, na cena enunciativa, os seus “atores”, num espaço e num tempo discursivos, definindo lingüisticamente quais as variáveis necessárias para referenciar a atividade lingüística do(s) seu(s) autor(es) e do(s) enunciador(es) que aquele(s) agencia(m), além, é claro, de referenciar as instâncias enunciativas. 48 3.2.1. Os “SHIFTERS ” de Jakobson Jakobson (1957), no artigo intitulado “Shifters and Verbal Categories”, reconhece, na língua, a existência de unidades gramaticais que desempenham um papel importante dentro do processo de comunicação verbal. Essas unidades gramaticais destacam-se no seu estudo (a) por definirem uma “classe de unidades gramaticais” e (b) por fornecerem subsídios para uma “classificação universal das categorias verbais”. A essas unidades gramaticais, cuja função é “fazer referência à mensagem na qual é utilizada”, Jakobson denominou SHIFTERS. Tais unidades possuem uma propriedade dêitica, pois fornecem informações com relação a sua utilização num evento de discurso (“speech event”). Como tal, só têm sentido se levada em conta a sua utilização numa determinada situação de comunicação, porque, extraídos da mensagem, nada “apontam”. Segundo a tese defendida por Jakobson, toda comunicação verbal possui uma dupla referencialidade, que é uma propriedade essencial: a decodificação da mensagem está diretamente relacionada tanto ao código lingüístico, quanto ao contexto49 de sua produção. Para ilustrar a importância dos “shifters” dentro da sua teoria da comunicação, o autor enfatiza o fato de que uma mensagem só é inteiramente eficaz se a mesma for 48 Embreantes é a tradução portuguesa do termo SHIFTERS, que foi traduzido para o francês “embrayeurs”. 71 adequadamente decodificada, o que remete à capacidade de recepção do recebedor e à de produção do emissor. Além disso, os dois - emissor/recebedor - devem compartilhar conhecimentos lingüísticos e de mundo que garantam uma perfeita assimilação da mensagem enviada, com uma gama maior de informações a ela relacionadas. Assim, por exemplo, a enunciação abaixo (1) “Repetem às escancaras agora o que há tempos vinham dizendo nos bastidores: ...” (T9, L 3-4) será decodificada adequadamente se o interlocutor/recebedor for capaz de abstrair das coordenadas do contexto de sua produção as operações essenciais para a sua atualização. Isso remete à alusão da existência de um trabalho de linguagem, em duas instâncias distintas: a do locutor e a do seu interlocutor. A este cabe resgatar, por exemplo, o agora do contexto de produção, que se refere a uma dada situação de interlocução e, trazendo-o para o momento de recepção, identificar, no seu tempo, a referência que se deseja construir. Nesse sentido, tais momentos, embora diferentes, são resgatados por um mesmo item lingüístico. De acordo com Jakobson(1963), na caracterização da comunicação lingüística, estaria, basicamente, a oposição entre “shifter” e “non-shifter”. Na categoria de “shifter”, estariam os pronomes pessoais ( eu/tu, nós/vós e as formas possessivas equivalentes ), as desinências verbais e, como coadjuvantes dos verbos, os modalizadores temporais (hoje/agora, etc..) e espaciais (aqui/lá).. Na categoria de “nonshifter”, os nomes próprios e os pronomes indefinidos. A utilização dos pronomes pessoais remete a uma relação cambial entre os participantes do evento discursivo: aquele que, num primeiro momento, enuncia-se como “eu”, 49 A terminologia utilizada por Jakobson em sua TEORIA DA COMUNICAÇÃO é por nós citada para ilustrar aspectos relevantes de sua abordagem, que corroboram, em parte, a tese que defendemos. Isso, contudo, não significa que adotamos, na totalidade, o seu quadro de referência teórica. 72 dirige-se a um “tu” que, por sua vez, ao enunciar-se, será, nesse momento, o “eu”. Essa troca de “papéis actanciais” no processo de interlocução, ilustra como cada interlocutor, por seu turno, referencia a si mesmo em relação ao outro. As desinências verbais, nesse processo, localizam temporalmente os “indivíduos língüísticos” do discurso, distinguindo-se quatro importantes elementos discursivos , a saber: um evento narrado50, um evento discursivo, um participante do evento narrado e um participante do evento discursivo. Tal distinção evidencia a existência de, pelo menos, dois momentos discursivos – o da enunciação propriamente dito (o evento do discurso) e o do evento narrado, tendo cada um desses momentos os seus interlocutores. Nesse sentido, temos as seguintes categorias expressas através das desinências verbais: a) a desinência número-pessoal caracteriza os participantes do evento narrado com referência aos participantes do evento do discurso. Dessa forma, ‘... first person signals the identify of a participant of the narrated event with the performer of the speech event, and the second person, the identify with the actual or potential undergoer of the speech event.” (Jakobson, 1990:388)51 b) a informação sobre estado e aspecto caracteriza o evento narrado em si mesmo, sem envolver, necessariamente, seus participantes e sem referência ao evento do discurso. Enquanto o estado qualifica o evento (por exemplo, no inglês, há formas lingüísticas específicas que distinguem uma afirmação de uma negação), o aspecto o 50 Utilizaremos nesse item o termo “evento” de Jakobson, tendo em vista que partimos de suas contribuições para caracterizar as “pistas” do trabalho de linguagem do locutor/enunciador. Chamamos a atenção para o fato de que sempre que esse termo for empregado, ele referencia uma situação de discurso, ou seja, uma enunciação. Em relação ao termo “narrado”, ele será por nós entendido como “referenciado”. Isto se justifica porque 1) a referência pode não se caracterizar como uma narrativa; 2) o corpus dessa pesquisa é constituído por textos argumentativos. Assim, por “evento narrado” referimo-nos a uma instância enunciativa diferente da instância fundadora do discurso, configurando, pois, o que Possenti e Maingueneau concebem como a existência de “um discurso no discurso”. 51 (Nota de tradução) ...a primeira pessoa sinaliza a identificação de um participante do evento narrado com o produtor do evento do discurso e a segunda pessoa, a identificação com o destinatário do evento do discurso. 73 “quantifica” (por exemplo, no inglês, o uso da forma “do” que é opcional nas frases afirmativas, mas obrigatório na construção das frases interrogativas e negativas). c) a desinência temporal (tense) caracteriza o evento narrado em relação ao evento do discurso. Assim, por exemplo, o pretérito informa-nos que o evento narrado é anterior ao evento do discurso, que se localiza no aqui/agora do discurso. d) a informação sobre a voz verbal caracteriza a relação entre o evento narrado e seus participantes, sem referência ao evento do discurso ou ao locutor. e) a desinência modal caracteriza a relação entre o evento narrado e seus participantes com referência aos participantes do evento do discurso. De acordo com o que postula Vinogradov (1947), essa categoria reflects the speaker’s view of the character of the connection between the action and the actor or the goal52 ( apud Jakobson op. cit., p.:391) f) Jakobson reconhece uma outra informação contida no sistema verbal, que evidencia a existência de tempos verbais explicitados no relacionamento entre os tempos dos eventos narrados. Essa característica dos tempos verbais mostra que as coordenadas temporais se constroem num movimento contínuo e não linear, pois caracteriza o evento narrado em relação a um outro evento narrado, sem necessariamente fazer referência ao evento do discurso. Dessa forma é-nos possível estabelecer relações temporais distintas entre os diversos eventos que compõem uma situação discursiva, identificando-os no eixo temporal como simultâneos, anteriores, posteriores etc. em relação uns aos outros. Num certo sentido, os nomes próprios possuem, também, a propriedade de referenciar um dos participantes do discurso, mas essa referência limita-se a um uso muito específico, porque se refere a um único indivíduo que por ele é designado e num espaço e tempo específicos. Neles há uma diretiva que extrai a pessoa nomeada do universo dos 52 (Nota de tradução) Esta categoria reflete a visão do falante sobre o caráter da conecção entre a ação e o ator ou o alvo. 74 seres do discurso. Os nomes próprios não conferem a quem eles designam um “papel actancial” na cena enunciativa. Com o exemplo abaixo podemos ilustrar a problemática que envolve os nomes próprios: (2) “Lembro ( a memória de 88 anos ainda não me traiu) que o professor de Português, José Schiavo, foi acerrimamente criticado, lá pelos idos de 30, ...” (T40, L 13-16) Ao utilizarmos um sintagma como José Schiavo, selecionamos de um conjunto de nomes de pessoas um dos elementos que não podem ter outra referência senão aquela que sempre remetem no conjunto de que são subtraídos, contrariamente ao que acontece com a utilização dos pronomes de 1ª e 2ª pessoas. Percebe-se claramente que José Schiavo não se constitui como um dos interlocutores de (2), configurando-se como o assunto ou o objeto da interlocução de (2). Esse sintagma - José Schiavo -, portanto, remete a uma referência fixa, que não varia em função do movimento do fluxo discursivo. 3.2.2. Os índices da enunciação de Benveniste Para Benveniste (1970: 84), a “referência é parte integrante da enunciação”, sendo que ela se institui e se define, sempre dentro de uma instância de enunciação, que se caracteriza, por si mesma, como um centro de referência, um “lugar de referenciação”. A referência manifesta-se, portanto, por “um jogo de formas específicas, cuja função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação”(op. cit., p. 85). Esse “jogo de formas” é explicitado através de “índices” produzidos na e pela enunciação. Benveniste classifica esses índices em três categorias: (a) índices de pessoa, referindo-se à relação eu/tu; (b) índices de ostensão, referindo-se à propriedade dêitica que caracteriza os pronomes demonstrativos que remetem a “objetos”, localizando-os em relação ao locutor e ao seu interlocutor; e (c) os “tempos” verbais, que têm sua origem na forma do presente, na referência ao momento da enunciação. 75 De acordo com o autor, os pronomes de 1ª e 2ª pessoas53 e os pronomes demonstrativos, diferentemente da concepção tradicional, são considerados como uma classe de “indivíduos lingüísticos”, que, por sua forma, só podem fazer referência a “indivíduos” também lingüísticos. Significa dizer que, por sua própria natureza, esses indivíduos só têm sentido em relação à enunciação em que aparecem. Nessa abordagem, então, os nomes próprios não se incluem na categoria de pessoas do discurso, por remeter, em qualquer situação, a um conceito restrito, ao referente que nomeiam. Nesse sentido, os “indivíduos lingüísticos” “são engendrados de novo cada vez que uma enunciação é proferida, e cada vez eles designam algo novo”. (Idem, p.85). É nessa propriedade que reside a diferença entre estes e os nomes próprios. Além disso, os “indivíduos lingüísticos” podem remeter a nomes próprios. No que concerne aos “tempos” verbais, o presente é considerado, pelo autor, como o tempo por excelência da enunciação: a forma lingüística do presente explicita o tempo da enunciação. No quadro de Benveniste, o conceito de “tempo” engloba a noção de temporalidade e continuidade. Noções que “se engendram no presente incessante da enunciação, que é o presente do próprio ser e que se delimita, por referência interna, entre o que vai se tornar presente e o que já não o é mais” (Idem, p.86). A forma gramatical do presente engendra a temporalidade que se, por um lado, revela o momento em que se deu a enunciação, por outro, institui tal enunciação como sempre nova, sempre atual. 3.2.3. As expressões indiciais de Bar-Hillel Bar-Hillel (1963) define as expressões indiciais54 como as expressões que possibilitam ao interlocutor compreender de uma forma totalizante a “referência visada pelo produtor da ocorrência” (Idem, p. 38), ou seja, da enunciação. As sentenças indiciais, 53 Benveniste considera os “pronomes” de 3ª pessoa como não pronomes, pois os mesmos se constituem como o assunto da interlocução entre um eu e um tu. 76 segundo Bar-Hillel, são aquelas que encerram uma declaração, têm o tempo verbal numa forma finita e apresentam certos itens lexicais exigidos pela construção de tempo/espaço, tais como ‘eu’, ‘tu’, ‘aqui’, ‘lá’, ‘agora’, ‘ontem’. ‘este’, etc.. A interpretação das expressões indiciais pelo interlocutor – destinatário - está diretamente relacionada ao contexto pragmático de sua produção. Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que a habilidade de operar com as informações verbais e as não verbais para produzir os efeitos de sentido necessários à situação de interação faz parte da competência lingüística do falante. Contudo a utilização das expressões indiciais na enunciação é condicionada pelo conhecimento do contexto pragmático que as propicia. Isso, segundo o autor, acarreta problemas no momento da interpretação das expressões indiciais55, pois o contexto pragmático é um contexto extralingüístico e, por isso, inacessível ao interlocutor que estaria passível de equivocar-se. Os equívocos seriam, então, resultado de ambigüidades geradas pela presença, ou não, de expressões indiciais, ou pela tentativa do interlocutor de suprir inconscientemente algum contexto que não o visado pelo locutor, tendo em vista que os contextos são acontecimentos não-lingüísticos. Bar-Hillel reconhece os pronomes pessoais eu/tu como “expressões indiciais” isentas de gerar ambigüidades.Com relação aos demonstrativos, no entanto, não se mostra tão confiante. Segundo o autor, a função de “este”, por exemplo, pode remeter a uma dupla referência. A utilização do este, segundo o autor, dependendo da localização dos interlocutores em relação ao objeto, ou aos diversos contextos pragmáticos, pode suscitar uma referência distinta da pretendida pelo seu locutor. Apesar dessa dificuldade do uso das expressões indiciais - a necessidade de se conhecer o contexto pragmático de uma sentença indicial e a ambigüidade gerada pelo 54 Bar-Hillel utilizou o termo Indexical Expressions porque, segundo ele, em conformidade com a terminologia “Indexical Sign” e “Index” de C. S. Peirce, esse é o termo que melhor combina com termos como: ‘signo’, ‘palavra’, ‘expressão’, ‘sentença’, ‘língua e ‘comunicação’ (Bar-Hillel, 1963:37). 77 desconhecimento desse contexto - Bar-Hillel reconhece que elas têm um papel fundamental na construção da enunciação. 3.2.4. Os “embrayeurs” de DUCROT Ducrot (1972,1984) propõe, com base na Teoria da Enunciação, que, dos estudos lingüísticos, seja excluída a busca da “lógica na linguagem” como princípio único no qual os estudos lingüísticos se pautem. Os racionalistas, representados mormente pelos filósofos da Gramática de Port-Royal, defendiam as teses de que a toda proposição corresponderia uma e somente uma forma simbólica padrão e a de que as manifestações lingüísticas seguiriam esquemas lógicos universais. De acordo com a concepção da Gramática de Port-Royal, a “lógica na linguagem” se pautaria pela seguinte propriedade: se uma fórmula “a” é convertida por uma regra em uma fórmula “b”, então a proposição expressa por “b” se infere da expressa por “a” (Ducrot, 1981:21). Assim, de “Pedro é homem. Todo homem é mortal.” poderíamos inferir que “Se Pedro é homem, logo Pedro é mortal” Para Ducrot, é possível identificar a “lógica na linguagem”, tendo em vista que “existem relações propriamente lingüísticas e suscetíveis de uma descrição sistemática” dos enunciados. Mesmo se levada em conta a relação desses com as situações em que foram produzidos (o que o autor chama de “situações de discurso”), será possível empreender uma descrição da lógica na linguagem, pois as informações lingüísticas estão no enunciado produzido. Nessa perspectiva, sua tese desloca-se da análise dos enunciados em relação aos próprios enunciados para a análise das situações de sua produção. 55 A presença de expressões indiciais numa sentença caracteriza-a como uma sentença indicial. Para BarHillel, as sentenças indiciais, portanto, são aquelas que encerram proposições do tipo “Que X faça Y, no 78 Ao assumir essa nova postura em relação à análise lingüística, Ducrot considera de fundamental importância três aspectos do processamento discursivo: o locutor, o alocutário56 e a situação da enunciação. A enunciação é concebida, pelo autor, como “um ato de dizer”, explicitado pelo próprio enunciado, isto é, o acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado (1984: 168). Nesse sentido, para apreender a enunciação, faz-se necessário considerar “o conjunto dos factores que se situam na relação entre o material lingüístico e a situação concreta” ( Ducrot, 1984: 393). No conjunto dos conhecimentos partilhados entre locutor e alocutário situa-se o conhecimento dos “shifters” ou “embrayeurs”, elementos que integram os enunciados e a enunciação que os produz. O termo “shifters” é empregado por Ducrot (1984), sem nenhuma restrição, para identificar, principalmente, as diferentes instâncias de vozes que aparecem no discurso. A única função dos “shifters”, de acordo com o autor, como elementos da língua, é dar determinadas orientações para que, em cada uma de suas ocorrências, sejam instituídos os “indivíduos lingüísticos” (Benveniste, 1970:85), responsáveis pela instauração e manutenção do processo enunciativo. Ducrot concebe como “shifters” uma gama muito grande de expressões lingüísticas, desde que tais expressões tenham como função indicar a atividade do enunciador no trabalho de dar existência lingüística a um “indivíduo” a quem dá voz. Nesse sentido, o autor reformula a tese de Bar-Hillel em relação à utilização da classe dos ditos pronomes demonstrativos e indefinidos . Essa classe de palavras, segundo BarHillel, contém uma certa ambigüidade, porque pode, ao mesmo tempo, remeter a X ou a Y que está no campo de visão do locutor, ou na sua imediação, necessitando, pois, de momento T1”. O termo “alocutário”, referindo-se ao recebedor da mensagem, corresponderia a um dos interlocutores, a um ser empírico, responsável por resgatar a enunciação que lhe é destinada. Sem a sua atuação, não há enunciação. Alocutário, também, pode se referir a uma entidade construída lingüisticamente, pois dentre as estratégias postas em ação pelo autor, estão aquelas que o prevêem e definem. 79 56 uma informação extra-verbal (por exemplo, o gesto de apontar) para evitar tal ambigüidade. (3) “ “Essa é a tarefa”, disse o ministro da Fazenda, referindo-se ao trabalho que ainda há a fazer para cortar gastos, reduzir custos ...” ( T16, L 42 - 44) (4) “São muitos os que condenam essa liberdade. Consideram sacrílegas essas versões.” (T 31. L 42-4) Ducrot resolve essa questão colocando em evidência, como fator determinante para a apreensão da enunciação, o conhecimento das circunstâncias que propiciaram a enunciação. Caberia aos “shifters”, pois, a função de fornecer os elementos necessários para resgatar tal conhecimento, definindo, dessa forma, as condições de sua produção e, em conseqüência, a resolução de possíveis ambigüidades. Operamos, fundamentados na Teoria Modular a que nos referimos na Parte II, com a hipótese de que, na base de toda atividade discursiva, estão os dêiticos, que fornecem as pistas ( ou os índices, ou as expressões indiciais, ou os “shifters”) dessa atividade. Os dêiticos são itens lexicais que, ativados em função da situação discursiva - módulo Discursivo -, revelam como se organizam os enunciados – módulo Gramatical - e que efeitos de sentido se deseja alcançar com a sua utilização – módulo Semântico. 3.3. As estratégias discursivas na CIE Ao nos remetermos aos estudos citados acima sobre a dêixis, procuramos enfatizar a importância de se considerar o papel dos dêiticos no processamento discursivo e a necessidade de se considerar, como pertencentes ao conjunto desses elementos, uma gama maior de itens lexicais, que, no discurso, assumem a função de “shifters”. Embora os autores citados apresentem alguma divergência em relação à abrangência da referência induzida por alguns elementos dêiticos – lembre-se de Bar-Hillel no que se refere aos pronomes demonstrativos e aos indefinidos -, eles concordam em que o 80 sistema dêitico está na base de toda atividade discursiva. Ressaltamos que, ao fundarem suas análises sobre as pistas que indiciam o discurso, esses autores privilegiam, como objeto de estudo, o sistema dêitico. A dêixis é, pois, constitutiva do processo de enunciação e, como tal, revela as pistas que constituem o processamento discursivo. Nessa perspectiva, a dêixis rege a construção dos enunciadores no discurso, localizando-os em tempos e espaços discursivos, instaurando, dessa forma, a polifonia, ou seja, promovendo a articulação das instâncias enunciativas de um texto. Assim, os elementos dêiticos que indiciam os enunciadores, num tempo e num espaço discursivos são os elementos sobre os quais nos debruçaremos para identificar a atividade lingüística do autor nas CIE. Nesse sentido, as estratégias discursivas traduzem a atividade lingüística em si, levando-se em conta que os “shifters” – ou dêiticos - são estrategicamente utilizados de acordo com a situação de enunciação, isto é, visando à implementação e à organização das instâncias de enunciação articuladas na construção de textos. 3.4. A polifonia no discurso Partindo do desenvolvimento que Ducrot faz do conceito de Bakhtin sobre a polifonia, Maingueneau (1986) analisa o discurso polifônico, afirmando que a questão fundamental no seu tratamento reside na “questão da identidade do sujeito enunciador”. Reconhecer a polifonia no discurso afasta de vez, segundo Maingueneau, a concepção de que “um enunciado teria apenas uma fonte, denominada indiferentemente “locutor”, “sujeito falante”, “enunciador”, etc..”. Isso significaria aglutinar numa única “pessoa” funções distintas, que definem os papéis lingüísticos dos atores da atividade lingüística. Como Maingueneau enfatiza, é possível que, quem profere um enunciado, assuma as três categorias discursivas - o falante/escritor, o locutor e o enunciador -, mas tal fato não justifica argumentar a favor da univocidade de um enunciado. 81 Corroboramos esse argumento de Maingueneau (1986) em relação à identidade do sujeito enunciador. De acordo com esse teórico, o autor não é o único a dizer “eu” num texto, pois outras “vozes” podem ser percebidas no discurso de um mesmo enunciador. Ao analisar as falas que caracterizam um texto narrativo, o autor critica os estudos referentes ao discurso direto, ao discurso indireto e ao indireto livre, por entender que estes recursos caracterizam-se como estratégias que revelam a existência de sistemas enunciativos e não, apenas, como formas de citação de discursos. A existência dos sistemas enunciativos explicita o caráter polifônico do discurso. A polifonia se constrói, pois, na articulação desses sistemas enunciativos, que chamaremos instâncias enunciativas. Isso “implica uma integração de relações entre enunciadores, em tempos e espaços57 constituídos na própria enunciação” (Lopes, 1998:106). Nessa perspectiva, a polifonia (ou dialogia) é uma propriedade do discurso, da discursivização e não do texto.Com base nessa hipótese sobre o papel da polifonia, estamos pressupondo que: (i) a voz autoral pode ser expressa por um enunciador que se identifica, explicitamente, como o autor do texto; (ii) a voz autoral pode estar implícita na voz de um enunciador outro que não remete ao autor do texto; (iii) a voz autoral pode ser expressa por diferentes vozes enunciativas; (iv) outras vozes, com as quais a voz autoral não se identifica, podem ser expressas na constituição de um texto. É importante, pois, definirmos os seguintes termos: autor/locutor, enunciadores e falante/escritor, destacando que a distinção entre os mesmos situa-se no plano lingüístico. A polifonia, como é concebida neste estudo, manifesta-se na indiciação da “atividade” desses “indivíduos lingüísticos” no discurso. A atividade lingüística, como já dito acima, explicita-se a partir da utilização do sistema dêitico no processo discursivo. 57 A noção de tempo/espaço discursivo será desenvolvida à parte, neste trabalho, tendo em vista a sua importância para se entender o conceito de instâncias enunciativas. 82 3.5. A concepção de autor/locutor/enunciador Ao utilizarmos o nome autor, estaremos adotando a concepção de Autor-Modelo de Eco (1979), que não referencia o autor empírico de um texto qualquer , enquanto pessoa do mundo físico, nem entidade dotada de uma consciência. O Autor-Modelo caracteriza-se como um ser lingüístico que só tem existência, enquanto tal, se considerado relativamente à própria enunciação, cabendo a ele a função de agenciar os enunciadores que, porventura, se apresentam como “actantes” de uma determinada enunciação . Considerando o fato de que uma enunciação pressupõe a existência de dois pólos de interlocução, a instituição desse Autor-Modelo implica a instituição de um LeitorModelo, que constitui um conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial. (Eco, 1979:45) Ambos os pólos são entendidos como papéis actanciais do enunciado (cf. Jakobson, 1957), por sua característica agentiva, ou seja, por indiciar lingüisticamente as instâncias de enunciação a que pertencem. Fica claro, portanto, que, doravante, toda vez que usarmos termos como Autor e Leitor-Modelo, sempre entenderemos, em ambos os casos, tipos de estratégias textual. (Idem, Idem) Tais estratégias textuais enquadram-se entre as pistas do trabalho constitutivo da enunciação, pois a configuração delas ... depende de traços textuais, mas põe em jogo o universo do que está atrás do texto, atrás do destinatário e (...) diante do texto e do processo de cooperação. (Idem, p.49) 83 Essa concepção de Autor-Modelo aproxima-se da concepção de Locutor L usada por Ducrot. Segundo Ducrot, o Locutor L é “um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste enunciado” (p. 182). Essa responsabilidade pela autoria do enunciado, segundo Ducrot, só se justifica se os locutores – aquele que fala no discurso e aquele que está na origem do enunciado - forem considerados como “seres do discurso” constituídos no sentido do enunciado e cujo estatuto metodológico é, pois totalmente diferente daquele do sujeito falante (este último deve-se a uma representação “externa” da fala, estranha àquela que é veiculada pelo enunciado) (Idem, p.188). De acordo com Ducrot, o locutor é construído lingüisticamente . Ele reconhece nessa instância lingüística a existência de duas formas distintas de locutores: um Locutor “L” e um Locutor -“λ λ“, cuja existência se dá de forma simultânea. Ao primeiro tipo de locutor caberia a função de ser o responsável pela enunciação, ou seja, é ele quem introduz os enunciadores numa determinada situação de enunciação. Ao segundo, enquanto ser do mundo, caberia dar origem ao enunciado. Nessa perspectiva, “L” se enuncia e dá voz aos possíveis enunciadores, que, por sua vez, só existem a partir da ativação de “indivíduos lingüísticos” engendrados e revelados no enunciado. Separados os “indivíduos lingüísticos” - que existem somente enquanto resultado da atividade discursiva - dos seres empíricos do mundo - o falante ou o escritor -, Ducrot se utiliza de um outro conceito – o de enunciador - para explicar como a polifonia é instituída, ou seja, como o sentido do enunciado (...) pode fazer surgir na enunciação vozes que não são as de um locutor ( Idem, p.192). De acordo com essa visão, Ducrot concebe a existência de duas instâncias lingüísticas de instauração de vozes no discurso, que são distintas: o locutor e o(s) enunciador(es). Essas duas instâncias, segundo o autor, guardam entre si a mesma relação que existe entre o autor e os personagens, pois 84 O autor coloca em cena personagens que (...) em uma “primeira fala”, exercem uma ação lingüística e extra-lingüística, ação que não é assumida pelo próprio autor. Mas este pode, em uma “segunda fala”, dirigir-se ao público através das personagens: seja porque se assimila a esta ou aquela que ele parece fazer seu representante, seja porque mostra significativo o fato de as personagens falarem e se comportarem de tal modo. (op. cit., p. 102) Da mesma forma se dá a ação do locutor em relação ao(s) enunciador(es): O locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enunciadores de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes. E sua posição própria pode se manifestar seja porque ele se assimila a este ou aquele dos enunciadores, tomando-o por representante (...), seja simplesmente porque escolheu fazê-los aparecer, e que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que ele não se assimile a eles (...). (Idem, p.193) Corroborando a distinção entre locutor e enunciador, o autor define como “enunciadores” estes seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles “falam” é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não no sentido material do termo, suas palavras. (Idem, p.192) De acordo, pois, com essa definição, os enunciadores de um texto só existem porque são instituídos pelo locutor e a “voz” deles só se configura através da “voz” do locutor, uma vez que suas “palavras” não estão representadas na enunciação. É exatamente neste ponto que propomos uma nova concepção de enunciador e diluímos a distinção entre este e o locutor de um texto tal qual postula Ducrot. Apoiamo-nos, para isso, numa propriedade que ambos possuem: evidenciam uma instância enunciativa. Nesse sentido, aquele que fala, não importando se se trata de uma “primeira” ou de uma “segunda fala”, pelo simples ato de enunciar ou ser enunciado, configura a existência de 85 um novo enunciador e, em conseqüência, a instituição de uma nova instância enunciativa. Nesse sentido, não reconhecemos na figura do enunciador um papel passivo, ou seja, o fato de um enunciador ser introduzido por um outro enunciador não o obriga “a calarse”; pelo contrário, suas “palavras” podem estar textualmente representadas no discurso do outro. Tal fato nos remete à noção já anteriormente apresentada de “discurso como interdiscurso”, em que a polifonia se mostra como uma característica imanente da própria atividade discursiva. 3.6. Síntese Na perspectiva aqui adotada, a concepção de falante, de ouvinte, de escritor e de leitor não é relevante para o trabalho que propomos. Reconhecemos nesses elementos a origem e o destino dos enunciados e até uma possibilidade de “coincidirem”, em alguns casos, com os indivíduos lingüísticos presentes na enunciação. No entanto, reforçamos a tese de que os indivíduos empíricos não remetem necessariamente aos enunciadores de um texto. Por isso, a ênfase nos “indivíduos lingüísticos”, que têm seus papéis definidos apenas em relação à enunciação na qual se inserem. Como vimos, tais “indivíduos” constroem-se na materialidade do texto, através de elementos lingüísticos - os dêiticos -, que são empregados, em função de uma situação discursiva. É com base nesse ponto que destacamos, neste capítulo, o caráter funcional de que se revestem os “shifters”, pois, se extraídos do discurso, eles nada significam. Em face da noção de “indivíduos lingüísticos” que caracterizam os “actantes” da enunciação, faz-se necessário explicitar a concepção de tempo e espaço com que operamos. Embora tenhamos mencionado, em momentos distintos, a importância de se considerar essas coordenadas como elementos constitutivos das instâncias de enunciação, não as definimos de forma mais sistemática. Decidimos fazê-lo em uma Parte IV, por entendermos que tempo e espaço, juntamente com a noção de 86 enunciadores, são noções importantes para se entender a configuração do que denominamos instâncias enunciativas. 87 PARTE IV – A dêixis temporal/espacial na CIE 4.1. INTRODUÇÃO Fiorin (1996), em seu estudo sobre a questão da enunciação, parte do princípio proposto por Greimas e Courtès (1979) de que a disjunção entre enunciação e enunciado é um importante recurso no processo discursivo. E, embora reconheça que a instauração das instâncias de pessoa, de tempo e de espaço enunciativos obedeça aos mesmos critérios de debreagem e embreagem, analisa essas categorias lingüísticas isoladamente, como se fossem categorias estanques, apesar de terem, em comum, a propriedade de serem definidoras do processo de enunciação. Concordamos, em parte, com o que postulam tais autores, mas propomos conceber essas três categorias como elementos de um conjunto harmônico, cujas características se definem em relação ao próprio conjunto e, portanto, subordinadas uma às outras. Em outras palavras, as noções de tempo e espaço se definem em função da sua utilização no discurso, o mesmo ocorrendo em relação à categoria de pessoa58. Não as entendemos como índices independentes entre si, mas subordinados e formando um todo que se completa e traz em si informações únicas e definidoras do que, neste trabalho, denominamos instâncias de enunciação - INE59. Isso se deve ao fato de que a categoria de pessoa é definida em relação a um tempo e a um espaço, pois um ato discursivo tem como referência o “aqui/agora” de um enunciador. Esses três elementos se articulam na CIE e evidenciam que, a cada vez que houver a instauração de um novo enunciador, concomitantemente, tal enunciador será instituído num novo tempo e espaço. Logo, quantos forem os enunciadores instituídos 58 A instauração da categoria de pessoa já foi explorada, neste capítulo. Tal como foi apresentada, a pessoa é concebida como uma estratégia lingüística e, por isso, só se define em relação à enunciação em que está inserida. 59 Usaremos INE ao nos referirmos à instância enunciativa. 88 num processamento discursivo, tantos serão os tempos e os espaços em que eles se instituem. Na perspectiva discursiva que adotamos, o tempo/espaço enunciativos não correspondem ao tempo cronológico e ao espaço físico. São categorias construídas lingüisticamente por meio da dêixis espaço-temporal instituída no discurso. Em alguns momentos, no entanto, nossas reflexões sobre a construção de espaço e tempo enunciativos podem sugerir uma separação entre essas duas dimensões dêiticas de construção do discurso. Lembramos, contudo, que tal separação deve-se exclusivamente a uma necessidade metodológica, tendo em vista que, na ativação dos módulos Discursivo, Semântico e Gramatical, o processamento dêitico é implementado de forma que a construção de tempo/espaço/pessoa efetue-se através de operações que não se distinguem necessariamente na CIE. 4.2. Tempo e espaço no processamento discursivo A compreensão do que aqui se propõe não se dará satisfatoriamente se não construirmos, por inteiro, um quadro teórico que sirva de referência para o entendimento das condições de produção das instâncias enunciativas construídas, no processamento discursivo, em função das coordenadas de tempo e espaço. Insistimos em ressaltar o fato de que cada instância de enunciação só se institui na e pela instituição de um tempo e de um espaço próprio. Nesse sentido, falar em CIE várias vozes, várias instâncias de enunciação - corresponde a aludir a uma pluralidade de tempos e de espaços, pois cada instância de enunciação cria o seu tempo, o seu espaço, os seus interlocutores. Enfim, cada instância de enunciação possui o seu quadro de referência interna, estabelecido em função das coordenadas de tempo/espaço. Entendidos sob esse ponto de vista, o tempo e o espaço da enunciação caracterizam-se como entidades lingüísticas, assim como o são o Autor-Modelo, os enunciadores e os alocutários. Por isso, como ocorre com estes, o tempo e o espaço da enunciação só se 89 definem enquanto estratégias de CIEs. Em outras palavras, tempo e espaço não são correlatos de tempo cronológico e de espaço físico do mundo empírico. Em conformidade com isso, Benveniste (1974) postula a existência de três noções distintas de tempo, a saber: a) o tempo físico; b) o tempo crônico e c) o tempo lingüístico. O tempo físico do mundo é, de acordo com Benveniste (1974, p.:71), “um contínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade” e está relacionado ao tempo psíquico, que é individual e se caracteriza pelo conjunto das experiências do indivíduo e o modo como estas são por ele vividas, ou seja, corresponde ao tempo vivido por um indivíduo. Suas experiências podem ser resgatadas psiquicamente, mas não podem ser vividas novamente, porque “o nosso tempo vivido corre sem fim e sem retorno” (Idem, p. 70). Apesar dessa peculiaridade do tempo físico, os acontecimentos, como a infância, por exemplo, que marcam a vida de um indivíduo, constituem-se como “pontos de referência” a partir dos quais as pessoas orientam-se para reconhecer a sua própria vivência. Em outras palavras, o tempo vivido pode ser segmentado, uma vez que o indivíduo pode “revisitar” os acontecimentos em dois aspectos: uma visão para o futuro ou uma visão para o passado. Tempo 0 0 Figura 4 - O tempo vivido decorre de um momento inicial - um tempo zero. A inserção do indivíduo no mundo físico e sua continuidade estão diretamente relacionadas à vida e ao modo como ele experimenta os acontecimentos pelos quais passa. O tempo crônico, por sua vez, é o “tempo dos acontecimentos” e está diretamente relacionado ao tempo vivido porque, se o tempo vivido é caracterizado por um conjunto de experiências vividas pelo homem, tais experiências nada mais são do que uma 90 seqüência de acontecimentos distintos dispostos linearmente. A noção de “tempo” que o caracteriza está diretamente relacionada à “continuidade em que se dispõem em séries estes blocos distintos que são os acontecimentos”. Os acontecimentos, portanto, nada mais são que pontos de referência que situamos exatamente numa escala reconhecida por todos, e aos quais ligamos nosso passado imediato ou longínquo”( Idem, Ibidem, p.71) e, como tal, se situam num determinado tempo e num determinado espaço. A noção de acontecimento, segundo Benveniste, é essencial para a compreensão das diferenças entre o tempo físico e o tempo crônico. Esse último é socialmente estabelecido e é computado a partir da regularidade da ocorrência dos eventos naturais. Por exemplo, o espaço decorrido entre o nascer do sol e o seu desaparecimento no horizonte foi convencionalmente chamado de “dia” e assim por diante. Os calendários nasceram dessa tentativa do homem de demarcar o “tempo” e orientam-se a partir de três condições básicas: a) estativa, que tem como referência o momento zero, ou seja, o ponto no qual se encontra a origem de um acontecimento que, de algum modo, altera uma ordem definida; por exemplo, o nascimento de Cristo, que marcou o início de uma nova era para os cristãos; b) diretiva, que tem como referência o ponto zero da ocorrência de um acontecimento que se constitui como o ponto a partir de que o indivíduo se orienta para “antes ou depois”; c) mensurativa, que corresponde a uma delimitação, em termos de unidades de medida, dos intervalos regulares dos fenômenos cósmicos, por exemplo, a ocorrência dos dias, semanas, etc.. Em síntese: “A partir do eixo estativo, os acontecimentos são dispostos segundo uma ou outra visada diretiva, ou anteriormente ( para trás ) ou posteriormente ( para frente ) em relação a este eixo, e são alojados em uma divisão que permite medir a sua distância do eixo: tantos anos antes ou depois do eixo, depois de tal mês e de tal dia do ano em questão. Cada uma das divisões (ano, mês, dia) 91 se alinha em uma área infinita na qual todos os termos são idênticos e constantes, não admitindo nem desigualdade nem lacuna, de tal modo que o acontecimento a situar está localizado exatamente na cadeia crônica por sua coincidência com tal divisão particular.” (Benveniste, Idem, p. 73) Assim, os tempos definidos acima têm como característica um momento, um ponto zero, em que se originam e em relação ao qual se dão as incursões - para o passado ou para o futuro - dos indivíduos no eixo temporal. Para Benveniste, o tempo lingüístico se distingue do tempo crônico (o tempo fixado pelo calendário de acordo com as convenções sociais) ou do tempo psicológico (o tempo enquanto experiência única do indivíduo, a experiência pessoal) porque o tempo lingüístico está “organicamente ligado ao exercício da fala” e “se define e organiza em função do discurso”(1974, p.74). Por essa sua peculiaridade, o momento da enunciação, marcado como o presente, é reconhecido como um tempo zero a partir de que se definirá a temporalidade da enunciação, instituindo-se passado(s) e futuro(s)60 em relação ao próprio tempo zero do discurso. Se, por um lado, conforme postula Bakhtin (1974, p.78), o presente é instituído como função do discurso, por outro lado, a cada vez que for enunciado, o “agora” será sempre novo, considerando-se que, a cada instância de enunciação, o tempo e o espaço se tornam, também, novos. Isso porque o “agora” instituído no discurso será continuamente renovado, convertendo-se no “agora” do interlocutor. Essa conversão implica um trabalho do alocutário que desloca o “agora” instaurado no discurso, trazendo-o para o “agora” da sua recepção. Para serem bem sucedidas as operações de debreagem e embreagem61, no texto escrito, faz-se necessário 60 Segundo Benveniste (1974, p.75), o tempo lingüístico é determinado no momento da discursivização e é em função desta que se estabelece a organização temporal, tendo como eixo ordenador do tempo o momento da enunciação. 61 Tais termos são assim denominados tendo por base a tradução francesa dos Shifters de Jakobson (1963). “Les embrayeurs”, ou, em português, “embreantes”, remetem aos elementos dêiticos que propiciam a construção da referência no discurso. Greimas e Courtès chamam de debreagem a operação em que a instância de enunciação disjunge de si e projeta para fora de si, no momento da discursivização, certos termos ligados a sua estrutura de base, com vistas à constituição dos elementos fundadores do enunciado, isto é, pessoa, espaço e tempo. (Greimas e Courtès ( 1979, p.79) apud Fiorin(1996, p.43). Chamam de embreagem a operação em que se verifica ““o efeito de retorno à enunciação”, produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim 92 que o “agora” da enunciação esteja “ancorado” a uma referência do tempo cronológico, dada a distância entre o momento da interlocução e a sua representação escrita. Segundo Fiorin (1996, p.145), a “singularidade do tempo lingüístico” define-se levando-se em conta dois pontos: “a) seu eixo ordenador e gerador é o momento da enunciação; b) ele está relacionado à ordenação dos estados e transformações narrativas no texto.”. Esses dois pontos, ao mesmo tempo que indicam uma polaridade quanto à instauração do sistema temporal, evidenciam, também, que “o momento de referência está relacionado ao momento da enunciação, já que este é o eixo fundamental de ordenação temporal na língua” (Fiorin, 1996, p.:145-6). Isso porque se, de um lado, temos “o momento da enunciação”, de outro, temos “os momentos de referência instalados no enunciado”. 4.3. Tempo/espaço na construção de planos enunciativos Essa noção de tempo lingüístico nos remete à noção de instâncias enunciativas de que tratamos anteriormente. Uma vez que estas instâncias são instauradas a partir da introdução de novos enunciadores na atividade discursiva, podemos, em conseqüência disso, afirmar que a organização das instâncias de enunciação obedece a uma organização caracterizada por uma articulação dos tempos/espaços da enunciação e definida em função da própria atividade discursiva. Assim, se a articulação de tempos define-se como uma das coordenadas que compõem o sistema de referência interna da enunciação, cabe a nós buscar explicitar a base sobre a qual tal articulação se efetua. De acordo com Weinrich (1973) e (1989), a noção de formas temporais está atrelada à existência de dois sistemas temporais que obedecem a três eixos de orientação: a “situação de elocução”, a “perspectiva de locução” e a “focalização do evento62”. O primeiro desses eixos corresponde ao que Castilho (1998) define como resultante das operações realizadas essencialmente no módulo Discursivo; o segundo e o terceiro como pela denegação da instância do enunciado.”(Greimas e Courtès (1979, p.119-21) Apud Fiorin (Idem, p.48)). 93 correspondem às operações no módulo Semântico. As operações no módulo Gramatical correspondem à organização dada ao discurso, considerando-se a articulação das instâncias enunciativas que o compõem. Segundo Weinrich, esses três eixos temporais são subordinados uns aos outros. Percebese, nessa concepção da organização temporal, a importância de os alocutores, no processamento discursivo, operarem adequadamente as referências temporais construídas na e pela atividade lingüística. Dessa forma, os alocutores, na recepção do texto reconstroem os planos temporais instituídos na e pela sua enunciação. A localização dos discursos no plano da enunciação evidencia o fato de que uma enunciação não se caracteriza por um discurso e um tempo singulares, mas por uma cadeia de discursos que se situam em tempos e espaços distintos e subordinados entre si. Em conseqüência, definem-se os níveis enunciativos que compõem a enunciação, evidenciando que os mesmos obedecem a uma certa hierarquia, relativamente a sua localização espaço-temporal. Tomemos, como exemplo, o trecho abaixo para ilustrar a constituição de planos enunciativos: (5) {INE1“Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, [dirige-se ao sargento]] INE2 [que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel.] INE3} INE1 ”(T14. L 28-33) O exemplo (5) articula três instâncias enunciativas: a) EN1 é instituído em “situação default63” e “fala” para um leitor virtual referenciado como AL1. O tempo e o espaço enunciativos referenciados nessa primeira instância estão atrelados ao agora e ao aqui da enunciação –“Hoje”- em que EN1 toma a palavra e, pela elocução da forma verbal “dirige-se”, introduz EN2. 62 Confira nota 50, da página 60, sobre a concepção de “evento” ( a enunciação). Entende-se por “situação default” a “tomada de palavra” por parte do enunciador que funda o discurso – EN1. Esse enunciador se situa no aqui/agora do processamento discursivo. Essa noção de “situação default” será explorada no próximo capítulo. 94 63 b) Ao introduzir EN2 no discurso, indiciando-o através do verbo dirigir, EN1 instaura a segunda instância enunciativa – INE264- formada pelo par EN2-AL2, referenciados no texto como o soldado da PM, de um lado, e o sargento, de outro. Essa instância de enunciação situa-se temporalmente, num momento simultâneo, em relação ao momento da enunciação de EN1 e é indiciada pelos termos: “Hoje”, “quando”. c) EN1 instaura, ainda, uma terceira instância de enunciação – INE3 - ao referenciar a interlocução do par EN3-AL3, indiciando-a pelo verbo “reporta”. Nessa instância, que se situa num tempo simultâneo ao tempo lingüístico da INE2, o AL2 assume o papel de EN3 e institui o seu próprio alocutário - AL3 -, referenciado no texto lingüisticamente como o “oficial do dia”, a quem reporta o que lhe foi dito por EN2. Tal jogo de tempos dicursivos situa uma pluralidade de discursos em tempos e espaços próprios e põe em foco a força ilocucionária do operador – “quando” - usado no âmbito da INE1, que subordina os tempos e espaços das outras instâncias enunciativas que compõem a enunciação como um todo. A categoria de tempo, como consta em (5), é construída a partir de um tempo zero - o presente da enunciação - sendo este o plano que orienta o jogo dos outros tempos que compõem a enunciação e possibilita, ainda, a sua localização em termos das coordenadas espaciais nela referenciadas. O tempo lingüístico - que se institui a partir do presente da enunciação - está marcado nas formas verbais e em expressões temporais, e o espaço enunciativo, em expressões locativas ou outras informações situacionais, como se vê no exemplo que aqui repito. (6) “{{EN1Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, [dirige-se ao sargento]] INE2 [que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel.]] INE3 }INE1”(T14. L 28-33 64 Utilizaremos, a partir deste ponto, a notação INE seguida de um número, como usamos em relação à identificação dos enunciadores e alocutários, para nos referirmos a uma instância enunciativa. 95 A configuração dos espaços enunciativos está diretamente relacionada à configuração do tempo enunciativo, porque um acontecimento se define em função de sua localização em dois aspectos: o momento e o lugar de sua ocorrência. Tal evidência vem ao encontro do que afirmamos anteriormente sobre a indissociação de espaço e tempo. Retomando (6), temos: a. PLANO 1 = INE1 = TEMPO/ESPAÇO 1 b. PLANO 2 = INE2 = TEMPO/ESPAÇO 2 c. PLANO 3 = INE3 = TEMPO/ESPAÇO 3 A INE1 constitui o plano básico da enunciação como um todo. É esse plano que permite a identificação das outras instâncias de enunciação que compõem (6) e possilbilita a articulação destas, localizando-as uma em relação às outras e , é claro, em relação ao todo. Ilustramos, esquematicamente, através da figura abaixo, como a configuração de tempo e espaço articula as instâncias enunciativas de (6): AL1 EN1 TU EN2 EU AL2 T/E2 TU TU EN3 REF2 AL3 EU T/E3 TU ELE REF3 ELE T/E1 REF1 ELE Figura 5 - A figura 5 possibilita-nos visualizar mais claramente a articulação estabelecida entre as instâncias de enunciação que compõem (6) pela configuração espaço-temporal da INE1. 96 Vê-se, na FIGURA 5 que o plano 1, EN1/REF1/AL1, representado pelo triângulo maior, corresponde a todo o texto e os outros planos, representados pelos triângulos menores, articulam-se no seu interior. 4.4. A configuração da INE na Teoria Modular É importante lembrar que a caracterização de tempos/espaços enunciativos como simultâneos, posteriores ou anteriores só pode ser considerada em relação ao tempo/espaço configurado na INE1, que se localiza no plano 1 da enunciação, ou seja, no aqui/agora da enunciação. A percepção dessas categorias de tempo/espaço dá-se pela operacionalização de processos de gramaticalização responsáveis pela linearização dos enunciados. Produzem-se, a partir do processamento das pistas fornecidas pelos enunciadores, efeitos de sentido que, através de processos semânticos, correspondem à criação de um “tempo cronológico” e um “espaço físico”, definidos em função do tempo/espaço da INE1. Os efeitos de sentido produzidos pelo processamento dos enunciados configuram-se em processos de semantização e são ativados concomitantemente ao processamento dos enunciados, a partir de decisões do ouvinte/leitor que situaríamos no módulo Discursivo. Assim, a referência ao tempo e ao espaço lingüístico da INE1, apesar de ser marcada como sempre presente e localizada em relação ao aqui/agora da elocução, não impossibilita a referência a diferentes tempos e espaços que caracterizam as instâncias enunciativas que constituem uma determinada enunciação. Além disso, os tempos e os espaços enunciativos podem ser indiciados por outros elementos lingüísticos, além dos verbos e dos tradicionais advérbios, conforme postula a GT. Isso pode ser verificado em relação, por exemplo, à INE1 do exemplo (7), abaixo, em que se observa que a referência temporal/espacial é instituída a partir de um operador - “enquanto isto” - que liga referências instituídas dentro de uma mesma enunciação. 97 (7) “Enquanto isto - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente desarticuladas.” (T 14, L 43 - 47) De acordo com a perspectiva discursiva que adotamos, a realidade temporal, assim como a espacial, se constrói no próprio discurso, tendo como referência a localização dos seus respectivos enunciadores. O excerto abaixo ilustra bem esse fato: (8) {“Há poucos dias, diante de [comentário]]EN2 meu a propósito da demora do Congresso na [revogação]]EN3 da [lei de imprensa]]EN4 imposta no regime militar, fui surpreendido com [manifestação indignada de interlocutor amigo]]EN5 pelo fato de o [projeto]]EN6 em andamento na Câmara dos Deputados excluir, em princípio, a pena de prisão para os crimes contra a honra praticados por [jornalistas no exercício da profissão. ]EN7”}}EN1 (T11, L 1-10) O exemplo (8) é constituído por sete instâncias de enunciação. A INE1 é instituída em “situação default”, em que EN1 se enuncia falando para um interlocutor virtual - AL1 que, no caso, é construído pelo leitor. As outras instâncias subordinadas a essa primeira instância - INE1 – sucedem-se em planos espaço-temporais que as organizam hierarquicamente em relação ao momento da “fala”- instaurada em “situação default”. O efeito de sentido produzido no módulo Semântico pela subordinação das diversas instâncias de enunciação em relação à instância de fundação da enunciação, pode ser representado a partir da seguinte notação: {INE1 [(INE2 - comentário) => (INE3 – revogação) => (INE4 – lei de imprensa) => (INE5 – manifestação indignada de interlocutor amigo) => (INE6 - projeto) => (INE7 jornalistas no exercício da profissão)]} 98 Em termos da localização no eixo das coordenadas espaço-temporais, a subordinação e a hierarquia dos planos enunciativos, do exemplo acima, são organizadas, como se mostra na figura abaixo, em movimentos para trás, na referência a tempos/espaços enunciativos anteriores, ou simultâneos, ou se projetam num presente contínuo em direção a um tempo/espaço posterior ao tempo/espaço da INE1. Dos movimentos realizados a partir de INE1, configuram-se outros tempos e espaços enunciativos que não têm uma importância secundária em relação a essa instância fundadora, embora sejam constituídos como desdobramentos do tempo/espaço da enunciação construído por EN1 e estejam subordinados a essa instância. Tempo 0 INE1 INE2 INE3 INE4 INE5 INE6 INE7 Figura 6 - A figura 6 ilustra a hierarquia dos planos enunciativos, levando em conta a sua localização espaço-temporal e a sua organização na cena enunciativa de (8). A referência temporal está atrelada à referência espacial e uma só se define em relação à outra, pois os acontecimentos “descritos” estão dispostos no tempo e são referenciados como ocorrências situadas virtualmente num espaço discursivo. Esse fato, no entanto, não impede que a referência espaço-temporal tenha uma ordenação subjetiva de acordo com a especificidade exigida por uma determinada situação discursiva. É pelo tempo lingüístico, caracterizado pelo “agora” da realização do discurso, que se torna explícita a experienciação de tempo/espaço da enunciação. Esse tempo/espaço, marcado pelo 99 aqui/agora, possibilita a mobilidade com que os tópicos discursivos identificados na, e a partir da instância fundadora e, também, nas outras instâncias, possam ser referenciados na atividade discursiva. A identificação do tempo lingüístico, pois, se dá dependentemente das formas gramaticais usadas para referenciá-lo e, em função da diretiva que orienta o seu reconhecimento, está intrinsecamente ligada ao momento/lugar em que a enunciação ocorre/eu. Isso significa que as operações necessárias para que a enunciação se realize são implementadas por processos de Discursivização, de Gramaticalização e de Semantização responsáveis pela própria instauração do processamento discursivo. Se tais processos não se articulam adequadamente até mesmo o processamento de um único plano enunciativo fica prejudicado, como pode se verificar em (9): (9) {INE1“A estabilidade da moeda brasileira foi conquistada graças à abertura às importações e à ancora cambial que, logo no início, fez o real valer mais que o dólar, o ritmo da abertura às importações tem sido revisado. Quanto à política cambial, mudou a forma, não o conteúdo. Primeiro houve a valorização com relação ao dólar. Depois, houve atraso na correção do câmbio comparada à inflação. Na fase mais recente, a opção do governo é reduzir, ou mesmo eliminar, a longo prazo, a defasagem cambial.”} INE1 (T 28, L 1-12) 4.4.1. A articulação de tempos/espaços enunciativos Conceber uma multiplicidade de tempos/espaços enunciativos, considerando sua organização em termos de planos enunciativos hierárquicos e subordinados entre si, é reforçar a tese de que o discurso é, por natureza, polifônico65. Em decorrência disso, o tempo/espaço discursivo, se constrói através da ativação de morfemas lexicais e/ou gramaticais que fornecem as coordenadas para a sua construção. 65 Cf. LOPES (1998), Dissertação de Mestrado que analisa a constituição da polifonia textual através do processamento dêitico. 100 A ativação desses itens está, pois, diretamente relacionada à implementação de operações nos módulos Gramatical e Semântico. Em vista desse procedimento, o autor de textos ao constituir-se como enunciador, instituindo-se em INE1, ativa as propriedades gramaticais e semânticas do léxico, que são responsáveis por todo o processo de discursivização. Esquematicamente, podemos ilustrar, pela figura abaixo, como se engendram os planos enunciativos, configurando a instauração de novas instâncias enunciativas como constituintes de um discurso. AUTOR EN1 EU AL1 EN2+EU AL 2 EN3 TU EU TEMPO/ESPAÇO 2 3 TEMPO/ESPAÇO REF2 1 REF3 ELE ELE EN4 AL4 EU TEMPO/ESPAÇO TU 4 TEMPO/ESPAÇO AL3 TU TU REF4 ELE REF1 ELE FIGURA 7 - A figura ilustra a multiplicidade de tempos/espaços configurados numa instauração de instâncias enunciativas.Nota-se que cada instância enunciativa possui um par de interlocução (EN/AL), suas coordenadas de tempo/espaço e o seu quadro de referência. Nessa perspectiva, se o enunciador se define na relação com o enunciatário, o mesmo dar-se-á em relação ao tempo e ao espaço. Um enunciador institui-se num determinado lugar construindo uma referência temporal. Logo, não faz sentido defini-los como elementos independentes entre si. E mais, um enunciador só se constrói enquanto 101 enunciador levando-se em conta o fato de estar inserido em um determinado espaço/tempo. 4.5. Síntese A polifonia é uma característica definidora do processamento discursivo: a atividade lingüística é, por natureza, interlocutiva, dialógica. Isso significa que o uso da língua se justifica se, e somente se, esse uso tiver como fim a interlocução. É nesse sentido que nos apropriamos do conceito de dialogismo proposto por Bakhtin (1929). Pensar o discurso como dialógico levou-nos a projetar a noção de dialogia de Bakhtin sobre o processo de CIEs, a fim de tentar explicitar que o chamando discurso citado ou relatado nada mais é do que o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, podendo ser, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.” (op. cit., 144). Assumir a perspectiva da articulação dos níveis enunciativos nos remete às noções, a que já nos referimos neste capítulo, de instâncias de enunciação, de “indivíduos lingüísticos” e corrobora a importância de: a) considerar os “shifters” como índices do processamento discursivo; b) considerar o papel dos “shifters” na construção e articulação dos tempos espaços como fatores básicos das CIEs. 5. Conclusões do capítulo Neste capítulo, definimos o nosso objeto de estudo. Partimos, para fazê-lo, de estudos desenvolvidos pela Gramática Tradicional e chegamos aos estudos mais recentes desenvolvidos pelas Teorias do Discurso. Traçamos, numa trajetória que não pretendeu ser uma análise cronológica desses estudos, as bases e as contribuições dos teóricos que, em nosso ponto de vista, subsidiaram a mudança do foco no enunciado para o foco da enunciação. 102 Situamos o nosso objeto de estudo no âmbito da enunciação entendida como a efetivação da atividade discursiva numa visão processual. Nesse sentido, postulamos a necessidade de se adotar um quadro teórico que analisasse a enunciação, considerando todos os fatores envolvidos na sua produção: os locutores, os interlocutores, as representações diversas destas duas instâncias interlocutivas, os conhecimentos enciclopédicos e de mundo que possuem, os objetivos visados, o tempo e o espaço em que se dá a atividade discursiva. A enunciação, concebida desta forma, evidencia uma visão de linguagem enquanto atividade e, nesse sentido, a ação do usuário da língua pode ser detectada através das pistas ou índices lingüísticos que caracterizam essa atividade. Em decorrência disso, utilizamos a noção de “indivíduos lingüísticos” postulada por Benveniste, ampliando a noção tradicional de dêixis. Ainda relacionado ao conceito de dêixis, propusemos, com base em Jakobson, que todo elemento lingüístico que indicia o discurso seja considerado um “shifter”. Portanto todo “shifter” é um dêitico e, como tal, só tem sentido em relação à situação de discurso em que foi produzido. Chamamos a atenção para o fato de que esses “indivíduos lingüísticos” têm como fundamento o sistema dêitico, ou seja, as instâncias de enunciação são construídas tendo como referência os morfemas lexicais e/ou gramaticais que remetem aos papéis actanciais da enunciação. Além da configuração dos “actantes” da enunciação, na produção de um texto, podemos identificar a criação de múltiplos planos espaço/temporais - que chamamos planos enunciativos - que caracterizam as instâncias enunciativas e que determinam a articulação destas na cena enunciativa. Essas instâncias, por sua vez, são definidas por um conjunto de coordenadas do sistema dêitico que as explicitam. A par do caráter polifônico da linguagem, assumimos que todo texto é dialógico, como atesta Bakhtin, na medida em que sobre ele se projeta o caráter dialógico do Discurso em que ele se produz. Toda enunciação, portanto, se caracteriza como uma situação de interlocução, de dialogia, construída em função de um eu que se dirige a um tu. Esse par interlocutivo é cambiável no processo discursivo e explicita a ativação de instâncias 103 enunciativas. Cada instância enunciativa constiuída evidencia a voz de um ou mais enunciadores e, conseqüentemente, a configuração de seu tempo e espaço. Assim, as diversas instâncias enunciativas se entrelaçam na tecitura do Discurso, manifestandose na materialidade do texto. Para explicar como essas instâncias enunciativas são ativadas propusemo-nos basear nas contribuições da Teoria Modular, principalmente nos princípios propostos por Castilho. De acordo com esse autor, a nossa mente processa informações de forma simultânea e não linear. Assim, através de operações de ativação, reativação e desativação, o Léxico é acessado pelo usuário em função da organização do discurso, levando-se em conta, numa dada situação discursiva, os efeitos de sentido que se deseja obter. Em resumo: a atividade discursiva do usuário da língua se realiza por meio de operações com e sobre o sistema lexical. Essas operações dão-se nos Módulos Discursivo, Gramatical e Semântico, e implicam crucialmente a implementação do processamento dêitico. É nessa perspectiva teórica que o nosso objeto de estudo explicita as operações de ativação do sistema lexical como sendo operações básicas constitutivas das instâncias de enunciação, levando-se em conta os três módulos a que nos referimos anteriormente. De acordo com isso, o sistema lexical possui elementos – os “shifters” – que indiciam as operações realizadas pelos usuários com e sobre a língua, na e pela enunciação. Assim, a taxinomia que pretendemos construir, no próximo capítulo, procurará explicitar: a) os recursos lingüísticos utilizados na CIE, no português culto escrito; b) como esses recursos lingüísticos são ativados na CIE; c) como a utilização de tais recursos pode refletir aspectos da competência discursiva dos autores de textos, no português culto escrito; e, por último, d) a importância de se considerar, nos estudos lingüísticos, esses fatores da competência discursiva dos falantes de uma língua. 104 CAPÍTULO 3 PROCESSAMENTO DISCURSIVO E CIE 1. Introdução Para facilitar a análise dos dados do corpus, retomo, a seguir, os pressupostos norteadores desta pesquisa: (i) a voz autoral pode ser expressa por um enunciador, que se identifica, explicitamente, como o autor do texto; (ii) a voz autoral pode estar implícita na voz de um enunciador outro que não a do autor do texto; (iii) a voz autoral pode expressar-se através de diferentes vozes enunciativas; e (iv) outras vozes, com as quais a voz autoral não se identifica, podem se expressar na constituição de um texto. De tais pressupostos depreende-se, como vimos até aqui, a seguinte proposição: a polifonia é uma característica imanente da atividade discursiva e, por isso, nas malhas do texto, vozes de enunciadores distintos evidenciam-se como constituintes do processo de enunciação. Essas “vozes do discurso”, na verdade, indiciam a construção de instâncias enunciativas – CIEs, que, cada uma constituindo o seu centro de referência interno, articulam-se sempre como “um discurso no discurso”, uma “enunciação na enunciação”66 . Isso posto, o texto – lugar de materialização da enunciação – revela como se dá a ativação dos três módulos lingüísticos, a que nos referimos no capítulo anterior, na ativação das operações responsáveis pela instauração do processamento discursivo. Como expusemos no referido capítulo, consideramos que, na base de toda atividade discursiva, está a operação denominada por Castilho de “ativação”, uma operação básica do módulo Discursivo. Tal operação implica a ativação de itens lexicais com 66 As noções de “discurso no discurso” e de “enunciação na enunciação”, a que nos referimos anteriormente, pertencem a Bakhtin (1977). 105 suas propriedades semânticas e gramaticais, determinantes de operações nos módulos Semântico e Gramatical. A CIE e a sua articulação dependem de tais operações nos três módulos lingüísticos. Com base nisso, nossa análise do corpus se desenvolverá em função de processos de ativação do sistema lexical e de operações identificadas nos três módulos. No trabalho com os dados, constatamos que diversos são os “shifters” utilizados para construir as instâncias enunciativas. Na perspectiva aqui adotada, pressupõe-se que descrever e analisar os processos de constituição do fenômeno implica explicitar o processo de ativação de instâncias enunciativas através de operações que se dão simultaneamente nos três módulos: Discursivo, Semântico e Gramatical. Essas operações, como já dissemos no capítulo anterior, pressupõe a mediação pelo sistema lexical. É essa mediação que constitui o objeto desse nosso trabalho. É óbvio que tomar essa mediação como objeto de estudo significa considerar operações nos módulos Gramatical e Semântico. Essas operações serão tomadas em função das operações básicas de CIEs que constituem a mediação, objeto deste estudo. Outras operações de gramaticalização e semantização não serão consideradas, por extrapolarem a delimitação do objeto de estudos dessa dissertação. Levando-se em conta a perspectiva modular adotada, nossa análise terá, como ponto de partida, a identificação de operações no módulo Discursivo, responsáveis pela CIE. Abordaremos, a seguir, operações de ativação das propriedades constituintes dos módulos Semântico e Gramatical. 2. O processamento discursivo e a seleção lexical 2.1. A ativação/reativação/desativação do Léxico Detectamos nos textos jornalísticos, constituintes do nosso corpus, categorias diversificadas de palavras - verbos não-ilocucionários, substantivos, advérbios – que 106 indiciam os “actores”, os enunciadores, na enunciação e, conseqüentemente, a instauração de distintas instâncias enunciativas constituintes dos textos analisados. A possibilidade de termos outras categorias de palavras utilizadas como elementos desencadeadores da CIE, diferentes das postuladas pela GT, deve-se ao fato de que o falante, em uma atividade de interação lingüística, opera com e sobre o Léxico para enunciar-se, em uma dimensão mais ampla do que a prevista pela GT. É nesse sentido, que a seleção dos itens lexicais, feita pelo falante, levando-se em conta as propriedades sintáticas e semânticas desses itens ocorre em função das condições que a situação de interlocução exige. São essas propriedades inerentes ao Léxico que o situam em uma posição intermediária dos módulos lingüísticos. O fato é que um item lexical nada indicia se usado sem uma função, sem que sobre ele e com ele seja detectada uma ação lingüística. Operar o Léxico é, além de ativar suas propriedades sintáticas e semânticas, dar um sentido a um conjunto de elementos lingüísticos até então vazios, construindo, assim, a enunciação. Essa construção da enunciação efetiva-se através da ativação, reativação e desativação de propriedades semânticas e gramaticais dos itens lexicais, indiciando o conhecimento lingüístico do falante. Tais operações estão na base do trabalho do falante com e sobre o Léxico e é a partir delas que se pode detectar, no processamento discursivo, as estratégias básicas de CIEs. Fundamentados nisso, podemos conceber a existência das diversas “formas de dizer” , ou seja, de indiciar a CIE no discurso, tais como a “situação default”, os verbos “dicendi”, os verbos “não-dicendi”, os “sintagmas de elocução”, a utilização recursos próprios da escrita, como: aspas, parênteses, travessões, dois pontos, sublinhados, itálicos67” etc.. 67 O negrito, o sublinhado e o itálico não foram analisados nesta pesquisa, mas reconhecemos neles tipos de estratégias discursivas utilizadas para indiciar instâncias enunciativas no discurso e também responsáveis por caracterizar, em alguns casos, o julgamento do enunciador a que se referem. 107 2.2. A seleção lexical O Módulo Discursivo é fundamental na CIE. Entre os vários processos que podemos situar nesse módulo está o da escolha do assunto, do tópico discursivo, que implica, entre outras coisas, a ativação de um ou mais itens lexicais. Identificamos uma variedade desses itens ativados pelo falante especificamente para a CIE, tais como: a ativação de morfemas responsáveis pela construção de pessoa, de tempo e de espaço; os sinais gráficos (aspas, travessão, dois pontos, parênteses), alguns operadores discursivos (então, mas, agora, ora e outros ); os advérbios de discurso (atualmente, hoje, agora, felizmente etc.); e um conjunto múltiplo de “formas de dizer” que assinalam a inserção do “discurso de outrem” no processamento discursivo. Devido à multiplicidade de estratégias discursivas e, em conseqüência, da variedade dos recursos lingüísticos utilizados em sua implementação, tornou-se necessária uma maior delimitação dos dados com que trabalhamos. Decidimos centrar nosso trabalho nas “formas de dizer”, dado que suas funções e a freqüência em que ocorrem já justificam um estudo mais cuidadoso: os verbos “dicendi” não constituem exclusivamente a categoria lexical por excelência utilizada para indiciar a voz dos enunciadores. Ao contrário do que se afirma na GT, há uma gama de itens lexicais, incluindo verbos não “dicendi” que, no processamento discursivo, assumem esse papel. Ao lado dos “dicendi” e outros tipos de verbos, há, ainda, os deverbais68, os nomes de elocução e outros elementos que, em situação “default”, exercem tal função. O exemplo abaixo ilustra a complexidade do fenômeno em estudo: (10) “{{EN1Lembro69 (a memória de 88 anos ainda não me traiu) que o professor de Português, José Schiavo, [foi acerrimamente criticado]]EN2, lá pelos idos de 30, quando se estudava e aprendia, pelo [escritor]]EN3 Carlos Imbassahy por [haver escrito]]EN4 no 68 São chamados “deverbais” os substantivos formados a partir de radicais verbais, como é o caso de: o gasto (de gastar), a marcha (de marchar), o salto (de saltar). 69 Nesse exemplo, colocamos em negrito a primeira palavra de uma “situação default”. Ao enunciar-se a partir do verbo “lembrar”, EN1 na verdade está nos dizendo algo como: “Com esse verbo, eu estou lhes dizendo que me lembro disso.” 108 “Jornal do Povo, da querida e velha Ponte Nova: [ “Responsabilizo as asneiras do Pires”.]]EN5}EN1” (T40, L 13-20) Os itens lexicais em negrito, em (10), indiciam a articulação de diversas instâncias de enunciação, constituindo níveis enunciativos hierarquicamente organizados em função da construção da referência de cada instância enunciativa. Insistimos no fato de que as instâncias de enunciação são construídas a partir da construção, no discurso, de um novo enunciador, que institui, a seu turno, um novo par interlocutivo em determinado tempo/espaço marcado pelo aqui/agora de cada instância enunciativa. Em (10), a primeira instância de enunciação é construída por um EN1 que funda o discurso, localizado no tempo/espaço de sua interlocução com um AL1, que representa lingüisticamente o seu Leitor-Modelo. Essa instância está indiciada pelo morfema verbal do presente - lembro - e por uma forma adverbial – ainda -, que gramaticalizam o presente lingüístico, que caracteriza o momento da enunciação. Note-se que “lembrar”, não se configura como um verbo de elocução. A segunda instância – INE2 – é indiciada, também, por morfemas verbais que configuram “criticar” na voz passiva e por formas adverbiais (“lá pelos idos de 30”, “quando”) que situam o EN2 num tempo anterior e um espaço distinto ao do par EN1AL1. O termo “escritor” gramaticaliza e semantiza uma terceira instância enunciativa – EN3 – que não traz em si as marcas de tempo, sendo este indiciado pelo item “quando”, associado às marcas verbais de “estudar” (estudava) e “aprender” (aprendia) ativado no módulo Gramatical, que semantiza essa terceira instância de interlocução. A quarta instância enunciativa é indiciada pelo verbo de dizer “escrever”, através de morfemas verbais do infinitivo pretérito impessoal e pelas expressões locativas “no Jornal do Povo, da querida e velha Ponte Nova”. 109 A quinta instância de enunciação, além de possuir o verbo de dizer “responsabilizo”, vem indiciada pelas aspas duplas. Esses recursos instituem a INE5, construída pela semantização do EN5. Como vimos em (10), as formas verbais não são exclusivamente as únicas formas que indiciam a CIEs. Entre os itens que as gramaticalizam temos, em (10), o nominal “escritor” e as várias expressões adverbiais a que se aludiu acima. Esse conjunto de itens, ativam, pois, processos de gramaticalização/semantização que instituem e delimitam as cinco instâncias de enunciação de (10), cada uma delas constituindo “um centro de referência interno”. Observa-se, portanto, que, considerando a situação discursiva, o autor, que se constitui como EN1 na primeira instância, toma “decisões” relativas ao processo de Discursivização, que implicam a seleção, no Léxico, de morfemas que desencadeiam operações nos módulos Gramatical e Semântico. Em decorrência dessas operações, indiciam-se em (10) cinco instâncias de enunciação que manifestam o caráter polifônico do discurso, pela articulação de planos enunciativos da maneira esquematicamente representada a seguir. AUTOR EN1 AL1 EN2 AL2 EN4 AL4 EN5 AL5 T/E5 T/E4 REF5 T/E2 T/E1 REF4 REF2 EN3 AL3 T/E3 REF3 REF1 FIGURA 8 – A figura 8 ilustra como se dá a CIE em (10). Vê-se que cada INE se caracteriza por ter o seu próprio quadro de referência interno, instituindo, assim, os planos enunciativos. 110 No exemplo que se segue, destacaremos outros itens lexicais que, ao serem ativados desencadeiam processos nos demais módulos lingüísticos, em função das CIEs. (11) “{{EN1Um deles [está cobrando]EN2, com progressivo entusiasmo, as [promessas]EN3 de saúde, educação, segurança – nem [lembro]EN1 mais os cinco dedos que foram exibidos na mais dispendiosa e sofisticada [campanha eleitoral]EN24 de nossa história.}}EN1” (T43, L 4-9) O enunciado (11) ilustra bem a multiplicidade de recursos usados para CIEs. (a) A instância EN1-AL170 é instaurada a partir de uma “situação default” - ou seja, pelo ato de o autor tomar a palavra e constituir-se como EN1 ao “dizer” “UM deles está cobrando ...” dirigindo-se a um leitor virtual que irá atualizar-se como AL1. O morfema de 1ª pessoa de “lembro ” reforça esse ato discursivo pelo qual se constrói EN1. Denominamos “Situação default”, então, a situação de interlocução na qual um locutor assume a palavra, construindo-se como enunciador. Com esse recurso, uma situação de interlocução é instituída sem que, para isso, tenha o locutor de “avisar” aos alocutários, através de um verbo “dicendi”, por exemplo, que ele está “falando” alguma coisa para alguém. Desse modo, considere, por exemplo, em (11), o locutor não precisa começar o seu texto “dizendo” “Eu digo que um deles está cobrando ...”, porque, quando alguém fala alguma coisa para outro, já institui uma instância de enunciação, já se constrói como um enunciador, instituindo uma instância de enunciação, no caso, EN1-AL1. A operação de constituição da “situação default” é uma das decisões básicas do módulo Discursivo, ou 70 Utilizaremos a notação EN - AL para nos referirmos às instâncias de enunciação constituídas pelo par Enunciador (x) -Alocutário (x), onde x indica a que instância enunciativa pertence o par mencionado. 111 seja, é uma decisão que se processa concomitantemente à da escolha de um tópico discursivo. (b) O EN2 - “Um deles” - é colocado em cena, por EN1, quando este o referencia numa nova instância de enunciação, através do “dicendi” “cobrar” (“está cobrando”). Nessa instância de interlocução, EN2 dirige-se a um AL2 - indiciado através da referência a uma terceira INE, referenciada pelo sintagma nominal “promessa”. (c) Na referência à cobrança de EN2, EN1 coloca em cena uma outra instância de interlocução- a INE3, cujo enunciador é indiciado através do deverbal “ promessa” e, dessa forma, indicia uma interlocução: alguém promete(u) algo a alguém. A situação de interlocução é estabelecida entre EN3 e um AL3. (d) Na referência à promessa feita pelo EN3 ao seu AL3, o EN1 institui a INE4, através do sintagma nominal “campanha eleitoral”. Com esse recurso, a instância de interlocução indicia o par EN4, referenciado na INE3, como o EN2 responsável pelas promessas, e o AL4, referenciando o leitor virtual, que, nesta instância, está indiciado pela gramaticalização da forma pronominal “nossa”. (e) Além do mais, (11) ilustra também o quadro figurativo da enunciação postulado por Benveniste ( 1974: 87). É característica da enunciação o estabelecimento de uma situação de interlocução que põe em cena, de um lado, aquele que fala e, de outro, aquele a quem se fala. Essas duas “figuras” no discurso indiciam, respectivamente, a origem e o fim da enunciação. E mais: na relação discursiva, aquele que, num momento, se coloca como o fim da enunciação - o enunciatário -, no processamento discursivo, tornar-se-á, em um outro momento, a sua origem. Tal relação discursiva é atestada, por exemplo, pelas alíneas (b) e (c) acima. O AL2 indiciado por “promessa” numa instância de interlocução, torna-se o EN3 em outra, instituindo-se, por sua vez, como seu enunciatário. 112 3. Identificação dos processos de CIE As estratégias - “situação default” (“assumir a palavra”), uso de verbos “dicendi”, uso de deverbais, uso de sintagmas de elocução, uso do travessão - utilizadas na construção de (11) acima evidenciam que: a) vários podem ser os recursos lingüísticos utilizados para dar voz aos enunciadores na produção de um texto; b) são diversificadas as operações que, na interação dos módulos lingüísticos, promovem a articulação das instâncias enunciativas na configuração de um discurso; c) “as formas de dizer” englobam um conjunto bem maior de itens lexicais e/ou recursos lingüísticos do que aqueles já arrolados pela Gramática Tradicional. Vale notar, ainda, que, na perspectiva modular aqui adotada, os recursos que possibilitam as CIEs definem-se no e pelo processo de enunciação. É nesse quadro que podemos afirmar que não só os verbos, mas também nomes, como os destacados abaixo, constituem-se como recursos utilizados para indiciar as “formas de dizer”. (12) {EN1“Essa [cláusula]]EN2 - [será que é constitucional?]]EN1 - talvez isente grande número de empresas jornalísticas de multas mais significativas.”}}EN1 (T5, L 71-74) (13) {EN1“Ausente do país, só agora me dou conta, pelos bons ofícios de um amigo, do [artigo]]EN2 do ministro Antônio de Pádua Ribeiro, do STJ. Trata-se de matéria tão relevante que, enquanto estiver em [debate]]EN3, sempre merecerá observações. O magistrado, em seu [arrazoado]]EN4, afirma verdades indiscutíveis, ao mesmo tempo em que, infelizmente, deixa de fazer reflexão mais profunda para, com o peso de seu múnus, provocar a [autocrítica]]EN5 do judiciário, abrindo alamedas mais amplas para o reconhecimento de sua dignidade e do papel insubstituível que lhe confia o estado democrático e de direito.}}EN1 (T 42,L 1-14) (14) [ “Cada vez mais freqüentes, os [desabafos]]EN2 presidenciais revelam a crise de um arlequim que aceitou trabalhar para dois senhores.”]]EN1 (T43, L 1-4) 113 Os termos sublinhados indiciam instâncias de enunciação que se articulam na configuração dos “discursos” em que se produzem os exemplos (12) a (14). Nesses exemplos, pode-se observar como o uso dos nomes é relevante em relação ao processo de CIE. Como aconteceu com os verbos “dicendi”, o emprego dos termos acima indiciam instâncias de enunciação, mas o uso de nomes obriga o leitor a buscar as referências necessárias para a sua construção, no conjunto de referências explicitadas no texto em que se inserem. Isso, no entanto, como se verá abaixo, não constitui um problema, haja vista o fato de que as diversas instâncias de enunciação articulam-se em função da referência explicitada na INE1. 3.1. Formas de ativação de planos enunciativos e CIEs Os recursos acima destacados articulam-se de várias formas na CIEs, como ilustram os enunciados de (11) a (14), repetidos abaixo: (11) {EN1“Um deles [está cobrando]EN2, com progressivo entusiasmo, as [promessas]EN3 de saúde, educação, segurança – nem [lembro]]EN1 mais os cinco dedos que foram exibidos na mais dispendiosa e sofisticada [campanha eleitoral]EN4 de nossa história.}}EN1” (T43, L 4-9) Em (11), a INE que constitui o plano de base da interlocução de EN1-AL1 ativa-se pela “situação default”, em que EN1 é construído como enunciador, Nessa operação, a dêixis de 1ª pessoa, ativada pela desinência número-pessoal do verbo “lembro” e pelo pronome pessoal oblíquo “me” é um dos recursos de gramaticalização implementados pelo seu autor. É no interior da INE1 que se semantizam as duas outras instâncias de enunciação referenciadas por EN1. a) A INE2 é introduzida através de um verbo “dicendi” “cobrar”, cuja interpretação está diretamente relacionada à gramaticalização e semantização do deverbal “promessa” da INE3 . 114 b) Nessa terceira instância, por sua vez, ancoram-se as ativações das propriedades semânticas dos itens “saúde, segurança, educação” interpretados como correspondentes ao sintagma “cinco dedos” que remetem ao nome “promessa” no interior da INE2. c) A INE4 é instituída através do sintagma nominal “campanha eleitoral” – cuja interpretação está diretamente relacionada ao deverbal promessa da INE3. d) A par dessas operações para se identificar os planos enunciativos que constituem (11), há de se considerar, ainda, que a INE1, instituída em “situação default”, é ela mesma referenciada numa operação metalingüística através do verbo “lembrar” e sua desinência verbal – o morfema de 1ª pessoa de “lembro” - e pelo me. Em outras palavras, o autor referencia EN1-AL1, num recurso de metalinguagem, ou seja, constituindo, no processo discursivo, um discurso sobre o discurso. (12) {EN1 “Essa [cláusula]]EN2 [- será que é constitucional? -]]EN1 talvez isente grande número de empresas jornalísticas de multas mais significativas.”}}EN1 (T5, L 71-74) Em (12), EN1 institui-se pela “situação default” e não é marcado ostensivamente pela dêixis. EN1 institui AL1 como um leitor virtual a quem ele se dirige, apresentando o seu ponto de vista sobre EN2. Este é introduzido na INE1 pelo nome “cláusula”. Notase, ainda, que tais recursos evidenciam como se configuram os planos enunciativos instituídos no texto (12), conforme será exposto abaixo. a) A delimitação dos dois planos enunciativos que constituem (12) é indiciada pelos seguintes “shifters”: a operação de instituição da “situação default”, a desinência verbal de “isente” e a operação metalingüística, orientando o leitor para a configuração das INEs, pois: 1) o que é estabelecido pela instituição de EN1, por uma ativação da “situação default”, obriga o leitor a buscar a identidade da relação EN1/Autor em outros dados do texto em que (12) se situa. Nesse sentido, o discurso de EN1 é autoreferenciado pela marca do presente em “será que é constitucional?”. A auto115 referência está indiciada também na utilização dos travessões, que explicita a existência de um outro discurso no interior da INE1. Esse recurso, como se deu em (11), evidencia a propriedade de um discurso referenciar a própria instância enunciativa em que se insere. Deve-se atentar para o fato de que, no interior da INE1 de (12) já ativada em “situação default”, ativa-se uma outra “situação default”, configurando-se, então, como um recurso metalingüístico, através do qual o EN1 faz “um discurso sobre o discurso”. 2) o plano de EN2, instituído pela gramaticalização do nome “cláusula” e pela desinência verbal de “isente” obriga o leitor a buscar a identificação de EN2AL2 alhures, no texto em que (12) se situa. b) A existência de uma outra entidade lingüística: a interrogação71 que, segundo Benveniste (1970: 86), “é uma enunciação construída para suscitar uma “resposta”, por um processo lingüístico que é ao mesmo tempo um processo de comportamento com dupla entrada”. A interrogação funciona, pois, como um recurso dêitico do qual EN1 se utiliza para “influenciar de algum modo o comportamento do alocutário” – AL1. A interrogativa “será que é constitucional?” é interpretada no interior da INE1 , que, metalingüisticamente refere-se ao par EN2-AL2, numa operação discursiva de discurso remetendo a um outro discurso, isto é, um discurso interrogando um outro discurso. Dessa forma, retomando o que dissemos em a) acima, esse metadiscurso, ativado em “situação default” no interior de uma outra “situação default”, promove uma dupla referenciação no interior da INE1: 1) a auto-referência à INE1 e 2) a referência à INE2, em ambos os casos caracterizando o que denominamos acima “um discurso sobre o discurso”. c) O processo de referenciação, que se caracteriza como uma operação realizada no módulo Semântico, dá-se sempre no interior de instâncias enunciativas específicas. 71 A enunciação, segundo Benveniste (1970: 86), “além das formas que comanda (...) fornece as condições necessárias às grandes funções sintáticas.” Essas condições caracterizam o que o autor chama 116 Assim, a ativação da “situação default”, institui a INE1, cujo enunciador se institui ao referir-se a um AL1 virtual fazendo um comentário sobre uma cláusula da Lei de Imprensa. O fato de o EN1 enunciar o termo “cláusula” já institui uma outra instância de enunciação - a INE2 – cujos interlocutores são, de um lado, o aparato judiciário da nação, como EN2 – e, de outro, os jornalistas e a imprensa de uma forma geral – como - AL2. A gramaticalização do discurso de EN1 sobre EN1, instituído pela interrogação, na instância de EN2, caracteriza-se como um discurso pertencente a EN1 configurando-se, pois, como um discurso metalingüístico, semantizado no interior da INE2. d) A identificação das operações características do módulo Semântico, no interior das INEs, é um dos fatores constitutivos dos Planos Enunciativos e de sua articulação no texto. (13) {EN1“Empenhado na eficiência, é característico do Executivo tender a presumir que os fins da ação do Estado, que ele próprio [estipula]]EN2, são objetivos nacionais inequívocos [(“Não pensam no Brasil?”)]]EN3 e que a questão é dispor de maneira adequada os meios.”}}EN1 (T3, L 72-78) Em (13), a INE que constitui o plano básico de enunciação – EN1-AL1 – ativa-se pela “situação default”, a partir da qual se constrói EN1. Nessa operação, a gramaticalização da INE1 efetiva-se através da desinência de presente indiciada no verbo “ser” e pela ativação da INE2. Essa instância é instituída pelo verbo “estipular” e “ser”, que se articulam gramaticalmente em função de explicitar o “Poder Executivo” como o EN2 e a nação como AL2. Nesse sentido, a gramaticalização de EN2 ocorre no interior da INE1 em função de explicitar os recursos semânticos utilizados na construção da referência da INE1. A instituição de EN3, no interior da INE2, é gramaticalizada pelo uso de recursos exclusivos da escrita - os “parênteses” e as “aspas” que delimitam um um “aparelho de funções”. A interrogação é uma dessas “formas” a que se refere Benveniste e que, na perspectiva aqui adotada, será considerada como um dos recursos dêiticos usados na CIE. 117 discurso que interroga o discurso da INE2. Essas três instâncias enunciativas se constituem, pois, considerando operações já ilustradas acima. a) A delimitação dos três planos enunciativos de (13) não se dá de forma muito ostensiva, apesar da existência de um conjunto de recursos que contribui para a mostração das suas INEs: a operação de instituição da “situação default”, a desinência verbal dos verbos que caracterizam cada uma das INEs e a operação metalingüística, orientando o leitor para a configuração das INEs. 1) A instituição do plano a que pertence EN1, instituído em “situação default”, dáse nos mesmos moldes de (12), ou seja, no interior desse plano, o conjunto das referências é construído pela ativação da desinência verbal e de outros recursos lingüísticos que possibilitam ao leitor a identificação da relação EN1/Autor. 2) O plano de INE2 é construído no interior da INE1 e traz indícios que orientam o leitor para a identificação do EN2, instituído pelo verbo “estipular”. A gramaticalização desse plano enunciativo, construído com marcas dêiticas de pessoa ( a 3ª pessoa gramatical - ele), de tempo (o morfema do presente gramatical) e de espaço (a expressão locativa “no Brasil” instituída na INE3), institui-se pela referência suscitada por essas propriedades gramaticais ativadas nestes itens. Tais propriedades obrigam o leitor a identificar outros itens, que, no texto, se configuram como articulados a essa instância. 3) O plano de EN3 é instituído no interior da INE2 caracterizado por uma utilização ostensiva de recursos lingüísticos, usados nos moldes da GT, que indiciam a existência de um outro discurso ali referenciado. Esse discurso, além disso, vem marcado com índices de 3ª pessoa do plural. b) A existência de duas outras entidades lingüísticas – os parênteses e as aspas - que funcionam como recursos dêiticos delimitam ostensivamente um discurso “(“Não pensam no Brasil”)” que é interpretado no interior da INE1 e, que se refere diretamente ao par EN2-AL2. Como vimos em (12), a instituição desses recursos na 118 INE1 justificam-se em função do próprio discurso, uma vez que indiciam o par EN2-AL2 como alocutários da INE3. Além disso, referenciam um ponto de vista de EN1 em relação ao discurso da INE2. Observe que o discurso da INE3, da mesma forma como ocorre nos exemplos acima, exerce uma função metalingüística, por introduzir um comentário de EN3 em relação ao discurso da INE2. c) A ativação das operações gramaticais dos itens lexicais que indiciam as INEs dá-se concomitantemente à operação do módulo Semântico, em função da construção do quadro de referência de cada uma das instâncias em que ocorrem e em função da INE1. d) A inserção de um discurso indiciado por esses sinais gráficos – as aspas, os travessões, os parênteses, convencionalmente utilizados na escrita -, revela-nos que duas ou mais instâncias enunciativas podem ser articuladas entre si, não apenas através dos elementos tradicionalmente concebidos como coesivos, como os advérbios, as conjunções e quaisquer outros itens lexicais72, mas também por recursos de natureza diversa, como os identificados em (12) e (13) acima. e) A identificação das operações realizadas a partir do módulo Semântico evidencia como se dá a constituição dos planos enunciativos e a sua configuração e articulação em termos das instâncias enunciativas. No módulo Gramatical, as propriedades gramaticais (coesivas) desses recursos semantizam-se para indiciar como se constrói a articulação semântica – a coerência – entre as instâncias de enunciação e auxiliar na delimitação dos planos que as compõem. (14) {EN1“Cada vez mais freqüentes, os [desabafos]]EN2 presidenciais revelam a crise de um arlequim que aceitou trabalhar para dois senhores.”}}EN1 (T43, L 1-4) 72 Os termos “advérbio” e “conjunção”, usados como elementos coesivos, são, neste momento, tomados de acordo com a concepção da Gramática Tradicional. Isso se faz necessário para enfatizar a importância de se retomar a pesquisa lingüística, levando em conta uma abordagem funcional da linguagem, tal qual têm feito muitos pesquisadores em todo o mundo e, no caso do Brasil, o grupo do Projeto da Gramática 119 Em (14), há dois planos de enunciação, sendo o primeiro, o plano base, caracterizado por EN1- AL1, ativado em “situação default”. Nessa operação, indiciada pelo sintagma adverbial “cada vez mais freqüentes”, o autor constrói-se como enunciador “falando” para um leitor virtual, que se gramaticaliza como AL1 e, ao mesmo tempo, indicia o discurso da INE2 como um “evento” referenciado no tempo da enunciação. Além disso, há propriedades gramaticais ativadas na criação do segundo plano de enunciação, no qual EN2 é instituído como enunciador. A ativação desse plano 2 de enunciação dá-se através do nome “desabafos”, cujas propriedades gramaticais indiciam a formação de uma INE2, constituída pelo par EN2, gramaticalizado como “presidente”, e AL2, gramaticalizado como um leitor virtual, correspondente à sociedade brasileira, e da desinência verbal de “revelam”. As operações de gramaticalização desses recursos permitem ao leitor, na ativação do módulo Semântico, articular as instâncias de enunciação. Nesse sentido, o nome “arlequim” com o qual EN1 denomina o EN2 – presidente – já se configura como um recurso de articulação das INEs de (14) e instaura um jogo de sentidos que obriga o leitor a buscar relações entre os dois nomes empregados no texto: presidente/arlequim. O mesmo se dá na construção da referência do EN2: a semantização das formas gramaticais “desabafos presidenciais” é que possibilita a interpretação de EN2 como presidente, cuja referência o situa num tempo/espaço concomitante ao tempo/espaço em que se situa o EN1, ou seja, ao tempo da enunciação de (14). Como se viu acima, na análise dos dados de (11) a (13), em (14): a) o plano base de constituição de uma instância enunciativa dá-se pela ativação de uma “situação default”; b) é no interior da INE1 que se dá a gramaticalização da INE2; c) é no interior da INE1 que se dá a semantização da INE2, referenciada por EN1; do Português Falado. Para maiores referências sobre o trabalho desenvolvido por esse grupo de pesquisa, o leitor pode consultar a bibliografia no final deste trabalho. 120 d) é no interior de cada uma das INEs que se definem as operações realizadas no módulo semântico para constituição dos planos de enunciação e da sua articulação. Em suma, a análise preliminar de (11) a (14) aponta algumas evidências, que não podem ser desprezadas na análise dos dados. 1) Cada INE constitui um plano enunciativo: nesse sentido, as operações nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico constituem-se como operações essenciais para a configuração dos diversos planos que se articulam gramatical e semanticamente. Em conseqüência disso, cada INE constrói um quadro de referência interna, delimitado pela construção do par EN–AL que institui um tempo e um espaço próprios. Os itens lexicais, que ocorrem no interior das INEs, são, portanto, interpretados em função dessas coordenadas de pessoa/tempo/espaço. 2) As operações realizadas no módulo Discursivo, que são caracterizadas pelo conjunto de decisões tomadas pelo autor de texto relativas à escolha de Tópicos e Subtópicos73 e pelas decisões relativas à ativação de INEs, definem-se através da seleção e da ativação de itens do Léxico e de recursos gramaticais ligados à realização morfo-fonêmicas dos itens lexicais. Essas operações do módulo Discursivo são exteriores às CIEs. 3) As operações realizadas no módulo Semântico têm seu domínio delimitado por INEs. Esse módulo caracteriza-se pela ativação das propriedades semânticas ativadas dos itens lexicais e de outros recursos lingüísticos, visando a definir as 73 Nesta pesquisa, baseamo-nos nas noções de tópico e subtópico adotadas por Jubran et alii (1993:361). Segundo os autores, o “tópico decorre de um processo que envolve colaborativamente os participantes do ato interacional na construção da conversação, assentada num complexo de fatores contextuais, entre os quais as circunstâncias em que ocorre o intercâmbio verbal, o conhecimento recíproco dos interlocutores, os conhecimentos partilhados entre eles, sua visão de mundo, o background de cada um em relação ao que falam, bem como suas pressuposições.” Os autores definem o subtópico como uma das condições necessárias para se compreender como se dá a organização interna dos tópicos. Assim, “a divisão interna em tópicos co-constituintes (subtópicos – SbT), situados numa mesma camada de organização tópica, na medida em que apresentam o mesmo teor de concernência relativamente ao ST (tópico central, mais abrangente) que lhes é comum.” (Idem, Ibidem, p. 364). 121 instâncias enunciativas instituídas no texto e a caracterizar as articulações semânticas entre elas; 4) As operações realizadas no módulo Gramatical dependem essencialmente do processamento dêitico. Nesse módulo, são ativadas as propriedades gramaticais dos itens selecionados no módulo Discursivo e definidos quais recursos lingüísticos, além dos lexicais, serão utilizados relativamente à organização e àarticulação gramatical entre as INEs. 5) A dêixis é fundamental na construção e na articulação dos planos enunciativos. Isso se deve ao fato de que cabe ao sistema dêitico o papel de indiciar os planos enunciativos, explicitando as CIEs, de forma que se revelem as condições envolvidas na situação discursiva de sua produção. 6) A ativação do processamento dêitico, como vimos, está diretamente relacionada à ativação de itens lexicais. Nesse sentido, a operação de ativação dos recursos que instituem as “formas de dizer” implicam a ativação desse sistema e revelam a construção dos planos enunciativos que caracterizam as diversas INEs. Com base no que apresentamos nesse item, postulamos a necessidade de se fazer um levantamento dos recursos lingüísticos, que, a exemplo dos citados acima, funcionam como “shifters” da instituição dos planos enunciativos em que se constroem os enunciadores de um texto. 3.2. Ativação das “formas de dizer” no processamento discursivo O estudo das “formas de dizer” é fundamental para se compreender a criação e a articulação dos planos enunciativos e a configuração das instâncias de enunciação por eles instituídas no discurso. Como vimos em 3.1, os recursos lingüísticos utilizados como “shifters” das CIEs são ativados em função de indiciar os enunciadores, as instâncias enunciativas e as operações de semantização que se definem no âmbito de cada INE. 122 Propomo-nos, aqui, além de explicitar os diversos recursos implementados como “formas de dizer”, estabelecer uma classificação do mesmos em função de defini-los e de identificar as operações por eles desencadeadas no processamento discursivo. Dentre os recursos identificados encontram-se: 1) a “situação default”; 2) os verbos “dicendi”; 3) “os verbos não-dicendi”; 4) os deverbais; 5) os “sintagmas de elocução”; 6) os recursos próprios da escrita. De um modo geral, podemos caracterizar esse conjunto das “formas de dizer” da mesma maneira que Maingueneau (1986) caracteriza o conjunto dos verbos “dicendi”, o qual “- indica que há uma enunciação e, como tal, contém de algum modo um verbo de “dizer”; - especifica semanticamente essa enunciação em diferentes registros” (p. 112). 3.2.1. A ativação da “situação default” e a construção do plano base de interlocução A “situação default” é uma operação do módulo Discursivo, uma “forma de dizer” que, geralmente, indicia a instância fundadora do discurso. Ao se construir como enunciador por este recurso, o autor de textos institui-se diretamente no processamento discursivo, o que caracteriza o ato de enunciar como um ato de constituição de voz, que institui o enunciador, o seu tempo e espaço como referências constitutivas do eixo gerador do discurso e , portanto, definitórios na instituição dos demais planos de enunciação de um processamento discursivo. Quando a INE constituinte do plano básico é ativada, pela “situação default”, seu domínio de referência é construído pelo eu/aqui/agora do autor de textos, no ato de se construir como enunciador de seu texto. Como demonstramos em 3.1, gramaticalmente a instância enunciativa que denominamos INE1 é básica para a construção de outras instâncias de enunciação ativadas na produção de um texto. As diversas instâncias que a ela se articulam são dela dependentes, tendo em vista que cada INE é semantizada e gramaticalizada no interior da INE1. Há de se notar que a aparente independência sintática de INE1 não caracteriza uma independência semântica em relação às outras INEs, porque o “jogo” de sentidos 123 ativado no módulo Semântico, que nos permite identificar a hierarquia estabelecida entre as INEs e os diversos planos que as constituem, está diretamente relacionado à organização discursiva, gramatical e semântica de todas as INEs ativadas na produção de um texto. Essa hierarquia entre as INEs é ordenada a partir do quadro de referência explicitado pela construção de EN1 da INE1, que, repetindo, de um modo geral, institui-se pela utilização da estratégia discursiva a que denominamos “situação default”. É necessário ter sempre em mente que essas operações identificadas nos módulos Gramatical e Semântico só se efetivam a partir de escolhas que definem as operações no módulo Discursivo. Tais operações implicam decisões de diversos tipos relativas à situação discursiva e aos fatores que sobre ela atuam e a definem e à ativação do sistema lexical, visando selecionar e ativar as propriedades gramaticais e semânticas que melhor se adeqüem às funções a que o discurso se destina. A título de ilustração, consideremos a ativação, em (15), da “situação default” na CIE, a partir de operações no módulo Discursivo, explicitando que recursos lexicais são ativados e como outras instâncias de enunciação caracterizam-se e articulam-se umas em relação às outras no discurso: (15) {EN1“Aguarda-se a [sentença]] EN2 , sou admirador e amigo dos dois, lamento o entrevero, torço para que tudo termine bem, que um apresente e o outro aceite as [desculpas]]EN3.” } EN1 (T45, L 32-36) Em (15), a “situação default” é instituída pelo ato de “pegar a palavra”. Por esse ato, o autor se constrói como um dos enunciadores instituídos no e pelo discurso. Ao instituir a INE2, através do sintagma “sentença”, o enunciador da INE1 é gramaticalizado pelo uso da dêixis explicitada nas desinências dos verbos – “ser”, “lamentar”, “torcer” - que a ele se referem. Assim, esse enunciador, indiciado pela dêixis de 1ª pessoa do singular, identifica-se como o autor do texto, cuja referência é construída a partir das informações gramaticais explicitadas no enunciado. Nesse sentido, o tempo enunciativo, o presente 124 da enunciação, explicita-se por meio das marcas do tempo gramatical, nas desinências verbais. Essa coincidência entre o tempo do discurso e o tempo gramatical dos enunciados dilui-se na semantização das formas gramaticais empregadas para explicitálos, pois a orientação primeira a ser considerada na construção da referência temporal está diretamente relacionada ao momento da enunciação. Dessas operações, que se caracterizam pela ativação das propriedades dos itens lexicais nos módulos Gramatical e Semântico, resultam na distinção entre os três planos enunciativos que compõem (15). Já em relação a (16): (16) {“Quanto à política cambial, mudou a forma, não o conteúdo. Primeiro houve a valorização com relação ao dólar. Depois, houve atraso na correção do câmbio comparada à inflação. Na fase mais recente, a opção do governo é reduzir, ou mesmo eliminar, a longo prazo, a defasagem cambial.” ]INE1 (T28, L 6-12) A “situação default” em (16) explicita-se pela dêixis temporal, a qual gramaticaliza/semantiza distintas referências temporais, construídas a partir do tempo zero de INE1. Isso obriga o leitor - o AL1 -, a construir, com base na ativação das propriedades semânticas dos “shifters” – “mudou”, “primeiro”, “houve”, “é”, “depois”, “na fase mais recente” e “a longo prazo” -, no módulo semântico, as referências necessárias para a identificação do jogo de “tempos” construídos no interior de (16), que é formado por apenas um plano enunciativo. Em conseqüência desse jogo de “tempos”, o tempo referenciado pela dêixis “na fase mais recente” evidencia-se como distinto do tempo zero de INE1. Enquanto o tempo da enunciação identifica a INE1 como referência ao momento do discurso, os tempos construídos no seu interior aparecem referenciados num contínuo que pode ser interpretado como correspondente ao “tempo” cronológico. (17) {INE1“Rio de Janeiro - [Editorial da Folha]]INE2, no último domingo, fez considerações sobre a dificuldade das novas gerações em consumir os clássicos de nossa literatura. 125 Apoiado em [pesquisas]INE3 junto a dez escolas, o [editorial]INE4 constatou que [“aumentam as dificuldades dos alunos em ler autores dos séculos passados que vão se tornando incompreensíveis”] INE5”.} INE1 (T30, L 1-9) A “situação default” em (17) é instituída de forma semelhante ao que se verifica em (15) e (16), considerando-se que o EN1 de cada uma delas se institui pelo mesmo tipo de recursos de gramaticalização e semantização. No caso de (17), constata-se a existência de dois sintagmas adverbiais, os quais situam o enunciador da INE1 num tempo e num espaço referenciados gramaticalmente como “Rio de Janeiro” e “no último domingo”. Em relação ao exemplo (18), observa-se uma outra forma de construção da “situação default”: (18) “{INE1 [ - Edgar, vê lá, hein?] INE2 [O Edgar era famoso pelas suas gafes. Embora as negasse.] INE1’ [- O que é isso? Pode deixar.]INE3 A mulher ficava em pânico. [ Depois, contando para os outros ela, ria. “O Edgar fez outra das dele.”] Mas na hora ficava em pânico.” } INE1 (T4674, L1-8) O texto de onde extraímos (18) é um texto tradicionalmente classificado como narrativo. A sua utilização nesta pesquisa justifica-se pela forma como nele se institui a “situação default”. Observa-se que, no interior da INE1, construída em “situação default”, há uma outra instância enunciativa que é ativada pelo autor de texto, cujo enunciador também é construído em “situação default”. Esse enunciador, que denominamos EN2, é gramaticalizado/semantizado como uma instância caracterizada por uma voz distinta da voz autoral. Sua referência é construída por uma sobrecarga do módulo Semântico, instituindo-se como uma instância de enunciação subordinada à construção dos efeitos de sentido produzidos pela utilização do parágrafo e do travessão, tendo, por base, a referência do texto em que se insere. 74 O texto 46 é um texto narrativo, mas consideramos relevante a sua inclusão no corpus desta pesquisa pelo fato de concebermos a linguagem, em todas as suas formas de expressão, como basicamente argumentativa e pelo fenômeno descrito em (18). 126 A INE2 distingue-se da INE1, no entanto, com base no que já apresentamos acima: a INE1 referencia a instância fundadora do discurso, na qual são tomadas, pelo autor de textos, decisões importantes acerca da ativação dos recursos lingüísticos selecionados e das operações necessárias, relativas ao processamento discursivo, para a sua implementação no discurso. Nesse sentido, a INE2 caracteriza-se como um dos recursos utilizados pelo autor de textos na construção de seu discurso. A voz por ela expressa é a voz de um enunciador, cujo discurso é referenciado pelo autor como sendo um discurso citado, definindo-se, pois, como um dos “indivíduos lingüísticos” agenciados pelo autor. Dentre os “shifters” que indiciam esse EN2, está a utilização de recursos característicos da escrita: os dois pontos, os travessões, os parágrafos e as aspas duplas. Mais especificamente, o fato de o texto iniciar-se com um travessão indicia para o leitor que o discurso começa com um discurso referenciado. Tais recursos são empregados, de acordo com o que postula a GT, para introduzir no corpo do discurso a “fala” dos personagens, ou seja, usando a terminologia por nós selecionada, para indiciar as diversas instâncias de enunciação constituintes de um discurso. Disso depreende-se que o autor de texto, gramaticalizado e semantizado como o enunciador da INE1, institui, no discurso, um outro enunciador que, também em “situação default”, é referenciado como INE2. Com base nisso, postulamos que o fenômeno verificado em (18) é significativo, pois indicia a configuração de um subplano no interior da instância básica, instituído também por uma “situação default”. Tal plano, no entanto, da mesma forma como se verificou em relação as outras INEs secundárias, está diretamente articulada à INE1. Observa-se que (15), (16), (17) e (18) indicam-nos que a voz de EN1 se institui sem a implementação de verbos de dizer, mas coloca sempre em cena outros recursos dêiticos que a indiciam. (18), no entanto, indicia que uma INE secundária pode, dependendo da forma lingüística utilizada na sua explicitação, ser instaurada por uma segunda “situação default”. 127 Nota-se que, semanticamente, é como se resgatássemos, na base de uma “situação default”, um verbo “dicendi”, indiciado sempre como o agora do discurso, que localiza o EN1 num tempo/espaço sempre presente, que se renova a cada vez que for enunciado. Em síntese, podemos identificar a “situação default”, considerando que esse recurso se define de acordo com as propriedades ativadas nos três módulos lingüísticos. 1) Em relação ao módulo Discursivo, a “situação default” caracteriza-se como o próprio ato de tomada da palavra por parte do EN1: a) abriga decisões relacionadas ao momento da discursivização; b) define, em relação à discursivização, a ativação e seleção do Léxico. 2) Em relação ao módulo Gramatical, esse recurso caracteriza-se como um discurso sempre presente em relação ao momento da enunciação, tendo em vista que: a) institui-se como um plano enunciativo básico em que se constrói o EN1; b) a gramaticalização desse plano enunciativo configura a INE1, instituída pela “situação default”, como a instância na qual o autor75 do texto escrito se institui como enunciador do discurso; caracterizando-se, pois, como aquele enunciador que “funda” o discurso. Tal característica confirma o pressuposto (i) de nossa pesquisa, a voz autoral pode ser expressa por um enunciador, que se identifica, explicitamente, como o autor do texto; c) a gramaticalização do plano da INE1 possibilita a instituição de um outro plano enunciativo, caracterizado também em “situação default”, no seu interior; d) a gramaticalização desse segundo plano enunciativo no interior da INE1 configura a INE2 como uma instância na qual o autor do texto institui um outro indivíduo lingüístico como um enunciador de seu texto. Esse enunciador – EN2 – indicia um discurso que, embora esteja subordinado à instância fundadora do discurso, não remete à voz autoral. Isso caracteriza, pois, o que identificamos 128 como o pressuposto (ii) de nossa pesquisa, a voz autoral pode estar implícita na voz de um enunciador outro que não a do autor do texto. e) a gramaticalização de outros planos enunciativos dá-se em função do plano básico, normalmente, instituído pela “situação default”; f) a articulação entre os diferentes planos enunciativos dá-se em função da localização espacial e temporal definida na implementação do plano base. 3) Em relação ao módulo Semântico, o plano base caracteriza-se como o eixo referencial da instituição ou referenciação das diversas INEs, definindo-se como: a) o fator constituinte das diretivas que orientam a construção da referência espaço/temporal que institui o EN1; b) o “lugar” da articulação semântica das demais INEs. Considerando que a construção do plano base dá-se normalmente pela “situação default”, propomos duas formas de categorizá-la em termos dos recursos lingüísticos ativados na sua implementação: a pessoalização/impessoalização em “situação default que serão tratadas no item 3.2.3. 3.2.2. A “situação default” em planos subalternos A “situação default” é uma estratégia muito utilizada na fala e na escrita, pois o autor de texto, ao se construir como enunciador da INE1, não precisa avisar ao seu alocutário a sua intenção de enunciar-se. O fato de “tomar a palavra” já é, em si mesmo, a senha para que a interlocução se dê. Por isso mesmo, a “situação default” geralmente é a estratégia utilizada pelos autores de texto na construção do plano base. Mas é possível que tal estratégia seja utilizada na construção de um plano subalterno, também em “situação default” como vimos em (18) acima e em (19) abaixo: (19) { INE1“Quanto mais esquentar o clima político que precede as eleições, mais atenta deve ficar a [opinião pública]]INE2 para separar o que é [retórica]]INE3 do que é verdade. 75 Note-se que a noção de autor adotada nesta pesquisa está diretamente relacionada à noção de estratégia textual. 129 A questão dos juros já entrou naquela faixa onde [uns dirão]]INE4 que o Brasil está pagando um preço escorchante pelo dinheiro, e [outros]]INE5 que as taxas estão caindo, mas ainda há muito chão pela frente até os juros aterrissarem em patamares civilizados.} INE1 { INE1 Foi mais ou menos este o tom do [diálogo]]INE6 aberto entre o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o novo presidente da Abrasca, Alfried Plogher. A entidade reúne as sociedades anônimas de capital aberto, com um faturamento de 284 bilhões de dólares, o que representa cerca de um terço do PIB brasileiro.”} INE1 (T16, L 1-18) Em (19), o plano subalterno não é interpretado imediatamente pelo leitor. A sua interpretação como um discurso referenciado só é possível quando o leitor refaz a sua leitura, reinterpretando-o à luz de outros indícios que o próprio texto lhe fornece., como o início do segundo parágrafo e a utilização do nome “diálogo”, que indicia a INE6: “Foi mais ou menos este o tom do diálogo aberto entre os ministro da fazenda (...) e o novo presidente da Abrasca (...).” Com base no que se verificou em (18) e (19) sobre a construção dos planos subalternos através da “situação default” evidencia-se que: a) a utilização da “situação default”, na construção do planos subalternos, assemelha-se ao que a GT chama de “Discurso Direto”, que pode ser descrito, como no caso de (18), ou comentado, como em (19); b) a utilização da “situação default” em planos subalternos – a configuração da INE2 caracteriza uma relação de subordinação entre esta instância e a instância fundadora do discurso – a INE1; c) essa subordinação do plano subalterno ao plano base permite ao leitor interpretar o discurso da INE2 como um discurso referenciado, ou seja, como um discurso citado, na perspectiva da GT; 130 d) a utilização da “situação default” permite ao leitor, quando o tempo/espaço não está explicitamente indiciado, identificar o tempo/espaço da interlocução como o “lugar do discurso”. Essas evidências permitem, portanto identificar a utilização da “situação default” com a constituição do plano base de enunciação. 3.2.3. Pessoalização/impessoalização e a construção de EN1 Conforme explicitamos acima, na CIE são utilizados outros recursos, além da dêixis de tempo e espaço. Tal fato explicita, também, que a CIE, principalmente na construção da instância que caracteriza o plano base da enunciação, pode se dar através de um maior ou menor uso de recursos dêiticos ativados na sua implementação. Isso implica que o EN1 – e, portanto, a INE1 como a instância fundadora do discurso –, construído pela “situação default”, é sempre construído como “a pessoa que toma a palavra”, remetendo sempre a uma primeira pessoa, a um EU, segundo o qual se definem as coordenadas espaço/temporais que orientam a construção das referências das outras INEs. O fato de EN1 indiciar-se “mais ou menos presente” nos enunciados constitui uma forma de modalização do discurso. Nessa perspectiva, a modalização define-se como uma estratégia discursiva, através da qual o autor de textos explicita, no discurso, um número maior ou menor de pistas que revelam o seu trabalho de e com a linguagem. A essas estratégias de modalização do discurso de EN1 denominamos pessoalização e impessoalização. A modalização permite, pois, a identificação do enunciador instituído pela “situação default”, quer seja o enunciador do plano básico, quer seja o enunciador do subplano. Nesse sentido, como dissemos acima, é nos possível identificar ou não a voz autoral com a voz dos enunciadores materializados no discurso. a) A pessoalização em “situação default” está diretamente relacionada a uma utilização mais ostensiva dos recursos dêiticos, no sentido de identificar a voz autoral com a voz do enunciador que “toma a palavra” e se enuncia como eu. Essa interpretação pressupõe a inserção de um eu que é referenciado no e pelo discurso, como alguém 131 que “fala algo para alguém”. Vejamos como se dá a estratégia de pessoalização da “situação default” nos exemplos abaixo: (20) { INE1 “É todo dia: a gente abre o jornal e lá está alguém, até mesmo pessoas progressistas, com preocupações sociais, ao lado dos conservadores de sempre, repisando o [argumento]]INE2 de que o ensino superior deve ser pago “por quem pode”. Isso não é novidade. Nos meus 55 anos de vida, me habituei a ver surgirem e ressurgirem, com a periodicidade de um fenômeno da natureza, [campanhas]]INE3 contra a gratuidade do ensino superior.”}INE1 (T 19, L 1 - 10) (21) { INE1 “[[Falou]]INE2 em tom exaltado. Eu estava de bom humor, mas senti necessidade de esclarecer que já não sou mais jornalista. Fato do passado. Só então, num [diálogo]]INE3 que se foi acomodando, abrindo espaço para [audiência recíproca]]INE4, pude [esclarecer]]INE5 meu ponto de vista, afinal aceito. Entendo que o ideal seria excluírem-se da [lei de imprensa]]INE6, justificável para tratar de outros ângulos dessa atividade essencial à vida democrática, todos os [preceitos]]INE7 destinados a tipificar crimes contra a honra e fixar penalidades. Tratam-se de matérias próprias do Código Penal. Acontece que existem dois aspectos perturbando o bom critério, que não podem deixar de ser considerados pelo analista brasileiro.”}INE1 (T 11, L 16-32) O exemplo (20) indicia o EN1 através de morfemas gramaticais de 1ª pessoa presentes em diferentes itens lexicais, tais como o uso de pronomes pessoais e a desinência verbal. Quanto ao tempo/espaço enunciativo, a desinência modo-temporal das formas verbais, gramaticalizadas na forma do presente localizam o discurso atribuído a EN1 como o tempo/espaço referenciado no presente da enunciação. Apesar de, num primeiro momento, esse enunciador ter sido indiciado por meio do sintagma “a gente”, que é uma forma lingüística que referencia a uma pluralidade de sujeitos, esse item semantiza um “eu” nele incluso e que coincide com o eu gramaticalizado nos itens” - “meus”, “me” - e na desinência do verbo “habituei”. Ao lado dessas formas, há outras que indiciam o 132 tempo/espaço de EN1 – “é todo dia”, “lá”, “de sempre”, “a periodicidade de um fenômeno da natureza” fornecem indícios que referenciam a instância geradora do discurso, situando-a num tempo e num lugar definidos, em conseqüência das operações de gramaticalização/semantização. Devido às operações nos módulos Gramatical e Semântico, nota-se que, por exemplo em (20), o verbo “falar” não se refere ao EN1. Outros índices contribuem para que o leitor construa as referências que remetem a esse enunciador da “situação default”, identificando-o com a voz autoral subjacente ao discurso de EN1, instituído por “shifters” de 1ª pessoa (“eu”, “meu”). Além disso, a existência de diferentes desinências modo-temporais nos verbos “estava”, “senti”, “sou”, “pude” e nas formas adverbiais “já”, “só então” que indiciam esse enunciador, institui um jogo de “tempos”, os quais permitem ao leitor referenciar múltiplos “tempos” enunciativos na constituição da INE1. Em relação a (22), por exemplo, a referência ao EN1 está indiciada principalmente através da gramaticalização e semantização do “agora” e dos morfemas de presente nos verbos que situam a instância fundadora do discurso num tempo/espaço equivalente ao aqui/agora da enunciação. A utilização de outros sintagmas adverbiais na construção das outras INEs explicitam um jogo de “tempos” diretamente vinculado à interpretação da referência temporal instituída na INE1: “em 1998”, “undécima hora”, “há tempos”, “até abril”, “como sempre”, “depois”, “enquanto”, “até quando”, “em 1994”. Ao lado da utilização desses recursos, ressaltamos a função da interrogação, delimitada pelos travessões “- o candidato deles em 1994 chamava-se Orestes Quércia, lembramse? –”, e de um conjunto de sintagmas adjetivos ou adverbiais (trechos sublinhados abaixo), que qualificam as INEs, referenciando o ponto de vista do EN1 em relação ao discurso da INE referenciada. 133 (23) {“Soam extemporâneas e inúteis as [reclamações] INE2 dos ministros candidatos em 1998, que resolveram [explicitar publicamente] INE3 o desejo de desfrutar das benesses dos cargos até a undécima hora. [Repetem] INE4 às escâncaras agora o que há tempos [vinham dizendo] INE5 nos bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até abril, como já [avisou] INE6 o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla, geral e irrestrita. Como sempre, o apego assumido e sem constrangimentos parte com mais força do PMDB, partido cujas lideranças, à falta de projetos unitários e consistentes para o país, dedicam-se com afinco à administração de suas conveniências individuais. Nisso, perdem o pé da realidade. Agora, por exemplo, a ala governista [diz] INE7 que só sai do Ministério depois que pela mesma porta passar o último tucano, enquanto o presidente pemedebista [vocifera] INE8 que só reúne o partido depois que os ministros saírem do governo. Esquecem-se de que não cabe a nenhum deles decidir até quando, ou mesmo se, ficam num governo que não só não ajudaram a eleger - o candidato deles em 1994 chamava-se Orestes Quércia, lembram-se? - como hesitam em apoiar. (...)”}INE1 (T 9, L 1-14) A esses recursos lingüísticos empregados para especificar ou qualificar as INEs denominaremos “descrições de elocução”, por introduzirem, a título de modalização, o ponto de vista do enunciador da INE1 a respeito dos enunciadores por ele referenciados. Essas “descrições de elocução” definem-se como estratégias resultantes de operações de gramaticalização e semantização que explicitam o processamento discursivo de sua produção. Vejamos, a seguir, esse tipo de modalização: (24) {INE1 “Um dos elementos que mais freqüentemente utiliza o homem, tanto para fazer-se entender como para estabelecer uma relação harmônica com seus semelhantes, é a [palavra]]INE2 , condutora do pensamento individual e que contribui em muito para a formação do próprio conceito. 134 A importância que ela reveste, ou melhor, assume na vida, evidencia-se em múltiplas formas, e quanto mais respeitável é a posição do que [fala] INE3, tanto mais confiança inspira sua [palavra]]INE4, a qual, não sofrendo modificação alguma, se manterá como elemento de juízo para prestigiar o conceito de quem a [emite]]INE5. Quando a [palavra]]INE6 é pronunciada para manifestar uma convicção, definir uma atividade ou uma situação, ou expressar um sentimento, e leva em si o sadio propósito de oferecer aos demais a oportunidade de conhecer o pensamento que a anima, tende sempre a superar o conceito de quem a [emite]INE7. Outra coisa acontece com [aquela]INE8 que é pronunciada com a intenção de enganar ou que surge sem reflexão, num impulso fugaz, porquanto costuma afetar ou ferir aos que [a ouvem]INE9, ainda que nada tenham a ver com a mesma, pois só o fato de [escutá-la]INE10 causa-lhes mal-estar, contribuindo, conseqüentemente, para que se elabore um juízo adverso a respeito de quem [a expressou. ]INE11 (...) Quem pensa bem se esforça em [falar]INE12 melhor. Benéfico resultará, então, aprender a sincronizar os movimentos da mente com a [expressão oral]INE13, de modo que a [palavra]]INE14 seja a condutora fiel do pensamento. Isso fará com que a [palavra]]INE15 se revista de interesse, contrariamente ao que ocorre quando se [fala]INE16 sem pensar no que [se diz]INE17, pois, neste caso, a [palavra]]INE18 costuma parecer vazia ou sem sentido. Se se quisesse apresentar uma imagem que refletisse com mais convívio colorido o mecanismo da [palavra]]INE19, haveria que imaginá-la como um vagão que, à medida que passa pelo conduto vocal, é preenchido com o pensamento que formará seu conteúdo. (...)”}INE1 (T 10, L 1-25) (24) evidencia as seguintes “descrições de elocução” introduzidas pelo EN1 como determinantes de algumas das INEs que compõem o seu enunciado: a) “condutora do pensamento individual e que contribui em muito para a formação do próprio conceito” qualifica a INE2; b) “a posição do que fala” qualifica a INE3; 135 c) “a qual, não sofrendo modificação alguma, se manterá como elemento de juízo” qualifica a INE4; d) “de quem a emite” - (quem emite a palavra) – qualifica a INE5; e) “é pronunciada para manifestar uma convicção, definir uma atividade ou uma situação, ou expressar um sentimento, e leva em si o sadio propósito de oferecer aos demais a oportunidade de conhecer o pensamento” qualifica a INE6; f) “de quem a emite” - quem emite a palavra – qualifica a INE7; g) “que é pronunciada com a intenção de enganar ou que surge sem reflexão” qualifica a INE8; h) “aos que a ouvem” – aqueles que ouvem a palavra - qualifica a INE9, etc.. b) A impessoalização em “situação default” está diretamente relacionada à construção, também em “situação default”, de um subplano de enunciação no interior da INE1. Como vimos em 3.2.1 e 3.2.2 acima, a instituição de uma “situação default” a partir de uma outra “situação default” configura-se como uma estratégia discursiva empregada pelo autor, visando à construção de uma instância enunciativa, cujo enunciador não se identifica gramaticalmente com a voz autoral. Além disso, essa ”situação default” – que institui a INE2 - é gramaticalizada e semantizada como um discurso referenciado. Essa forma de modalização é menos indiciada gramaticalmente, o que obriga o leitor a basear-se em índices de outras instâncias enunciativas para reinterpretá-la e construir o quadro de referenciação dessa INE. É fundamental observar como se dá, em (25) a construção dessa segunda estratégia de modalização: (25) {INE1 “Segundo o [noticiário]]INE2 da semana passada, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estaria estudando a adoção de um “selo social” em todos os países como garantia do cumprimento de padrões trabalhistas mínimos.. Essa é uma nova [versão]]INE3 da [“cláusula social” ]INE4 que muitas nações desenvolvidas pretenderam aprovar no âmbito da Organização Mundial do Comércio 136 (OMC). Se adotada, a OMC ficaria com plenos poderes para aplicar [sanções]]INE5 comerciais aos violadores dos padrões trabalhistas. A [tese]]INE6 vem revestida de [argumentos]]INE7 humanitários em favor dos povos mais pobres. Mas como no campo dos negócios os países ricos jamais [defenderam]]INE8 estratégias desse tipo, o seu repentino surto de generosidade nos76 põe com a pulga atrás da orelha. O que há por baixo disso?” }INE1 ( T 1, L 1-20) Há, no exemplo acima, uma referência explícita à caracterização da INE2, já no início do discurso, pela enunciação do sintagma “segundo” que a referencia pelo nome “noticiário”, instituído como EN2. A utilização do termo “segundo” obriga o leitor a interpretar o discurso contido em (25) como um discurso produzido pelo autor para referenciar uma situação de interlocução que, embora distinta do plano da discursivização a que pertence a voz autoral, caracteriza-se como um desdobramento desse plano. Em outras palavras, o autor, em “situação default”, constitui-se como enunciador e ativa um segundo “indivíduo lingüístico” – INE2 -, também em “situação default”, a quem cabe reportar o discurso do enunciador da INE2 e das demais INEs. Conjuntamente com a utilização de “segundo”, outros recursos lingüísticos indiciam a INE2 como uma instância instituída com base num discurso referenciado (ou reportado, como postula a GT): um sintagma adverbial “da semana passada”, formas verbais empregadas no futuro do pretérito – “estaria estudando”, “pretenderam aprovar”, “ficaria” - e no presente - “vem revestida”, “põe” – e a utilização dos pronomes demonstrativos – “desse”, “disso” - com as quais são indiciadas outras instâncias enunciativas de (25). A gramaticalização e semantização dessas formas lingüísticas explicitam essa instância e, ao mesmo tempo, a INE1. O “nos” referencia esse segundo “indivíduo lingüístico” – o INE2– porque explicita um eu que, incluso nessa forma plural, é construído lingüisticamente no texto, exigindo do leitor um esforço maior no sentido de construir tal referência. O uso do plural 76 Esta forma gramatical – o “nos” – não indicia o EN1. De acordo com Cunha (1972), este plural caracteriza o “plural de modéstia”, em que a 1ª pessoa do plural é empregada como correspondente à primeira pessoa do singular. 137 interpretado como equivalente ao singular caracteriza o que o Cunha (1972:286) chama de “plural majestático” ou “plural de modéstia”. A gramaticalização e semantização dessa forma de plural, partindo do pressuposto de que a sua utilização tem como fim referenciar um “eu”, obriga o leitor, ao semantizá-lo no interior da INE2, reinterpretá-lo como referente ao EN2. Essa referência a EN2 expressa pelo “plural de modéstia” está presente em outros trechos do texto 1, como ilustra (26) em que a gramaticalização das formas de 1ª pessoa do singular indiciadas nas formas pronominais e verbais, ao serem semantizadas explicitam a referência ao “eu”, instituído em “situação default”. (26) {INE1Se o propósito é afastar o Brasil do comércio internacional, o tiro é certeiro. Mas se o objetivo é, de fato, melhorar nossas condições de trabalho, não há saída: precisamos produzir mais, crescer depressa e exportar muito. Esse é um daqueles temas ingratos para ser abordado, pois, no seu [debate]]INE2, os países ricos tendem a ficar com a fama de defensores dos nossos trabalhadores e nós corremos o risco de ficar sem o que fazer com uma monumental legião de desempregados. Afinal, será que o Primeiro Mundo está com medo do Terceiro Mundo? É isso que a OIT pretende?”}INE1 (T 1, L 66 - 80) Os exemplos (20) – (26) ilustram que a modalização pode ser estudada do ponto de vista discursivo como uma estratégia de que se valem os autores de textos na construção do seu discurso. Nesse sentido, a modalização implica o agenciamento de recursos, utilizados, por esses autores, na gramaticalização e semantização de “indivíduos lingüísticos”, visando à construção de seus enunciadores e enunciatários, bem como a construção de seus pontos de vista, seu maior ou menor “distanciamento” em relação aos conteúdos referenciados 3.3. Verbos “dicendi” 138 Por verbos “dicendi” designaremos todos os verbos que diretamente referenciam uma elocução. Nessa categoria estão, além do “dizer”, os seguintes verbos: afirmar, citar, comentar, explicar, expor, pronunciar, falar, eleger, nomear, chamar, denominar, designar, determinar, advertir, fixar, postular, advertir, notificar, avisar, aventar, murmurar, sussurrar, resmungar e outros, com sentido correspondente. Os verbos “dicendi” desempenham uma importante função como recursos utilizados para CIEs. Assim, o postulado da Gramática Tradicional sobre o empregos dos chamados verbos “dicendi” confirma-se, mas cabe-nos acrescentar que tais verbos indiciam a voz de um enunciador que pertence a uma instância de enunciação distinta daquela a que pertence a voz fundadora do discurso. Esse tipo de verbo é utilizado pelo falante77 que institui a INE1, indiciando a instauração de uma nova instância de enunciação. Nos enunciados abaixo, ilustramos várias ocorrências de situações de comunicação em que se percebe a atuação de um falante que, ao instituir-se como enunciador, institui outros “actores” que irão compor uma determinada cena enunciativa, por meio da ativação de verbos “dicendi”.. (27) {INE1 “[Disse-me]]INE2 ainda Florspanca que o cheque encerrando a dívida já saiu de sua conta. Mas o documento de quitação só deve chegar às suas mãos dentro de dois ou três meses. [Contou-me]]INE3 também que, outro dia, na fila da Caixa, uma funcionária corpo mole [mandou]]INE4 uma pobre cliente tirar [“xerox autenticado” ]INE5.”}INE1 (T 32, L 43-51) (28) {INE1 “Impressiona o grau de desconhecimento do real funcionamento do mercado de trabalho no Brasil por aqueles que, em vez de [informar, pretendem denunciar]]INE2 os elementos de rigidez impostos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) num ambiente de grande escassez de empregos.”}INE1 (T37, L 1-7) (29) {INE1“Em vez de [propor]INE2 acabar com as poucas oportunidades de fortalecimento dos interesses dos trabalhadores, os mercadores de ilusão devessem 139 refletir mais e melhor sobre as realidades do mercado de trabalho no Brasil.”}INE1 (T37, L 79 - 84) (30) { INE1“[Repetem]INE2 às escâncaras agora o que há tempos [vinham dizendo]INE3 nos bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até abril, como já [avisou]INE4 o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla e irrestrita.”}INE1 (T9, L 35)* (31) {INE1“Virgílio [explica]INE2 a sutileza dessa operação moral com o seu famoso “tempora mutantur” - os tempos mudam.”}INE1 (T45, L6-8) (32) {INE1 “Stendhal [narra]INE2 um caso espantoso.”}INE1 (T45, L 16) (33) {“Como já [disse]INE2 o presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho, [“toda lei de imprensa é nefasta” INE3].”}INE1 (T18, L 20-22) Os exemplos acima ilustram a instauração de, no mínimo, duas instâncias de enunciação, como é o caso de (27): o EN1, através do verbo “dizer” insere EN2 a quem é atribuído o discurso instituído no interior da INE1, devidamente colocado entre aspas – “xerox autenticado” -. No caso de (30), observa-se que, embora tenhamos em INE2 como interlocutores, um enunciador identificado lingüisticamente por uma forma de 3ª pessoa do plural, esse mesmo enunciador indicia-se em INE3 pelo sintagma verbal “vinham dizendo” e que, no eixo das coordenadas espaço-temporais, tem como referência um tempo e um espaço anterior ao tempo/espaço da INE2. A INE4, por sua vez, remete-nos a um recuo no eixo tempo/espacial da INE1, mas posterior aos tempos/espaços definidos nas INE3 e INE4. 77 Tendo em vista a dimensão discursiva, com que operamos, o termo falante pode ser empregado como correspondente ao termo autor de textos. * Interessa-nos, neste momento específico, ilustrar a instauração de instâncias enunciativas a partir dos verbos “dicendi”. Por isso não nos referimos às outras instâncias presentes nos exemplos alistados de (25) a (31). 140 Maingueneau (1986) distingue duas classes de verbos “dicendi”, levando em conta a situação de enunciação: uma classe é a dos verbos que “têm um valor descritivo”, como repetir, anunciar, responder, etc.; a outra classe engloba os verbos que “implicam um julgamento de valor do enunciador quanto ao caráter bom/mau ou verdadeiro/falso do enunciado”. Nessa classe, estão os verbos reprovar, ousar, afirmar, lamentar, etc. Maingueneau (1986, p. 112) ilustra essa divisão em classe dos verbos “dicendi”, usando um quadro proposto por C. Kerbat-Orecchioni78: Informações descritivas (murmurar) apreciativas julgamento atribuído ao enunciador do discurso citado (bom/mau) bom/mau (lamentar) (vociferar) julgamento atribuído ao relator verdadeiro/falso (ousar, afirmar) FIGURA 9 - A figura reproduz a divisão em classe dos verbos “dicendi”, segundo proposta de Kerbat-Orecchione. Na sua perspectiva, tais verbos se dividem em: descritivos, apreciativos (os que encerram julgamentos atribuídos a enunciadores distintos de duas instâncias também distintas de interlocução. Fiorin (1996, p.81) amplia essa subdivisão proposta por Maingueneau (1986). Segundo Fiorin, os verbos descritivos se subdividem em: 78 L’ÉNONCIATION DE LA SUBJECTIVITÉ DANS LE LANGAGE. Paris: A.Colin, 1980, p.115. 141 1) “verbos que situam o discurso reportado na cronologia discursiva”, a saber: concluir, repetir, responder; 2) “os que explicitam a força ilocucionária do ato enunciativo”, como suplicar, prometer; 3) “os que indicam o tipo do discurso reportado”, como contar, relatar, demonstrar; 4) “os que especificam o modo de realização fônica do enunciado”, como gritar, murmurar; 5) “os que indicam uma qualidade não-fônica do enunciado, uma qualidade do enunciador”, como o verbo obtemperar, retrucar, redargüir, admitir. Fiorin postula ainda que tais verbos “impõem ao enunciatário a visão do enunciador sobre o discurso reportado.”(Op. cit., p. 80). Ilustramos, a seguir, no item 3.3.1, com trechos do nosso corpus, a subdivisão dos verbos “dicendi” proposta por Fiorin (op. cit.), redefinindo-a em função de inserir o “discurso narrado”, na perspectiva de análise aqui adotada, como uma nova instância discursiva. Em decorrência disso, os verbos que os introduzem classificam-se como verbos que tomam como referência uma outra instância de enunciação. 3.3.1 . Verbos “dicendi” na referenciação de INEs Os verbos “dicendi” são ativados no módulo discursivo, visando a articular instâncias de enunciação. Ao serem ativadas suas propriedades gramaticais e semânticas, operacionalizadas através dos módulos Gramatical e Semântico, esses verbos articulam instâncias de enunciação, podendo, também, denotar a forma de sua articulação no discurso. Contrariamente ao que aconteceu na ativação de INEs pela “situação default”, os verbos “dicendi” sempre obrigam o AL1 a buscar a referência da INE por eles criada em um plano enunciativo diferente do plano básico. Assim, podemos afirmar que as cinco categorias de Fiorin se reduzem à primeira, pois as outras quatro também, citando as palavras do próprio autor, “situam o discurso reportado na cronologia discursiva”. Em 142 outras palavras, todas as categorias propostas por Fiorin constituem-se de verbos que articulam INEs num plano básico já estabelecido. Esses verbos, que o autor subcategoriza em 2), 3), 4) e 5), além de cumprir essa tarefa, denotam a modalidade da articulação de INEs, como ilustram os exemplos (34)-(37): (34) {INE1“[Repetem]INE2 às escancaras agora que há tempos [vinham] INE3 dizendo nos bastidores: ...”} INE1 (T9, L 3-4) (35) {INE1“E [repetiu]INE2 o que [havia dito] INE3 em artigo publicado simultaneamente em 50 jornais de 30 países: [“O Brasil está pronto para exercer papel de peso na ordem econômica do futuro”.]INE4”}INE1 (T12, L 9-13) (36) {INE1 “Nada se [questiona]INE2 quanto à novidade da tecnologia, quanto à atividade inventiva.”}INE1 (T38, L 75-77) (37) { INE1 “Na busca de esotéricos significados, o psicotécnico [questiona]INE2 Garrincha. que [arremata]INE3 com a simplicidade de um de seus dribles pela direita: [“Não quer dizer nada, não, doutor. É só o Quarentinha”.]INE4”}INE1 (T 35, L 68-72) Todos os verbos “dicendi”, destacados nesse conjunto de exemplos, criam e articulam INEs dentro de um plano básico de uma INE criada por “situação default”. Assim, os tipos de criação e articulação de planos enunciativos reduzem-se a dois: a) pela ativação de “situação default”; b) pela ativação de um item lexical, no caso, um verbo “dicendi”. Se quisermos estabelecer distinções entre os verbos “dicendi”, devemos fazê-lo na perspectiva de estudo da modalização. Tal estudo – que não é objetivo deste trabalho – englobaria a modalização da operacionalização dos dois tipos de CIEs: o da “situação default”, como sugerimos em 3.2.3, e o da CIEs em planos subalternos ao plano básico, como é o caso dos planos instituídos pela ativação de todos os verbos “dicendi”. 143 Convém atentar para o fato de que verbos como “concluir”, por exemplo, podem, dependendo do contexto em que são empregados, não funcionar como verbos “dicendi”. É o que se verifica nos exemplos alistados abaixo: (38) {INE1“Como se [diz]INE2 que há no Estado 350 mil firmas de pequeno porte, podese concluir que, aprovado o projeto, em breve prazo elas poderão criar pelo menos 350 mil novos empregos, um por empresa.”} INE1 (T13. L 33-37) (39) {INE1“Isso é o que se pode concluir das análises realizadas a partir dos dados apresentados pelo [gráfico] INE2...”} INE1 (T37, L 51-54) 3.3.2. Verbos “dicendi” e modalização dos tipos de discurso Se fôssemos estudar especificamente a modalização da CIEs, teríamos de considerar os dois tipos de CIEs, como afirmamos acima. Este é um estudo que foge ao âmbito de nosso trabalho. Por isso, apenas para ilustrar o fenômeno, consideraremos os verbos que constituem as quatro últimas categorias propostas por Fiorin: os “verbos que explicitam a força ilocucionária do ato enunciativo”, os verbos que “indicam o tipo do discurso reportado”, os verbos que “especificam o modo de realização fônica do enunciado” e os verbos “que indicam uma qualidade do enunciador”. Entendemos que esses verbos funcionam, no discurso, como todos os verbos “dicendi”, apenas modalizando as INEs que criam de uma forma mais explícita: (40) {INE1“... como já [avisou] INE2 o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla, geral e irrestrita.”}INE1 (T9, L 4-5) O verbo “avisou” pode ser substituído pelos verbos que Fiorin inclui em sua primeira categoria – “concluir”, “repetir”, “responder” – sem que se altere a configuração formal de (40). 144 É relevante notar que, em (41) (42) e (43), abaixo, temos verbos que seriam classificados como performativos pela Teoria dos Atos de Fala: (41) {INE1“Em vez de [propor]INE1 acabar com as poucas oportunidades de fortalecimento dos interesses dos trabalhadores, ...”} INE1 (T37, L 79-81) (42) {INE1“E não será o PMDB (...) que vai [determinar] INE1 os rumos das orientações estratégicas do presidente em busca da reeleição.” (T9, L 19-20) (43) {INE1“Imobilizá-la é [decretar]INE2 a morte da Petrobras, pois seus competidores farão o que ela está fazendo.” (T25. L 32-34) O fato de esses verbos serem classificados como performativos não implica, necessariamente, sua reclassificação por critérios sintáticos. É esse tipo de raciocínio que estamos adotando aqui, ao abandonar a subclassificação de Fiorin. Em outras palavras, estamos incluindo todos os verbos “dicendi” numa mesma classe por critérios formais: todos eles se contrapõem à CIEs instituídas pelas “situação default”, criando, por sua vez, CIEs em planos subalternos ao plano básico. As suas nuances semânticas seriam, segundo essa nossa proposta, consideradas numa outra perspectiva de estudo, a da modalização no módulo Semântico. Exemplificamos em (44), abaixo, como o verbo “dizer”, um “dicendi por excelência, é modalizado por toda a expressão sublinhada, e isso não se configura como um motivo para incluí-lo na subcategorização 2 de Fiorin, ou seja, como os verbos “que explicitam a força ilocucionária do ato enunciativo” do tipo de suplicar, prometer. (44) {INE1“O cronista e escritor Roberto Drumond (...) vem-no [louvando]INE2 muito.”}INE1 (T40, L 73-6) Nessa perspectiva, propomos que se adote uma classificação dos verbos “dicendi” por critérios formais, como afirmamos acima, porque todos eles criam INEs e as articulam 145 num plano subalterno ao plano discursivo básico, como se pode constatar nos exemplos abaixo. Além disso, respeitando-se, é óbvio, as especificidades semânticas de cada verbo, propomos considerar o seu emprego, no discurso, como uma questão de modalização discursiva. (45) {INE1“ [“Essa é a tarefa”] INE2, [disse] INE3 o ministro da Fazenda, referindo-se ao trabalho que ainda há a fazer para cortar gastos, reduzir custos...”}INE1 ( T16, L 4244) (46) {INE1“ ... [recomenda-se] INE2 que se empenhem pelas reformas tributárias e fiscais (...)”}INE1 (T19, L 87 - 88) (47) {INE1“Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, [dirigese]INE2 ao sargento que, por sua vez, [se reporta] INE3 ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel.”}INE1 (T14. L 28-33) (48) {INE1“São muitos os que [condenam] INE2 essa liberdade. Consideram sacrílegas essas versões.”} INE1 (T 31. L 42-4) (49) {INE1 “Durante os 21 anos seguintes era proibido [mencionar]INE2 seu nome.”}INE1 (T44, L 15-16) (50) {INE1“... e [vociferem]INE2 em favor do projeto de taxação das grandes heranças e fortunas.”}INE1 (T19, L 89-92) (51) {INE1“[“Todos os meses era obrigada a ir pessoalmente a uma agência da Caixa fazer o levantamento do número do contrato para efetuar o pagamento”]INE2, [resmungou] INE3.”}INE1 (T32, L 33-36) (52) {INE1“[Queixa-se]INE2 o nobre juiz de que [“continua o processo de estrangulamento e destruição do judiciário, no contexto de uma opinião pública 146 vulnerável pela ação da mídia, de tal ordem que sua noção de justiça se transforma rapidamente em versão de justiceiro”]INE3, com todas as negativas ao [“due process of law”] INE4, preceito natural entre os povos civilizados.”} INE1 (T42, L 15-22) (53) {INE1“A questão grave não é o interesse dos competidores, como a Dow Chemical, por exemplo, que [reclamou]INE2.”}INE1 (T25, L 40-42) (54) {INE1“Não há, portanto, como [negar]INE2 que a trajetória de crescimento moderado [admitida] INE3 pela atual política econômica (...) [cobra]INE4 um alto preço do ponto de vista social.”} INE1 (T26, L 13-17) (55) {INE1“FHC [anunciou] INE2 o fim da Era Vargas. Em 1945, [decretaram] INE3 o fim de Vargas quando ele partiu para o exílio em São Borja.”} INE1 (T44, L 1-3) (56) {INE1 “Impressiona o grau de desconhecimento do real funcionamento do mercado de trabalho no Brasil por aqueles que (...) pretendem [denunciar]INE2 os elementos de rigidez impostos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) num ambiente de grande escassez de empregos.”}INE1 (T 37, L 1-7) (57) {INE1“... ele também [prometeu]INE2 servir a outro senhor, o qual pode ser esquematicamente representado pelas elites dominantes na sociedade brasileira desde 1500, substituindo-se o português pela globalização.”}INE1 (T43, L 10 -15) (58) {INE1“Antes de existir a figura e a função de arlequim, já o evangelho [advertia]INE1 que não se pode servir a dois senhores.”}INE1 (T43, L 10 -15) 3.4. Verbos não-dicendi O processo de gramaticalização das INEs pode ser ativado, também, por verbos nãodicendi do tipo que Maingueneau denomina verbos “desviados” de seu contexto original para definir uma situação de locução. Fiorin (op. cit.) chamou a esse tipo de verbo de 147 “verbos não-elocutários”79, reconhecendo sob essa denominação duas subclasses: os verbos que instrumentalizam o dictum e os “verbos circunstanciais80” Tais subclasses englobariam, segundo Fiorin: a) os verbos que indicam ações realizadas mediante um instrumento, como é o caso de “atacar” em (59): (59) {INE1“... o ex-ministro continua enredado numa costura de alianças que (...) chocam-se com [a própria virulência verbal com que ataca]INE2 a “barganha politiqueira dos outros”.”} INE1 (T24, L 7-12) Importa acentuar que a categorização proposta por Fiorin sobre esses verbos só se justifica se os considerarmos em relação ao contexto discursivo em que se instituem, pois, como se observa em (59), a INE2 é referenciada por toda a expressão destacada e não, apenas, pelo verbo “atacar”. Esses verbos, de acordo com Fiorin, devido ao significado que lhes é inerente, quando utilizados numa situação discursiva como equivalente a um “dicendi”, imprimem, no discurso, uma propriedade descritiva, ou seja, apresentam algumas das características que definem a atividade discursiva. Mas, como se constata em (59), não podemos apelar para “o significado inerente do verbo” para explicar a construção dessa INE2, uma vez que essa instância é referenciada por toda a expressão, principalmente, pelo adjetivo “verbal”, que, se extraído do enunciado, destrói a INE2. 79 Oliveira et alii postulam que, além dos verbos de locução, há outros - os chamados não elocutários que são utilizados como verbos introdutores do discurso (1985, p.91-6). 80 Para ilustrar as subclasses dos verbos não-elocutários, Fiorin (1996, p 80) utiliza os verbos ameaçar e inclinar, respectivamente a) e b) citados acima. São os seguintes os exemplos do autor: “Wanderley de Mendonça chegou ao ponto de ameaçar: - Estou disposto a derrubar esse jumento de estátua eqüestre.” e “O capitão se inclinou interessado: - É isso que eu dizia.”. 148 Continuamos, pois, optando por um critério formal, para identificar e caracterizar os recursos lingüísticos implementados para a CIE. E, sendo assim, temos que admitir que a CIE pode ser ativada por elementos lingüísticos outros, diferentes dos itens lexicais, como é o caso de (59), cuja INE2 foi construída por um sintagma prepositivo “com a própria virulência verbal com que ataca a “barganha politiqueira dos outros”. b) Segundo Fiorin, uma outra classe de verbos não “dicendi” seria constituída pelos verbos que expressam ação ou processo que se realizam ao mesmo tempo que o ato de falar, como “inclinou” em (60), que é um exemplo dado por esse autor.É interessante observar que Fiorin, ao ressaltar essa propriedade dos verbos “que expressam ação”, apoia-se na utilização de recursos próprios da escrita - os dois pontos, o parágrafo e o travessão - para ilustrar que a ação expressa por verbos desse tipo relaciona-se diretamente com o discurso, como ilustra o referido exemplo desse autor (1996, p.: 80): (60) {INE1“O capitão se inclinou interessado: [- É isso que eu dizia.”] INE2.} INE1 Convém ressaltar, no entanto que, numa visão imanentista de “sentido”, poderíamos, sim, dizer, que o verbo “inclinar”, empregado no enunciado acima, descreve uma ação que acontece ao mesmo tempo que o dizer, mas ele não caracteriza a enunciação atribuída ao enunciador do verbo dicendi (o verbo de dizer). Isso porque um ato físico, como o caracterizado pelo verbo “inclinou” neste exemplo, não influencia na significação da situação de fala, tal qual proposto por Fiorin (1996)81. Continuamos defendendo a idéia de que, para explicar as CIEs, temos de contar com fatores contextuais, considerando níveis estruturais mais altos do que o dos itens lexicais. Nesse sentido, contrapomos à tese do autor também o exemplo (61): 81 Após a nossa explanação das “formas de dizer”, apresentaremos uma proposta de reagrupamento dos verbos “dicendi” e, é claro, em conseqüência da abordagem dada a tais formas de dizer, dos verbos nãodicendi. 149 (61) {INE1“Segundo o advogado, a “dó” foi expressada ao deixar o nome de Mendonça de Barros fora da [redação]INE2 da ação. [“Não incluí seu nome por bondade (...)”]INE3”}INE1 (T8, L 17-24) Em (61), a INE2 é ativada pelo nome “redação” que, em nossa proposta, funciona como uma das “formas de dizer”, ativa gramatical e semanticamente propriedades inerentes tanto do verbo “incluir” como do nome “redação”, obtendo-se um efeito de sentido, que poderia ser descrito pela noção de contigüidade entre o dizer e o processo físico descrito pelo dito. Continuamos, no entanto, a nos apoiar em critérios formais para proceder a identificação e explicação das CIEs. Isso porque a gramaticalização e semantização de “incluir” dentro da INE2 só se institui em relação à gramaticalização/semantização da INE instituída em “situação default”, o que obriga o AL1 a recorrer a todo o texto para definir em função de que se articulam os itens lexicais que o compõem: no caso de (61), associar “deixar de fora da redação” a “não incluí seu nome...” 3.5. Deverbais Por deverbais entendem-se todos os nomes - substantivos ou adjetivos - que possuem na língua um correlato de origem verbal. Entre os deverbais, alguns são correlatos de verbos “dicendi”, como conversa, diálogo, sussurro, escritor, escrito, escrita, promessa, desabafo, confissão, acusação, afirmação etc. Esses itens podem, também, criar e ou participar da criação e articulação das CIEs, como podemos contatar em relação aos exemplos abaixo: (62) {INE1“Sob o [argumento] INE2 de que deve se manter isento, o presidente da Câmara, Michel Temer, não dá sinais públicos sobre quando colocará em votação os seis casos de cassação de deputados hoje arquivados em sua gaveta. 150 É uma decisão curiosa. Afinal, também não é isento quem segura processos prontos para serem votados.”}INE1 (T 29, L 43-50) (63) {INE1“Mas a democracia se distingue pela problematização dos fins, reconhecendoos como múltiplos e de compatibilização difícil. Como instrumento por excelência de garantia desse aspecto da vida democrática, não admira que o Judiciário seja alvo freqüente da impaciência do Executivo. Resta a dimensão da [opinião popular]INE2. A popularidade do presidente é parte importante do jogo entre os poderes, condicionando o suposto “rolo compressor” no Congresso e provavelmente calçando a motivação dos desafios ao Judiciário.”}INE1 (T3, L 71-83) (64) {INE1“Há poucos dias, diante de [comentário]INE2 meu a propósito da demora do Congresso [na revogação da lei de imprensa]INE3 imposta no regime militar, fui surpreendido [com manifestação indignada de interlocutor amigo]INE4 pelo fato de o projeto em andamento na Câmara dos Deputados excluir, em princípio, a pena de morte para crimes contra a honra praticados por jornalistas no exercício da profissão.”}INE1 (T11, L 1-10) (65) { INE1 “Quem procurou munição para [críticas]INE2 ficou [com a parte do discurso]INE3 que apontou as altas taxas de juros reais, num contexto onde só um pequeno número de sociedades anônimas abertas consegue rentabilidade anual média acima de 6%.”}INE1 (T16, L25-30) (66) {INE1“Resta a nós meditar e agir sobre tais [propostas]INE2 e, se possível, implantálas o mais rapidamente! Poderão existir outros caminhos para o desenvolvimento nacional e empresarial? Claro que sim. Mas bem poucos terão uma [resposta]INE3 tão rápida e eficiente quanto as “ínsulas estratégicas” de Pedro, O Grande e as da China atual, dentre outros.”}INE1 (T23, L72-79) 151 (67) {INE1“Segundo os [críticos] INE2, uma cláusula do contrato da Companhia Nacional de Produtos Petroquímicos, associação entre a Petrobras e o Grupo Odebrecht, coloca este último em vantagem não só no empreendimento paulista mas em qualquer outro projeto da Petrobrás na área petroquímica.”}INE1 (T25, L8-14) (68) {INE1“Soam extemporâneas e inúteis as [reclamações]INE2 dos ministros candidatos em 1998, que resolveram [explicitar publicamente]INE3 o desejo de desfrutar das benesses dos cargos até a undécima hora. [Repetem]INE4 às escâncaras agora o que há tempos [vinham dizendo]INE5 nos bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até abril, como já [avisou] INE6 o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla, geral e irrestrita.”}INE1 (T9, L 1-5) (69) {INE1“Os [reclames] INE2 , que também existem com menos vigor do PFL, soam extemporâneos porque há algum tempo no próprio governo chegou-se a cogitar de um recuo na reforma, chegando a ser aventada a possibilidade de os ministros-candidatos saírem mesmo todos em abril. Agora, no entanto, o quadro é diferente.”}INE1 (T9, L 2124) (70) {INE1“Rio de Janeiro - Editorial da Folha, no último domingo, fez [considerações] INE2 sobre a dificuldade das novas gerações em consumir os clássicos de nossa literatura.”}INE1 (T31, L 1-5) (71) {INE1“Fato do passado. Só então, num [diálogo]INE2 que se foi acomodando, abrindo espaço para audiência recíproca, pude esclarecer meu ponto de vista, afinal aceito.”} INE1 (T11, L 18-22) (72) {INE1“A [discussão] INE2 sobre a chamada Lei Kandir deve começar repondo uma verdade: nenhum governador de estado, em nenhum momento, no passado ou hoje, deixou de apoiar a desoneração das exportações.”}INE1 (T22, L1-6) 152 (73) {INE1 “O contrato da Petrobrás com a Odebrecht tem sido objeto de [críticas]INE2 tanto pela oposição como por empresários próximos ao Governo.” (T25, L 1-4) (74) {INE1“Entretanto, essas [discussões]INE2 devem fazer parte dos currículos das escolas e não ocorrerem só depois da tragédia consumada.”}INE1 (T6, L 121-123) (75) {INE1“A grande [indagação]INE2 é como possibilitar de modo concreto que países em desenvolvimento, corporações e instituições possam produzir essas altíssimas velocidades sem desequilibrar [“o todo já existente”]INE3.”} INE1 (T23, L 43-48) (76) {INE1“As [declarações]INE2 do ministro de Minas e Energia mostram isto, sem nenhuma dúvida.”}INE1 (T25, L 74-76) (77) {INE1“O [argumento]INE2 principal é sempre o mesmo: não é justo que alguém que pode pagar estude de graça financiado pelo conjunto da sociedade. Aparentemente uma [afirmação]INE3 irretorquível.”}INE1 (T19. L 14-18) (78) {INE1“Quem apoia o governo encontrou mais um motivo nos rasgados [elogios]INE2 do Sr. Plogher às reformas que permitiram, por exemplo, um tratamento diferenciado aos dividendos pagos aos acionistas, ou à estabilidade que permite planejar a longo prazo.” (T16, L 19-25) 3.6. “Sintagmas de elocução” Os “sintagmas de elocução” são, geralmente, constituídos por substantivos que designam uma situação de elocução, mas não são derivados de verbos, como os que foram definidos em 3.5 (os deverbais). É o caso de termos como: tese, lei, cláusula, lição, texto, palavra etc.. Tais termos têm, como referência, um ato de interlocução e funcionam como elementos que o determinam, ou que participam da referência de um sintagma qualquer que semantiza uma situação discursiva. Esses “sintagmas de elocução”, da mesma forma que os verbos “dicendi”, os verbos “não-dicendi” e os 153 deverbais, referenciam as instâncias instituídas em subplanos no interior da instância fundadora do discurso. Além de participarem da referência às instâncias de enunciação criadas no interior da INE1, esses sintagmas podem criar INEs, modalizá-las e promover a articulação das CIEs, segundo o que demonstramos em relação aos recursos explicitados acima. É isso que ilustram os exemplos abaixo: (79) {INE1“A princípio, os partidos que ocupam hoje os cargos poderão indicar substitutos, desde que os nomes combinem com a concepção de dinamismo administrativo. Se chegarem a um acordo, muito bem. A [palavra] usada no Planalto é “parabéns”. Se não, o novo ministério sai de qualquer forma, o mais tardar na última semana de dezembro.”}INE1 (T 9, L 50-53) (80) {INE1“A discussão sobre a chamada [Lei] INE2 Kandir deve começar repondo uma verdade: nenhum governador de estado, em nenhum momento, no passado ou hoje, deixou de apoiar a desoneração das exportações.” (T22, L1-6) (81) {INE1“O [contrato] da Petrobrás com a Odebrecht tem sido objeto de críticas tanto pela oposição como por empresários próximos ao Governo.”}INE1 (T22, L 1-6) (82) {INE1“Segundo os críticos, uma [cláusula] do [contrato] da Companhia Nacional de Produtos Petroquímicos, a associação entre a Petrobras e o Grupo Odebrecht, coloca este último em vantagem não só no empreendimento paulista, mas em qualquer outro projeto da Petrobras na área petroquímica. Ou seja, há um consenso que a abrangência é muito grande no escopo e no tempo, em favor da Odebrecht.”}INE1 (T25, L8-16) (83) “Se o presidente evitou apoiar o [plebiscito] como tal, apesar de falar em [“voz das ruas]”, a consulta popular não só não foi objeto de [clamor] análogo às denúncias correntes de despotismo, mas foi mesmo unanimemente ungida em recurso sacrossanto.”}INE1 (T3, L 96-101) 154 (84) { INE1 “A nova [versão] da Lei de Imprensa, que veio a público na semana que passou, acaba com a pena de prisão para os crimes de [ofensas] praticadas por jornalistas.”}INE1 (T5, L 1-4) (85) {INE1“Se uma [notícia] ofensiva no “The Wall Street Journal”, por exemplo, acarreta a falência de uma empresa do ramo financeiro, por que não pode o jornal defrontar-se com indenizações de vulto, que reparem o dano eventualmente causado e até, como conseqüência, possam vir a ser fator de instabilidade ou falência para a empresa de comunicação?”}INE1 (T5, L 48-56) (86) “Apoiado em [pesquisas] junto a dez escolas, o [editorial] constatou que “aumentam as dificuldades dos alunos em ler [autores] dos séculos passados que vão se tornando incompreensíveis”.(T31, L 5-9) A terminologia “sintagmas de elocução” justifica se, devido ao fato de que, em tais “formas de dizer”, o foco da referência não se situa num item verbal, mas no contexto maior de uma estrutura sintagmática. Insistimos em reafirmar o critério formal que está na base da caracterização e da identificação desse recurso de CIEs e de articulação das INEs que compõem o plano básico de enunciação. A questão apresentada explicita que, na CIE, e é claro, na criação, na referenciação e na articulação das INEs, o falante, levando em conta os fatores definidores da situação de discursivização, ativa as estratégias discursivas de “situação default” e de ativação do sistema lexical. Essa última envolve operações em dois níveis: 1) a seleção de um item lexical: verbo “dicendi”, verbos “não-dicendi”, a utilização de deverbais, cuja referência é construída a partir da sua elocução em relação à INE1; 2) a articulação de itens lexicais no sentido de formar uma construção sintagmática, cuja referência é construída, levando-se em conta o sintagma completo, e não um dos itens que o compõe. 155 Dessa forma, considerando o que dissemos logo acima, os “sintagmas de elocução”, para referenciar as instâncias que criam, estruturam-se como construções complexas, uma vez que obrigam o falante a buscar a referenciação tanto na articulação entre os itens lexicais que a formam, como na referência explicitada pelo enunciado de que fazem parte. Nesses “sintagmas de elocução”, portanto, não há como definir um termo nuclear, pois o conjunto todo é que explicita a referenciação da INE que institui. É isso que ilustramos nos exemplos, a seguir: (87) {INE1“ [“Para usar palavras de FHC]INE2, ele é um moço tosco. Não tem consciência, é imprudente, sem qualificação e indelicado.” “}INE1 (T8, L 30-32) (88) {INE“ Em relação à referência à “idade avançada” de autores da ação]INE2, feita pelo presidente do BNDES, Bandeira de Mello [ironizou].”}INE1 (T8, L 33-36) (89) {INE1“Apenas o sono conturbado, [segundo eles]INE2, já afetaria esse fluxo, o que seria verificável em animais nos laboratórios.”}INE1 (T33, L 17-19) (90) {INE1“Eles [levantam a tese]INE2 de que o estresse afeta o fluxo normal de hormônios responsáveis pelo crescimento..”}INE1 (T33, L 15-17) (91) {INE1“Para um dos autores da principal ação contrária à privatização da Companhia Vale do Rio Doce, Luiz Carlos Mendonça de Barros só não foi [citado em seu texto]INE2 por “comiseração, dó mesmo”.”}INE1 (T8, L 1-6) (92) {INE1“[Essa cláusula]INE2 - será que é constitucional? - talvez isente grande número de empresas jornalísticas de multas mais significativas.”}INE1 (T5, L 71-74) (93) {INE1“[O texto veio acompanhado de reação crítica]INE2 da Associação Nacional de Jornais.” (T5, L 29-30) 156 (94) {INE1 “O contrato da Petrobrás com a Odebrecht tem sido [objeto de críticas tanto pela oposição como por empresários próximos ao Governo]INE2”}INE1 (T25, L 1-4) (95) {INE1“Essa é [uma nova versão da “cláusula social” ]INE2 que muitas nações desenvolvidas pretenderam aprovar no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Se adotada, a OMC ficaria com plenos poderes para aplicar sanções comerciais aos violadores dos padrões trabalhistas.”}INE1 (T1. L 7-13) (96) {INE1“Até então, [a lei que determina]INE2 que o TMA de um benefício previdenciário não poderia superar 45 dias era [letra morta]INE3.”}INE1 (T36, L 54-56) (97) {INE1“Como se lê [na lei nº 9.279/96]INE2, [o recente Código]INE3 da Propriedade Industrial, é patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade ...”}INE1 (T 38, L 35-39) Há casos, no entanto, em que temos expressões como as alistadas a seguir, nas quais o elemento caracterizador de uma situação de discurso é o adjetivo. Isso se aplica no caso dos “sintagmas de elocução”. A “focalização” no adjetivo que compõe esse tipo de sintagma é relativa, pois, apesar de essa classe de palavra possibilitar a referenciação, isso ocorre em função da organização do próprio sintagma por ele formado. (98) {INE1“Dois meses depois do seu telúrico reaparecimento, o ex-ministro continua enredado numa costura de alianças que, além de serem incompreensíveis para o eleitor, chocam-se [com a própria virulência verbal]] com que ataca a “barganha politiqueira” dos outros.” }INE1 (T24, L6-15) (99) {INE1“No primeiro caso, [o da contestação discursiva], o festival de tolices começa na instituição política e chega à Universidade e suas adjacências.”}INE1 (T7, L 13-18) 157 Nos exemplos (98) e (99), acima, para a semantização das INEs formadas pelos “sintagmas de elocução” faz-se necessário que se ativem propriedades gramaticais que liguem uns itens lexicais a outros e, nessa articulação, os adjetivos desempenham um papel fundamental na caracterização da situação discursiva. Em qualquer um dos dois exemplos acima, se tentarmos isolar os termos que os constituem, comprometemos a caracterização de uma situação discursiva. 3.7. Parênteses, aspas, travessões Os parênteses, as aspas, os travessões e os dois pontos são recursos lingüísticos utilizados convencionalmente na escrita. Nesse contexto, são recursos que também indiciam a instauração de instâncias enunciativas, ou indiciam, dentro de uma mesma instância, a modalização de seu discurso, no sentido de que expressam o ponto de vista do enunciador instituído por “situação default”. A utilização de tais recursos realiza-se de formas distintas, conforme o sentido que o locutor de INE1 queira imprimir ao processamento discursivo, ou queira enfatizar um determinado julgamento, numa mesma instância discursiva ou em instâncias diferentes. Assim, por exemplo, em (100): (100) {INE1 “[“O seu pai dá o traço em todas as pesquisas”], [disse]INE2 outro dia, irritado, o deputado Eduardo Magalhães (PFL - BA)...”}INE1 (T 29, L 25-8) A INE2 é instituída pela elocução do verbo “disse” que gramaticaliza e semantiza o discurso entre as aspas como um discurso referenciado, o qual indicia o EN2 como o “indivíduo lingüístico” que o enunciou, num “tempo/espaço” distinto do “tempo/espaço” em que se situa o enunciador da “situação default”. As aspas indiciam também que o enunciado contém as palavras exatas de EN2 numa situação de discurso. Em outras palavras, as aspas em (100) indiciam a existência, no interior da INE1, de um discurso referenciado pela INE2. 158 Em (101), pode-se observar tanto a utilização das aspas indicando essa referência ao discurso citado, como também a sua utilização com a finalidade de modalizar o discurso da INE a que se refere, explicitando, assim, o ponto de vista do enunciador da INE1. Há casos em que as aspas são usadas ora conjuntamente com os parênteses, ora com os dois pontos, explicitando, ainda, mais a referência ao discurso citado, nos moldes propostos pela GT. Para ilustrar os usos desses e dos demais recursos a que este item se refere, apresentamos, a seguir, alguns trechos extraídos de um mesmo texto, os quais evidenciam diferentes formas de referenciar, ou modalizar as INEs: (101) {INE1“Dois meses depois do seu telúrico reaparecimento, o ex-ministro continua enredado numa costura de alianças que, além de serem incompreensíveis para o eleitor, chocam-se [com a própria virulência verbal]INE2 com que ataca a “barganha politiqueira” dos outros. Admitindo-se que Ciro Gomes tenha algo a ver com o PPS (o que já é um favor), salta aos olhos que nada tem a ver com o PT, muito menos com o brizolismo.”}INE1 (T 24, L 6-16) {INE1 “( ...) É pelo menos divertido ver a esquerda, em nome da unidade, conversando em torno da hipótese de se lançar como candidato à Presidência um político que [informa] INE2: “Não tenho tradição de esquerda e nem pretendo ser líder de esquerda.””}INE1 (T24, L 18-24) {“(...) À parte o fato de ser sustentado por forças que julgam desnecessária a apresentação de um plano de governo, um resumo de suas idéias [informa]INE2 que ele [defende]INE3 o “desenvolvimento sustentado nos princípios da democracia, da eqüidade social, da eficiência econômica, do equilíbrio ambiental e da diversidade cultural.” (...)”}INE1 (T 24, L 45-51) {INE1“(...) Assim como os trabalhistas ingleses só chegaram ao poder quando [convenceram]INE2 o eleitorado de que tinham um programa de governo alternativo - e eficaz - a oposição a FFHH só terá espaço quando se fizer entender na [discussão]INE3 dos temas terrenos. (...)”}INE1 (T24, L 61-6) 159 {INE1 “(...) Está certo que Ciro Gomes não queira [expor]INE2 às tribos oposicionistas o fato óbvio de que o PT está a um passo de desarticulação. Pode-se entender também que não queira comprar uma briga com Brizola (coisa de resto inevitável) [dizendo]INE3 que seu apoio, numa eleição federal, é pouco mais que uma irrelevância. São astúcias políticas (ele diria “politiqueiras”) perfeitamente compreensíveis. (...)” (T24, L 80-89) Frisamos que os discursos em destaque acima são usados no texto, ora coordenando as instâncias enunciativas, ora subordinando-as entre si. Observe o exemplo (112), em que temos, basicamente, no aspecto formal, uma representação do chamado discurso direto. Nele há uma estrutura típica de subordinação entre o discurso do enunciador de INE2 e o discurso de EN1, que reproduz literalmente a fala de EN2. Em (101), temos os recursos em questão - os parênteses, as aspas, os dois pontos, os travessões - sendo usados de formas distintas, ao longo de todo o texto82. O emprego dessas formas explicita-se como uma decisão tomada pelo falante, no módulo do Discurso, para a indiciação do processo discursivo, utilizando-se de convenções próprias da escrita. Assim, em relação ao emprego das aspas, observamos que as mesmas delimitam enunciados no interior de INEs já constituídas, citando discursos. Quanto à forma de citação dos discursos aspados, eles podem ou não estar seguidos dos dois pontos, tal qual explicitam as linhas (L 6-16 e 18-24), que repito abaixo sob o exemplo de número (102): (102) {INE1“Dois meses depois do seu telúrico reaparecimento, o ex-ministro continua enredado numa costura de alianças que, além de serem incompreensíveis para o 82 Como pode ser verificado em (113), foram transcritos vários trechos de um mesmo texto e, por esse motivo, foram eles agrupados sob o mesmo número. Mantivemos a notação após cada transcrição para evitar termos que introduzir uma nova referência para identificação dos excertos. 160 eleitor, chocam-se [com a própria virulência verbal]INE2 com que ataca a “barganha politiqueira” dos outros. Admitindo-se que Ciro Gomes tenha algo a ver com o PPS (o que já é um favor), salta aos olhos que nada tem a ver com o PT, muito menos com o brizolismo.”}INE1 (T 24, L 6-16) {INE1 “( ...) É pelo menos divertido ver a esquerda, em nome da unidade, conversando em torno da hipótese de se lançar como candidato à Presidência um político que [informa] INE2: “Não tenho tradição de esquerda e nem pretendo ser líder de esquerda.””}INE1 (T24, L 18-24) Os parênteses e os travessões circunscrevem enunciados justapostos que funcionam como uma observação, um discurso sobre o discurso, num processo metalingüístico pelo qual o EN que está com a palavra fala, comenta, retifica, etc. o enunciado que está produzindo. Dessa forma, lado a lado coexistem discursos que pertencem a uma mesma instância enunciativa, como em (103), ou a instâncias distintas, como em (104): (103) {INE1“(...) Assim como os trabalhistas ingleses só chegaram ao poder quando [convenceram]INE2 o eleitorado de que tinham um programa de governo alternativo - e eficaz - a oposição a FFHH só terá espaço quando se fizer entender na [discussão]INE3 dos temas terrenos. (...)”}INE1 (T24, L 61-6) (104) {INE1 “(...) Está certo que Ciro Gomes não queira [expor]INE2 às tribos oposicionistas o fato óbvio de que o PT está a um passo de desarticulação. Pode-se entender também que não queira comprar uma briga com Brizola (coisa de resto inevitável) [dizendo]INE3 que seu apoio, numa eleição federal, é pouco mais que uma irrelevância. São astúcias políticas (ele diria “politiqueiras”) perfeitamente compreensíveis. (...)” (T24, L 80-89) Em relação ao emprego dos parênteses, baseamo-nos em Jubran (In: Castilho & Basílio, 1996, pp. 411-22) para propor uma descrição de seu uso na escrita, considerando sua 161 utilização no processamento discursivo. Ao analisar como se configura a conversação em termos de organização tópica, Jubran conceitua os parênteses como “fatos textuais que indiciam o processo comunicativo” (p.413).Como outros recursos lingüísticos sua função é explicitar a ação dos interlocutores e, por isso mesmo, “tornam-se elementos intrínsecos ao texto, articulados aos demais componentes textuais, na medida em que põem à mostra a geração desses elementos” (p.413). Sem nos determos em uma descrição mais minuciosa do estudo realizado por Jubran, propomos estender aos demais elementos descritos neste item - as aspas, os travessões a caracterização de Jubran sobre os parênteses. Não devemos nos esquecer, no entanto, de que o trabalho que aqui realizamos restringiu-se a apontar a utilização dos parênteses como indiciadores de instâncias de enunciação, e, em decorrência disso, eles definem-se como alguns dos recursos língüísticos usados na CIE no texto escrito. Quanto aos travessões, podem ser usados nas mesmas condições dos outros recursos descritos neste item, tanto como indiciadores de INEs, quanto como elementos que indiciam discursos modalizantes no interior da INE1. Observe o uso83 deles nos exemplos abaixo: (105){INE1[“- Edgar, vê lá, hein?] INE2 O Edgar era famoso pelas suas gafes. Embora as [negasse.] INE3 [- O que é isso? Pode deixar.] INE4 A mulher ficava em pânico. Depois, [contando] INE5 para os outros ela, ria. [“O Edgar fez outra das dele.”] INE6 Mas na hora ficava em pânico. [- Edgar, por amor de Deus...] INE7 [- Mas que bobagem!”] INE8}INE1 (T46, L 1-10) 83 Estamos limitando-nos a esses poucos exemplos, porque já nos referimos aos usos descritos acima, no item 3.2. 162 (106) { INE1 “Um deles está cobrando, com progressivo entusiasmo, as promessas de saúde, educação, segurança - nem lembro mais os cinco dedos que foram exibidos na mais dispendiosa e sofisticada campanha eleitoral de nossa história.}INE1 (T43, L4-9) Há, claramente, uma situação de interlocução no primeiro enunciado de (105): o leitor que tem conhecimento das convenções escritas sobre o uso dos travessões, no primeiro contato com o texto, já identifica que alguém está nos dizendo algo. Como vimos na caracterização da “situação default” em planos subalternos (em 3.2.1), essa foi uma das formas de construção de uma segunda “situação default” no interior da INE1. Além dessa utilização – a criação de um plano subalterno em “situação default”, indiciando o enunciador que agencia outros enunciadores –, os travessões são usados para indiciar outras INEs, nas quais se referenciam um discurso citado, nos moldes do que se verificou em relação à utilização das aspas. Nesse uso, o travessão vem acompanhado de outros recursos gráficos da escrita (os dois pontos, o recuo de parágrafos) e é introduzido por um verbo “dicendi” ou por um verbo a ele equivalente. Esses usos “mais ostensivos” dos parênteses como índices de interlocução são semelhantes aos usos das aspas duplas e dos travessões de (107) e (108), como se comprova em 109: (107) {INE1“Mas o Edgar só sorriu para a anfitriã, a Noca, e [comentou]INE2, sem qualquer maldade: - Coisa muito boa, hein? “Agora ele vai [perguntar]INE3 se a Noca trouxe da Alemanha, na volta”, pensou a mulher, mas o Edgar ficou firme. A mulher respirou, aliviada..”}INE1 Ao que se refere à forma de esse conjunto de recursos promover a articulação entre as INEs que referenciam, observamos que o discurso incorporado ao discurso de EN1 pode ser construído pelo uso de qualquer um de seus elementos. Vale ressalva em relação à utilização desses recursos na instituição de “situação default” que cria a INE1’, pois tal uso se restringe aos travessões. Embora, do ponto de vista formal, os 163 discursos indiciados por tais recursos possam ser usados ora justapostos, ora subordinados à INE a que se referem, a gramaticalização e semantização dos mesmos orientam o leitor para interpretá-los como índices constitutivos da referência na CIEs. (108) “Seguindo esse raciocínio, Marafon diz que nem seria preciso esperar os 90 dias para voltar a tributar as sociedades. “O governo cumpriu o prazo para evitar brigas na Justiça utilizando esse argumento””. (T 4, L 30-3) (109) “Empenhado na eficiência, é característico de Executivo tender a presumir que os fins da ação do Estado, que ele próprio estipula, são objetivos nacionais inequívocos (“Não pensam no Brasil”) e que a questão é dispor de maneira adequada os meios.” (T 3, L 71 - 78) Chamamos a atenção , ainda, para o fato de que por esses recursos, mas sem a utilização das aspas, EN1 pode se inserir no discurso de uma outra instância, quer para acrescentar alguma explicação ao que vem sendo enunciado, quer para inserir o seu ponto de vista em relação ao discurso do outro e, assim, destacar um discurso modalizante no interior da INE1, como em: (110) “O projeto, porém, mantém alguns parâmetros importantes para a fixação do valor da indenização em caso de ação judicial. Determina que ela deve levar em conta “a extensão do prejuízo à imagem do ofendido (pessoa física ou jurídica, parênteses meu), tendo em vista sua situação profissional, econômica e social”. ( T5, L 14-21) (111) “Mais especificamente, as nossas exportações, por se basearem em custos mais baixos (especialmente de mão-de-obra), estão destruindo os postos de trabalho da Europa e Estados Unidos.” (T 1, 31 - 36) (112) “Enquanto os empresários pedem limites, os jornalistas reclamam deles. Américo Antunes, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenai), considerou muito alta a multa 164 prevista para jornalistas ofensores, de até R$ 50 mil (atenção, não confundir indenização com multa, são duas coisas diferentes). (...) Essa cláusula - será que é constitucional? - talvez isente grande número de empresas jornalísticas de multas mais significativas. Muitas delas, principalmente fora dos grandes centros, podem provar ser insolventes e livrar-se da pena.” (T 5, L 35-42 e 71-4) (113) “O raciocínio vale para todos os segmentos da indústria e do comércio. O que é necessário, no caso das empresas de comunicação (isto sim é muito importante). é fixar regras claras e bastante rígidas para o direito da resposta. Ele é fundamental para evitar injustiças, facilitar correções e evitar que qualquer indivíduo seja eventualmente prejudicado por uma informação incorreta (o que sempre pode acontecer) ou ( o que também pode ocorrer) por perseguições de caráter pessoal ou político.” (T 18, L 99-110) (114) “Foi ela que ajudou a denunciar os abusos cometidos nos tempos de repressão política, a viabilizar a anistia, a resgatar a liberdade democrática (com a volta das eleições diretas inclusive para presidente), a levar a cabo o impeachment de um presidente acusado de corrupção, a denunciar a manipulação de verbas do Orçamento Federal e a estimular a investigação sobre a negociação irregular de títulos públicos estaduais. Ou seja, a mídia tem sido uma espécie de quarto poder que colabora com cada um dos outros três, ainda que denunciando irregularidades a que cada um está sujeito. Este poder não é dos proprietários dos meios de comunicação (o que às vezes imagina, erradamente).” (T 18, L 120-48) 4. Operações no módulo gramatical na CIE Como já mencionado em 3, o módulo Gramatical é um dos responsáveis pela CIE, no discurso. As operações que decorrem de processos nesse módulo estão diretamente 165 relacionadas à ativação de determinadas propriedades gramaticais dos itens selecionados. Uma das propriedades sintáticas dos itens lexicais que instituem INEs é a chamada “recursividade84” que, segundo Perini (1995: 124), promove o “encaixe de estruturas dentro de outras estruturas da mesma classe. Com base nisso, a ativação dos planos subalternos no interior da “situação default”, que propicia a CIE constituinte do plano básico do processo discursivo, caracteriza-se pela ativação de itens lexicais, os quais, recursivamente, possibilitam o encaixe de outras INEs, de outros planos enunciativos no plano base. Nessa perspectiva, as propriedades dos itens que instituem INEs são também responsáveis pela sua criação e sua articulação no âmbito do plano base. Entre as propriedades sintáticas dos referidos itens, a recursividade é de fundamental importância na ativação de instâncias enunciativas. Assim, na instituição do plano base, que é construído pela “situação default”, são ativados, do Léxico, itens com propriedades sintáticas e fonológicas que atendam a exigências do módulo Discursivo, quanto à: 1) construção do tempo lingüístico, através das formas verbais (as desinências modotemporal e número-pessoal) que possibilitam a construção dos tempos/espaços das diversas INEs; 2) utilização de outros itens (ver capítulo 3), que possibilitam a construção do enunciador/tempo/espaço lingüístico e a articulação tempo/espacial pretendida na construção e na articulação das diversas INEs do processamento discursivo em questão; 84 A noção de recursividade foi originalmente desenvolvida por Chomsky ( 1957) numa tentativa de explicar as inúmeras estruturas lingüísticas que podem ser formadas por um falante de uma língua. Perini (1976 e 1995: 124) utiliza-se desta noção, mostrando que esta é uma das propriedades mais importantes das línguas humanas e (...) permite aos falantes produzir um número potencialmente ilimitado de sentenças. 166 3) utilização de outros itens ou sintagmas constituintes do conjunto das “formas de dizer”; 4) implementação de outros recursos necessários à articulação das INEs; 5) implementação de recursos da escrita utilizados na operacionalização de INEs, tais como os parêntesis, os travessões, as aspas. Logo a articulação sintática das INEs pode ser indiciada de diferentes formas no discurso em função das exigências explicitadas na configuração do plano básico, instituído pela “situação default”. 4.1. Formas de articulação da CIE A função de articuladores de INEs define-se, pois, com base no processamento discursivo. Tal fato explicita que essa função pode ser exercida por distintas categorias de recursos gramaticais e não só pelas conjunções, advérbios e pronomes relativos como postula a GT. De acordo com este postulado da GT, dentre os articuladores mais utilizados pelos escritores está o “que”, cujo uso pode estar diretamente relacionado aos verbos “dicendi” e, em alguns casos, aos verbos “não dicendi”. (115) “Disse-me ainda Florspanca que o cheque encerrando a dívida já saiu de sua conta. Mas o documento de quitação só deve chegar às suas mãos dentro de dois ou três meses. Contou-me também que, outro dia, na fila da Caixa, uma funcionária corpo mole mandou uma pobre cliente tirar “xerox autenticado”.” (T 32, L 43 - 51) (116)“O magistrado, em seu arrazoado, afirma verdades indiscutíveis, ao mesmo tempo em que, infelizmente, deixa de fazer reflexão mais profunda para, com o peso de seu múnus, provocar a autocrítica do judiciário, abrindo alamedas mais amplas para o reconhecimento de sua dignidade e do papel insubstituível que lhe confia o estado democrático e de direito.” (T42, L 6-14)Os exemplos abaixo ilustram isso: 167 (117) “Temos, ainda, a questão da enxurrada de medidas provisórias. Mas a enxurrada flui nas brechas de uma legislação permissiva e com o apoio ao menos tácito do Congresso.” (T 3, L 40 - 44) (118) “Os fazendeiros, que não são mais obstáculo, insistem no cumprimento da lei e se sentem objeto de pressão política injustificável, pois só querem continuar a produzir e em paz, o que, aliás, têm feito com sucesso, apesar de enormes dificuldades. Precisamos, pois, de grande discussão e esclarecimento nacional sobre a questão agrícola e agrária, da qual a reforma agrária é um pedaço - ainda que, no momento, agudo e preocupante.” (T 2, L 41 - 51) (119) “Quanto ao Congresso, parte importante das preocupações manifestadas se dirige, sobriamente apreciada, ao fato simples de que o presidente erigiu ampla base de apoio parlamentar. Ora, o controle pelo presidente dos recursos institucionais de poder que a democracia lhe faculta não significa ameaça à democracia. Não há por que entender a idéia da separação de poderes em termos de hostilidade permanente entre o Executivo e o Legislativo.”(T 3, L 15 - 26). (120) “Enquanto isto - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente desarticuladas.” (T 14, L 43 - 47) (121) “A Lei de Imprensa que está em discussão no Congresso pretende oficializar o preço da honra alheia. Fui processado por um promotor e condenado a pagar-lhe 200 salários de sua função, quase 200 mil. Depois de ter perdido nas instâncias estaduais, ganhei no STJ e nada lhe paguei. De forma que, para correr risco, agora só comprarei briga com quem ganhar menos de dois salários mínimos.” (T 45, L 38 - 46) (122) “Se uma notícia ofensiva no “The Wall Street Journal”, por exemplo, acarreta a falência de uma empresa do ramo financeiro, por que não pode o jornal defrontar-se 168 com indenizações de vulto, que reparem o dano eventualmente causado e até, como conseqüência, possam vir a ser fator de instabilidade ou falência para a empresa de comunicação.” A utilização de elementos tradicionalmente coesivos, concebido por nós, em conformidade com Koch (1997), como “operadores” discursivos, tem um papel importante na configuração de instâncias enunciativas, embora, não se caracterizem, de acordo com o que propomos, neste capítulo, como únicos elementos responsáveis pela articulação sintática das INEs. Como se observa acima, o uso de tais articuladores varia de acordo com as condições definidas no momento da enunciação, o que acarreta, em determinadas situações, um emprego bem distinto para formas lexicais que aparentemente são as mesmas. Acrescentamos, pois, à classe das conjunções, outros elementos coesivos, como a classe dos advérbios e outros itens lexicais que servem como “shifters” que indiciam a forma de articulação e construção das INEs utilizadas pelos falantes, como ilustram os exemplos abaixo: Colocamos num mesmo conjunto tais elementos, pois não é relevante aqui separá-los em termos de sua classificação gramatical. Esclarecemos, no entanto, que as distinções entre os mesmos se fará em termos de sua utilização, levando-se em conta que 1. as conjunções relacionam entre si as INEs que caracterizam o enunciado, principalmente aquelas indiciadas por verbos “dicendi”. Nesse sentido, elas podem ocorrer no interior da INE1, ligando entre si os diversos planos que caracteriza o plano básico de enunciação. 2. os advérbios, dêiticos por excelência, acrescentam, de acordo com o seu uso, informações que, além de orientar o leitor sobre a localização espaço/temporal que ocupam os enunciadores, funcionam como modalizadores do discurso. 169 3. os marcadores discursivos, itens lexicais, sem classe gramatical definida, nos quais o interlocutor se apóia. Esses são sintaticamente independentes, mas, semanticamente, acrescentam ao discurso informações modalizantes que revelam a atitude do falante em relação ao enunciado que produz. Observemos como a escolha de um determinado “operador” pode modalizar o discurso que referencia: (123) “São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se páreo para as de sexo explícito. Talvez para as de perversidade sexual.” (T 6, L 74 - 76) a. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de sexo explícito. Talvez (sejam/fossem páreo) para as (cenas) de perversidade sexual. b. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de sexo explícito. Com certeza, (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual. c. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de sexo explícito. Indubitavelmente, (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual. d. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de sexo explícito. De fato (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual. e. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de sexo explícito. Evidentemente, (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual. Acrescentaríamos na classificação de ‘operadores discursivos” outros itens lexicais, como: agora, assim, até, então, por exemplo, inclusive. Esses itens lexicais marcam a instância enunciativa em que estão inseridos, sem, contudo, estar sintaticamente subordinados ao enunciado. Corroboramos, portanto, o postulado de Risso et alii (1996) 170 segundo o qual esses itens lexicais, denominados por esses pesquisadores “marcadores discursivos”85, evidenciam a organização textual e o processo discursivo. A análise de Risso et alii (1996:55-6) baseia-se nas seguintes propriedades desses itens: “a) Atuam no plano da organização textual-interativa (...); b) Operam no plano da atividade enunciativa e não no plano do conteúdo; por isso mesmo, são exteriores ao conteúdo proposicional (...). Entretanto, asseguram a ancoragem pragmática desse conteúdo, ao definirem, entre outros pontos, a força ilocutória com que ele pode ser tomado, as atitudes tomadas em relação a ele, (...) Codificam, portanto, uma “informação pragmática” (FRASER, 1990)86. Nessa qualidade estabelecem-se como embreadores dos enunciados com as condições da enunciação, apontando para as instâncias produtoras do discurso e definindo a relação dessas instâncias com a estrutura textualinterativa; c) Manifestam um processo de acomodação do significado literal da(s) palavra(s) que os constituem à sinalização de relações dentro do espaço discursivo. (..); d) ... são unidades independentes, que, portanto, não se constituem como parte integrante dessa estrutura; (...)” (124) “Santos, aliás, só ficará até lá porque o líder do governo na Câmara Luís Eduardo Magalhães, não aceitou acumular missões de varejo político que , em janeiro, o governo espera que sejam apenas residuais. Devido ao recesso parlamentar, ao início da campanha eleitoral dos estados e ao abandono temporário das votações das reformas constitucionais, à exceção talvez da tributária.” (T9, L31-33) (125) “Ora, o controle pelo presidente dos recursos institucionais de poder que a democracia lhe faculta não significa ameaça à democracia.” (T3, L 19-22) (126) “Só então, num diálogo que se foi acomodando, abrindo espaço para audiência recíproca, pude esclarecer meu ponto de vista, afinal aceito.” (T11, L19-21) Em suma, o uso dos diversos articuladores do discurso evidenciam a necessidade de um estudo mais detalhado do conjunto de “operadores” como recursos lingüisticos que, no e 85 Só neste momento utilizaremos o nome “marcadores discursivos” uma vez que nos decidimos, no capítulo 2 pelo termo usado por ILARI (1990), “operadores discursivos”, a nosso ver, é mais abrangente em termos de explicitar as operações feitas pelos interlocutores em uma atividade lingüística. 86 FRASER, B. “An approach to discourse markers”. In: JOURNAL OF PRAGMATICS 114, North Holland, 1990. 171 pelo discurso, são utilizados para articular as INEs. Isso é importante para melhor explicitar a articulação das INEs, num processamento discursivo, e caracterizar a polifonia como propriedade definidora do discurso. É importante lembrar, ainda, que, nessa perspectiva, os parêntesis, as aspas, os travessões, os dois pontos se caracterizam como recursos de escrita - agrupam-se no mesmo conjunto desses ditos “operadores” e, como tal, podem ser caracterizados também como “operadores discursivos”, por possibilitarem a articulação das instâncias enunciativas instituídas no interior da INE1. 4.1.1. Uso da dêixis espaço/temporal Além da dêixis explicitada nas formas verbais, podemos encontrar como elementos caracterizadores da dêixis de tempo e/ou de espaço, outros itens lexicais ou sintagmas, como: (127) “Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel. ]”(T14. L 28-33 Em (127), o operador discursivo quando ilustra bem o multiprocessamento temporal, podendo ser substituído por outros operadores que, assim como ele, possibilitam a percepção de uma simultaneidade de tempos que se cruzam e se fundem num domínio, num escopo, por eles determinado. Assim, (127) possibilita as seguintes substituições do operador quando: A. Hoje, toda vez que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel. 172 B. Hoje, sempre que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel. C. Hoje, no momento em que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirigese ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel. D. Hoje, na hora em que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel. E. Hoje, assim que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel. O mesmo processo pode ocorrer em relação ao “shifter” “hoje” em (127) ou, ao “enquanto isto” em (128): (128)“Enquanto isto - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente desarticuladas”. A. Simultaneamente - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente desarticuladas. B. Ao mesmo tempo- enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente desarticuladas. 173 C. Paralelamente- enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente desarticuladas. (129) “Pois aqui quero, neste instante, apropriar-me da parcela de participação nessa epopéia, a mim devida por direito do acaso.” (T35, L30-32) Os dêiticos acima indiciam o aqui/agora da enunciação como constituinte do plano base e dos outros tempos instituídos a partir do presente da situação discursiva. Como “indivíduos lingüísticos” criados na e pela enunciação, o jogo de tempos/espaços das INEs articulam-se com o tempo/espaço explicitado na instância fundadora do discurso. É importante ter em mente que as operações realizadas no módulo Gramatical estão diretamente relacionadas à operação de recursividade, entendida, aqui, como uma operação básica da constituição de um texto e, em conseqüência, da CIE. A sua utilização, portanto, não se restringe aos limites da sentença como tradicionalmente se concebe. Consideramos que esta propriedade é inerente aos “shifters” e, como tal, ela é ativada no e pelo processamento discursivo. Em virtude da perspectiva de análise adotada neste trabalho, expusemos como a GT trata a instauração de vozes no texto, enfatizando que, para ela, os recursos lingüísticos utilizados para esse fim podem ser analisados num conjunto finito e restrito de recursos que se restringem aos chamados Discurso Direto, Discurso Indireto e Discurso Indireto Livre. Essa abordagem não se sustenta, tendo em vista que as “Formas do Discurso87” devem ser consideradas levando-se em conta o conjunto das estratégias de CIE, cuja articulação está diretamente relacionada ao processamento dêitico. Em decorrência, pois, da forma como concebemos a CIEs , a classificação e a distinção das “Formas de Dizer” postuladas pela GT, diluem-se e mostram-se insuficientes para a apreensão do “discurso do outrem”. 174 5. A ativação do módulo semântico na CIE Como se observou em relação à seleção lexical no módulo discursivo, a CIE instaura-se em função da situação de enunciação e, nesse sentido, não há como falar em regularidades, relativamente à obediência de normas rígidas dos manuais de gramática, na ativação do Léxico, nem em restrições como as demonstradas na caracterização das “Formas de Dizer”, nos moldes da GT. As regularidades verificadas no corpus são estabelecidas no e pelo discurso, haja vista as ocorrências verificadas nos textos jornalísticos escritos no português contemporâneo, como, por exemplo, a construção de uma instância enunciativa baseada na utilização de parênteses, aspas, travessões que ora se dá numa instância, ora se apresenta por justaposição em outras INEs, como em (130) e (131), abaixo: (130) “É pelo menos divertido ver a esquerda, em nome da unidade, conversando em torno da hipótese de se lançar como candidato à Presidência um político que informa: “Não tenho tradição de esquerda e nem pretendo ser líder de esquerda.” (T24, L 1824) (131) “Está certo que Ciro Gomes não queira expor às tribos oposicionistas o fato óbvio de que o PT está a um passo de desarticulação. Pode-se entender também que não queira comprar uma briga com Brizola (coisa de resto inevitável) dizendo que seu apoio, numa eleição federal, é pouco mais que uma irrelevância. São astúcias políticas (ele diria “politiqueiras”) perfeitamente compreensíveis.” (T24, L80-88) Ao lado dessa utilização que é formalmente explícita, há casos em os discursos entrecruzam-se, apesar das marcas sintáticas explícitas como evidencia (132). A identificação de um discurso do outro, nesse caso específico, manifesta-se 87 “Formas do Discurso” é a referência ao título que demos ao item em que abordamos a citação do “discurso de outrem” na perspectiva da GT. 175 sobrecarregando o módulo Semântico através de operações que envolvem o contexto de produção discursiva. (132)“Não há, portanto, como negar que a trajetória de crescimento moderado admitida pela atual política econômica (...) cobra um alto preço do ponto de vista social.” (T26, L 13-17) O exemplo (132) explicita a semantização da subordinação de INEs, através de índices de subordinação – a ativação da subordinada adverbial reduzida de infinitivo “como negar”, instituída pela “situação default” e a reduzida de particípio “admitida”– e dos tempos verbais operacionalizados no módulo Gramatical. As operações realizadas no módulo Semântico efetivam-se, não só a partir das construções no módulo Gramatical, mas também a partir da ativação das propriedades semânticas dos itens lexicais e sua articulação nos enunciados, que propiciam diferentes processos de construção de efeitos de sentido. No módulo Semântico, a referenciação das INEs e de sua articulação deveria merecer uma análise lingüística mais acurada, principalmente em razão de o processamento dêitico implicar operações de semantização do tipo “produção de inferências”, trabalho com “pressuposições” e outros “implícitos” que são importantes para o estudo da referenciação de INEs. Esse estudo, como já foi dito, ultrapassa o âmbito do objeto deste nosso trabalho. Não trataremos aqui sequer do processamento de articulação “Tópico/Comentário”, fundamental para a articulação das INEs. 5.1. A modalização na CIE Embora não seja objeto de nosso estudo, consideramos relevante, neste momento, explicitar o conceito de modalização com que operamos, haja vista que, na perspectiva da Teoria Modular, a ativação dos recursos lingüísticos de CIEs envolvem a operacionalização dos mesmos nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico. Além 176 disso, a modalização, como postulada por Koch (1986:228), constitui-se como um recurso lingüístico utilizado pelo falante para “ ... marcar a distância relativa em que se coloca com relação ao enunciado que produz, seu maior ou menor engajamento com relação ao que é dito, determinando o grau de tensão que se estabelece entre os interlocutores.” A modalização, assim entendida, permite-nos,então, reduzir a classificação de KerbatOrecchioni (1980) e Fiorin (1996) sobre os verbos “dicendi” a dois grupos apenas: os “dicendi” descritivos e os “dicendi” modalizadores, como ilustra o quadro abaixo: Verbos “dicendi” descritivos descrição pura do processo de enunciação ( dizer, propor, afirmar, avisar, responder, concluir, anunciar contar, vociferar, denunciar, reafirmar...) modalizadores descrição do processo de enunciação e referência ao julgamento atribuído ao enunciador de qualquer instância de enunciação (lamentar, desabafar, repetir, julgar, criticar, queixar-se , negar, questionar, reclamar, ponderar, sussurrar...) FIGURA 10 - A figura 10 ilustra uma proposta, provisória, de reclassificação dos verbos “dicendi”, levando em conta a significação de tais verbos e, em extensão, dos verbos “nãodicendi”. No primeiro grupo, estariam os verbos ilocucionários e os não-ilocucionários, que fornecem as características da enunciação sem trazer para a cena enunciativa as informações que explicitam o julgamento do seu enunciador. Há de se notar que essa reclassificação em descritivos e modalizadores não está muito distante da proposta de Kerbat-Orecchioni (1980). Porém ela alarga o conceito do que foi chamado de verbos 177 que fornecem “informações apreciativas”88. Consideramos que tais verbos têm uma dupla propriedade, pois, ao mesmo tempo que indicam julgamentos atribuídos a seus enunciadores, trazem para a cena enunciativa informações sobre a forma utilizada para dizer o que se diz. Isso posto, não iremos manter a classificação provisória aventada na Figura 10. Defenderemos o tese de que, na perspectiva de modalização que estamos adotando, não faz sentido falar em subclassificação dos verbos “dicendi”. A classificação provisória, então proposta, evidenciou o fato de que : a) tal como acontece com as classificações a que nos referimos anteriormente, no item 3, ela baseia-se apenas em critérios semânticos; b) ela mostra que uma classificação semântica dos verbos dicendi, e em extensão do conjunto de recursos por nós identificados como “formas de dizer”, pode ser reduzida a duas classes, se o critério adotado for o da modalização. Em outras palavras, o que mostra a classificação provisória proposta na Figura 10 é que há modalidades de semantização das INEs que podem ser estudadas de forma mais ampla, sem se restringir a uma classificação dos “dicendi”, se tomarmos a modalização como um fenômeno mais amplo do processamento discursivo. A questão básica, então, na modalização das CIEs, reside no fato de o falante utilizar, no processamento discursivo, mais ou menos os recursos dêiticos, que se gramaticalizam em função de referenciar, no módulo Semântico, um grau maior ou menor de modalização das INEs constitutivas do discurso. 5.1.1 Modalizadores do discurso e semantização de INEs A utilização da dêixis pessoal, temporal e espacial está estreitamente relacionada com a escolha que o falante faz em relação à forma de CIE, pois, ao mesmo tempo em que ele se constrói como um dos enunciadores de seu texto, já se situa num espaço e num 88 Cf. Figura 9 apresentada no item 3.3 deste capítulo. 178 tempo. Em relação à instituição dos tempos enunciativos, Neves (1996) levantou a hipótese de que uma das formas de modalização, no discurso, está diretamente relacionada à escolha das desinências modo-temporais utilizadas pelo falante para referenciar o jogo de tempos enunciativos, como em . (133) “A estabilidade da moeda brasileira foi conquistada graças à abertura às importações e à ancora cambial que, logo no início, fez o real valer mais que o dólar, o ritmo da abertura à s importações tem sido revisado. Quanto à política cambial, mudou a forma, não o conteúdo. Primeiro houve a valorização com relação ao dólar. Depois, houve atraso na correção do câmbio comparada à inflação. na fase mais recente, a opção do governo é reduzir, ou mesmo eliminar, a longo prazo, a defasagem cambial. Ainda, segundo Neves, o emprego de um determinado embreante em detrimento de outro define a modalização pretendida pelo seu enunciador e, em conseqüência, afetará a organização sintática a ser dada ao enunciado, como podemos observar em (134), abaixo: (134) “Talvez, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações.” (T 5, L 925) a. É possível que, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações. b. Possivelmente, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações. c. É provável que, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações. 179 d. Provavelmente, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações. A gramaticalização dos elementos dêiticos de (134) (“talvez”, “em alguns casos”, e da desinência modo-temporal do verbo “amplie”) são semantizados para referenciar o discurso instituído pela “situação default” como uma possibilidade, indiciado o ponto de vista de EN1 em relação ao discurso de um EN referenciado numa outra INE. Dessa forma, com a semantização da desinência do modo subjuntivo, o falante teve que optar por um modalizador cujas propriedades gramaticais referenciassem, ao ser semantizadas, um discurso cujo significado situa-se no mundo das possibilidades e não no da certeza. Deve-se atentar para o fato de que, na base da construção da referência, está a semantização do tempo/espaço da enunciação – referenciado como o presente, o aqui/agora do discurso - instituída por uma operação “default” e cujo locutor é semantizado como EN1. Assim, mesmo que esses “indivíduos lingüísticos” não estejam marcados morfofonemicamente, eles são referenciados como índices pertencentes ao plano base: aquele que se enuncia “eu”, o faz de um “lugar” e de um “tempo”. Esses “shifters” são operacionalizados no módulo Gramatical pelo sistema dêitico e no módulo Semântico indiciam-se como fatores definitórios do momento em que se realiza o ato discursivo. No entanto, por decisões do falante definidas no módulo Discursivo, pode-se criar outros tempos, a partir do presente da enunciação. Esses tempos, que caracterizam os subplanos enunciativos, são semantizados a partir de índices, pertencentes ao sistema dêitico, deixados no enunciado por operações do módulo Gramatical. As operações realizadas no módulo Semântico indiciam tais pistas como constitutivas do conjunto de referências necessárias para se construir a articulação das INEs ao plano base de enunciação. 180 Essas operações no módulo Semântico possibilitam a construção de um jogo de “tempos” lingüísticos estabelecidos em função do tempo da enunciação. Em outras palavras, a escolha e a articulação dos tempos, no processamento discursivo, pode ser utilizada como um dos recursos de modalização do discurso. Em seu estudo sobre a modalização, Neves (1996:194) mostra-nos que “a modalização lingüística ocorrente em enunciados efetivos de uma língua e a modalização lógica têm diferente natureza.” Enquanto os lógicos concebem a modalização com base na distinção do dito e do modo de dizer e na sua dupla orientação em termos de conceituação, o que é do conhecimento e o que é da conduta do falante, dentro de um ponto de vista do funcionamento da língua, a modalização explicita a relação daquele que enuncia com o seu enunciado. Nesse aspecto, a abordagem pragmática concebe a modalização como um dos recursos utilizados pelos enunciadores para expressar sua atitude em relação ao que se enuncia. Também de acordo com Neves, “muitos meios se usam para os mesmos fins” (1996:166). Assim, as decisões do falante, no módulo Discursivo, sobre categorias diferentes de itens lexicais, sintagmas e outros recursos lingüísticos (as desinências modo-temporais, os parênteses, as aspas, etc.) ativados do Léxico são indiciados por operações no módulo Gramatical e podem ser usados como reveladores da modalização do discurso de EN1, por operações no módulo Semântico. Isso pode ser ilustrado, nos exemplos abaixo, pelo emprego dos itens em negrito: (135)“Não se deve considerar irrelevante o fato de cerca de 70% das “empresas mortas” terem apenas dois empregados e 10% mais de cinco contratados.” (T13, L 1316) (136)“Impressiona o grau de desconhecimento do real funcionamento do mercado de trabalho no Brasil por aqueles que, em vez de informar, pretendem denunciar os 181 elementos de rigidez impostos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) num ambiente de grande escassez de empregos.” (T37, L 1-7) (137) “Achava que o verbo não pode reger coisa.” (T40, L 40) (138) “Marafon entende que “a incidência já é uma revogação da isenção”...” (T4, L 24) (139) “Acredito sim, naquilo que é cientificamente testado e seriamente apresentado nos locais e ocasiões apropriadas para tal.” (T43, L 54-57) (140) “Há exceções, evidentemente - e Tarso Genro, em que pese sua conversa engomada, é uma delas.”(T7, L 39-43) (141) “O primeiro é a lei vigente, instrumento de arrocho, torneado pela ditadura, contra a liberdade de imprensa, que não é um direito do jornalista, como erradamente se pensa, mas da própria sociedade para a prática do autogoverno.” (T11, L 33-38) (142) É igualmente inaceitável a proposta do estabelecimento de multas para os meios de comunicação sem fixação de um teto ou limite. (T18, L 70-73) (143) “Jospin precisa convencer os franceses, depois o resto da Europa principalmente a Alemanha, que no ano que vem também escolhe a sua alternativa - e depois o resto do mundo de que seu capitalismo com cara de gente é viável, e que a lógica americana não é uma fatalidade nem aqui nem em qualquer outro lugar, leiase o Brasil.” (T20, L 5-12) (144) “Hoje, a economia avança a um ritmo asiático (8% de crescimento no primeiro semestre) e o desemprego, embora ainda brutalmente elevado (16,1%), é dois pontos inferior a 95.” (T27, L 17-21) 182 (145) “Ninguém conseguiu provar que tais medidas contribuam efetivamente para gerar empregos, pagar bons salários e manter as crianças na escola.” (T1, L 62-5) (146) “É perdoável errar o capítulo mais difícil da sintaxe da língua portuguesa - a regência.” (T 40, L 1-3) (147) “Quanto ao voltei novamente, o verbo voltar significa ir e vir pela segunda vez. É, pois, correto o emprego de novamente ou de novo.” (T40, L 39-42) (148) “É necessário esclarecer e debater o assunto para que a opinião pública, o juiz numa democracia, autorize e legitime o Legislativo e o Executivo nas suas ações.” (T2, L 33-6) (149) ”É mais do que evidente que este aspecto da lei coloca espadas sobre a cabeça dos jornalistas”. (T 18, L 73 - 75) (150) “Certo que algumas experiências, e muitos dos métodos adotados, naufragaram na demagogia e na violência.” (T 44, L 27 - 29) (151) “Claro que as causas são complexas, se bem que uma delas aflora com certa facilidade.” (T42, L 25 -27) (152) “Claro que sempre se poderá dizer que a eleição de domingo não põe em jogo o principal (a Presidência), o que permite ao eleitor brincar de voto de castigo ao governo, sem o risco de mudanças fundamentais no jogo.” (T 27, 25 - 30) (153) “A verdade é que aplica-se à Argentina de 1997 o que o general Médici dizia do Brasil, um quarto de século atrás: o país vai bem, o povo vai mal.” (T 27, 34 - 37 183 (154) “A defesa da elevação das condições de trabalho nos países pobres, portanto, nada tem de humanitária. Ao contrário, é mais um lance de deslavado protecionismo. Ela visa, no fundo, encarecer nossas exportações.”(T 1, L 37 -41) (155) “Interessa ao público e também aos veículos, na minha opinião, que haja mais responsabilidade.” (T , L 77-9) (156) “No meu juízo, a prescrição ou sugestão de pena de cadeia, no Brasil atual, anima-se na irreflexão ou no sentimento sádico.” (T 11, L 74-7) (157) “Afinal, será que o Primeiro Mundo está com medo do Terceiro Mundo? É isso que a OIT pretende?” (T1, L 78 - 80) (158) “Como o arlequim da peça famosa, ele também prometeu servir a outro senhor, o qual pode ser esquematicamente representado pelas elites dominantes na sociedade brasileira desde 1500, substituindo-se o português pela globalização.” (T43, L 10-15) (159) “Os reclamos, que também existem com menos vigor do PFL, soam extemporâneos porque há algum tempo no próprio governo chegou-se a cogitar de um recuo na reforma chegando a ser aventada a possibilidade de os ministros-candidatos saírem todos em abril.” (T9, L 21-24) (160) “Saí fora, mas plantei uma semente, observação que já havia publicado na minha coluna do “JT”: ...” (T35, L 43-45) 6. A CIE e o módulo discursivo De acordo com o exposto neste capítulo, a CIE está diretamente relacionada às operações de ativação de instâncias enunciativas, que se configuram pela inserção de uma nova situação de interlocução, resultando, pois, na indiciação da enunciação, caracterizada pelo módulo discursivo. A ativação desse módulo possibilita a instituição 184 de planos discursivos distintos, cada um constituído pelo seu próprio sistema de referência – o seu “aparelho formal da enunciação”. Assim, cada instância é construída em torno de um enunciador que “fala” para um enunciatário, estando ambos referenciados pelo tempo/espaço interno à instância de enunciação em que se inserem. Destacamos, no capítulo 2, que os módulos do discurso seriam apresentados separadamente, apenas por motivos metodológicos. Nesse momento, no entanto, retomamo-los como parte de um sistema único, a partir do qual se pode conceber a situação de interlocução como a base de construção de instâncias enunciativas, de CIEs, e de sua referenciação. Nesse sentido é que postulamos, com Castilho (1998), que a CIE resulta de operações de ativação dos módulos Discursivo, Sintático e Semântico intermediados pela ativação do Léxico, num movimento simultâneo. As operações no módulo Gramatical explicitam as “pistas” para a construção de sentidos, pois o “O leitor lê em planos, em instâncias de enunciação (e na articulação entre planos e instâncias), daí a impossibilidade de se interpretarem os tempos verbais de uma forma convencional.” (Lopes, 1998:159). Além disso, a articulação sintática (e a semântica) na CIE evidenciou que todo e qualquer item lexical deve ser analisado levando-se em a situação de discurso. Na intermediação do sistema lexical com os módulos lingüísticos, formando um sistema único, é que se caracteriza o papel do processamento dêitico na instituição da polifonia no discurso. As operações realizadas no módulo Semântico operacionalizam a ativação das propriedades semânticas do item lexical selecionado e promovem a construção do sentido na situação discursiva. A construção do sentido não é possível sem o processamento dessas propriedades a partir de operações dos dois outros módulos lingüísticos. 185 A Teoria Modular, na visão de Castilho (1998), possibilita constatar que a sintaxe e semântica de um texto evidenciam uma pluralidade de usos do léxico que fogem às “regularidades” postuladas pela GT. A CIEs, em conseqüência disso, envolve essa pluralidade de uso dos itens lexicais. Essa pluralidade, no entanto, não impede que se detectem regularidades no processamento discursivo. As regularidades, relativas ao processo de CIEs identificadas nos textos jornalísticos analisados, apontam para a importância de se considerar uma sintaxe e uma semântica integradas ao discurso, ou seja, à situação de interlocução. A configuração da “situação default” – INE1 constituinte do plano base - evidencia que a construção de outras instâncias enunciativas são engendradas a partir das coordenadas fornecidas no e pelo plano base ( a INE1). O sistema de referência da INE1 constitui a diretiva a partir da qual se constroem as múltiplos INEs com seus respectivos enunciadores/tempos/espaços enunciativos. Com base nas regularidades no processo de CIEs apresentamos, a seguir, a taxionomia dos recursos lingüísticos utilizados pelos falantes para constituir a si próprio e/ou a outros falantes como enunciadores, “indivïduos lingüísticos”, de seus textos no processamento discursivo 7. Taxionomia das estratégias discursivas de CIEs Um dos objetivos propostos, neste estudo, é a construção de uma taxinomia, para explicitar quais recursos lingüísticos constituem-se como estratégias empregadas pelo autor de textos para se construir como enunciador e a outros como enunciadores de seu texto escrito. Nesse sentido, a análise empreendida nesta pesquisa evidenciou que 1. a CIE está diretamente relacionada às decisões tomadas pelos falante no módulo Discursivo, uma vez que a situação de interlocução é fator determinante na operacionalização dos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico, com vistas a ativar, no Léxico: 186 1.1. as propriedades gramaticais e semânticas dos itens lexicais; 1.2`. as formas de articulação desses itens no discurso. 2. as operações no módulo Gramatical definem-se basicamente pela ativação das propriedades gramaticais dos itens lexicais, considerando: 2.1. a sua configuração formal em um item lexical, ou em um sintagma; 2.2. a sua articulação gramatical a partir das relações explicitadas no enunciado. Em relação à ativação das operações realizadas em 2.1, são definidas as estratégias de gramaticalização do plano básico pela “situação default” e dos planos subalternos pela ativação de um item lexical e/ou a combinação desses, com fins a constituir uma estrutura sintagmática para indiciar a CIE. Dessas operações resultam: 2.1.1 a caracterização do plano básico, indiciado como o eu/aqui/agora da enunciação; 2.1.2 a caraterização dos planos subalternos em decorrência das coordenadas definidas no plano básico; 2.1.3. a caracterização das “formas de dizer” pela ativação de um item lexical, ou a ativação de um conjunto desses itens, com objetivo de indiciar o discurso. A articulação gramatical, referida em 2.2, define-se em função das estratégias implementadas em 2.1, para que o leitor explicite como são gramaticalizados os itens e/ou sintagmas ativados no processamento discursivo. Enfim, revelam-se as formas de organização do discurso, relativas à organização gramatical dada ao enunciado. . 3. as operações no módulo Semântico definem-se basicamente pela ativação das propriedades semânticas dos itens lexicais, considerando 3.1. a construção da referência da “situação default”, visando a sua interpretação como o plano básico de CIE, que a situa como o presente da enunciação; 3.2 a identificação do jogo de “tempos” e “planos enunciativos” visando à articulação desses tempos e à referenciação dos discursos que os caracterizam. como subordinados a uma instância básica; 187 3.3. a construção da modalização, visando a um distanciamento maior ou menor do falante, construído em “situação default”, em relação ao discurso por ele instituído. Essas operações estão diretamente relacionadas à semantização das propriedades ativadas nos recursos lingüísticos no módulo Gramatical, com vistas a possibilitar a interpretação das informações gramaticalizadas na materialidade dos enunciados. Em suma, tais operações nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico explicitam que as estratégias de CIEs, de fato, estão relacionadas a uma utilização maior ou menor dos recursos dêiticos que referenciam e articulam as instâncias enunciativas dos planos subalternos à instância fundadora do discurso. 7.1. Estratégias discursivas de CIEs Tendo em vista a multiplicidade de recursos dêiticos utilizados pelos falantes para indiciar mais ou menos os enunciadores de seus textos, no processamento discursivo, definimos apenas duas estratégias básicas de CIEs que revelam como se dá a intermediação do Léxico na operacionalização dos módulos lingüísticos. A primeira delas é a “situação default”, estratégia discursiva que gramaticaliza e semantiza o autor de textos como um “indivíduo lingüístico”, situado num tempo/espaço também lingüístico, a partir do qual se constrói o conjunto de referências do texto. A segunda estratégia define-se pela ativação do Léxico. Essa estratégia, como demonstramos ao longo dessa análise, caracteriza-se pela atividade do falante na mediação pelo sistema lexical, visando a ativar/reativar/desativar as propriedade gramaticais e semânticas dos itens lexicais para indiciar-se, no processamento discursivo, como enunciador de seu texto. Essas duas estratégias discursivas podem ser construídas com base num conjunto amplo de recursos lingüísticos que, empregados no discurso, explicitam se como recursos 188 indiciares da situação discursiva. Numa tentativa de ilustrar como se realizam essas duas formas de CIE, reunimos, abaixo, o conjunto de recursos que as possibilitam. (A) – “Situação Default” Como vimos no desenvolvimento de nossa análise, a “situação default” é a estratégia discursiva utilizada para identificar a instância fundadora do discurso: (A1) pode estar ostensivamente marcada pela dêixis de pessoa, de tempo e de espaço; (A2) pode estar menos indiciada, o que obriga o leitor a buscar a sua identificação e referenciação na gramaticalização e semantização de recursos dêiticos constitutivos do seu enunciado. Disso depreende-se que, a existência de mais ou menos recursos dêiticos estão relacionados à questão de uma modalização maior ou menor do enunciador da “situação default”. Nesse sentido, a ocorrência (A1) explicita que a voz autoral identifica-se com a voz do EN1 e (A2), que a voz autoral remete a um enunciador com o qual, embora seja instituído como EN1, não se identifica explicitamente. As operações relativas à construção da “situação default”, nos módulos lingüísticos, estão relacionadas à ativação e seleção de certos recursos lexicais, cujas propriedades gramaticais serão ativadas e semantizadas em função de indiciar a instância fundadora do discurso e as outras instâncias que a ela se articulam. Em decorrência dessas operações no três módulos lingüísticos, podemos postular que as características acima são ativadas visando a possibilitar ao AL1 operar os recursos lingüísticos presentes no enunciado e ativar as propriedades semânticas dos mesmos, identificando a modalização da “situação default”, relativas à: (i) pessoalização, que nos remete ao caso (A1); (ii) impessoalização, que remete ao caso (A2), cuja identificação encontra-se ancorada na articulação gramatical e semântica dos dêiticos espaço/temporais que indiciam a INE1 como o ponto zero para onde convergem as informações dos dêiticos. Sua gramaticalização e interpretação ancoram-se nas informações dêiticas de outras instâncias enunciativas, uma vez que sua instituição somente se efetiva através das 189 operações no módulo Semântico que apontam para o seguinte: “alguém está dizendo que ...”. (B) Ativação do Sistema Lexical (B1) Ativação de um item lexical: verbos “dicendi" Esse recurso define-se como um dos recursos característicos da estratégia de ativação de um item lexical. Os verbos “dicendi” evidenciaram-se como um dos importantes recursos lingüísticos utilizados pelos autores de texto na instituição de instâncias enunciativas, uma vez que o simples fato de enunciá-lo já institui uma situação de interlocução. Esses verbos podem gramaticalizar, referenciar e modalizar tanto (A) a “situação default”, como (B) as outras instâncias enunciativas, definindo-as como formas de explicitação dos recursos dêiticos presentes nos morfemas verbais. (B1) Utilização de verbos “não-dicendi” Os verbos “não-dicendi” têm a mesma importância que os verbos “dicendi” na caracterização das instâncias de enunciação. Um fator importante a se considerar em relação aos verbos “não-dicendi” é a sua classificação estar diretamente relacionada às operações ativadas nos módulos lingüísticos. A seleção de um “não-dicendi” do Léxico implica a ativação de suas propriedades gramaticais, que são semantizadas em função de se criar um efeito de sentido próximo ao dos característicos “dicendi”. Esses verbos, considerados no processamento discursivo, são empregados da mesma forma que os “dicendi” na caracterização de (A) - “situação default” - e (2) de outras instâncias enunciativas diferentes da INE1. (C) Utilização de deverbais 190 Os deverbais constituem-se como um recurso, ao lado dos verbos “dicendi” e dos “nãodicendi”, muito empregado na caracterização das instâncias de enunciação. Há dois fatores importantes a se considerar em relação aos “deverbais”. Em primeiro lugar, a sua classificação estar diretamente relacionada às operações ativadas nos módulos lingüísticos, pois a seleção de um deverbal do Léxico implica a ativação de suas propriedades gramaticais, que são semantizadas em função de se criar um efeito de sentido semelhante ao dos “dicendi”. Em segundo lugar, os deverbais selecionados são correlatos dos verbos “dicendi”. Considerados no processamento discursivo, os deverbais são empregados da mesma forma que os “dicendi” na caracterização de instâncias enunciativas tanto do plano básico como dos planos subalternos. (B2) Os “sintagmas de elocução” Os “sintagmas de elocução” são formados a partir da articulação gramatical e semântica de itens lexicais, constituindo um conjunto harmônico, cuja articulação não pode ser quebrada sem o risco de comprometer a CIE que eles instituem e/ou modalizam e a que se referem. Considerados no processamento discursivo, os “sintagmas de elocução” classificam-se em três categorias: (1) os que fazem uma referência explícita à situação de interlocução; (2) os que fazem uma referência indireta à situação de interlocução; e (3) os que exigem um esforço maior dos prováveis interlocutores para a identificação de uma situação de interlocução. (C) Recursos exclusivos da escrita Nesse grupo, incluem-se os seguintes itens: parênteses, aspas (duplas ou simples), travessões, os dois pontos e os parágrafos. O corpus apontou para a necessidade de se considerar esses recursos como importantes recursos para a constituição de instâncias enunciativas. O seu emprego indicia ostensivamente a instauração de uma nova 191 instância de enunciação, com o fim de caracterizar um discurso referenciado e/ou modalizador (1) quer no interior da INE1; (2) quer no interior de um discurso de qualquer outro enunciador; (3) quer no interior de seu próprio discurso. Esses recursos estão sendo chamados de modalizadores devido ao fato de que instituem, no discurso, em que se inserem o ponto de vista de um determinado enunciador. Tais recursos indiciam como se dá a articulação das diversas instâncias de enunciação, tendo em vista o fato de que (i) a sua gramaticalização aponta para as formas de articulação das INEs do plano subalterno no interior da INE do plano básico, caracterizadas por operações no módulo Gramatical; (ii) as operações no módulo Semântico indiciam a configuração semântica das relações explicitadas no módulo gramatical, caracterizando, dessa forma, a modalização pretendida no módulo do Discurso. (D) Formas de articulação na CIE As formas de articulação entre as diversas instâncias de enunciação, constatamos que, basicamente, ocorre de duas maneiras: indiciadas mais ou menos ostensivamente por diferentes categorias de itens lexicais ou sintagmas instituídos nas instâncias de enunciação. A articulação entre as diversas INEs poderá ser indiciada pelos diversos recursos descritos acima, sendo sua característica promover a referenciação e/ou a modalização dos discurso constitutivos das diversas INEs. Podemos notar que, pela taxionomia acima, um outro dado explicita-se: não há como falar de “regularidades”, pelo menos no que diz respeito à concepção tradicional das formas de se explicitar as vozes diferentes de um texto, relativamente à forma de articulação entre as instâncias de enunciação. Por um lado, se a utilização mais ostensiva dos dêiticos que indiciam a situação de interlocução explicita como ocorre a organização gramatical e semântica entre as INEs; por outro, a utilização menos ostensiva indicia que a articulação sintática e semântica das INEs pode se dar 192 diretamente ancorada em outros itens responsáveis pela instituição das INEs. Nessa perspectiva, essa duas formas de articulação de INEs são consideradas estratégias de modalização do discurso. Tal fato evidencia um outro fator a ser considerado em relação aos estudos lingüísticos: a necessidade de repensar o que se entende por regularidades na utilização da língua. Na perspectiva discursiva que adotamos para essa análise, falar em regularidade pressupõe falar de discursivização, ou seja, reconhecer a importância de se levar em conta os diversos fatores que promovem e definem a produção de um texto, de uma enunciação. 8. Síntese A CIE decorre, principalmente, da habilidade do autor de textos em operacionalizar os recursos lingüísticos para que os enunciados produzidos possibilitem a enunciação almejada. Isso, em outras palavras, refere-se à competência dos interlocutores para operar com e no Léxico e, levando em conta a situação de interlocução (uma operação com e no léxico e, em conseqüência, a ativação do módulo Discursivo), dar significação aos elementos lingüísticos (ativação do módulo Semântico) e organizá-los (ativação do módulo Gramatical) de acordo com a função a que se destina a enunciação. Essas operações constituíram o objetivo de nossa análise, no que concerne à CIEs. As estratégias identificadas e tomadas como objeto de estudo neste trabalho, se, de um lado, têm como origem os recursos lexicais, de outro, revelam que os arranjos lingüísticos feitos pelos interlocutores só se efetivam se ativados os módulos Discursivo, Gramatical e Semântico. Sistematicamente, trazem à tona um outro fator importante: a enunciação traz as marcas de seu enunciador (hipótese em que nos baseamos para empreender esta pesquisa) e revelam o nível de conhecimento que o produtor de textos possui dos mecanismos lingüísticos que possibilitam um exercício com e na língua, visando a interação verbal. Procuramos demonstrar que a CIE está diretamente relacionada ao funcionamento discursivo, considerando-se as operações de ativação/reativação/desativação das 193 propriedades discursivas, sintáticas e semânticas dos itens lexicais nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico. Essas operações explicitam como estratégias discursivas (1) a utilização da “situação default” e (2) utilização do Léxico que, no e pelo processamento discursivo, implementam-se através do seguintes recurso dêiticos: 1. a “situação default”; 2. a utilização de verbos “dicendi”; 3. a utilização de verbos não-dicendi; 4. a utilização de deverbais; 5. a utilização de “sintagmas de elocução”; 6. a utilização de recursos próprios da escrita; 7. a articulação das diversas instâncias Relativamente a 7, os operadores discursivos89, entendidos como toda uma classe de recursos que orientam para a articulação semântica e sintática na articulação das instâncias enunciativas, desempenham um papel fundamental na CIE e, como já dissemos anteriormente, da enunciação por inteiro. Adotando uma Teoria Modular, demonstramos que a ativação do Léxico, um importante mediador no processamento dêitico, está diretamente relacionada às operações realizadas nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico, tendo como base a situação de enunciação. Desta forma, no e pelo discurso, as “vozes” dos enunciadores - expressas segundo uma organização definida pela ativação dos módulos lingüísticos – (re)velam os pontos de vista deles, definindo, assim, as formas de modalização dos discursos em sua 89 Utilizamos essa terminologia de acordo de Ilari (1990) por dar conta de uma universo bem amplo de itens lexicais utilizados na atividade discursiva. Apresentamos no capítulo 2 uma definição dos termos utilizados nesta pesquisa. Nele deixamos claro que da forma como define o autor os operadores discursivos abrangem uma categoria ampla e bem diversificada de termos lingüísticos que no discurso desempenha a função de organizar o discurso e se refere a “unidades (...) que ultrapassam não só os limites dos constituintes, como também da sentença” (Ilari, 1990: 84). Significa, então, que não ficamos restritos à concepção das conjunções segundo a Gramática Tradicional. 194 enunciação. Além disso, essa organização explicita os diversos fatores envolvidos na produção de um discurso. Em suma: a ativação de operações de CIEs resulta da competência lingüística do autor de textos - orais e escritos - em povoar a sua enunciação de enunciadores, operando os recursos lingüísticos de forma a se obter os efeitos de sentido desejados. Na base dessa competência está o Léxico e, dentro deste, o sistema dêitico responsável por indiciar a sua atividade discursiva. Faz parte da competência lingüística do autor de textos operar com o sistema lexical, de acordo com os índices definidos no e pelo ato de enunciação, que são processados pelo falante na ativação dos módulos lingüísticos, numa intermediação com o Léxico. Nesse sentido, postulamos que a CIE decorre dessa capacidade do falante e revela, também como se constrói a polifonia, que resulta da articulação dos planos enunciativos relativamente à instauração da instância fundadora do discurso – INE1. No próximo capítulo, tendo em vista que já adiantamos parcialmente no corpo deste capítulo algumas das conclusões a que chegamos, essas serão retomadas a fim de dar mais ênfase às conseqüências e às contribuições decorrentes dos resultados por nós obtidos. 195 Conclusão Introdução No capítulo anterior já adiantamos, concomitantemente, à análise dos dados e à proposta da taxionomia das estratégias discursivas de construção de enunciadores no texto escrito, algumas das conclusões decorrentes da abordagem teórica com que tratamos o objeto analisado. Contudo retomamos tais conclusões com o intuito de reuni-las e fornecer ao leitor o conjunto delas, dando-lhe subsídios que o façam compreender a importância de adotar se uma nova perspectiva de análise da língua.. Sob essa perspectiva, a análise da língua deve ser orientada pela atividade lingüística do falante no e pelo processamento discursivo, no eu/aqui/agora da enunciação, considerando, para isso, as variáveis que interferem na produção de uma enunciação e que se definem como as condições de sua produção. Assim, uma enunciação é única porque as condições de sua produção serão sempre novas. Em outras palavras, cada vez que um mesmo enunciado é proferido, a enunciação que ele encerra renova-se, pois outras são as condições presentes a cada vez que ele for enunciado. Cada enunciação possui em si um conjunto de coordenadas que a definem e a localizam como pertencentes a um tempo e espaço, pois, no eixo das coordenadas espaço/temporais, cada enunciação ocupa seu espaço e seu tempo, sendo o presente lingüístico o tempo a partir do qual as enunciações presentes numa enunciação orientam-se para um momento posterior, simultâneo ou anterior ao momento em que aquela se deu. Reconhecer esse movimento no eixo do tempo/espaço lingüísticos é, também, reconhecer o caráter polifônico da enunciação, concebendo que cada nova orientação temporal indiciada instaura uma nova instância de enunciação. Cada instância, por sua vez, institui seu próprio sistema de referência, indiciados lingüisticamente pelo sistema dêitico. Tal fato permite que identifiquemos as diferentes instâncias que se articulam 196 sintática e/ou semanticamente como partes de uma única enunciação. A organização interna das instâncias enunciativas está diretamente atrelada à diretiva estabelecida no primeiro plano de enunciação, identificado como sendo o momento axial, o ponto 0, da atividade lingüística. Assim, os pressupostos que nortearam a nossa pesquisa se confirmaram como decisões importantes a serem tomadas pelos autores de textos na configuração de sua enunciação, pois as estratégias lingüísticas identificadas por nós são empregadas de acordo com as coordenadas situacionais definidas como condições para a produção de um texto e evidenciam o caráter polifônico da enunciação. 2. Os pressupostos da pesquisa Os pressupostos iniciais da pesquisa obrigaram-nos a especificar os conceitos com os quais trabalharíamos para definir, com precisão, a concepção de linguagem, de texto, de discurso, de enunciado e de enunciação e de termos como: autor, enunciador, locutor e interlocutor. Isso feito, postulamos que todo texto guarda as marcas dos seus enunciadores, entendidos estes como os “actores” da enunciação e, como tal, só se definem se entendidos enquanto elementos lingüísticos. Em virtude disso, tempo/espaço enunciativos também são concebidos como elementos que só têm existência em função da enunciação em que se inserem. O texto, portanto, lugar de materialização da enunciação, fornece-nos as pistas da atividade lingüística de seus interlocutores, orientando-nos em termos das operações lingüísticas necessárias para a apreensão da enunciação nele contida. O texto é, então, o lugar da materialização das estratégias e dos recursos lingüísticos ativados durante o processo de interação. Os pressupostos básicos de nosso estudo - (i) a voz autoral pode ser expressa por um enunciador que se identifica, explicitamente, como o autor do texto; (ii) a voz autoral pode estar implícita na voz de um enunciador outro que não remete ao autor do texto; 197 (iii) a voz autoral pode ser expressa por diferentes vozes enunciativas; (iv) outras vozes, com as quais a voz autoral não se identifica, podem ser expressas na constituição de um texto – apontam para as seguintes conclusões em relação à polifonia presente na enunciação: • todo texto explicita lingüisticamente a ação de, no mínimo, dois interlocutores, os quais denominamos EN1-AL1, que caracterizam o par de interlocutores que caracterizam a primeira instância de enunciação; • todo texto explicita, em conseqüência da atividade lingüística do par interlocutivo da primeira instância enunciativa (EN1-AL1), o agenciamento de outros enunciadores; • todo texto explicita, a partir do agenciamento de outros enunciadores, a instituição de outras instâncias enunciativas constituídas cada uma por um sistema próprio de referências, um par de interlocução e uma localização no eixo das coordenadas espaço/temporais; • todo texto explicita, a partir da instituição das instâncias enunciativas, a existência de planos enunciativos que fornecem os indícios de uma organização hierárquica das instâncias de enunciação; • todo texto explicita, em decorrência da organização dos planos enunciativos, a coordenação ou a subordinação das instâncias enunciativas umas às outras, em termos da sua organização formal ou dos efeitos de sentido produzidos, no processamento discursivo; • todo texto materializa as pistas do processamento dêitico no discursivo. Isso revela que esse processamento está diretamente relacionado às operações realizadas, com a mediação do Léxico, cujos itens têm ativadas/reativadas/desativadas as suas propriedades discursivas, sintáticas e semânticas pelos autores de textos nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico. Logo a voz autoral explicita-se pela voz atribuída ao enunciador de primeira instância que é autorizado a pôr em cena os outros enunciadores de seu discurso. Essa voz autoral institui-se em “situação default”, quando, pela tomada da palavra, o EN1 é introduzido no discurso. 198 A “situação default” pode ser instituída de duas formas, as quais remetem aos pressupostos (i) e (ii). Na primeira forma, que se dá mais ostensivamente, EN1 utilizase de recurso ostensivos de indiciação e pessoaliza a sua voz, construindo-se lingüisticamente como eu, revelando-se, então, como aquele que enuncia, ou seja, como a fonte produtora da enunciação. Na segunda, EN1, apesar de ser a voz que funda o discurso, mantém uma certa distância do texto, utilizando-se, de uma forma menos ostensiva, de elementos lingüísticos que tendem a apontar para uma “voz”, que se gramaticaliza e semantiza como uma voz distinta da voz autoral, que se mantém mais distante do texto que constrói. Essas duas estratégias de CIE em “situação default”- a pessoalização e a impessoalização – foram identificadas como formas de modalização do discurso do enunciador da instância caracterizada no plano básico de discursivização, por indiciarem um maior ou menor engajamento do enunciador em relação àquilo que enuncia. Verificamos também que os recursos lingüísticos empregados em “situação default” sempre apontam para a voz do enunciador de primeira instância, cuja característica principal é a marca do eu que se enuncia e que, com este seu ato, funda a atividade discursiva, ou seja, referencia o presente da enunciação. Em vista disso, os outros pressupostos decorrem da atividade interlocutiva de EN1 que opera na e com a língua, introduzindo outros enunciadores - outras vozes - que, juntamente com ele, compõem o cenário da enunciação. Vale a pena registrar que, no conjunto, esses pressupostos acima não se excluem; muito pelo contrário, completam-se. A reunião deles em termos de princípios evidenciam a propriedade polifônica da enunciação e a atividade lingüística dos enunciadores que operam os recursos lingüísticos de acordo com as condições do momento da interação verbal. 199 Com base no que postulamos acima, esta pesquisa forneceu evidências que sugerem que, em textos escritos, é possível detectar a atividade lingüística dos seus enunciadores, e que, na origem, dessa atividade, está a competência dos enunciadores em operar com e sobre o Léxico para a ativação dos conhecimentos lingüísticos armazenados em sua memória (ativação/reativação/desativação das propriedades discursivas, sintáticas e semânticas dos itens lexicais), em vistas das operações nos módulos lingüísticos, visando à enunciação pretendida. Procuramos contribuir, também, com um levantamento dos recursos discursivos utilizados na construção de enunciadores do texto escrito e dos recursos lingüísticos que os operacionalizam, enfatizando que o uso de um recurso lingüístico em detrimento de outro na construção de um enunciador – ou de uma INE - não se dá aleatoriamente, porém está relacionado com a enunciação atribuída a ele. Em conseqüência das estratégias discursivas identificadas e dos recursos lingüísticos ativados na CIE, evidenciou-se ser necessária uma nova classificação dos verbos “dicendi” em duas classes mais gerais, contudo mais abrangentes - verbos descritivos e verbos modalizadores. Levando-se em conta a forma como esses verbos funcionam no interior de uma enunciação. Concluímos esta parte propondo também que se considerasse os verbos “dicendi”, os verbos “não-dicendi” e os deverbais como elementos que constituem um mesmo conjunto de itens, cujas propriedades sintáticas e semânticas, em função da situação discursiva, aproximam-se. A nossa proposta culminou com a indicação de classificá-los todo como “formas de “dizer”. De uma forma geral, esta dissertação sugere questões a serem trabalhadas em pesquisas futuras, que se incluem • a questão da modalização do discurso de um enunciador: fizemos um levantamento dos recursos lingüísticos que, a nosso ver, introduzem a modalização no discurso. Basicamente, apoiamo-nos em estudos realizados pelo subgrupo da Organização Textual/Interativa do grupo de pesquisadores do Projeto de Gramática do Português Falado, que elegeram a língua oral como objeto de estudo. Foi-nos possível esse 200 diálogo com tais estudos, pois a concepção de língua e de texto que adotamos é a mesma adotada por eles. Por outro lado, reconhecemos que nossa análise situou a questão da modalização num nível descritivo. No entanto, para os objetivos a que nos propomos, tal descrição foi satisfatória, culminando com a explicitação de dados para a taxionomia das estratégias discursivas utilizadas na construção de enunciadores do texto escrito. • a questão dos operadores discursivos: baseamo-nos, ainda, nos estudos do PGPF, no subgrupo de Sintaxe. Vislumbramos a possibilidade de se desenvolver um trabalho que tenha como objetivo descrever, com base em textos escritos, como os itens lexicais agrupados sob essa denominação são utilizados nesse tipo de discurso. Conseguimos identificar alguns operadores discursivos, mas acreditamos que há, em relação a eles, um universo bem grande e complexo de itens lexicais usados, comumente, na fala e na escrita, com esta função. • a questão das “formas de dizer”: o processamento discursivo da língua favorece a utilização de uma gama bem variada de itens lexicais com a função de indiciar o “dictum”. Dentre esses itens, existem aqueles que, em sua significação pura, não remeteriam ao “dizer”, mas assumem, no uso, forma e significação ilocutória. Necessário se faz rever, em termos do que verificamos aqui, uma redefinição dos ditos verbos não-ilocucionários90. • A questão de os resultados apontarem para a importância de se repensar a delimitação das fronteiras que separam entre si os discursos “direto”, “indireto” e “indireto livre” e as formas de representação destes na escrita. • A questão do discurso citado e o discurso citante, na perspectiva que foram por nós analisados, não serem introduzidos apenas pelos verbos “dicendi” e seus equivalentes, mas revelarem a existência de outros itens lexicais e de estruturas sintagmáticas que, ao lado dos “dicendi”, assumem a função de CIEs no discurso. 90 Tal implicação está relacionada à proposta que apresentamos de agrupar num mesmo conjunto os verbos “dicendi” e os verbos “não-dicendi” sob a denominação de verbos de “dizer”. 201 Propomos as seguintes nomenclaturas e um questionamento relativo à nomenclatura proposta: “deverbais” e “sintagmas de elocução”; até que ponto tais nomes descrevem bem a categoria lexical a que se referem? 3. As contribuições da pesquisa Quanto a essas questões, propomos possíveis desdobramentos desta dissertação. Conseqüências teóricas • A identificação de itens lexicais que se juntam à classe de itens que indiciam o processamento discursivo. • A indicação de uma terminologia para as “formas de dizer”. • A proposta de reagrupamento dos verbos ilocutórios. • O levantamento e a análise das estratégias discursivas que indiciam a construção de enunciadores no texto escrito. • A construção de uma taxinomia das estratégias discursivas, apresentando um detalhamento dos recursos lingüísticos que indiciam a construção dos enunciadores de textos escritos. • A identificação dos conhecimentos lingüísticos que revelam a competência básica dos autores de textos escritos no português contemporâneo. • A integração teórica entre as abordagens da Teoria da Enunciação e da Organização Textual/Interativa e da Teoria Modular. • A concretização da proposta da mudança do enfoque dado à pesquisa lingüística: deslocando a lente de análise do “pólo do enunciado para o pólo da enunciação”, em que nos afastamos do estudo do texto exclusivamente como produto para considerar o processamento discursivo de que resultam os textos. Contribuiçõess Empíricas 202 • Coleta de dados em textos jornalísticos, de jornais de grande circulação no país, visando a descrever um aspecto do português do Brasil contemporâneo. No caso desta dissertação, como os autores de textos escritos no português culto do Brasil constroem os seus enunciadores? • Os textos jornalísticos91, escritos em uma modalidade de registro culto, fornecem dados que possibilitam a descrição de fenômenos lingüísticos próximos da situação de uso identificadas na língua real. Sublinhamos o “próximos”, por entendermos que ambas as representações - a escrita e a fala - manifestam em si as operações do escritor/falante em situações de comunicação que, embora diferentes na representação, têm como resultado os textos nos quais ficam indiciadas as pistas que revelam seu trabalho com e na língua, a sua enunciação. Contribuições metodológicas • Os textos jornalísticos foram investigados a partir dos pressupostos levantados em textos escolares que registravam um uso recorrente de itens lexicais os quais indiciavam o autor como enunciador. Na investigação dos textos jornalísticos, inicialmente, construímos a hipótese de que essa atividade estava relacionada ao que Benveniste chamou de “subjetividade na linguagem”. • Entendemos que a subjetividade pode ser uma das variáveis que compõem os elementos da enunciação. Se por um lado, um enunciado resulta de uma seleção lexical, que envolve um trabalho na e pela linguagem, por outro lado, dependendo dos recursos implementados na sua produção, ele pode conter um discurso modalizador, ao exprimir o ponto de vista de seu enunciador em relação ao discurso do outro, ou caracterizar-se com um metadiscurso. • Referirmos à questão da subjetividade como uma forma de modalização do discurso, não significa que corroboramos essa tese. Essa menção se justifica levando-se em 91 Constam do Anexo os textos jornalísticos de onde extraídos os dados para a análise, conforme já mencionado no capítulo 1. 203 conta que essa é uma estratégia utilizada pelo autor de texto, para indiciar-se como um “indivíduo lingüístico”, um enunciador, que pode ou não ter correspondência com seres do mundo real. • A sistematização da análise dos dados revelou que não se pode falar das marcas lingüísticas indiciadas num texto do ponto de vista, apenas, da Subjetividade Lingüística, mas, muito mais, como indícios que revelam as incursões sempre dinâmicas do escritor/falante na e com a língua. Esses indícios, portanto, são pistas importantes que nos obrigam a reelaborar toda uma metodologia própria que nos permita, a partir dos dados observados, definir caminhos novos a serem trilhados para explicitar os mecanismos e as operações lingüísticas necessárias à efetivação de uma enunciação. • A Teoria da Enunciação, tratada de acordo com uma abordagem mais funcional da língua, tornou-nos possível o tratamento descrito acima, dentro de uma perspectiva da Organização Textual/Interativa. • Em relação à determinação da competência dos falantes, valemo-nos dos princípios de uma Teoria Modular da Língua, segundo os quais os módulos Gramátical, Semântico e Discursivo, intermediados pelo Léxico, constituem o sistema computacional de toda e qualquer língua, sendo, portanto, constituintes do conhecimento dos autores de textos. • A sistematização das estratégias discursivas identificadas nos textos jornalísticos evidenciou que faz parte do conhecimento lingüístico dos falantes a habilidade de operar, mediados pelo sistema dêitico, com e sobre a língua. Nesse sentido, foram relevantes as contribuições da Teoria Modular, que evidenciou o fato de o conhecimento lingüístico do falante caracterizar-se como um sistema computacional, em que os módulos são ativados concomitantemente. Contribuições práticas 204 • A sistematização dos recursos lingüísticos em uma proposta de taxionomia contribui para acrescentar novos elementos ao conjunto de dados costumeiramente abordados nas pesquisas lingüísticas e vem ao encontro da proposta do Projeto de Gramática do Português Falado, que tem como alvo a descrição do português contemporâneo. Enquanto os pesquisadores buscam, nessa primeira fase, descrever a língua em situação de fala, nossa pesquisa abordou a situação de escrita, tendo ambas como orientação a língua em uso, numa tentativa de descrever o seu processamento discursivo. • O detalhamento dos recursos lingüísticos e das estratégias discursivas lança luzes para a constatação de que, não importa qual seja a forma escolhida para representar uma situação de interlocução, o seu resultado - o texto, o discurso - estará impregnado dos fatores envolvidos em sua produção. E mais: defini-los como elementos que revelam a subjetividade de seu autor é renegar indícios da ação desse enunciador em termos de indiciar toda uma situação de interlocução e não apenas um dos aspectos nela envolvidos. • O detalhamento acima traz contribuições para o ensino de língua, uma vez que, ao conceber a produção de textos escritos como uma atividade de interlocução, os profissionais da área estarão assumindo a perspectiva de que o “aprendizado” da língua materna não deve estar centrado em normas rígidas de gramática, distantes da necessidade real de uso de sua clientela. Isso porque o ensino de normas gramaticais, no ambiente escolar, tem como objeto a descrição do enunciado, sem levar em conta a sua enunciação. Desse modo, o estudo proposto lança elementos novos em relação à abordagem dos textos escritos e a sua produção, enfatizando a necessidade de se privilegiar o processo de interação como um todo que influencia no produto final. Nesse sentido, é importante que os professores tenham uma formação voltada para a compreensão dos fenômenos envolvidos no processamento discursivo e possam, a partir das pistas deixadas no texto, sistematizar as regras de sua utilização e, assim, implementar os conhecimentos básicos que seus alunos possuem, alimentando-os 205 com novos dados que lhes permitam produzir textos adequados à situação de comunicação. • Interessa-nos contribuir para um melhor conhecimento da competência dos alunos, em processo de aquisição da escrita culta, relativamente ao seu desempenho na construção de textos escolares. • Em relação a discussão acerca dos discursos “direto”, “indireto” e “indireto livre”, a pesquisa evidenciou que se faz necessário repensar essa classificação, porque enunciar é pôr em cena enunciadores outros, compondo um discurso em que vários outros discursos se imbricam ou apenas se tocam. O discurso é polifônico por excelência e, portanto, há fronteiras concretas que possam delimitar com clareza tais formas de indiciar o “discurso de outrem”. Contribuições para as áreas do conhecimento • Esta dissertação contribui com uma nova perspectiva de abordar a língua, uma vez que lança pistas de que o processamento lingüístico envolvido na produção de textos escritos está estreitamente relacionado com o processamento lingüístico necessário à produção de textos orais. Esse enfoque comprova a tese de que textos são sempre textos, não importa que forma utilizamos para representá-los, pois o fim é o mesmo: a interlocução, condição necessária a uma atividade de comunicação. • Esta dissertação contribui, ainda, para corroborar os trabalhos realizados pelo PGPF, uma vez que aplicamos os conhecimentos já produzidos em Sintaxe I e em Organização Textual/Interativa. • Em suma: abrem-se caminhos para a interdisciplinariedade e para a integração de estudos voltados para a descrição do português contemporâneo, em vistas de termos privilegiado uma descrição do produto lingüístico, sempre relacionado à sua enunciação, ao seu processamento discursivo. 206 BIBLIOGRAFIA ANTUNES, Maria Irandê Costa Morais. ASPECTOS DA COESÃO DO TEXTO: UMA ANÁLISE EM TEXTOS JORNALÍSTICOS. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1996. ARISTÓTELES. RHÉTORIQUE. Livro I (Trad. de M. Dufort), Paris: Les Belles Lettres, 1967. AUSTIN, John Langshaw. PHILOSOPHICAL PAPERS. 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Paris, Alliance Française/ Didier/Hatier. 216 Anexo Textos jornalísticos I Texto 1 Proteção ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES às avessas Segundo o noticiário da semana passada, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estaria estudando a adoção de um "selo social" em todos os países como garantia do cumprimento de padrões trabalhistas mínimos. Essa é uma nova versão da "cláusula social" que muitas nações desenvolvidas pretenderam aprovar no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Se adotada, a OMC ficaria com plenos poderes para aplicar sanções comerciais aos violadores dos padrões trabalhistas. A tese vem revestida de argumentos humanitários em favor dos povos mais pobres. Mas como no campo dos negócios os países ricos jamais defenderam estratégias desse tipo, o seu repentino surto de generosidade nos põe com a pulga’ atrás da orelha. O que há por baixo disso? Os países do hemisfério norte enriqueceram extraordinariamente, mas não conseguiram resolver o problema do desemprego. Na verdade, suas economias crescem e o emprego decresce. Os estadistas do Grupo dos Sete (G7) se reuniram várias vezes para equacionar o flagelo e, até hoje, nada. Para tentar escapar dessa contradição, nossos "muy amigos" do hemisfério norte argumentam, agora que os países pobres são os causadores do seu desemprego. Mais especificamente, as nossas exportações, por se basearem em custos mais baixos (especialmente de mão-de-obra) estão destruindo os postos de trabalho da Europa e Estados Unidos. A defesa da elevação das condições de trabalho nos países pobres, portanto, nada tem de humanitário, é mais um lance de protecionismo. Ela, no fundo, visa encarecer nossas exportações. Os países desenvolvidos vivem buscando motivos para bloquear as exportações dos países em desenvolvimento. Ora é a necessidade de preservar o meio ambiente dos países mais pobres. Ora é a necessidade de padronizar os processos e produtos por: meio das ISOs. Outras vezes é a necessidade de melhorar o estado de saúde , de nosso gado, galinhas, peixes e plantas. E agora vem a questão de elevar os padrões trabalhistas, melhorar os salários e combater o trabalho infantil. É claro que essas são metas de todos, os países. O Brasil vem trabalhando nessa direção há vários anos. Não há quem não queira gerar empregos, aumentar salários e educar as crianças. Mas tudo isso é resultado de investimentos, produção, exportação etc, e não do uso de sanções comerciais ou selos sociais. Ninguém conseguiu provar que tais medidas contribuam efetivamente queira para gerar empregos, pagar bons salários e manter as crianças na escola. Se o propósito é afastar o Brasil do comércio internacional, o tiro é certeiro. Mas se o objetivo é melhorar nossas condições não há saída: precisarmos produzir mais, crescer depressa e exportar muito. Esse é um daqueles temas ingratos para ser abordado, pois, no seu debate, os países ricos tendem a ficar com a fama de defensores dos nossos trabalhadores e nós com o o risco de ficar sem o que fazer com uma monumental legião de desempregados. Afinal será que o Primeiro Mundo tem medo do Terceiro Mundo? É isso que a OIT pretende? Fonte: Folha de São Paulo, 04/05/97. Texto 2 Reforma agrária LUIZ HAFERS A questão da reforma agrária encontra-se numa situação no mínimo peculiar: todos estão a favor, e quase todos, insatisfeitos. I 5 10 15 20 25 30 35 Essa questão tornou-se uma embalagem para problemas mais amplos e mais antigos, o principal deles uma grave crise social no campo. A falta de uma política agrícola, com suas necessidades de produção e atendimento social, desaguou numa situação na qual uma grande massa de desassistidos, desamparados e desempregados foi cooptada por um movimento bem organizado, que lhe ofereceu um mínimo de esperança e uma solução não tão clara. Esse problema não é agrícola, é social e nacional. O que essa massa de trabalhadores destituídos precisa é de dignidade, e é impossível obtê-la sem trabalho e na pobreza. Terra é apenas uma das soluções. O problema é mais vasto e passa por empregos decentes, educação, saúde e até assentamentos. A sociedade, que se urbanizou rapidamente e para a qual os problemas do campo eram distantes, difusos e desinteressantes, acordou e passa a ter simpatia para com o problema, se bem que não saiba qual a solução, e começa a ter dúvidas quanto à liderança do MST, em sua campanha de violência. É necessário esclarecer e debater o assunto para que a opinião pública, o juiz 40 45 50 55 60 numa democracia, autorize e legitime o Legislativo e o Executivo nas suas ações. O governo federal tem acelerado sua atuação. os governos estaduais, ainda tímidos no cumprimento da lei, aguardam os acontecimentos. Os fazendeiros, que não são mais obstáculo, insistem no cumprimento da lei e se sentem objeto de pressão política injustificável, pois só querem continuar a produzir e em paz, o que, aliás, têm feito com sucesso, apesar de enormes dificuldades. Precisamos, pois, de grande discussão e esclarecimento nacional sobre a questão agrícola e agrária, da qual a reforma agrária é um pedaço - ainda que, no momento, agudo e preocupante. A nação precisa se dar conta da importância da agricultura brasileira. É ela instrumento decisivo da segurança alimentar, da segurança social e da segurança cambial. Podemos, devemos e vamos solucionar essa questão. É só nos atermos às soluções, esquecermos revanchismos e dirimirmos inseguranças nas quais prospera o radicalismo. Não é fácil, precisamos de um enorme esforço, mas vamos fazê-lo. Sou otimista. LUIZ MARCOS SUPLICY HAFERS, 61, fazendeiro, é presidente da Sociedade Rural Brasileira (SBR). Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97 II Texto 3 Despotismo e confusão FÁBIO WABDERLEY REIS 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 De maneira elaboradamente criptográfica, como no caso das eruditas ironias de Roberto Romano na Folha, ou simplesmente confusas, como nas manifestações de José Arthur Giannotti, denúncias ou advertências de “despotismo”, “absolutismo” ou assemelhadas têm sido dirigidas ao presidente Fernando Henrique. Como avaliá-la? A questão envolvida é a das relações do Executivo com o Congresso e o Judiciário, condicionadas naturalmente, pelo pano de fundo da opinião popular. Quanto ao Congresso, parte importante das preocupações manifestadas se dirige, sobriamente apreciada, ao fato simples de que o presidente erigiu ampla base de apoio parlamentar. Ora, o controle pelo presidente dos recursos institucionais de poder que a democracia lhe faculta não significa ameaça à democracia. Não há por que entender a idéia da separação de poderes em termos de hostilidade permanente entre o Executivo e o Legislativo. Os comentaristas falam há tempos, a propósito dos EUA, dos males do “governo dividido”, e a busca de maioria estável é um imperativo da busca da mera eficiência. Na verdade, a aglutinação governista no âmbito parlamentar pode mesmo ser vista como bem -vindo estímulo ao rearranjo mais geral das forças políticas, ajudando a talvez superar a fragmentação atual. Se essa aglutinação recorreu à “política politiqueira”, é preciso lembrar que a “grande política” não dispõe de um espaço especial para a sua execução, mas se faz por intermédio das realidades do dia-a-dia embora cumpra estar atento para o preço simbólico que o realismo terá custado ao presidente, e como esse preço se traduzirá, mesmo instrumentalmente, ou seja, como afetará a capacidade presidencial de liderar com eficácia a reconstrução econômicosocial e institucional do país. Temos, ainda, a questão da enxurrada de medidas provisórias. Mas a enxurrada flui nas brechas de uma legislação permissiva e com o apoio ao menos tácito do Congresso. Seria claramente impróprio esperar que a busca de eficiência na realização dos objetivos governamentais se detivesse diante de tais brechas, com a autocontenção pessoal do presidente representando a garantia contra os efeitos equívocos de instituições 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110 deficientes. Impõe-se, aqui, a tarefa de aperfeiçoamento institucional e legal. Há, de outro lado, o atrito ExecutivoJudiciário. A parte razões fúteis que certamente contaminaram o recente bateboca, ele parece expressivo de um problema mais sério e profundo do que o que se pretendeu ver nas relações ExecutivoCongresso. Empenhado na eficiência, é característico de Executivo tender a presumir que os fins da ação do Estado, que ele próprio estipula, são objetivos nacionais inequívocos (“Não pensam no Brasil”) e que a questão é dispor de maneira adequada os meios. Mas a democracia se distingue pela problematização dos fins, reconhecendo-os como múltiplos e de compatibilização difícil. Como instrumento por excelência de garantia desse aspecto da vida democrática, não admira que o Judiciário seja alvo freqüente da impaciência do Executivo. Resta a dimensão da opiniãp popular. A popularidade do presidente é parte importante do jogo entre os poderes, condicionando o suposto “rolo compressor” no Congresso e provavelmente calçando a motivação dos desafios ao Judiciário. Sejam quais forem as boas razões administrativas que possam assegurar essa popularidade, aqui é que temos um possível “cesarismo” ou “bonapartismo” em potencial: como nas propostas do plebiscito brandidas a propósito da reeleição, em que a consulta popular surgia como corretivo a eventuais decisões do Congresso, a conexão direta entre o líder e as ruas poderia vir a transformar-se em fator de atropelo às instituições. Mas o curioso é que aqui é que as coisas se confundem de maneira desconcertante. Se o presidente evitou apoiar o plebiscito como tal, apesar de falar em “voz das ruas”, a consulta popular não só não foi objeto de clamor análogo às denúncias correntes de despotismo, mas foi mesmo unanimemente ungida em recurso sacrossanto. O governo FHC me parece caracterizar-se por claro déficit de investimento intelectual, com seu esforço de “aggiornamento” econômico podendo ser visto também como acomodação meio preguiçosa às perversidades das novas tendências mundiais. Mas há perplexidades para todos. I Fábio Wanderley Reis, 59, cientista político, doutor pela Universidade de Harvard (EUA), é professor-titular aposentado da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (Ibec). Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97. Texto 4 Sociedades civis vão pagar a Cofins dia 9 MARCOS CÉZARI da Reportagem Local 5 As sociedades civis de profissões legalmente regulamentadas recolhem na próxima sextafeira, dia 9 deste mês, a Cofins referente a abril (2% sobre a receita bruta). A tributação dessas sociedades (escritórios de engenharia e arquitetura, advocacia, economistas, clínicas médicas, dentárias etc..) foi instituída pelo artigo 56 da lei 9.430, de dezembro de 96. Cumprindo o prazo de 90 dias, a Cofins é devida a partir de abril. Até março, as sociedades estavam isentas da contribuição pelo inciso II do artigo 6º da lei complementar 70, de dezembro de 91. Polêmica 10 15 20 25 30 Apesar de ter sido estabelecida por lei e cumprido o prazo de 90 dias, a exigência da Cofias para as sociedades ainda causa polêmica, O advogado João Victor Gomes de Oliveira, do escritório de Gomes de Oliveira Advogados Associados, entende que a exigência continua sendo indevida. Ele lembra que o artigo 178 do CTN diz que a isenção só pode ser revogada ou alterada por lei. Assim, deveria haver a revogação expressa da isenção também por lei. Como a lei 9.430 não traz essa revogação expressa, Oliveira entende que a Cofins não poderia ser cobrada daquelas sociedades. Sem a revogação, a lei 9.430 está considerando aquelas sociedades “novamente como contribuintes”, diz. O advogado Plínio Marafon, da Braga Consultores e Advogados, discorda desse tese. Ele diz que quando há isenção, significa que há fato gerador. Entretanto, “a isenção impede que o fato gerador seja tributado”. Marafon entende que “a incidência já é uma revogação da isenção”. Em outras palavras, “é a retomada da tributação”. Isso dispensa a revogação expressa. Marafon cita uma decisão do ministro Moreira Alves, do STF, segundo a qual em casos de restabelecimento da tributação nem seria preciso cumprir os 90 dias. A decisão foi dada em um caso de retomada de tributação do ICMS. O ministro entendeu que não era preciso esperar o exercício seguinte ( princípio da anterioridade) para restabelecer a tributação. Seguindo esse raciocínio, Marafon diz que nem seria preciso esperar os 90 dias para voltar a tributar as sociedades. “O governo cumpriu o prazo para evitar brigas na Justiça utilizando esse argumento”. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97 Texto 5 OMBUDSMAN Imprensa resiste à dureza da lei MÁRIO VITOR SANTOS A nova versão da Lei de Imprensa, que veio a público na semana que passou, acaba com a pena de prisão para os crimes de ofensas praticadas por jornalistas. I 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 O projeto do deputado Vilmar Rocha (PFL-GO), ainda em discussão em comissão da Câmara, prevê a substituição da prisão por penas de indenização, multa e prestação de serviços comunitários. Agora, não mais se estabelece, como antes, um teto para a indenização aos ofendidos, equivalente a 20% do faturamento bruto da empresa. O projeto, porém, mantém alguns parâmetros importantes para a fixação do valor da indenização em caso de ação judicial. Determina que ela deve levar em conta “a extensão do prejuízo à imagem do ofendido (pessoa física ou jurídica, parênteses meu), tendo em vista sua situação profissional, econômica e social”. Estabelece, ainda, como limitação ao item anterior, que a pena deve “respeitar a solvabilidade” do ofensor. Não há limites para as indenizações. A Folha, além de antecipar o conteúdo do novo projeto na quarta-feira passada, publicou sua íntegra no dia seguinte. O texto veio acompanhado de reação crítica da Associação Nacional dos Jornais. A entidade das empresas considera que as indenizações, “sem limites fixados, serão estabelecidas pelos juizes mediante forte dose de subjetivismo”. Enquanto os empresários pedem limites, os jornalistas reclamam deles. Américo Antunes, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenai), considerou muito alta a multa prevista para jornalistas ofensores, de até R$ 50 mil (atenção, não confundir indenização com multa, são duas coisas diferentes). Jornais e jornalistas, portanto, já manifestaram opiniões críticas. A sociedade em geral, principal interessada, ainda não foi ouvida. A principal virtude do projeto é justamente a possibilidade de a pena de indenização ser proporcional ao dano causado pela ofensa. `Não haveria razão para que fosse de outro modo. por que os meios de comunicação no Brasil teriam que constituir o único setor privilegiado por um limite, que 55 os livrasse da coincidência entre 60 65 70 75 80 85 90 95 100 plena liberdade de ação e ampla responsabilidade pelas conseqüência? Se uma notícia ofensiva no “The Wall Street Journal”, por exemplo, acarreta a falência de uma empresa do ramo financeiro, por que não pode o jornal defrontar-se com indenizações de vulto, que reparem o dano eventualmente causado e até, como conseqüência, possam vir a ser fator de instabilidade ou falência para a empresa de comunicação? No caso do novo projeto de lei no Brasil, essa possibilidade nem existe, ao que parece, pois ele recomenda que seja “respeitada a solvabilidade” das empresas. Essa cláusula - será que é constitucional? - talvez isente grande número de empresas jornalísticas de multas mais significativas. Muitas delas, principalmente fora dos grandes centros, podem provar ser insolventes e livrar-se da pena. Interessa ao público e também aos veículos, na minha opinião, que haja mais responsabilidade. É preciso pensar muitas vezes antes de publicar algo que, por má-fé ou imperícia, possa ser ofensivo a quem quer que seja, Um processo pela Lei de Imprensa no Brasil deveria causar tanto temor quanto causam ações semelhantes nos Estados Unidos, por exemplo. A lei, depois de debatida e aprovada, pode levar a uma evolução nos critérios de qualidade e na credibilidade dos órgãos de comunicação, instaurando mais racionabilidade dos órgãos de comunicação, instaurando mais racionalidade à competição. Talvez, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações. Garantida a liberdade de informação, um lei mais rigorosa será, no devido tempo, benéfica para a sociedade e para os próprios veículos. Em tempo: o projeto considera dever dos meios de comunicação manter serviço permanente de atendimento ao público, como o deste ombusdman da Folha. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97. II Texto 6 Caso pataxó: tentando entender MARTA SUPLICY 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 Precisamos tentar compreender as razões que elevaram rapazes que comem bem, têm convívio familiar e freqüentam boas escolas a se portarem com a selvageria demonstrada ao incendiar o índio pataxó, como “brincadeira” do grupo. O caso tem algumas similaridades com o ocorrido na mesma semana nos EUA, onde dois adolescentes de 18 e 17 anos mataram dois entregadores de pizza “para sentir a emoção de matar uma pessoa”. Planejaram os assassinatos a sangue frio, sem conhecer as vítimas, Diferentemente dos “bem nascidos brasileiros, os americanos eram “problemáticos”, Um tinha largado a escola, e o outro tinha passagens pela polícia , tendo como hobby atirar em pessoas com pistolas de bala de chumbo. Em comum esses têm a mesma programação violenta da televisão e a sociedade de consumo, na qual as pessoas valem pelo seu status e não como seres humanos. Desde a infância, essa geração tem sido submetida à violência ímpar dos meios televisivos. Ela vai desde os desenhos animados, aos filmes e telejornais. A maioria das crianças não tem ninguém para decodificar o que vê. Um foguete que estoura no bandido, e ele reaparece segundos depois, inteiro, ou uma bala que atinge um gangster no coração, e ele continua a dirigir, não causam estranheza para uma criança com menos de sete anos. Ela não tem pensamento abstrato, não consegue elaborar que, na realidade, aquilo não se passa assim. Como disse um menino ouvido por pesquisadores americanos: “Eu não sabia que levar um tiro sangrava e doía”. Além disso, a criança e o adolescente são expostos a formas extremamente violentas de reagir ao que não agrada ou à frustração. Não se aprende a negociar: falou algo que não gostei, toma um soco ou um tiro. E, no desenho, ou no filme, fica tudo por isso mesmo. Solidariedade, então, nem se fala. A criança se torna adolescente e a violência social a que está exposta vai se ampliando. É o telejornal que invade, ao vivo, colorido e aos gritos, a casa dos suspeitos de crime, sempre pobres e na maioria das vezes negro; é a polícia agredindo ou matando o cidadão. isso ocorre tanto nos filmes quanto na vida real: quando se mata o vilão, não importa como, o bem foi 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110 115 feito. É tanto o caso dos meninos de rua da Candelária quanto o dos terroristas do Peru. Precisou ser filmada uma cena com policiais batendo e matando pessoas “de bem” para que a população e os governos percebessem que algo de muito sério está ocorrendo. Quando os direitos humanos só valem para alguns, acabamos todos correndo riscos. Mas, como vimos no hediondo caso de Brasília alguns, os mais feios, pobres e sujos, correm mais risco. Um senhor bem composto, à espera do ônibus em Brasília, dificilmente seria incendiado. E o que mais têm a TV e a família a ver com tudo isso? Situações que produzem medo, pânico ou angústia, como as sentidas quando se vêem filmes de terror ou violência, provocam uma descarga de adrenalina, com sensações muito parecidas com as do orgasmo. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se páreo para as de sexo explícito. Talvez para as de perversidade sexual. Os jovens absorvem essa intensidade de estimulação diariamente. Aí vão passear. E como se divertir obtendo o mesmo nível de excitação? A resposta é dada com clareza pelos assassinos adolescentes dos dois países: “Era para dar um susto nele”, “Era para sentir a sensação”. E por que só alguns agem assim? Não podemos esquecer o indivíduo, sua herança genética, seu limiar maior ou menor em relação à frustração, seu aprendizado, resultado da interação com os valores da sociedade, dom seus pais e familiares, amigos e professores. Temos os problema da desestruturação da família, a falta de interação entre pais e filhos, a valorização do dinheiro como bem supremo pela sociedade - quem não consome não é “gente” e, portanto, é descartável. Mesmo os pais que se preocupam com seus filhos têm pouco tempo para a convivência. Os filhos, quando adolescentes, sofrem uma pressão do grupo social e da mídia fortíssima. Pressão que será enfrentada com o que foi introjetado dos valores parentais somados à capacidade única daquele indivíduo. No caso do Brasil, temos que acrescentar a impunidade a que estão acostumadas as classes mais abastadas. As escolas poderiam prover um contraponto, mas não dão a menor importância para a discussão dos direitos humanos, cidadania, constituição, ética e solidariedade. Recebi, em recente viagem, a Constituição da África do Sul, em tamanho I de bolso, material que é distribuído e discutido em todas as escolas do país. Um belo exemplo. A decisão do governador Cristóvão Buarque de definir um dia para que 120 o caso do índio pataxó fosse discutido em todas as escolas públicas de Brasília foi uma atitude neste caminho. Entretanto, essas discussões devem fazer parte dos currículos das escolas e não 125 ocorrerem só depois da tragédia consumada. Filmes violentos, Os depois de certo horário. Programas de TV que desrespeitam a cidadania, como o do apresentador que instiga uma jovem a colocar a mão num vaso 130 de vidro cheio de cobras e notas de R$ 100, devem ser revistos. Esses também provocam o gozo perverso, daí o seu sucesso. A educação maciça da sociedade quanto aos direitos humanos e valores éticos 135 e sua mobilização para repudiar os acintes que constantemente presenciamos na TV são passos importantes para uma sociedade mais civilizada. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97. Texto 7 Marxismo à lenha MARCOS AUGUSTO GONÇALVES Editor de Domingo 5 10 15 20 25 30 35 Sem programa e sem proposta viável para apresentar à sociedade, a esquerda - ou o que delas sobrou no Brasil - vai encenando um espetáculo patético, onde retórica alucinatória, no plano institucional, e instrumentalização irresponsável, no plano das ações, dividem a cena. No primeiro caso, o da contestação discursiva, o festival de tolices começa na instituição política e chega à Universidade e suas adjacências. Aqui, o grande trunfo do “pensamento” de esquerda é classificar o governo de “neoliberal”, e condenar o “desemprego em massa”, censurar o “entreguismo” das empresas estatais e referirse ao presidente como “déspota esclarecido”. Tem-se a nítida impressão de que esse tipo de crítica - sem a consistência teórica, sem demonstração objetiva, sem conseqüência prática parte de militantes do movimento estudantil, agira com cabelos grisalhos e barrigas avantajadas. Há exceções, 40 evidentemente - e Tarso 45 50 55 60 65 70 75 Genro, em que pese sua conversa engomada, é uma delas. No plano militante, a coisa é mais grave. Não falemos do MR-8, que virou claque de defunto. Mas da liderança do Movimento dos Sem-Terra, cujo primitivismo, se transformado em lógica de Estado e governo ... Por favor, reserve minha passagem. No movimento de invasões, estamos no estágio do marxismo a lenha. É evidente que a causa é tão justa quanto a distribuição de riquezas é injusta. A questão não é demonstrar que há desigualdade e que é preciso reforma -todos sabem. Mas que reforma? E como fazê-la? Isso, a esquerda rural - devo poupá-la da frase de Marx sobre a idiotia do campo? não quer saber. Chega ao cúmulo de invadir terras da Vale para pressionar contra a privatização. Instrumentaliza um bando de coitados para criar fatos políticos. 80 85 90 95 100 105 110 115 E faz tudo isso sob o manto mítico da glória e da ousadia revolucionária, causando frisson em meia dúzia de intelectuais culpados e basbaques. Gente que assiste esse simulacro de maoísmo, comendo pipoca na almofada, como se fosse filme de Bertolucci. O resultado prático é o crescente isolamento da esquerda e o vácuo oposicionista. A chance de avançar nas políticas sociais, pressionando um governo que vacila nesse terreno, mas que poderia ser sensível a projetos consistentes, vai sendo perdida. Como vai se perdendo a possibilidade de aproximação com os setores sociais que, mesmo integrados à nova ordem, têm problemas com ela - do abandono da saúde à criminalidade, passando por educação, transporte etc.. Mas isso é real demais para interessar à esquerda. Ela não resolve problemas práticos, como se sabe. Só as grandes questões da humanidade. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 16/04/97. II Texto 8 “Só não citei Barros por dó”, diz autor da ação IGOR GIELOW da Reportagem Local 5 10 15 20 25 30 Para um dos autores da principal ação contrária à privatização da Companhia Vale do Rio doce, Luiz Carlos Mendonça de Barros só não foi citado em seu texto por “comiseração, dó mesmo”. A afirmação é do advogado Celso Antônio Bandeira de Mello. “Não tenho por costume polemizar com pessoas de nível muito baixo, que só têm notoriedade pelo cargo que ocupam”. “Existem pessoas que são maiores e emprestam dignidade ao cargo que ocupam. Em outros casos, pessoas menores surgem à tona revestidas da dignidade do cargo”, completou. Segundo o advogado, a “dó” foi expressada ao deixar o nome de Mendonça de Barros fora da ação. “Não incluí seu nome por bondade. Nesses casos, quando perde a ação, o agente responde patrimonialmente. Imagine o pavor desse pobre homem sabendo que teria que pagar centenas de milhões de reais”. Mas Bandeira de Mello dá a deixa, lembrando que o Ministério Público sempre pode pedir a citação do presidente do BNDES. O advogado afirma que Mendonça de Barros não tem noção do risco que corre. “Para usar palavras de FHC, ele é um moço tosco. Não tem consciência, é imprudente, sem qualificação e indelicado”. 35 40 45 50 55 60 Em relação à referência à “idade avançada” de autores da ação, feita pelo presidente do BNDES, Bandeira de Mello ironizou. “A exceção do professor Goffredo (da Silva Telles), acho que todos têm mais ou menos a minha idade, O professor é um dos maiores nomes do Brasil. Vivi o suficiente para aprender a ter comiseração pelas pessoas”, disse o advogado, que tem 60 anos. Mendonça de Barros tem 54. O advogado responsabiliza FHC pelo que chama de “escalada para a ditadura, bem urdida (tramada)”. “FHC é muito lúcido e competente, porque mantém um manto de silêncio na mídia. Ele está montando um modelo ditatorial à moda do (presidente peruano Alberto) Fujimori, do (presidente argentino Carlos) Menem”. Afirma também que o governo errou ao achar que o Judiciário agiria como o Legislativo - em sua opinião, FHC “está acostumado a vergar os partidos”. Do ponto de vista técnico, o advogado diz não ser contrário às privatizações. “Nem eu nem a maioria dos autores da ação. mas o problema é que há ilegalidades que até um bisonho estudante de direito percebe”, afirmou. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97. Texto 9 COISAS DA POLÍTICA Serventia da casa DORA KRAMER 5 10 Soam extemporâneas e inúteis as reclamações dos ministros candidatos em 1998, que resolveram explicitar publicamente o desejo de desfrutar das benesses dos cargos até a undécima hora. repetem às escâncaras agora o que há tempos vinham dizendo nos bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até abril, como já avisou o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla, geral e irrestrita. Como sempre, o apego assumido e sem constrangimentos parte com mais força do PMDB, partido cujas lideranças, à falta de projetos unitários e consistentes para o país, dedicam-se com afinco à administração de suas conveniências individuais. Nisso, perdem o pé da realidade. Agora, por exemplo, a ala governista diz que só sai do Ministério depois que pela mesma porta passar o último tucano, enquanto o presidente pemedebista vocifera que só reúne o partido depois que os ministros saírem do governo. II 15 20 25 30 35 40 45 50 Esquecem-se de que não cabe a nenhum deles decidir até quando, ou mesmo se, ficam num governo que não só não ajudaram a eleger - o candidato deles em 1994 chamava-se Orestes Quércia, lembram-se? - como hesitam em apoiar. O presidente, até segunda ordem, ainda se chama Fernando Henrique Cardoso e não Eliseu Padilha, o ministro (dos Transportes) que se tem confrontado mais diretamente com a hipótese da saída dos candidatos até dezembro. Entrar o ano de Ministério quase novo serão seis as trocas - é não apenas uma decisão do governo, mas principalmente de campanha. E não será o PMDB , que vai determinar os rumos das orientações estratégicas do presidente em busca da reeleição. Os reclames, que também existem com menos vigor do PFL, soam extemporâneos porque há algum tempo no próprio governo chegou-se a cogitar de um recuo na reforma, chegando a ser aventada a possibilidade de os ministros-candidatos saírem mesmo todos em abril. Agora, no entanto, o quadro é diferente. O Planalto mantém em segredo qual será a senha, mas por lá já se percebe claramente que em dezembro a porta de saída será mesmo serventia da casa para quem quiser concorrer às eleições. No primeiro dia do ano o presidente terá novos titulares nas pastas da Previdência, dos Transportes, do Desenvolvimento Regional, do Meio Ambiente e da Indústria e Comércio. Sairá também Luís Carlos Santos, da Coordenação Política, mas o ministério será extinto. Santos, aliás, só ficará até lá porque o líder do governo na Câmara Luís Eduardo Magalhães, não aceitou acumular missões de varejo político que , em janeiro, o governo espera que sejam apenas residuais. Devido ao recesso parlamentar, ao início da campanha eleitoral dos estados e ao abandono temporário das votações das reformas constitucionais, à exceção talvez da tributária. A partir daí, inclusive, a tarefa de articulação congressual de Luís Eduardo fica naturalmente esvaziada, o que implicará seu afastamento do cargo. A liderança será, então, ocupada em sistema de rodízio por representantes dos partidos aliados. Quanto à reforma ministerial propriamente dita, o presidente Fernando Henrique avisa que não pretende formar uma equipe de secretários-executivos, possibilidade que chegou a ser temida pelo PFL e defendida pelo ministro do Gabinete Civil, Clóvis Carvalho. Nessa hipótese - chamada no Planalto de “o ministro Clóvis”-, o segundo escalão simplesmente seria elevado à condição de primeiro, deixando as trocas para valer para serem feitas no caso da obtenção de um segundo mandato. O PFL ficou contra porque enxergou aí uma forma de o PSDB controlar o governo, sob a ação direta de Clóvis Carvalho, já que há tucanagem grassa no segundo escalão. O problema é que a idéia é considerada excessivamente burocrática não serviria para o projeto de Fernando Henrique de governar no ano eleitoral com um equipe que passasse à opinião pública a imagem de um governo de ação. A princípio, os partidos que ocupam hoje os cargos poderão indicar substitutos, desde que os nomes combinem com a concepção de dinamismo administrativo. Se chegarem a um acordo, muito bem. A palavra usada no Planalto é “parabéns”. Se não, o novo ministério sai de qualquer forma, o mais tardar na última semana de dezembro. Fonte: Jornal do Brasil, 22/10/97. Texto 10 LOGOSOFIA - A força da palavra González Pecotche U 5 10 m dos elementos que mais freqüentemente utiliza o homem, tanto para fazer-se entender como para estabelecer uma relação harmônica com seus semelhantes, é a palavra, condutora do pensamento individual e que contribui em muito para a formação do próprio conceito. A importância que ela reveste, ou melhor, assume na vida, evidencia-se em múltiplas formas, e quanto mais respeitável é a posição do que fala, tanto mais confiança inspira sua palavra, a qual, não sofrendo modificação alguma, se manterá como elemento de juízo para prestigiar o conceito de quem a emite. Quando a palavra é pronunciada para manifestar uma convicção, definir uma atividade ou uma situação, ou expressar um sentimento, e leva em si o sadio propósito de oferecer aos demais a oportunidade de conhecer o pensamento que a anima, tende sempre a II superar o conceito de quem a emite. Outra coisa acontece com aquela que é pronunciada com a intenção de enganar ou que surge sem reflexão, num impulso fugaz, porquanto costuma afetar ou ferir aos que a ouvem, ainda que nada tenham a ver com a mesma, pois só o fato de escutá-la causa-lhes mal-estar, contribuindo, conseqüentemente, para que se elabore um juízo adverso a respeito de quem a expressou. (...) Quem pensa bem se esforça em falar melhor. Benéfico resultará, então, aprender a sincronizar os movimentos da mente com a expressão oral, de modo que a palavra seja a condutora fiel do pensamento. Isso fará com que a palavra se revista de interesse, contrariamente ao que ocorre quando se fala sem pensar no que se diz, pois, neste caso, a palavra costuma parecer vazia ou sem sentido. Se se quisesse apresentar uma imagem que refletisse com mais convívio colorido o mecanismo da palavra, haveria que imaginá-la como um vagão que, à medida que passa pelo conduto vocal, é preenchido com o pensamento que formará seu conteúdo Quando não se realizou previamente o trabalho mental que haverá de preencher essa função, o vagão, ou seja, a palavra, sai vazia. Ao contrário, quando tal trabalho é realizado, o pensamento é conduzido pela palavra que se emite, podendo, então, ser estendido os trilhos, a fim de que o vagão, com seu correspondente conteúdo, cumpra sem inconvenientes seu destino. Tal acontece com aqueles que ensinam, com os que falam e estabelecem a afinidade de pensamentos com os que os escutam e ainda com todos aqueles que, por sua elevada posição de estadistas, homens de ciência, etc., dirige suas palavras à humanidade, quem sabe está à espera delas. (...) Em síntese: a palavra é um dos elementos com que o homem pode conquistar sua felicidade ou causar seu infortúnio, segundo sejam as manifestações de seu próprio espírito. 15 20 25 30 35 Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97. Texto 11 Pena de prisão Hindemburgo Pereira Diniz* H 5 10 15 20 25 á poucos dias, diante de comentário meu a propósito da demora do Congresso na revogação da lei de imprensa imposta no regime militar, fui surpreendido com manifestação indignada de interlocutor amigo pelo fato de o projeto em andamento na Câmara dos Deputados excluir, em princípio, a pena de morte para crimes contra a honra praticados por jornalistas no exercício da profissão. Não me refiro a você que é criterioso, “sobretudo quando escreve”, mas é um absurdo dar-se esse privilégio ao grupo mais bem dotado de instrumento para atacar a honra dos outros. Falou em tom exaltado. Eu estava de bom humor, mas senti necessidade de esclarecer que já não sou mais jornalista. Fato do passado. Só então, num diálogo que se foi acomodando, abrindo espaço para audiência recíproca, pude esclarecer meu ponto de vista, afinal aceito. Entendo que o ideal seria excluíremse da lei de imprensa, justificável para tratar de outros ângulos dessa atividade essencial à vida democrática, todos os preceitos destinados a tipificar crimes contra a honra e fixar penalidades. Tratam-se de matérias próprias do Código Penal. Acontece que 30 existem dois aspectos perturbando o bom 35 40 45 50 55 critério, que não podem deixar de ser considerados pelo analista brasileiro. O primeiro é a lei vigente, instrumento de arrocho, torneado pela ditadura, contra a liberdade de imprensa, que não é um direito do jornalista, como erradamente se pensa, mas da própria sociedade para a prática do autogoverno. Sem informações de fontes independentes, plurilateralizadas na maneira de ver, não teria como se orientar. O segundo é a qualidade da estrutura carcerária no Brasil. O país que não tiver condições mínimas de manter a pena de prisão sob orientação pedagógica, objetivando, além do castigo, a recuperação do infrator, deve adotar outra opção - há diversas - a fim de punir, sem agressão à dignidade humana, aqueles que não constituem ameaça à sociedade. Ora aqui no Brasil, em todos os Estados, os presos condenados são normalmente objeto de sevícias que os embrutecem e distanciam ainda mais, muitas vezes definitivamente, do nível mínimo de comportamento aceitável pela ordem social operosa. Além de perderem a liberdade, em conseqüência dos II 60 65 70 75 erros que cometeram, são submetidos, no convívio sem discriminação com o universo da população prisional, a práticas infamantes que os desqualificam na seleção dos recuperáveis. Tudo sob o olhar indiferente dos servidores públicos que os deveriam proteger, mas que, pela intimidade emperdenida com a desonra, sem aptidão nem diretriz para orientar, não identificam os decaimentos para as profundezas do opróbrio. Por essas razões, sou contra a pena de prisão para os infratores eventuais da lei e para todos que embora autores de crimes mais sérios, (mas não hediondos), sejam recuperáveis, pelo menos enquanto não dispusermos de condições de implantar e dirigir competente e humanamente estruturas carcerárias onde a transcendência que nos distingue dos outros animais não seja agredida. No meu juízo, a prescrição ou sugestão de pena de cadeia, no Brasil atual, anima-se na irreflexão ou no sentimento sádico. Vem então a pergunta final. Por que 80 só os jornalistas estarão livres, nos crimes contra a honra, dessa pena indigna? A resposta é simples: o ordenamento específico irá disciplinar apenas atos ilícitos praticados por jornalistas. Veja-se também que os 85 profissionais de imprensa, pelo fato de exercerem necessariamente a função de fiscalização e crítica, são os mais expostos à possibilidade de errar nesse campo. Não seria justo, em um projeto que ainda se vota, 90 submetê-los a punição de natureza medieval, pelo fato de o Código Penal brasileiro continuar a adotá-la, insensível às razões que a condenam. 95 *Consultor, presidente do Conselho Consultivo do Condomínio dos Diários e Emissoras associados. Fonte: ESTADO DE MINAS, 22/10/97. Texto 12 Os grandes obstáculos Q 5 10 15 20 25 30 uando esteve recentemente em Belo horizonte, o ex-secretário de Estado Henry Kissinger - o homem que arquitetou a paz entre Washington e Pequim - recomendou que o Brasil não devia vetar a Alca. O que se tem hoje é a superação dos Estados Nacionais, prevalecendo uma política das empresas transnacionais que controlam o mercado global. e repetiu o que havia dito em um artigo publicado simultaneamente em 50 jornais de 30 países: “O Brasil está pronto para exercer papel de peso na ordem econômica do futuro”. Que futuro? Já na chegada do ano 2000? Para isso, entretanto, necessita-se de uma política para coordenar os setores mais importantes da economia - uma política agrícola para dobrar a produção atual e assentar milhares de trabalhadores no meio rural, parque manufatureiro competitivo e grande avanço na área de ciência tecnologia e informática. Abstraindo os graves problemas internos - média de rendimento mensal per capita de apenas 400 reais, 38 milhões de carentes, 25 milhões de assalariados que recebem até 120 reais por mês (inclusive 11 milhões de aposentados do INSS), educação deficiente, etc. - o quadro não parece favorável. É que o Brasil não tem poder de 35 40 45 50 55 60 fogo para competir com os vinte maiores exportadores. Para sair do patamar de vendas externas de 5o bilhões de dólares, muito terá que ser feito. A este respeito, dados da Confederação Nacional da Indústria - CNI mostram a penúria brasileira quanto ao comércio exterior. Apenas seis setores de nossa economia respondem por quase 54% das exportações, e apenas 590 empresas, de um conjunto de 13.220, abocanham 78% delas. Atualmente o comércio externo está mais equilibrado do que nos anos 60, quando quase metade da pauta era exportada para os Estados Unidos. Perfil dos parceiros do Brasil hoje: a União Européia fica com 24,9% das exportações, Estados Unidos 20% e os países da Associação Latino-Americana para o Desenvolvimento Industrial (Aladi), 23%. O secretário executivo do Ministério da Indústria e Comércio, Paulo Jobim Filho, afirma que essa concentração de vendas em poucos setores não pode perdurar, pois não é saudável, e o Brasil precisa ampliar cada vez mais o mercado para seus produtos. Problemas de Transportes, alto custo dos portos, telecomunicações, juros altos e falta de tecnologia são os grandes obstáculos à exportação brasileira. Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97. II Texto 13 A força das PMEs 5 10 15 20 Uma pesquisa do Sebrae/MG reafirma uma verdade conhecida de todos: as empresas mineiras têm vida curta -quase 50% das que foram constituídas nos últimos dois anos fecharam as portas. Mais uma constatação da vida empresarial no Brasil em poucas chegam completar 25 anos. Os empresários relacionam as principais causas dessa realidade: falta de capital, daí aquele antigo “quem não tem competência não se estabelece” a ação dos concorrentes, a excessiva e complicada sistemática tributária e a inadimplência. Não se deve considerar irrelevante o fato de cerca de 70% das “empresas mortas” terem apenas dois empregados e 10% mais de contratados. ë que, se 500 mil empresas receberem orientação e crédito seletivo, poderão em pouco tempo abrir 1 milhão de novas vagas. O estudo do Sebrae chega em boa hora, pois o governador do Estado vem de lançar o Programa de Fomento ao Desenvolvimento da Micro e Empresas de Pequeno Porte (Micro Geraes). Na verdade, é 25 mais uma entre tantas iniciativas visando a dar vida legal a milhares de empresas informais, a chamada “economia clandestina”. Para os integrantes da Associação 30 Mineira de Microempresa (Amipeme), o importante neste momento é a Assembléia Legislativa trabalhar com vontade para que o projeto seja aprovado até o fim do ano e entrar em vigor no início de 1998. Como se 35 diz que há no Estado 350 mil firmas de pequeno porte, pode-se concluir que, aprovado o projeto, em breve prazo elas poderão criar pelo menos 350 mil novos empregos, um por empresa. Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97. Texto 14 Estaca Zero E 5 10 15 20 25 m qualquer acontecimento policial no Rio, incluindo seqüestro, o mais hediondo de todos eles, polícia sempre está na estaca zero. A falta de investigação, em decorrência da inexistência de trabalho técnico no local do crime, já se tornou proverbial. O leitor da crônica policial nem se recorda da última vez que a polícia fluminense desvendou um crime a partir de impressões digitais ou outras pistas colhidas no local. Instrução de processo? Dois terços dos processos criminais são descartados pela justiça por falta de elementos, dos quais um terço é devolvido para mais investigação e outro terço arquivado por absoluta inconsistência das provas. Em geral a acusação contra o suspeito é baseada na confissão, obtida sabese como. Basta negá-la diante do juiz, sob orientação do advogado, para reverter o quadro. Quanto menor a quantidade de provas para incriminar suspeitos, maior a burocracia que envolve a atividade policial, caracterizada por inoperância generalizada. 30 35 40 45 50 Cada corporação policial apura o crime de forma diversa. Se a polícia fosse uma só, as providências seriam unificadas. Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para levá-lo ao quartel. Aí, será solto ou conduzido mais tarde à delegacia. O delegado, único competente para detê-lo, decidirá se a prisão é legal. É possível avaliar o tempo perdido? O suspeito deixou de ser suspeito em função da burocracia e não da investigação. A quantidade recorde de seqüestros traduz o desaparelhamento da Divisão AntiSeqüestro (DAS) para enfrentar quadrilhas cada vez mais sofisticadas. Enquanto isto - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente desarticuladas. E não há no caso do DAS, sequer um banco de vozes e de digitais para identificar o extenso exército que se expande a olhos vistos. Fonte:JORNAL DO BRASIL, 22/10/97 II Texto 15 Inferno Kafkiano A 5 10 15 20 25 30 emissão de certidões negativas via internet, anunciada pela Secretaria da Receita Federal, não deve ser saudada como mero capricho do Estado na modernidade tecnológica. Como brincadeira digital na era do ciberespaço. Precisa ser entendida, inclusive pelo próprio Estado, como começo ( ou possibilidade) de saudável revolução na burocracia oficial. Início de nova forma de relacionamento com o cidadão. Só quem já viveu a experiência de obter certidões negativas, ou qualquer outro documento de órgão público, pode avaliar o alcance da mediada. O universo kafkiano em que transformaram o aparelho burocrático, em todas as esferas de poder, é o mais cruel instrumento de opressão contra a cidadania. Obstrui o Judiciário entupindo os canais de acesso à Justiça e pune o inocente nos guichês do Executivo. O inferno burocrático é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência da corrupção. Foi montado pelas máfias incrustadas no serviço público para criar dificuldades e vender facilidades. ou para esconder os ralos por onde escoa o dinheiro público. O dia em que o cidadão puder obter qualquer documento via modem, acessando de um computador pessoal, o Estado poderá dispensar a maior parte dos servidores 35 40 45 50 55 60 públicos. Eliminará centenas - talvez milhares - de seções e repartições, economizará em aluguéis, material burocrático, transporte, telefone e muitas coisas mais. Uma decisão dessas só pode incomodar os que lucram com a dificuldade alheia. Por que o contribuinte precisa ir ao Detran, entrar em fila, dar entrada, receber protocolo e outras exigências para conseguir um “nada consta” de seu automóvel? Bastaria que o órgão de trânsito mantivesse num banco de dados com acesso público. É providência tecnicamente simples. Não é difícil entender por que a burocracia não quer. O uso da Internet no serviço público livrará o cidadão de filas, gorjetas, carimbos, propinas, senhas, protocolos, vistos e despachos. Desburocratizar e facilitar o acesso do contribuinte à informação é fazer a mais legítima democracia. O que se tem tentado nesse caminho esbarra no interesse das máfias. Porque é possível fazer tudo o que a burocracia faz com menos funcionários. O exemplo da Secretaria da Receita Federal bem poderia ser o começo de um Estado mais justo. Um bom motivo de reflexão para o ministro da Administração e Reforma do Estado, Bresser Pereira. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97 Texto 16 Pressão dos Juros Q uanto mais esquentar o clima político que precede as eleições, mais atenta deve ficar a opinião pública para separar o que é retórica do que é 5 verdade. A questão dos juros já entrou naquela faixa onde uns dirão que o Brasil está pagando um preço escorchante pelo dinheiro, e outros que as taxas estão caindo, mas ainda há muito chão pela frente até os 10 juros aterrissarem em patamares civilizados. Foi mais ou menos este o tom do diálogo aberto entre o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o novo presidente da Abrasca, Alfried Plogher. A entidade reúne 15 as sociedades anônimas de capital aberto, com um faturamento de 284 bilhões de dólares, o que representa cerca de um terço do PIB brasileiro. Quem apoia o governo encontrou 20 mais um motivo nos rasgados elogios do Sr. Plogher às reformas que permitiram, por exemplo, um tratamento diferenciado aos dividendos pagos aos acionistas, ou à estabilidade que permite planejar a longo 25 prazo. Quem procurou munição para críticas ficou com a parte do discurso que apontou as altas taxas de juros reais, num contexto onde só um pequeno número de sociedades anônimas abertas consegue rentabilidade 30 anual média acima de 6%. É preciso parar de procurar bruxas onde elas não se encontram e ampliar o tamanho dos fantasmas para usar como munição demagógica. O ministro da Fazenda 35 encarregou-se, ele mesmo, de dizer onde está o coração do problema: no déficit II consolidado do setor público. Um estudo recente do FGV mostra que “o déficit fiscal da União, estados e municípios, no conceito 40 operacional, saiu de -1% do PIB (superávit) para prováveis 3% entre 1994 e 1997. “Essa é a tarefa”, disse o ministro da Fazenda, referindo-se ao trabalho que ainda há a fazer para cortar gastos, reduzir custos, 45 enxugar e modernizar a máquina pública, a partir da aprovação da reforma administrativa pelo Congresso. Procurar encontrar fantasmas onde eles não existem, ignorar ou exagerar as expectativas que se formam nos 50 mercados significa desviar o foco da atenção. Não é esse o caminho para amadurecer o debate político. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97. Texto 17 Além do Câmbio O 5 10 15 20 25 30 acentuado descompasso entre o lento crescimento das exportações nos últimos três anos (média anual de 5%) e a acelerada expansão das importações não se deve às questões cambiais, mas à diferença entre o baixo valor agregado das exportações e o alto valor tecnológico embutido nas importações feitas pelo Brasil. Chega a ser monótono e enganoso atribuir ao atraso do câmbio, corrigido pelo governo desde abril dentro das possibilidades - à falta da aprovação pelo Congresso das reformas fiscais -, os déficits da balança comercial, Há muitos outros fatos que impedem melhor desempenho das exportações. A valorização do dólar na Europa e no Sudeste asiático retraiu, é certo, as vendas externas. Os altos custos portuários e da navegação inibem as vendas em geral, tanto que, em termos de blocos de comércio, as exportações só aumentaram para os países da Aladi, sobretudo os do Mercosul, onde predominam as transações por via terrestre. Enquanto o comércio mundial cresce à média de 7% ao ano nesta década, as exportações brasileiras andam a 4,5% ou 5% ao ano. Desde que a abertura comercial começou a tirar, no governo Collor, a elevada rede de proteção à indústria e ao produtor 35 40 45 50 55 60 nacional, as importações multiplicaram-se por três. Este ano, cresceram 25%. Na lista dos 20 produtos que apresentaram maior taxa de expansão no comércio mundial de 1985 a 95, o Brasil figura como concorrente internacional em apenas quatro, e com participação modesta. os microcircuitos eletrônicos e as unidades digitais centrais de memória movimentam US$ 150 bilhões em 95. O Brasil foi mero importador. O país precisa modernizar-se para competir num mercado global e isso exige mais importações de máquinas e equipamentos num primeiro momento. Mas o que está fazendo para sair da condição de exportadores de manufaturados de baixo valor agregado (salto dado nos anos 70, quando tinha pauta de exportação essencialmente agrícola e de minérios) para participar do banquete da globalização? O BNDES identificou áreas promissoras do comércio mundial. Em vez de chorar a perda de mercado para o produto , de melhor qualidade e que chega ao país em condições inigualáveis de financiamento, cabe aos empresários e ao governo arregaçarem as mangas para inserir rapidamente o país na pauta de produtos que irão liderar o comércio mundial. O Brasil não pode perder o trem para o século 21. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97. Texto 18 Mídia e governabilidade MÁRCIO PORTES * As discussões sobre a nova Lei de Imprensa chamam a atenção para aspectos bastante importantes da atividade jornalística no Brasil. Um dos mais relevantes se refere à 5 liberdade de que necessitam os meios de comunicação para exercer o papel de críticos do poder dos que o exercem em nome da população. É esta liberdade que estará II ameaçada caso entre em vigor o texto da 75 aspecto da lei coloca espadas sobre a cabeça 10 nova lei já aprovado na Comissão e Justiça dos jornalistas. Como denunciar sob ameaça de ter de pagar adiante multas abusivas que poderão quebrar a empresa? O risco pode não ser tão grande para grupos maiores, mais fortes, mais saudáveis. Mas e quanto a jornais do interior, sujeitos a todo tipo de pressão política e distantes do olhar geral? E os jornalistas de municípios menores de grotões esquecidos deste país? Como investigar a fundo assuntos polêmicos e assinar matérias que, em situações-limite, poderão ameaçá-los a desembolsar uma quantia que levariam toda a vida para economizar? É evidente que não se deve deixar de lado questões da maior importância. Toda empresa, seja ou não de comunicação, está sujeita a cometer erros. Elas devem ser cobradas e pagar por eles. Cabe à Justiça decidir sobre a indenização, sempre de acordo com critérios que não coloquem em xeque a viabilidade e a sustentação financeira de cada corporação. Se um fabricante de eletrodomésticos produz um aparelho defeituoso ele não terá sua sobrevivência ameaçada por penalidade abusiva. O raciocínio vale para todos os segmentos da indústria e do comércio. O que é necessário, no caso das empresas de comunicação (isto sim é muito importante). é fixar regras claras e bastante rígidas para o direito da resposta. Ele é fundamental para evitar injustiças, facilitar correções e evitar que qualquer indivíduo seja eventualmente prejudicado por uma informação incorreta ( o que sempre pode acontecer) ou ( o que também pode ocorrer) por perseguições de caráter pessoal ou político. É neste ponto que se deve comentar um papel da maior importância desempenhado pela imprensa no Brasil. Trata-se de sua capacidade de atuar como aglutinadora das expectativas e anseios de milhões de cidadãos sem espaço para fazer com que suas vozes sejam ouvidas. imprensa tem sido a verdadeira ombusdman da sociedade brasileira nos últimos anos. Foi ela que ajudou a denunciar os abusos cometidos nos tempos de repressão política, a viabilizar a anistia, a resgatar a liberdade democrática (com a volta das eleições diretas inclusive para presidente), a levar a cabo o impeachment de um presidente acusado de corrupção, a denunciar a manipulação de verbas do Orçamento Federal e a estimular a investigação sobre a negociação irregular de títulos públicos estaduais. Ou seja, a mídia tem sido uma espécie de quarto poder que colabora com cada um dos outros três, ainda que denunciando irregularidades a que cada um está sujeito. Este poder não é dos proprietários dos meios de comunicação ( o que às vezes imagina, erradamente). Ele é da sociedade, que é o juiz mais adequado dos 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 da Câmara dos Deputados. A Lei de Imprensa que agora se propõe, apesar de bem intencionada e por maior que tenha sido o empenho de sua relatoria, promove distorções inaceitáveis e estimula o cerceamento à livre expressão. É isso, justamente, o que se precisa impedir. Gostaria de me incluir entre os que acham desnecessária a própria existência de uma Lei de Imprensa. Como já disse o presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho, “toda lei de imprensa é nefasta”. No caso específico da que agora se propõe, há muitas distorções a corrigir. Em primeiro lugar, não há razão para tratar distintamente a calúnia, a injúria ou a difamação praticada por um jornalista e a cometida por qualquer outro profissional. Por que um médico, advogado ou engenheiro deve estar sujeito a um Código Penal e um jornalista a uma lei criada especialmente para ele? Os rigores da lei têm de ser os mesmos para todo cidadão. Isso é justiça. Não há por que tratar diferentemente em jornalista. Se ele comete um delito, deve responder pelo ato como responderia qualquer indivíduo. Assim domo não se pode conceber qualquer cerceamento à liberdade de imprensa, é inimaginável que um jornalista disponha de tratamento especial caso incorra em delito previsto pelo Código Penal. É injusto, por princípio, que haja tratamentos diferenciados. A intenção de contemplar com legislação específica delitos cometidos por jornalistas é, na verdade, a de restringir a liberdade destes profissionais. É fácil atender porque o tratamento diferenciado é sinônimo, neste caso, de coerção e de restrição à livre expressão. Historicamente, é significativo o fato de que leis de imprensa costumam guardar estreita afinidade com regimes de exceção. Isso aconteceu em 1937, em pleno Estado Novo, em 1965, com a promulgação do AI-2, e em 1967, quando o Congresso aprovou a legislação ainda em vigor. Agora, num momento em que o Brasil vive sob liberdade democrática, o que se devia fazer era rasgar a Lei de Imprensa em vigor, resquício de um passado de autoritarismo e censura, e deixar que a sociedade se encarregue de julgar os veículos de comunicação. Como aceitar que ainda se conceba a apreensão de jornais e revistas? Ou que jornalistas possam ser multados até R$ 100 mil quando todos sabem que seus salários estão distantes destas cifras? Ou permitir que paire sobre estes profissionais a ameaça de prisão em caso de não cumprimento da prestação de serviços à comunidade? É igualmente inaceitável a proposta do estabelecimento de multas para os meios de comunicação sem fixação de um teto ou limite. É mais do que evidente que este 80 85 90 95 100 105 110 115 120 125 130 135 140 II meios de comunicação. O presidente Fernando Henrique Cardoso comentou, numa de suas viagens internacionais, que a “mídia não é o governo, é a governabilidade”. Nada 145 mais correto. É em nome desta governabilidade que se devia evitar a promulgação de uma nova Lei de Imprensa que terá como resultado o cerceamento à prática da atividade jornalística. A liberdade 150 é uma conquista recente da sociedade brasileira. É dever de todos desta mesma sociedade, do Congresso, lutar para preservála incondicionalmente. 155 * Secretário de Indústria, Comércio e Turismo do Estado do Rio de Janeiro e deputado federal pelo PSDB-RJ. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97. Texto 19 O ensino superior deve ser gratuito RUBEM MAURO MACHADO* 5 10 15 20 25 30 35 40 45 É todo dia: a gente abre o jornal e lá está alguém, até mesmo pessoas progressistas, com preocupações sociais, ao lado dos conservadores de sempre, repisando o argumento de que o ensino superior deve ser pago “por quem pode”. isso não é novidade. Nos meus 55 anos de vida, me habituei a ver surgirem e ressurgirem, com a periodicidade de um fenômeno da natureza, campanhas contra a gratuidade do ensino superior. Agora afirma-se que até o ministro da Educação é a favor de que se cobrem anuidades nas universidades públicas. O argumento principal é sempre o mesmo: não é justo que alguém que pode pagar estude de graça, financiado pelo conjunto da sociedade. Aparentemente uma afirmação irretorquível. O problema todo está na palavra pode. Ao que se sabe, os ricos e milionários não chegam a 5% da população brasileira. Ou seja, o grosso do contingente é formado pela classe média e o proletariado. E será que os integrantes desses extratos podem pagar uma faculdade? Considerando-se a média dos salários no Brasil, a resposta é altamente duvidosa. Quanto precisaria ganhar um chefe de família para que fosse considerado apto para pagar o estudo superior para si e/ou seus filhos (isso imaginando-se que a lei estabeleceria que “quem não pode” pagar continuaria a merecer ensino gratuito)? Quantos dependentes precisaria ter para merecer a isenção? Como seria possível estabelecer uma equação entre renda familiar e despesa familiar (e se, por exemplo, um dos parentes sofrer de doença cujo tratamento acarreta altos gastos)? A conseqüência inevitável seria um emaranhado de casuísmos legais e de intromissão do Estado na vida dos cidadãos, de um lado; e um convite à fraude, de outro. Sem falar na humilhação de honrados cidadãos submetidos à corrida por algum tipo de atestado de pobreza. E que órgão ou burocrata seria o juiz desses casos? A questão de “poder pagar” é altamente 50 55 60 65 70 75 80 85 90 subjetiva. pode até ser que algum mágico da classe média consiga hoje pagar a faculdade de, digamos, dois filhos; mas a custa de que sacrfícios? De modo que, na prática, salvo uma ou outra exceção, a lei acabaria de fato com a gratuidade. A conseqüência seria o desestímulo dos que procuram seu aprimoramento pessoal e profissional, além de um aumento da evasão nos cursos - e isso num momento em que quase todos os governos do mundo estão conscientes de que o maior capital de uma nação, a chave do futuro, é a capacitação tecnológica e cultural de seu povo. E o pior: os especialistas reconhecem que o aporte de recursos que a cobrança de anuidades traria é ínfimo e não resolveria de jeito nenhum a problemática do ensino superior, que continuaria a depender do mesmo modo das verbas federais. Resumo da ópera: o fim do ensino gratuito nas universidades públicas só beneficiaria as faculdades particulares, que, com menos concorrência, ganhariam mais clientela. Não, o interesse público diz que o caminho a percorrer é o inverso. O governo tem de parar de subvencionar os estabelecimentos particulares (muitos deles verdadeiros balcões de negócio) através de bolsas de estudos (e aqui é bom nem mencionara questão das fraudes) e investir esse dinheiro (e muito mais) na melhoria do ensino público gratuito. Educação não é despesa, é investimento. A cultura e o conhecimento são uma construção coletiva e todos devem ter livre e fácil acesso a esses bens. Escolas particulares têm todo o direito de existir: mas que sobrevivam por seus meios, não com o dinheiro do povo. Em tempo: Cobrança de anuidade escolar não é instrumento de redistribuição de renda. Aos preocupados com as injustiças sociais, recomenda-se que se empenhem pelas reformas tributárias e fiscais (neste país em que montadoras de automóveis não pagam imposto de renda) e vociferem em III favor do projeto de taxação das grandes heranças e fortunas. 95 * Jornalista e escritor, autor de Lobos (Record) Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97 Texto 20 VERÍSSIMO O outro caminho 5 10 15 20 25 PARIS - Devemos torcer para que esta aposta francesa numa alternativa para a receita americana dê certo, porque se ela falhar o mundo pode não ter outra chance tão cedo. Jospin precisa convencer os franceses, depois o resto da Europa - principalmente a Alemanha, que no ano que vem também escolhe a sua alternativa - e depois o resto do mundo de que seu capitalismo com cara de gente é viável, e que a lógica americana não é uma fatalidade nem aqui nem em qualquer outro lugar, leia-se o Brasil. A França é o país certo para mostrar esse outro caminho, não só pela sua história de independência e criatividade política, mas porque não representa uma opção muito radical. Na verdade, embora muitas vezes se identifiquem como opostos irreconciliáveis a França, o símbolo máximo das frescuras européias que os americanos tanto abominam, e os Estados Unidos, a terra do primarismo político e cultural que escandaliza os franceses -, os dois se amam, e se parecem. Nada na Europa é tão “americano” quanto a França, com sua adoração ao entrepeneur e sua fascinação pelo gadge. O “socialismo” de Jospin merece mais aspas até do que o de Miterrand, e sua alternativa não representa um retrocesso a 30 nenhum tipo de ortodoxia, mesmo porque o empresariado americanizado a boicotaria. O que Jospin propõe é um rearranjo de prioridades, uma lógica humana com sucesso medido pelo social. Mas o sucesso precisa 35 aparecer logo, Jospin tem pouco tempo para ser um bom exemplo. Senão, aprés lui, le sabe-se lá o que. Exemplo da esquizofrenia francesa com 40 relação aos Estados Unidos é a mitificação que eles fizeram de tudo que caracteriza o deserto cultural americano, ou tido que, nos Estados Unidos, é menos francês: os westerns, por exemplo, que a crítica de 45 cinema daqui tratava como os iluministas tratavam os clássicos, reiventando-os por uma razão diferente, e os policiais de segunda linha, quanto mais B mais significativos, E escolhendo heróis culturais 50 improváveis como Jerry Lewis, cujo endeusamento pelos franceses até hoje intriga e diverte os americanos. Foi a maneira que os franceses encontraram de ser americanos sem perder a pretensão intelectual jamais. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97. Texto 21 TEMA EM DISCUSSÃO: Ressarcimento do ICMS da exportação Aperto nos estados O s estados e municípios tiveram em seu conjunto enorme ganho de receita a partir da estabilização da moeda. O ganho mais expressivo 5 ocorreu no item de receitas próprias, através do ICMS. Se paralelamente a esse ganho, governadores e prefeitos tivessem conseguido conter os gastos públicos, estados e municípios estariam agora em situação bem 10 confortável, promovendo investimentos sociais indispensáveis para a população. II 15 20 25 30 35 40 45 Não foi o que aconteceu: as despesas correntes se elevaram de tal maneira nos primeiros meses do Plano Real que a maioria dos estados passou a apresentar déficit primário. Como não amortizaram um centavo da dívida e nem sequer conseguiram pagar parte dos juros, o endividamento cresceu em forma de bola de neve. para fazer investimentos, governadores e prefeitos têm dependido de repasses da União, créditos da Caixa Econômica Federal, ou financiamentos de órgãos internacionais. Recentemente passaram a contar com receitas de privatização. De modo a obrigar os governadores a equilibrarem suas contas correntes, o Governo Federal tem feito acordos para assumir dívidas estaduais, renegociando-as para pagamento em prazos de 30 a 36 anos. Ainda assim, o próprio Ministro da Fazenda já admite rever algumas das exigências, concordando que vários estados não terão condições de cumpri-las. Ao menos a privatização de companhias estaduais os governadores estão sendo obrigados a executar (embora os recursos da venda de estatais estejam sendo usados em boa parte para financiar obras). A insolvência crônica está levando os secretários estaduais de fazenda a exigirem mais ressarcimento do Tesouro Nacional em função de terem perdido uma suposta receita, decorrente de impostos inadequados que antes incidiam sobre exportações e bens de capital. O Governo Federal teve de assumir esse ônus, pois sem eliminação do ICMS tais exportações desapareceriam e os 50 investimentos diminuiriam, agravando a crise 55 60 65 70 75 80 econômica nos estados, pela perda de renda e empregos. Na verdade, os estados ganharam duplamente com essa mudança, pois além das exportações e dos investimentos terem sido mantidos, foram ressarcidos pela União de uma suposta perda de receita (ou seja, estão sendo indenizados por uma arrecadação que dificilmente iria existir). Existem situações peculiares que de fato precisam ser analisadas com cuidado, o que, aliás, está previsto no convênio formalizado com o Governo Federal. O ajuste fiscal não é uma tarefa fácil e tranqüila politicamente falando. É por isso que poucos governadores se dispõem a levála a cabo durante seus mandatos de quatro anos, preferindo empurrar o problema com a barriga até onde for possível. Quando a situação financeira fica insustentável, tentam fazer o ajuste pelo lado da receita, criando ou aumentando impostos. Ou ainda esperando o socorro de Brasília. Uma revisão nos cálculos não pode ser descartada no caso do ressarcimento do ICMS para se corrigir eventuais injustiças. Mas isso não pode se transformar em pretexto para que os estados afrouxem as rédeas do ajuste fiscal pelo lado das despesas. Ainda há uma enorme lista de desperdícios para ser atacada. E a privatização tem de ser acelerada, em áreas como saneamento básico, por exemplo. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97. Texto 22 Ética da desoneração ANTÔNIO BRITO A discussão sobre a chamada Lei Kandir deve começar repondo uma verdade: nenhum governador de estado, em nenhum momento, no 5 passado ou hoje, deixou de apoiar a desoneração das exportações. Todos temos a clara consciência da necessidade de ampliar a participação brasileira no mercado internacional e da 10 óbvia justiça em retirar impostos que prejudicavam o nosso esforço de venda de produtos nacionais, ainda mais quando a competição chega aos centavos. De forma isolada ou nas reuniões que 15 realizamos, nunca houve qualquer palavra em sentido contrário. Melhor, portanto, discutir a questão verdadeira: temos, como vem lembrando com firmeza o governador Mário Covas, um 20 compromisso do presidente da República de que os estados não pagarão a conta imediata do apoio à exportação. Concordamos que no médio prazo sejam todos vencedores - os exportadores, o 25 nível de empregos no setor e a economia dos estados. II A curto prazo, tínhamos, todos, a consciência da necessidade de um período de transição. Tanto que se criou um fundo de 30 ressarcimento. Hoje, no entanto, de forma injusta, os cálculos não correspondem aos prejuízos. E a solidariedade ética - sem a qual a Federação não existe de forma cooperativa 35 está sendo quebrada pela teimosia dos assessores do presidente da República. Para nós, esse é o ponto em discussão: o Governo Federal, de forma injusta, está dividindo a desoneração das exportações em ganhadores 40 e perdedores. Escalou-se para vencer. e nos impõe a derrota de, em pleno e sério processo de ajuste do setor público estadual, ficarmos sem recursos essenciais ao equilíbrio fiscal e 45 social do país. Acertamos e acertaríamos de novo desonerar as exportações. Mas não participamos de nenhum entendimento para desonerar nossas relações da ética e da 50 solidariedade devidas entre entes da Federação e, em especial, correspondentes ao clima até então fraterno e mutuamente comprometido com o esforço nacional de recuperação das contas públicas. 55 Prejudicar as exportações, ninguém quer, prejudicar a ética e a fraternidade entre os estados e a União, ninguém deveria querer. 60 Antônio Brito é governador do Estado do Rio Grande do Sul. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97. Texto 23 A velocidade de globalização: o desafio brasileiro LUIZ FERRANDO DA SILVA PINTO 5 10 15 20 25 30 35 O fenômeno da globalização mundial (onde o amanhã se faz hoje) traz consigo a necessidade de se produzir altas velocidades de mudança (modernização) dentro das instituições públicas e privadas, na busca de um futuro adequado, ao evoluir através de um oceano de imensos riscos e grandes incertezas. Estratégia pode ser entendida como um termo coletivo que abrange os instrumentos orientadores dessa busca do futuro. Assim denominaremos também essas velocidades de globalização de “velocidades estratégicas”. O seu manejo articulado e harmônico vem acompanhado de fortes alterações conjunturais, que no quadro atual terão que ser processadas, quase sempre, em tempo muito curto. essa contração do tempo disponível, para a concretização de inúmeras ações, vem rompendo com paradigmas e configurações clássicas de gestão institucional e empresarial, gerando-se “desenhos” não conhecidos até um passado muito recente. Nesse novo tecido de encurtamento do arco do tempo, posiciona-se por exemplo a política de fast track objetivada pelo Governo Clinton, para nortear medidas de comércio intencional dos EUA, ora em discussão e - aliás - sob cuidadosa observação e preocupação de muitas nações - inclusive o Brasil. Da mesma forma reuna-se a esse mesmo tecido todo um conjunto privado de rearranjos corporativos, tais como fusões, cisões, incorporações, participações em privatizações etc., além de novas configurações estratégicas - colorindo 40 45 50 55 60 65 70 o cenário internacional com traços muito específicos também no plano empresarial. Portanto, todos esses eventos ajustam-se ao traçado de um futuro onde o fator tempo encolhe-se e encurta-se demandando medidas superágeis baseadas em altíssimas velocidades estratégicas ao ter que percorrer todo esse novo cenário da globalização. A grande indagação é como possibilitar de modo correto que países em desenvolvimento, corporações e instituições possam produzir essas altíssimas velocidades sem desequilibrar “o todo já existente”. Os recursos a serem adotados serão inéditos? Desconhecidos da História? Ao nosso ver, não. “Assim, czar Pedro, O Grande, da Rússia (1672-1725) quando há 300 anos desenvolveu um projeto extremamente denso, competente, rápido e consistente de avanço global, já materializava uma solução notavelmente adequada para a produção de “velocidades estratégicas”. Tratava-se da implantação de uma ínsula urbana, uma “ilha virtual de desenvolvimento” (com a construção de São Petersburgo), área integrada e muito bem definida na qual se reuniriam: o compromisso com a modernização e o avanço técnicotecnológico do momento, facilidades de transportes, densidade educacional, atividade industrial muito intensa, ativação cultural e artística, preparo de elites para o comando, treinamento especializado de grandes contingentes de recursos humanos, organização flexível e abertura da economia convergindo todos esses programas para a II 75 80 85 90 95 100 105 110 115 120 125 130 produção e sustentação de um leque de projetos e centros de excelência. O resultado prático é que Pedro, O Grande iria resgatar 150 anos de atraso relativos às lideranças européias daquela época, num prazo central de apenas s15 anos de trabalho em sua “ínsula estratégica”, viabilizada pelo seu extraordinário conjunto de projetos especiais utilizados em São Petersburgo. A proposta de Pedro, O Grande, hoje, é reproduzida e multiplicada no mundo atual, com as “presenças insulares do próprio Japão, de Hong Kong, Taiwan, Cingapura, Macau e, mais recentemente, o surpreendente e incrível sucesso das Zonas Especiais de Desenvolvimento da China (Shenzhen, Guangzhou, Foshan, etc...) que estão reconfigurando esse país e transbordando resultado e exemplos positivos pela nação chinesa, mobilizando forças modernizadoras cada vez mais intensas! Nesse contexto a estrutura insular se posiciona, de fato, como núcleo central desses sucessos incontestes, estendendo-se desde a Rússia Petrina até a China de Deng Xiaoping e de seus atuais sucessores. As “ínsulas” como que deslizam sobre sistemas tradicionais de desenvolvimento econômico, agilizando o processo de crescimento de modo flexível e acelerado. Ao nosso ver a resposta insular é direta, linear e inequívoca, ao se processar a alavancagem de atributos especiais, reunindo-se nessas regiões específicas aqueles fatores já citados: compromisso com a modernização, adensamento empresarial expansão cultural, centros de excelência, recursos humanos supertreinados - gerandose gradativamente fluxos econômicos autosustentados em ambiente não-inflacionário, capazes de transbordar resultados para os seus “continentes envolventes”. A combinação integrada desses atributos, amalgamados em área compacta, corresponderá a uma provocante “química de desenvolvimento”, multiplicadora de seus impactos de renda e bem-estar social. Essa “excelenciação” catalisa e produz resultados concretos em curto prazo, provocando-se o futuro e resgatando-se lacunas do passado! Em paralelo, é curioso assinalar que as grandes corporações privadas também estão se dirigindo para “modelos efetivamente insulares”, quando operam com arquipélagos de centros de negócios auto-suficientes, verdadeiras “ilhas supercompetitivas” de gestão empresarial! A General Electric, de Jack Welch, ajusta-se como uma luva 135 140 145 150 155 160 165 170 175 180 185 a esse modelo de auto-sustentação econômica de desenvolvimento acelerado. Velocidades corporativas muito expressivas, a exemplo de experiências das regiões assinaladas, estarão ligadas, com certeza, a “estruturas insulares” (virtuais ou efetivas) de gestão corporativa. Ao Brasil, em face do seu imenso desafio de velocidades estratégicas (de globalização), caberá refletir - país, instituições e corporações - sobre a conveniência de se investir e de se implantar um próprio conjunto muito expressivo de “ínsulas de desenvolvimento” no sentido de se objetivar e resgatar rapidamente lentidões do passado e provocar o futuro econômico e social da melhor (e mais veloz) forma possível. Essas “ínsulas”, sem dúvida, poderão colaborar de modo extraordinário com o encurtamento de nossos tempos econômicos e social, nos planos nacional, regional, institucional e corporativo. A nossa criatividade, combinada com uma extraordinária capacidade de alavancagem comunitária, será, com certeza, responsável pelo desenho de “ínsulas de desenvolvimento” absolutamente competitivas no panorama internacional e “produtoras” de transbordamentos inteligentes ao longo de todo o nosso território. Obter altas velocidades de globalização é um dos maiores desafios para o nosso país e para suas elites. Quanto mais cedo avaliá-lo e enfrentá-lo, mais cedo encontraremos atalhos extraordinários para o nosso processo de desenvolvimento econômico e social, ao se obter “velocidades estratégicas” supereficientes! Como conseqüência, centenas de milhares de pessoas serão retiradas da pobreza e do sofrimento social, através das ações de “estruturas insulares de desenvolvimento” cada vez mais densas e presentes em áreaschave do panorama mundial. Essa é a lição de Pedro, O Grande e Deng Xiaoping. Resta a nós meditar e agir sobre tais propostas e, se possível, implantá-las o mais rapidamente! Poderão existir outros caminhos para o desenvolvimento nacional e empresarial? Claro que sim. Mas bem poucos terão uma resposta tão rápida e eficiente quanto as “ínsulas estratégicas” de Pedro, O Grande e as da China atual, dentre outros. O mistério dessas estruturas ao correr da História parece ser bem simples: as suas viagens no túnel do tempo são sempre para ganhar, jamais para perder. Fonte: O GLOBO, 22/10/97. II Texto 24 Ciro Gomes está se suicidando Elio Gaspari_ A 5 10 15 20 25 30 35 40 45 candidatura do ex-ministro Ciro Gomes à Presidência da República está fazendo água. Ou muda de curso ou naufraga em poucos meses, devolvendo-o ao confortável remanso da política cearense. Dois meses depois do seu telúrico reaparecimento, o ex-ministro continua enredado numa costura de alianças que, além de serem incompreensíveis para o eleitor, chocam-se com a própria virulência verbal com que ataca a “barganha politiqueira” dos outros. Admitindo-se que Ciro Gomes tenha algo a ver com o PPS (o que já é um favor), salta aos olhos que nada tem a ver com o PT, muito menos com o brizolismo. Apesar disso, aceitou que sua candidatura fosse confundida com um projeto de união das esquerdas. É pelo menos divertido ver a esquerda, em nome da unidade, conversando em torno da hipótese de se lançar como candidato à Presidência um político que informa: “Não tenho tradição de esquerda e nem pretendo ser líder de esquerda.” Ciro Gomes reapareceu, e poderá se manter à tona, enquanto representar um projeto apenas alternativo ao de FFHH. Em algumas coisas poderá ser alternativo à direita, em outras à esquerda. É na alternativa que está o segredo do cofre, não numa suposta diferença ideológica, até porque se a conversa cair na teoria, FFHH já demonstrou que depois de construir a social-democracia do PFL pode construir o que bem entender. Com dois meses de movimentação, Ciro Gomes não produziu uma só opinião alternativa para temas banais da vida real. Fala-se em planos de saúde e ele vai conversar com Miguel Arraes. Os grandes centros urbanos estão conflagrados pela revolta dos motoristas do sistema de transporte alternativo e ele vai procurar o PT. Educação? Propõe uma “presença ampliada e efetiva do Estado, com participação da cidadania”. À parte o fato de ser sustentado por forças que julgam desnecessária a apresentação de um plano de governo, um resumo de suas idéias informa que ele 50 defende o “desenvolvimento sustentado nos 55 60 65 70 75 80 85 90 95 princípios da democracia, da eqüidade social, da eficiência econômica, do equilíbrio ambiental e da diversidade cultural”. Alguém conhece uma pessoa que seja contra essa sopa de chavões? Que tal defender a democracia sustentada nos princípios da eqüidade, do equilíbrio cultural e da diversidade ambiental? Se fossem apenas chavões, até que dava para empurrar com a barriga, mas são chavões incompreensíveis, deliberadamente incompreensíveis. Assim como os trabalhistas ingleses só chegam ao poder quando convenceram o eleitorado de que tinham um programa de governo alternativo - e eficaz - a oposição a FFHH só terá espaço quando se fizer entender na discussão dos temas terrenos. Ciro Gomes acusa FFHH de estar panfletando uma “conversa fiada para véspera de eleição”. Não é de todo verdade, mas a parolagem do ex-ministro também está próxima disso. Com uma diferença: enquanto por trás do palavrório de FFHH está a estabilidade da moeda, seus adversários nem isso oferecem. A conseqüência é simples: uma pessoa pode resolver votar em Ciro Gomes, ou no Enéas, porque não gosta de FFHH, mas até hoje não lhe foi dada a oportunidade de oferecer um único argumento em favor do nome que escolhe. Está certo que Ciro Gomes não queira expor às tribos oposicionistas o fato óbvio de que o PT está a um passo de desarticulação. Pode-se entender também que não queira comprar uma briga com Brizola (coisa de resto inevitável) dizendo que seu apoio, numa eleição federal, é pouco mais que uma irrelevância. São astúcias políticas (ele diria “politiqueiras”) perfeitamente compreensíveis. Daí a supor que pode construir uma candidatura silenciosa, vai uma distância muito grande. Acreditar que um blablablá possa substituir um programa é apenas suicídio. ELIO GASPARI é colunista do GLOBO. Fonte: O GLOBO, 22/10/97. Texto 25 A Petrobras e a petroquímica LUIZ PINGUELLI ROSA II 5 10 15 20 25 30 35 40 45 O contrato da Petrobras com a Odebrecht tem sido objeto de críticas tanto pela oposição como por empresários próximos ao Governo. A empresa estatal, por ser de propriedade pública, deve sempre dar as satisfações exigidas pela sociedade, como lhe é agora demandado. Segundo os críticos, uma cláusula do contrato da Companhia Nacional de Produtos Petroquímicos, associação entre a Petrobras e o Grupo Odebrecht, coloca este último em vantagem não só no empreendimento paulista mas em qualquer outro projeto da Petrobras na área petroquímica. Ou seja, há um consenso que a abrangência é muito grande no escopo e no tempo, em favor da Odebrecht. A Petrobras é a fornecedora da matéria-prima e deverá ser ainda por muito tempo a grande refinadora de petróleo no país, apesar da perda do seu monopólio constitucional. Colocada agora no mercado em competição com concorrentes, nacionais e multinacionais ou estrangeiros, não tem outro caminho se não atuar como empresa agressivamente. Isto implica em tomar decisões, associando-se, fazendo parcerias, conforme oportunidades que se apresentem a cada momento, e escolhendo parceiros, conforme as vantagens que puder tirar para desenvolver-se dentro de uma estratégia empresarial. O problema é: por que a Odebrecht e quais as vantagens que Petrobras irá auferir da associação. Portanto, o problema, não são as parcerias em geral, por princípio, mas sim discutir este tipo particular de associação. A questão em jogo é o interesse do país, pois os cidadãos brasileiros são os donos da Petrobras como empresa do Estado, além dos acionistas individualmente. A questão grave não é o interesse dos competidores, como a Dow Chemical, por exemplo, que reclamou. A Dow comprou o pólo petroquímico de Baía Blanca, na Argentina, que se tornou forte 50 55 60 65 70 75 80 85 concorrente do Brasil na petroquímica do Mercosul. Os liberais se esqueceram que a petroquímica exigiria uma escala técnicoeconômica e que ocorre a verticalização freqüentemente. Isto é, as grandes refinadoras de petróleo em geral participam da petroquímica. Entretanto, não houve uma estratégia inteligente ao se tirar a Petrobras da petroquímica nas privatizações. E deu no que se está assistindo: os grupos que compraram a petroquímica agora tentam se associar à Petrobras para enfrentar a concorrência internacional. A petroquímica brasileira sucumbirá por falta de escala e pela desverticalização feita artificialmente na privatização sem um plano estratégico. Enfim, terá de haver associações da Petrobras com empresas na área petroquímica e em vários outros campos. A questão é saber se esta associação com a Odebrecht atende aos interesses mais gerais. Há outras empresas no país que podem também participar da associação. A Odebrecht tem forte ligação com o Governo Federal. Aí está o nó: tudo indica, como a solenidade em São Paulo com o governador e o presidente da República, que houve uma decisão de governo para colocar a Odebrecht como a responsável pela restruturação da petroquímica nacional. As declarações do ministro de Minas e Energia mostram isto, sem nenhuma dúvida. Portanto, o erro não é a Petrobras estar fazendo parcerias com várias empresas. Esta é a única resposta que ela pode dar empresarialmente às exigências do sistema competitivo a que foi submetida com a perda do monopólio. Imobilizá-la é decretar a morte da Petrobras, pois seus competidores farão o que ela está fazendo. Tocam tango querem que ela dance samba. O erro vem da ostensiva ligação da Odebrecht com o Governo. LUIZ PINGUELLI ROSA é diretor da Coppe/UFRJ. Fonte: O GLOBO, 22/10/97. Texto 26 Desemprego em São Paulo A economia brasileira não está em recessão. Praticamente a cada semana novos investimentos são anunciados. O governo promove projetos que estariam assegurando 5 empregos. Entretanto, ao menos na Grande São Paulo, a taxa de desemprego está em nível recorde. Segundo pesquisas realizadas em conjunto pela Fundação Seade e pelo Dieese, 10 de agosto para setembro o exército de desempregados nessa região metropolitana engrossou em cerca de 38 mil vítimas. Não há, portanto, como negar que a trajetória de crescimento moderado admitida 15 pela atual política econômica, mesmo não sendo recessiva, cobra um alto preço do ponto de vista social. Aliás, a piora no indicador do desemprego pode até mesmo I obrigar a uma reavaliação do cenário de 20 crescimento moderado. Afinal, o dinamismo da atividade econômica torna-se cada vez menos vigoroso, Ou moderado demais. Fala-se muito nas alternativas de criação de empregos nos setores de serviços. 25 Seria uma resposta à “desindustrialização” da economia paulista. Mas as demissões na indústria, na construção civil e no emprego doméstico hoje ultrapassam a criação de vagas nos serviços e no comércio, setores 30 econômicos que também começam a perder força. Não é nada fácil encontrar uma resposta ou apontar um futuro para quase 1,5 milhão de desempregados na Grande São 35 Paulo, em especial quando se pensa em termos políticos. E nada sugere que a sina dos desempregados seja muito diferente em outras regiões do país, apesar dos sinais de desconcentração regional na economia 40 brasileira. Para se alcançar a gravidade da situação é preciso lembrar ainda que aumentos no desemprego são atípicos nesta época do ano. Normalmente, o mês de 45 setembro registra queda de desemprego, pois a indústria se prepara para a temporada de aquecimento de fim de ano. A rigor, somados a indicadores como o da inadimplência, os dados do desemprego 50 colocam cada vez mais preocupações no horizonte. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97 Texto 27 Carlito e “Cardoço” CLÓVIS ROSSI 5 10 15 20 Buenos Aires - As eleições legislativas de domingo na Argentina são um desafio à teoria que diz que o bolso é a parte mais sensível do corpo humano. Há dois anos, o bolso dos argentinos em geral andava vazio. O país estava mergulhado na recessão provocada pelas seqüelas da crise mexicana. A economia argentina retrocederia, em 95, 4,6%, um baque e para ninguém botar defeito. O desemprego era recorde, nas alturas de 18,4%. Graças, no entanto, à inflação baixa, o presidente Carlos Menem reelegeu-se comodamente, já no primeiro turno, com 20 pontos percentuais de vantagem sobre o segundo colocado. Hoje, a economia avança a um ritmo asiático (8% de crescimento no primeiro semestre) e o desemprego, embora ainda brutalmente elevado (16,1%), é dois pontos inferior a 95. Não obstante, o partido de Menem ou perderá as eleições ou, na melhor das hipóteses, ganhará com margem mínima. 25 30 35 40 45 50 Claro que sempre se poderá dizer que a eleição de domingo não põe em jogo o principal (a Presidência), o que permite ao eleitor brincar de voto de castigo ao governo, sem o risco de mudanças fundamentais no jogo. Ainda assim, parece pouco para explicar tão formidável reviravolta no humor dos argentinos em dois anos. A verdade é que aplica-se à Argentina de 1997 o que o general Médici dizia do Brasil, um quarto de século atrás: o país vai bem, o povo vai mal. Ou, pelo menos, acha que vai mal. Tanto que 74,6% dos argentinos expressaram tal sentimento, em pesquisa publicada semana passada. Carlito, como o presidente Ménem é chamado pelos íntimos, vai acabar pagando o pato por essa “malaise” difusa. Há nisso, uma lição para “Cardoço”, como os argentinos pronunciam o nome do presidente brasileiro. Mesmo que ganhe em 98, como hoje parece o mais provável, pode perder o brilho no segundo período, como Carlito está perdendo velozmente. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 28 A ciranda dos juros A estabilidade da moeda brasileira foi conquistada graças à abertura às importações e à ancora cambial que, logo no início, fez o real valer mais que o dólar, o 5 ritmo da abertura à s importações tem sido revisado. Quanto à política cambial, mudou a II 10 15 20 25 forma, não o conteúdo. Primeiro houve a valorização com relação ao dólar. Depois, houve atraso na correção do câmbio comparada à inflação. na fase mais recente, a opção do governo é reduzir, ou mesmo eliminar, a longo prazo, a defasagem cambial. Explica-se. A mesma taxa de câmbio que barateia as importações e ajuda a segurar os preços produziu um déficit comercial crescente. Mas todas essas medidas dependem de um único instrumento: a manutenção de taxas de juros elevadas. O déficit comercial, mais as despesas com remessas de lucros e dividendos e o serviço da dívida externa, chegam aos US$ 60 bilhões por ano. Para atrair recursos suficientes para cobrir esse déficit, o governo precisa manter os juros elevados, além de apostar na rapidez e no sucesso da privatização e dos investimentos diretos. Além disso, os bancos no Brasil ampliaram suas redes de captação de recursos externos. Como no passado, 30 paga-se a dívida para ao mesmo tempo contrair novas dívidas. Se reduzisse juros, o governo correria o risco de interromper a ciranda. Isto é, a âncora cambial - a preservação das reservas 35 internacionais - e a capacidade de manter a economia aberta às importações dependem dos juros altos. O problema é que o peso dos juros também se faz sentir sobre as contas públicas e é um grande obstáculo ao aumento 40 de gastos em áreas sociais. Mais ainda, o juro alto debilita a economia como um todo, sacrifica a classe média endividada e inibe o investimento produtivo. Sem os juros, a âncora se rompe. 45 Com tais juros, o barco navega mal. Este é o dilema que mina por dentro a estabilidade econômica tão duramente mantida até agora. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 29 Maluf engole o PFL FERNANDO RODRIGUES 5 10 15 20 25 Brasília - Paulo Maluf causou um estrago no PFL. Sua reunião sigilosa com Antônio Carlos Magalhães, sábado passado, deixou de cabelos em pé vários pefelistas. Ontem, no começo da noite, Agripino Lima, ex-prefeito de presidente Prudente, estava na porta do gabinete de ACM para tirar satisfações com o cacique pefelista. Agripino é um dos quatro précandidatos do PFL ao governo paulista. Os outros são o presidente do partido em São Paulo, Cláudio Lembo, o ministro de Assuntos Políticos, Luiz Carlos Santos, e o senador Romeu Tuma. Maluf já acertou com a cúpula do PFL que aceita qualquer um dos quatro como candidato a vice em sua chapa. E ainda dá a vaga de candidato ao Senado para o PFL. A cúpula pefelista adorou. Ninguém fala isso em público. Mas já está tudo acertado. o anúncio fica para o início do ano que vem. “O seu pai dá traço em todas as pesquisas”, disse outro dia, irritado, o deputado Luiz Eduardo Magalhães (PFL BA) para o deputado Paulo Lima (PFL - SP), filho de Agripino Lima. 30 35 40 45 50 Romeu Tuma é outro que está irritado com o assédio de Maluf. Senador com mais cinco anos de mandato, quer ser candidato ao governo para se tornar mais conhecido do público. Hoje, a cúpula do PFL deve tentar enquadrar Agripino Lima durante uma almoço em Brasília. O resultado é uma incógnita, a julgar pela declaração do exprefeito ontem: “Nada me fará desistir de ser candidato”. Com todo esse mal-estar criado, Maluf pode acabar tendo problemas mais à frente, quando julga que o PFL estará disponível para apoiá-lo na campanha pelo governo paulista. ∗ Sob o argumento de que deve se manter isento, o presidente da Câmara, Michel Temer, não dá sinais públicos sobre quando colocará em votação os seis casos de cassação de deputados hoje arquivados em sua gaveta. É uma decisão curiosa. Afinal, também não é isento quem segura processos prontos para serem votados. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. II Texto 30 Camelôs, perueiros e crise 5 10 15 20 25 São Paulo está sendo palco de dois grandes conflitos sem vínculos aparentes entre si. Um deles, envolvendo a prefeitura e os camelôs; o outro, a Câmara Municipal e os perueiros (motoristas de lotação). Verificamse em ambos os sintomas de um problema comum: a degradação da qualidade de vida na cidade. O crescimento do número de camelôs está ligado à crise do emprego; os perueiros, por sua vez, ganham os clientes insatisfeitos com um sistema de transporte público desconfortável e ineficiente. Não há, evidentemente, soluções fáceis para uma ou outra dessas pendências. A tolerância do poder público com o trabalho informal - os dos camelôs, no caso _ pode acentuar ainda mais a deterioração da vida urbana, mas a simples repressão tende a acabar com o meio de vida de milhares de pessoas, além de ser uma medida que pode gerar violência e ter eficácia pouco duradoura. Algo, no entanto, precisa ser feito. No caso dos perueiros, que constituem 30 35 40 45 alternativa de transporte coletivo porque a qualidade do serviço existente é inaceitável, seria um equívoco simplesmente extingui-los. A solução que pretende liberar para o trabalho os que se credenciarem parece ser a mais sensata. Ademais, a maioria dos paulistanos aprova o serviço, como mostrou o Datafolha. O drama dos camelôs é, à primeira vista, mais insolúvel. A idéia de construir camelódromos na cidade soa até simpática, mas seria no mínimo ingenuidade acreditar na sua eficácia. Os camelôs tendem a degradar a paisagem urbana e competem com vantagens com o comércio formal, uma vez que não pagam os impostos que oneram este último. Se, no caso dos perueiros, a raiz do problema está na degeneração do transporte público, no caso dos camelôs o trabalho escasso e a miséria da maioria da população concorrem para agravar um problema de solução cada vez mais difícil. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 31 Vieira e Tiririca CARLOS HEITOR CONY Rio de Janeiro - Editorial da Folha, no último domingo, fez considerações sobre a dificuldade das novas gerações em consumir os clássicos de nossa literatura. 5 Apoiado em pesquisas junto a dez escolas, o editorial constatou que “aumentam as dificuldades dos alunos em ler autores dos séculos passados que vão se tornando incompreensíveis”. 10 Isso explica por que, num desses últimos vestibulares, o texto escolhido foi uma obra de Tiririca, por sinal acusada de ser racista. Para a análise em nível escolar, tanto faz a sintaxe de Tiririca ou de Vieira. A 15 explicação para a escolha é simples: os alunos jovens compreendem o que Tiririca propõe. E nenhum deles teria condições de penetrar no sermão da septuagésima. Não se trata de uma questão de gosto, 20 mas de penetração. Por isso mesmo Charles Lamb pegou as peças teatrais de Shakespeare e as reduziu a contos - que com o tempo também se tornam clássicos. Monteiro Lobato fez o mesmo com o “Dom Quixote” e 25 o “Gulliver”. A editora Scipione, de São Paulo, está encomendando a autores de hoje a adaptação de alguns romances famosos. Eça de Queiroz, Manuel Antônio de Almeida, 30 Raul Pompéia, Aluísio Azevedo, por exemplo, serão lançados em textos com linguagem atual, em versões reduzidas que II eliminarão digressões e ângulos mortos. Sobrarão apenas os personagens e a história 35 em si. Com isso, pretende-se chamar a atenção dos jovens para os textos originais. Mais ou menos o que algumas orquestras fazem com partituras clássicas, gravando 40 adaptações ou seqüências que quebrem o gelo entre a versão dos autores e o ouvido ainda não educado. São muitos os que condenam essa liberdade. Consideram sacrílegas essas 45 versões. pessoalmente, sou a favor. Li Swift pela primeira vez por meio de Monteiro Lobato. Já fiz diversas adaptações de clássicos para a Ediouro e agora estou fazendo para a Scipione. Mas não pretendo 50 concorrer com o Tiririca. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 32 Nossa Caixa faz Florspanca mudar de prumo BARBARA GANCIA Colunista da Folha 5 10 15 20 25 30 A Caixa Econômica Federal andou oferecendo uma espécie de promoção por tempo limitado: durante uns poucos meses, quem se dispusesse a pagar de uma só tacada o financiamento da casa própria, ganharia desconto de até 60%. Minha amiga politicamente correta Florspanca Esbelta resolveu aproveitar a oportunidade. Vendeu o carro e tirou um dinheirinho da poupança. Juntou a quantia necessária e pagou os cinco anos de prestações que ainda lhe restavam. Esperava que Esbelta estivesse radiante por ter realizado o sonho tapuia. Qual nada. Para festejar a nova propriedade do châteou, um dois cômodos na Vila Mandioquinha, convidei minha engajada amiga para tomar um copo de vinho (nacional, claro, a fim de evitar algum discurso inflamado sobre a relação entre o beaujolais e a opressão dos “campesinos” do Cone Sul). Durante a celebração, me dei conta de que a alegria de Florspanca nada tem a ver com a posse do imóvel. “Minha maior satisfação não é ter quitado a dívida. É ter me livrado do contato mensal com aquela corja da Nossa Caixa.” Não é que, por uma vez, o raciocínio de Florspanca comunga com o meu? Diz ela 35 40 45 50 55 60 que, durante os anos em que pagou as prestações, nunca recebeu o extrato mensal no prazo certo. “Todos os meses era obrigada a ir pessoalmente a uma agência da Caixa fazer o levantamento do número do contrato para efetuar o pagamento”, resmungou. “E percebi que a má vontade dos funcionários acaba gerando filas de deixar o Bradesco parecido com um pacato banco do Canadá.” Partindo de uma defensora dos paradigmas dos partidos dos trabalhadores da vida, a constatação quase me manda para o Incor. Disse-me ainda Florspanca que o cheque encerrando a dívida já saiu de sua conta. mas o documento de quitação só deve chegar às suas mãos dentro de dois ou três meses. Contou-me também que, outro dia, na fila da Caixa, uma funcionária corpo mole mandou uma pobre cliente tirar “xerox autenticado”: Ä coitada não tinha idéia do que estava sendo dito. Se, para gente escolarizada, essas burocracias são complicadas, imagine para quem mal sabe ler”. Wim Wenders e aprendendo. para transformar em capitalista um militante de esquerda, basta passar alguma coisa em seu nome. nem que seja um apê na Vila Mandioquinha. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 33 Estresse afeta altura GILBERTO DIMENSTEIN II 5 10 15 20 Excesso de conflitos familiares provoca tamanha carga de estresse que chega a comprometer o crescimento físico de uma criança. Pesquisadores patrocinados pelo governo britânico acompanharam desde 1958 até agora 6,574 pessoas, todas nascidas na mesma semana. Coordenados por cientistas da Faculdade de Medicina de Londres, os pesquisadores detectaram que crianças de famílias em crise, marcadas por divórcios e ambientes tensos, tendiam a ter menos altura, comparadas com a média. Eles levantam a tese de que o fluxo normal de hormônios responsáveis pelo crescimento. Apenas o sono conturbado, segundo eles, já afetaria esse fluxo, o que seria verificável em animais nos laboratórios. Não é o pior. * Segundo o estudo, o pior é que a química do estresse afetaria regiões do 25 cérebro ligadas à memória e ao aprendizado. Portanto, haveria danos no desempenho escolar. Logo, no emprego. Esse efeito o estudo inglês detectou naquele grupo, agora adulto. 30 Munidos de máquinas capazes de fotografar como nunca o cérebro, neurologistas americanos conseguem ver por meio das fotos as áreas danificadas. As manchas nas fotos 35 computadorizadas produziram tamanho impacto que fizeram políticos e educadores nos EUA colocar como prioridade conscientizar os adultos. Ou seja, educar os pais sobre a 40 importância de determinados cuidados. Entre eles, conversar com os bebês, num processo contínuo de estímulo. E, especialmente, evitar os mais variados tipos de conflito e violência 45 doméstica. A começar pela autoviolência. Bebidas, cigarro e drogas durante a gravidez, por exemplo. 50 55 60 65 70 75 * Daí dependeria, em parte, a performance na escola. Por tabela, a criação de trabalhadores produtivos. Não por acaso empresas gigantes, como a rede de televisão ABC ou a AT&T, estão patrocinando campanhas de esclarecimento, envolvendo os novos conhecimentos de neurologia. O que parece utopia no Brasil, aqui virou tema emergente. * PS - Domingo passado essa coluna mostrou como as novas descobertas científicas defendiam a relação entre prazer e saúde, desfazendo uma série de mitos. Estudos divulgados ontem sobre um ingrediente chamado licopene, encontrável, por exemplo, no tomate, deram um novo status à macarronada al sugo ou à pizza. São apontados agora como um bom antídoto contra o câncer e ataques cardíacos. Mais: o licopene está também, imaginem só, na lagosta. Melhor ainda, se acompanhado por dois copos de vinho. As mães italianas, como se vê, chegaram na frente dos cientistas. Para quem quiser mais detalhes, coloquei um resumo do estudo sobre o licopene em português no seguinte endereço: www.aprendiz.com/ Gilberto Dimenstein escreve às quarta-feiras e aos domingos. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 34 Palavras devolvidas A fortíssima pressão da presidência da República e de alguns ministros para aprovação, por uma comissão mista de Senado e Câmara, das contas do governo 5 relativas a 96 não poderá apagar, seja qual for o seu êxito, as constatações já presentes na análise do Tribunal de Contas da União, negadas pelo governo, mas agora confirmadas pelo senador-relator, Jefferson 10 Peres, do PSDB ( porém altivo). A pesada redução de fastos em saúde e educação, embora a existência de recursos disponíveis no Orçamento, foi tão injustificada que leva o senador pesssedebista 15 (porém não serviçal) a registrar que se mostra “ainda mais grave quando se considera que a priorização dessas áreas foi objeto da campanha eleitoral do senador Fernando Henrique Cardoso”. 20 Todas as estocadas de Fernando Henrique Cardoso contra os que apontaram redução de gastos sociais, por ele chamados mentirosos, entre outras coisas, voltam-se em definitivo contra o autor - o primeiro dos 25 presidentes, pelo menos desde 30, a aplicar tal corte nas verbas de saúde e educação. II Sócios bons são sócios em todas as circunstâncias. Sérgio Motta leva também o seu recorde e o desmentido correspondente. 30 O estouro de gastos na área da Comunicações foi uma orgia financeira. Nada menos de nove empresas controladas por Sérgio Motta esbanjaram muito além do permitido e cabível. 35 De quebra, o senador peessedebista (porém erecto) corrobora as indicações de desrespeitos à Constituição por Fernando Henrique Cardoso, citando a desobediência sitemática aos artigos 60 e 212. 40 Nem em casa Um dos integrantes do grupo de Sérgio Motta por ele indicados para a Agência Nacional de Telecomunicações, 45 Renato Guerreiro, deixou escapulir um desmentido a Sérgio Motta mais preciso, porque numérico, do que o publicado aqui ontem. Como justificativa dos tantos 50 negócios que gastam muito e em nada melhoram as telecomunicações, Sérgio Motta inventou que o “setor ficou 40 anos sem investimentos”, quando, de fato, foi o mais beneficiado pela ditadura militar. Ainda no seu espasmo bajulatório, 55 pela indicação para a Anatel, Guerreiro lembrou “a revolução há 20 anos passou de 2 milhões para 17 milhões o número de telefones”. 60 Nem quando dá presente Sérgio Motta é levado a sério. Além do mais A pretensão do governo de montar 65 uma TV do Executivo, para funcionar na rede como as TVs do Senado e da Câmara, é absurda por muitos aspectos. O governo já tem e usa as TVs da Fundação Roquette Pinto (as Educativas mas 70 não tanto) e da Radiobrás. Já por aí não precisaria de outra. Além disso, TVs convencionais, como as suas, alcançam os associados a redes de cabo e os outros muito milhões que não têm TV a cabo. 75 Se a idéia não envolvesse negócios altos e ainda interesses políticos não menos desprezíveis, poderia ser vista como obtusidade apenas. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 35 ‘É só o Quarentinha’ ALBERTO HELENA JR. da Equipe de Articulistas 5 10 15 20 25 Fosse um tempo de escracho, e a manchete desta página esportiva seria: Rebaixado encontra “Um-Zero-Zero”, num cantinho da rua Bariri. Um pouco menos, e teríamos: Flu e Timão, o jogo da vergonha. Envergonhados, menos pelas punições que deixaram de sofrer do que pela ridícula campanha que cumprem no campeonato, Fluminense e Corinthians, quase à socapa, enfrentam-se às desoras desta quarta-feira cinzenta, no estádio de Olaria, num jogo clandestino porque a TV vai revelar as mazelas dos dois para todo o país. Mas é um episódio para ser esquecido por ambos. Que reste a lembrança épica daquele Flu e Corinthians que, há mais de 20 anos, comoveu São Paulo e abalou o Rio, com a deslocação para lá de cerca 70 mil fiéis num final de semana inesquecível. Tão fiéis e tão fanáticos que tentaram espetar uma bandeira do Corinthians na mão direita do Cristo Redentor, como um gesto de conquista e conversão. Para quem não sabe, o Flu, então, ainda era a Máquina do doutor Horta, com seus Rivellinos e Cajus. Já o Corinthians era 30 35 40 45 50 um bom time, nada excepcional, mas guerreiro, dirigido pela semântica empolada de Duque e de seus orixás. Pois aqui quero, neste instante apropriar-me da parcela de participação nessa epopéia, a mim devida por direito do acaso. Resumindo: por dever de ofício, chegara dias antes ao Rio. Fiquei no Hotel Nacional, onde pousaria a delegação alvinegra no fim-de-semana. e logo fui às Laranjeiras assistir ao treino coletivo do Flu. na manhã de domingo, horas antes do início da partida, Duque resolveu me dar uma entrevista exclusiva. e, no seu quarto enfumaçado de incenso, foi direto ao assunto: ele ;e que queria me entrevistar sobre o treino do adversário. Saí fora, mas plantei uma semente, observação que já havia publicado na minha coluna do “JT”: se ele metesse uma marcação forte no hábil meio-campo tricolor e, vez por outra, soltasse Russo, que batia bem de fora da área, às costas de Carlos Alberto Pintinho, que avançava muito e voltava pouco, esse seria o mapa da mina. Revejam o VT desse jogo memorável, please. De nada, de nada, que é isso? * II Vira-e-mexe, os psicólogos de plantão voltam ao campo. Sobretudo, quando os grandes clubes andam deprimidos, como agora. É o Corinthians, é o São Paulo, é o Palmeiras, todos falam em recorrer aos 60 sortilégios desses decifradores modernos da alma humana. E, sempre que isso ocorre, lembra-se de Garrincha e Carvalhaes, na copa de 58. Não sei se fato ou invenção do 65 saudoso Sangro Moreira, mas es o craque desenhando um enorme triângulo sustentado 55 pôr um mirrado traço de onde escapam dois braços e duas pernas. Na busca de esotéricos significados, 70 o psicotécnico questiona Garrincha, que arremata com a simplicidade de um de seus dribles pela direita: “Não quer dizer nada, não, doutor. É só o Quarentinha”. Ps para os mais jovens: Quarentinha 75 era um hábil centroavante do Botafogo de Garrincha, magro e cabeçudo, como um desenho de criança. Alberto Helena Jr. escreve às quarta-feiras, domingos e segundas. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 36 A qualidade do INSS LUÍS NASSIF 5 10 15 20 25 30 35 O que a gerência de seguro social do INSS de Novo Hamburgo (RS) tem de diferente da de Ribeirão Preto (SP)? Exatamente 38 dias, no prazo médio de concessão de benefícios. Enquanto os segurados de Novo Hamburgo recebem o benefício 7 dias após a entrada do pedido, os de Ribeirão esperam 45 dias. Já foi pior. Em 1995, o tempo médio em Ribeirão era de 93 dias. E seus assegurados ainda eram mais felizes do que os da Vila Mariana (Cidade de São Paulo), que aguardavam 224 dias pela concessão. Hoje, na Vila Marrana o tempo médio de concessão é de 34 dias - belo avanço, se confrontado com o passado; um escárnio, se confrontado com os 7 dias de Novo Hamburgo, ou os 11 dias de Santa Maria (RS) e Itapetininga (SP). O que há de diferente no pedaço foi que após quatro gestões que cuidaram de manter a continuidade - sucessivamente Reinhold Stephanes, Antônio Brito, Sérgio Cutollo e, novamente, Stephanes o INSS não é nenhum brinco de eficiência, mas está há anos-luz do velho INSS dos anos 80. Não se precisou aguardar as reformas constitucionais - tremendo álibi para não se fazer nada -, nem mudança nos planos de cargos e salários. Bastou um programa de qualidade centrado em resultados. O INSS criou “Indicadores de Excelência”, que definem os padrões de excelência e permitem o acompanhamento do trabalho realizado pelas gerências. Os dois principais indicadores são o Tempo Médio de Atendimento (TMA) (período entre o requerimento e o deferimento do benefício) e a Idade Média do 40 Acervo (IMA) (período com requerimento em atraso). A partir daí, estabeleceram-se indicadores globais de qualidade que permitem classificar as diversas gerências, de acordo com seu desempenho. 45 O processo teve início em 1992 comprovando mais uma vez que o período 90/92 foi riquíssimo em novas experiências e se consolidou com a continuidade administrativa do órgão, mesmo atravessando 50 sucessivos governos. Letra morta Até então, a lei que determina que o 55 TMA de um benefício previdenciário não poderia supera 45 dias era letra morta. Em janeiro de 1995, 83 gerências do INSS superavam esse limite. No mês de agosto passado, esse índice caiu para 7 gerências. 60 O INSS estipulou como padrão de excelência a ser perseguido o prazo médio máximo de 15 dias. No momento, apenas Novo Hamburgo, Santa Maria e Itapetininga alcançaram essa meta. 65 Tivessem sido possíveis demissões a bem do serviço público, e premiações por desempenho, os indicadores seriam mais satisfatórios, e os bravos funcionários de Novo Hamburgo estariam ganhando mais do 70 que os de Ribeirão Preto. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. II Texto 37 O emprego e os mercadores de ilusões MARCIO POCHMANN 5 10 15 20 25 30 35 40 Impressiona o grau de desconhecimento do real funcionamento do mercado de trabalho no Brasil por aqueles que, em vez de informar, pretendem denunciar os elementos de rigidez impostos pela Consolidação das leis do Trabalho (CLT) num ambiente de grande escassez de empregos. Em contraste com a realidade nacional, a experiência norte-americana de mercado flexível de trabalho tem sido defendida como exemplo a ser seguido. Mas esses novos místicos que adotam a liturgia liberal esquecem, talvez por ignorância ou má-fé, de informar, por exemplo, que nos Estados Unidos há várias taxas de desemprego, que variam de 5% a 13% da População Economicamente Ativa (PEA), dependendo dos critérios metodológicos adotados. Em relação à taxa mais baixa de desemprego deve-se destacar que o trabalho de apenas um a hora por semana é considerado como emprego. A ausência de procura de trabalho por um desempregado durante a semana de realização da pesquisa, por sua vez, define uma situação de inatividade - ou seja, ele deixa de pertencer à PEA. Com esses restritos parâmetros metodológicos, não se estranha a presença de baixas taxa de desemprego nos EUA. Acrescente-se que quase 20% dos trabalhadores empregados recebem abaixo do valor monetário que define a linha de pobreza naquele país. Por outro lado, os mercadores de ilusões parecem fechar os olhos para o fato de o mercado de trabalho apresentar sinais de flexibilidade superior aos dos Estados Unidos. Além de menor taxa de assalariamento, o Brasil possui cerca da metade dos empregados assalariados sem nenhum contrato trabalhista (ausência de 45 carteira assinada) e, daqueles protegidos pela 50 55 60 65 70 75 80 85 CLT, cerca de 40% são demitidos a cada ano. A presença no Brasil de uma das maiores taxas internacionais de rotatividade transforma ao país em um paradigma da flexibilidade no mercado de trabalho e uma referência de subordinação do padrão de uso e remuneração da força de trabalho às necessidades empresariais. Isso é o que se pode rapidamente concluir das análises realizadas a partir dos dados apresentados pelo gráfico, que reúne três das principais variáveis referentes ao padrão de uso e remuneração do trabalho assalariado na indústria paulista (nível de emprego, salário médio real e participação dos empregados com jornada de trabalho acima da legal). Apesar de se concentrar no núcleo de maior organização da classe operária nacional, as empresas industriais paulistas não encontram dificuldades para, no curto prazo, reduzir os níveis do salário médio real e do emprego e aumentar a jornada de trabalho de parte crescente dos empregados. Em outras palavras, os tabalhadores empregados nas indústrias paulistas estão atualmente em menor número, recebem menos e enfrentam uma jornada de trabalho maior do que no final dos anos 80. Por fim, cabe destacar que a ausência do pleno emprego, da organização por local de trabalho e de um sistema democrático de relações de trabalho concede aos trabalhadores uma estrutura de representação de interesses com poder desigual diante dos empregadores. Em vez de propor acabar com as poucas oportunidades de fortalecimento dos interesses dos trabalhadores, os mercadores de ilusão talvez devessem refletir mais e melhor sobre as realidades do mercado de trabalho no Brasil. Márcio Pochmann, 35, economista, é professor do Instituto de Economia (IE), pesquisador e diretor executivo do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. Texto 38 Registro sanitário e patentes DENIS BORGES BARBOSA II 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 Com o novo Código de propriedade Industrial que entrou em vigor em maio último, está surgindo um grande problema com ações judiciais pipocando - quanto às relações entre patentes e registro sanitário. Até agora, inexistindo patente de produto, a questão não se colocava com tanta premência, De um lado estão os novos donos de patentes; de outro, principalmente os fabricantes dos chamados “genéricos”, ou seja, produtos não protegidos por patentes. Empresas estabelecidas, regulares, funcionando publicamente, membros respeitados da comunidade empresarial de seus respectivos países. Como se sabe, nem todos os produtos são protegidos por uma patente. Em muitos casos, a invenção já é antiga. Em outros, o inventor não a patenteou no Brasil. Em muitos outros casos, o produto jamais foi patenteado em nenhum outro lugar do mundo - os produtos são genéricos, no sentido de não ser vinculados a uma marca específica. Os genéricos são uma parcela importantíssima da economia de todos os países, em especial os industrializados do Primeiro Mundo. Reconhecidos, respeitados, protegidos pela lei, os produtores de genéricos desempenham papel importantíssimo na divulgação dos produtos e principalmente na redução dos preços ao consumidor. A vida é mais barata nos países industrializados, em boa parte, pela eficiência e pela proteção legal que é dedicada aos genéricos. Como se lê na lei nº 9.279/96, o recente Código da Propriedade Industrial, é patenteável a invenção que atenda a os requisitos de novidade, atividade inventiva aplicação industrial. O código ainda esclarece que a patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar o produto objeto de patente, ou o resultado obtido diretamente por processo patenteado. Assim, não há patente senão para um invento novo, dotado de atividade inventiva e de aplicação industrial. São esses seus requisitos. Uma vez concedida, a patente exclui terceiros do uso da tecnologia patenteada. Já se lê na Lei de Registro de Agrotóxicos (lei nº 7.802, de 11/02/1989) 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110 que os agrotóxicos só poderão ser produzidos, exportados, importados, comercializados e utilizados se previamente registrados, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura. A lei ainda diz que o registro para novo produto agrotóxico, seus componentes e afins será concedida se a sua ação tóxica sobre o ser humano e o meio ambiente for comprovadamente igual ou menor que a daqueles já registrados par o mesmo fim. Com efeito, os exames conducentes ao registro dizem respeito à novicidade do produto diante dos requisitos de saúde e de meio ambiente. Para constatá-lo, basta ver os elementos a serem considerados no pedido de registro, que estão no decreto nº 98.816, de 11/01/1990, que regulamenta a lei. Assim, no pedido de registro se examina a toxicidade comparativa para admitir um produto no mercado. Nada se questiona quanto à novidade da tecnologia, quanto à atividade inventiva. As considerações são diversas, os efeitos são diversos. Mesmo com a patente, o titular de um produto mais nocivo pode não ser admitido ao registro. De outro lado, mesmo sem patente, alguém pode ter um registro. A lei não exige para o registro nem a existência nem a inexistência da patente. Além disso, independente dos poderes da patente. Muitas são as razões pelas quais, mesmo na existência de patentes, será facultado o uso: 1) se a patente é de processo e o produto registrado é feito por outro processo, distinto do reivindicado; 2) se a patente é de produto ativo, o produto ativo pode ser diferente do reivindicado; 3) se a patente é de formulação (ingrediente ativo mais inertes), a formulação pode ser outra: 4) a patente é limitada no tempo e sujeita a licença compulsória e à caducidade; 5) o código prevê muitos casos - por exemplo, o de pesquisa e desenvolvimento contra as quais a patente não vale nada. Acontece que, sem que o produtor de genéricos possa conseguir o registro, mesmo com a patente, todas as economias e eficiências trazidas pela competição são perdidas - e quem paga a conta é o público. Denis Borges Barbosa, 49, advogado, é assessor jurídico da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina (Abifina). Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97. I Texto 39 “... NUM PAÍS POPULOSO como o Brasil, o bolo a ser repartido é muito grande ...” DIRCEU WAGNER C. DE SOUZA * 5 10 15 20 25 30 35 40 Quanto custa um Plano de Saúde abrangente, com ampla cobertura, sem eliminar doenças prévias e com boa hotelaria, incluindo enfermaria, apartamento e CTI sem limitações? Por vida (per capita), R$ 25,00 em BH e R$ 38,)) em SP, ao mês, incluídos 10% de margem de lucro líquida. Estão sendo considerados hospitais do nível do Biocor (BH) e Beneficência Portuguesa (SP). Implícitos também estão excelentes e rigorosa administração do plano, auditoria permanente e honorários dignos pagos no prazo contratual. Cooperativas e outros intermediários entre as partes contratadas, nem pensar ... A base de cálculo acima não é uma estimativa. É a fatura real paga pelos Plano de Autogestão das Empresas privadas de BH e SP. Tais planos partem prioritariamente para os Fluxos Preferenciais, em que parceria e concentração de demanda da clientela são os principais fatores de controle de custos e de qualidade total. Nesta equação, em breve, constará com prioridade o Internamento Domiciliar. A curto prazo, os valores per capita cairão ainda mais, algo entre 8 e 10% dos custos atuais. Como na autogestão não se visa lucro, o custo final per capita será em torno de R$ 22,00 (BH) e R$ 32,00 (SP). A empresa gastará com cada grupo familiar menos do que se paga, hoje, por pessoa inscrita em planos muito inferiores disponíveis no mercado. Ora, num país populoso como o Brasil, o bolo a ser repartido é muito grande, com mais de 160 milhões de vidas. Há espaço e porções muito fartas para distribuição. O lobby em cima dos congressistas, em Brasília, não precisava ser tão intenso e massacrante. A Regulamentação dos Planos 45 de Saúde pode e deve preservar um mínimo 50 55 60 65 70 75 80 85 90 de decência, ética e realismo. A começar pela fatia da qual o governo não pode se desfazer constitucionalmente. Ele deve assumir o seu papel, responsabilizar-se por cerca de 40 milhões de brasileiros. Ele não pode privatizar a Saúde. No entanto, ao governo é permitido “privatizar” os gestores. Busque-os entre os especialistas responsáveis pelos Planos de Autogestão das empresas privadas. Com a fantástica rede pública disponível em todo o território, um Plano de Saúde de bom nível não custará à Federação mais do que R$ 12,00 a R$ 14,00 por vida, ao mês. Com a quantia inferior à que o governo bancou o Econômico, dará excelente assistência médica a 40 milhões de brasileiros, por ano. Este é o ônus mínimo socializável. Que se estimulem de alguma forma as empresas privadas; quem sabe, retornando 3,0% dos imensos tributos e encargos pagos religiosamente por elas? Empregados e dependentes teriam, com certeza, a melhor assistência médico-odontológica-social de que se possa ter notícia. Na essência deste raciocínio, tão simplório quanto lógico, as empresas profissionais existentes ou não no mercado irão disputar mais de 80 milhões de vidas, a quem venderão seus planos. Que elas ofereçam saúde através de condições claras e transparentes. Que os contratos sejam feitos com letras legíveis por todos os clientes, inclusive os que tenham mais de 55 anos, diabéticos, hipertensos ou sadios. Cá pra nós: que estes planos comerciais sejam vendidos a não mais de R$ 38,00 por mês, mas sem espertezas e arapucas. A fatura será de R$ 27,5 bilhões por ano. É de bom tamanho ... Que é possível, lá isto é, e assino em baixo. * Médico, chefe do Pano de Saúde (Autogestão) da fundação Mannesmann. Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97. Texto 40 Regência e outros assuntos II “...Prefiro ser cabeça de pulga a ser rabo de elefante ...” DUARTE PACHECO * 5 10 15 20 25 30 35 40 É perdoável errar o capítulo mais difícil da sintaxe da língua portuguesa - a regência. Mas errar a regência do verbo preferir! Não creio que um Hélio Costa (em quem votei e fiz muitos votarem) tivesse dito a frase como a publicou certo jornal: “Prefiro ser cabeça de pulga do que ser rabo de elefante”. A propósito do erro grosso, tenho que responsabilizar o jornal. O verbo é transitivo direto e indireto, a frase correta é: “Prefiro ser cabeça de pulga s ser rabo de elefante”. Lembro ( a memória de 88 marços ainda não me traiu) que o professor de Português, José Schiavo, foi acerrimamente criticado, lá pelos idos de 30, quando se estudava e aprendia, pelo escritor Carlos Imbassahy por haver escrito no “Jornal do Povo”, da querida e velha Ponte Nova: “Responsabilizo as asneiras do Pires”. Achava que o verbo não pode reger coisa. No entanto, o clássico da língua, Rui Barbosa, de quem era secretário particular: “... responsabilizou o decreto de 17 de janeiro como a causa dos males do país”. Os caríssimos Ricardo Parreira e Paulo Bastos que , todo domingo, das 8 às 10h, regozijam-nos com o seu adorado “Anos Dourados”, perguntam se está correto: “Pé de limoeiro ... e voltei novamente”. De limoeiro é uma locução adjetiva que não qualifica nem indica: posse, origem, matéria e agente: especifica. Na especificação, o que mais se usa é o nome da fruta: pé de limão, pé de lima, pé de manga, pé de abiu, pé de mariapreta. Tomam, porém, o nome de árvore frutífera pelo do fruto. É metonímia, figura de palavras, sobejamente usada na linguagem literária. Quanto ao voltei novamente, o verbo voltar significa ir e vir pela segunda vez. É, pois, correto o emprego de novamente ou de novo. “Dali a um ano, quando de novo voltei ao colégio, ainda abracei a mãe Maria”. (Coelho Neto, Conto pátrios, 28). 45 50 55 60 65 70 75 80 85 Que acha o senhor das frases de brasileiros de nome? - pergunta-se a sobrinha Margareth (que, fazendo-me inveja, vai gozar as na fazenda “Barrinha”, hoje de um seu tio materno, onde viveu boa parte da meninice sofrida o célebre conterrâneo Ari Barroso). Dignificam-lhes a cidade, e o Estado, e a pátria. O ubaense Raul Soares, repondendo ao presidente Epitácio Pessoa: “com Epitácio, sem Eiptácio, contra Epitácio, Artur Bernardes vai para o Catete”. Rui Barbosa, à beira do túmulo de Machado de Assis: “Não é o clássico da língua, não é o maestro da frase; não é o árbitro das letras; não é filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é joalheiro do verso; o exemplar, sem rival entre os contemporâneos, da elegância, do aticismo, e da singeleza no conceber e dizer; é o que soube viver intensamente da arte sem deixar de ser bom”. Pedem-me a opinião sobre a lista dos melhores do esporte. Mesmo deixando de fora um Gerson Sabino, a enciclopédia do futebol, um Carlos Alberto Silva, meu exaluno, contém só nomes dignos de agraciados. Entre eles, Mário de Castro, Paulo Cury, Dario, Guará, Reinaldo Lima e Jackson. Dr. Mário de Castro, passante dos 90, é um dos maiores amigos que tenho neste renascer de novo. O cronista e escritor Roberto Drumond (conheci a sogra de Hilda Furacão) vem-no louvando muito. Mas, esquecendo-se da passagem mais fulgurante do maior jogador do Atlético de todos os tempos. Aquela em que Dr. Hugo Werneck viu o espírito do filho junto ao ídolo ... Paulo Cury vem se tornando o mais presidente dos presidentes. Jackson (meu ex-aluno), em futsal, um dos maiores do mundo. Reinaldo (tenho um sobrinho com este prenome em sua homenagem) veio, menino, da Sociedade Esportiva Primeiro de Maio, cuja diretoria compartilhei durante 7 anos, para o Atlético e ser o seu segundo maior jogador de sempre. * Professor de Português, membro da Academia Varginhense de Letras Fonte: ESTADO DE MINAS, 25/10/97. Texto 41 Cirurgia Plástica e milagres “ ... MÉDICO FAZENDO cirurgia plástica e não um taumaturgo fazendo I milagres estéticos ...” EVALDO A. D’ASSUNÇÃO * 5 10 15 20 25 30 35 Volta e meia vemos em revistas multicoloridas, nas bancas de jornais, manchetes sobre novas conquistas da cirurgia plástica. Mas, curiosa e muito sintomaticamente, essas mesmas informações nunca são encontradas nas revistas científicas, em bibliotecas médicas. O nada discreto charme da burguesia impregnou irremediavelmente essa especialidade médico-cirúrgica que dos sisudos consultórios de antanho, saltou para os salões iluminados da sociedade. Dos fechados recintos de congressos científicos, extrapolou para as telinhas da TV e para as revistas femininas. Confesso que não me recordo de já ter visto um cirurgião de tórax mostrando orgulhoso, no programa do apresentador X, o pulmão canceroso que acabara de extirpar de seu paciente, artista da TV. Nem um cirurgião do aparelho digestivo, todo pimpão com um belíssimo espécime de estômago ulcerado que removera da socialite famosa. Mas, dom uma freqüência as nauseam, estão alguns cirurgiões plásticos(?) - felizmente poucos, porém demasiadamente ruidosos demonstrando suas habilidades de esgrimistas com a cânula de lipoaspiração, ou com seus produtos químicos maravilhosos, substituindo a pele facial enrugada por outra no viço de seus 15 aninhos. E, outros mais, injetando substância mágicas que eliminam rugas, seja por preenchimento, seja por paralisação muscular, sem dor nem cirurgia, apagando num toque de mágica os vincos que o tempo deixou. E melhor ainda: afirmam que sem qualquer risco ou complicação! Como os deuses os invejam em suas clínicas do futuro! E as máquinas? Ah, as máquinas! 40 45 50 55 60 65 70 75 Retrógrados e desatualizados são os cirurgiões que não utilizam os laseres e seus derivados, raios infalíveis que curam até dor de cotovelo, espinhela caída e nó nas tripas! A mim muitos questionam: “Doutor, o senhor opera com laser”? E eu, avesso à mentira, mas buscando a modernidade exigida respondo: “Óbvio que sim! Todas as minhas cirurgias, sem exceção, são feitas com laser!” E completo, não sem um olhar galhofeiro e uma risadinha sutil: “Adoro música e música erudita. Assim, só opero ao dom da boa música de meu toca-discos laser, que funciona todo o tempo de minhas cirurgias”. ironias à parte, não sou contra a evolução da medicina. Ridículo seria se o fosse! Mas, daí até aceitar tantas baboseiras, tais como “- fios de ouro” que encolhem a pele relaxada pelos anos, líquidos, máquinas cuja luz e cujos raios dispensam o reposicionamento da pele e, sobretudo, da musculatura tornada flácida pela senectude, plásticas sem cicatrizes, e outras cositas mas, isso não! Acredito sim, naquilo que é cientificamente testado e seriamente apresentado nos locais e ocasiões apropriadas para tal. E, só incorporo ao meu arsenal de condutas, aquilo que, corretamente testado, traz verdadeiros benefícios, sem riscos desnecessários para o paciente. E que, nas mãos de qualquer bom especialista, está sujeito às naturais complicações de qualquer procedimento terapêutico, para as quais todo paciente deve ser alertado. Afinal, sou um médico fazendo cirurgias e não um taumaturgo fazendo milagres estéticos! * Cirurgião plástico, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Fonte: ESTADO DE MINAS, 25/10/97. Texto 42 O breviário da Justiça MÁRCIO GARCIA VILELA * A usente do país, só agora me dou conta, pelos bons ofícios de um amigo, do artigo do ministro Antônio de Pádua Ribeiro, do STJ. Trata-se 5 de matéria tão relevante que, enquanto estiver em debate, sempre merecerá observações. O magistrado, em seu arrazoado, afirma verdades indiscutíveis, ao mesmo tempo em que, infelizmente, deixa de fazer reflexão 10 mais profunda para, com o peso de seu múnus, provocar a autocrítica do judiciário, abrindo alamedas mais amplas para o reconhecimento de sua dignidade e do papel insubstituível que lhe confia o estado 15 democrático e de direito. Queixa-se o nobre juiz de que “continua o processo de estrangulamento e destruição do judiciário, no contexto de uma opinião pública vulnerável pela ação da mídia, de tal ordem 20 que sua noção de justiça se transforma rapidamente em versão de justiceiro”, com todas as negativas ao “due process of law”, II 5 10 15 20 25 30 35 preceito natural entre os povos civilizados. Tem razão? É provável que sim. Porém, é conveniente indagar das raízes dessa indesejável fragilidade. Claro que as causas são complexas, se bem que uma delas aflora com certa facilidade. Sabe-se que a prestação jurisdicional é um direito subjetivo público, alçado à dignidade de pacto constitucional do Estado para com os jurisdicionados. Daí proclamar a Lei Maior a independência do judiciário, consagrado como um dos poderes estatais, da qual decorrem as prerrogativas nunca privilégios - assegurados a seus membros. Como tem sido a satisfação desse direito fundamental? Qual tem sido a parcela de responsabilidade do próprio judiciário, no justo e zeloso atendimento dessa regra básica da organização da sociedade política brasileira? Que os juizes, encarregados de dar vida e vigor à instituição a que pertencem, não timbram em cumprir os deveres constitucionais, não há como negar, a despeito do argumento de que nem todas as culpas pelo mau funcionamento da justiça lhes possam ser atribuíveis. O fato é que, entre nós, o acesso a ela é restrito a muitos poucos, a custos muito elevados, sob a dependência de decisões lerdas e não raro a destempo. Em outras palavras: no Brasil, o judiciário é elitista, distribui mal e com avareza esse bem de todos, que é o direito de cada um. e, quando o faz, costuma privilegiar os que podem mais. De certo, sem querer, torna-se instância não democrática, porque não disponível para os mais desprotegidos e mais necessitados de sua intervenção. Em conseqüência, o judiciário é pouco 40 45 50 55 60 65 70 conhecido, menos compreendido ainda e, assim, não é amado pelo povo, que não lhe rende as homenagens da afeição, como fazem, por exemplo, os americanos. É muito o que seus integrantes têm a fazer para melhorar-lhe o funcionamento e a imagem, mesmo que os demais outros poderes não queiram colaborar. Através de inflexível comportamento de fidelidade ao jurisdicionado, é - lhes possível mobilizar a coletividade a seu favor como ferramenta para a realização de seus compromissos com o povo. Não adianta ficar a dizer, no meio da estrada, que os instrumentos de combate lhes são negados. Antes, para conquistá-lo, é preciso mostrar disposição de luta, que resulta da serena vontade de cumprir o prometido, ao ensejo da investidura de seus integrantes. Vale lembrar a iniciativa, aqui em Minas, dos mutirões criados por esse apóstolo do servir, que é o desembargador Fernandes Filho, e dos quais não se teve mais notícia. Acaso não foram extraordinária bandeira de convocação e oferecimento? Penso possuir alguma autoridade precária que seja - para tecer estes comentários. Pois um bocado de anos atrás, o meu inesquecível desembargador Edésio Fernandes, então presidente do Tribunal de Justiça, me julgou, com rara generosidade, capaz de ser juiz daquela corte. Ponderei-lhe, após obsequiosa insistência, que me sentia inapto para pleitear a vaga, porque, dentre outras, me faltava uma qualidade essencial: a vocação para ler diariamente e refletir sobre o breviário da Justiça. Fonte: ESTADO DE MINAS, 25/10/97. Texto 43 Arlequim e seus amos CARLOS HEITOR CONY Rio de Janeiro - Cada vez mais freqüentes, os desabafos presidenciais revelam a crise de um arlequim que aceitou trabalhar para dois senhores. Um deles está cobrando, com 5 progressivo entusiasmo, as promessas de saúde, educação, segurança - nem lembro mais os cinco dedos que foram exibidos na mais dispendiosa e sofisticada campanha eleitoral de nossa história. 10 Como o arlequim da peça famosa, ele também prometeu servir a outro senhor, o qual pode ser esquematicamente representado pelas elites dominantes na sociedade brasileira desde 1500, substituindo-se o 15 português pela globalização. Confiante em sua habilidade, vaidoso de sua retórica, o presidente achava que podia ir levando, empurrando de barriga os problemas indefinidamente ou, na pior das 20 hipóteses, até a reeleição. Não estava em seus cálculos o espetáculo da semana passada, quando Brasília recebeu quase 3.000 empresários que exigiam uma coisa que ele também prometera e ainda não deu. 25 Pior: FHC usou da tribuna, fez apelos e queixas. Como qualquer ditadorzinho, está demonizando a imprensa e o Congresso, II culpando jornalistas e deputados pelas dificuldades em conciliar o inconciliável. 30 Antes de existir a figura e a função de arlequim, já o evangelho advertia que não se pode servir a dois senhores. Com sua leviandade, arlequim acredita que pode dar a volta por cima. Mas 35 está cada vez mais difícil servir prioritariamente a empresários, banqueiros falidos e especuladores internacionais ao mesmo tempo em que pede à dona Ruth que cuide de cestas solidárias para os famintos. 40 Ainda está longe o momento de verdade. Os recentes desabafos do presidente mostram que ele começa a sentir que o Brasil não é tão fácil de governar como pensava. O arlequim esfuziante está se transformando 45 num pierrô banhado de lágrimas. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 25/05/96. Texto 44 O fim que não acaba CARLOS HEITOR CONY 5 10 15 20 25 30 35 40 45 Rio de Janeiro - FHC anunciou o fim da Era Vargas. Em 1945, decretaram o fim de Vargas quando ele partiu para o exílio em São Borja. nove anos depois, entre 4h e 8h30 da manhã de 24 de agosto de 1954, novamente festejaram o seu fim. Um radialista que entrara no Catete chegou a ver Getúlio de bombachas, arrumando as malas para novo exílio. Mas o que o Brasil viu foi o mesmo Vargas, num pijama listrado, com uma única diferença dos outros pijamas: um furo de bala à altura do peito. Dez anos mais tarde, em 1964, foi novamente proclamado o fim de sua era. Durante os 21 anos seguintes era proibido mencionar seu nome. Cid impertinente, mesmo depois de morto continuou aborrecendo as elites que sonham em ter o Brasil no Primeiro Mundo à custa de um povo que vive e sofre o último dos mundos. Não vem ao caso o nome ou a pessoa de Vargas. Importa é que ele encarnou como nenhum outro vulto de nossa história, a preocupação social que será o referencial definitivo para o século que acaba. Certo que algumas experiências, e muitos dos métodos adotados, naufragaram na demagogia e na violência. Mas a quimera que produziu os códigos morais da humanidade, nela se incluindo o cristianismo, a Reforma e o socialismo, o sonho impossível de todos os homens da Mancha que lutaram contra moinhos de vento, a utopia pela qual tantos morreram em todas as partes do mundo e em todos os tempos da história, essa quimera, esse sonho, essa utopia não acabarão. Como não acabaram quando Vargas foi deposto duas vezes, nem quando a bala atravessou o seu peito. Vargas foi temerário ao escolher uma estrada solitária, Nem à esquerda nem à direita. Tentou o mais difícil: a revolução pelo centro. O erro lhe custou caro. Independente de Vargas, que errou e morreu, a idéia continua. A idéia e a luta, embora sob disfarces às vezes repugnantes, como o corporativismo, e, em alguns casos, o A arena aguarda nos gladiadores. Mais cedo ou mais tarde eles brotarão da terra e do sonho: o duelo não terminou. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 50 nacionalismo. 31’03/95. II Texto 45 O preço da honra CARLOS HEITOR CONY Rio de Janeiro - Antigamente, a honra era lavada com sangue. Hoje, lava-se a honra na base dos salários mínimos que a vítima ganha: se a afronta é venial, 20, se o agravo é mortal, 200 salários mínimos pagos pelo ofensor. Virgílio explica a sutileza dessa operação moral com o seu famoso “tempora mutantur”- os tempos mudam. Evidente que não sugiro a regressão aos heróicos tempos dos duelos, nem mesmo aos mais suaves, àqueles que eram decididos “ao primeiro sangue”, ou seja, ao primeiro arranhão da espada ou do tiro. Findo o que, os dois contendores apertavam-se a mão e tudo ficava esquecido. Stendhal narra um caso espantoso. um sujeito está numa taverna bebendo em paz, entra um brutamontes que vai logo ofendendo uma mulher com um simples olhar de cupidez. A mulher nem era a dele, mas o sujeito levanta-se e convida o brutamontes ao duelo. Na manhã seguinte está estirado no chão, numa poça de sangue. E a moça ultrajada passa aquela noite com o brutamontes, nos braços dele desmaia de prazer e orgulho. Sérgio Motta e Paulo Maluf demandaram na Justiça questões relativas à honra. Em primeira instância, o ministro terá de pagar ao ex-prefeito não sei quantos salários do próprio. Aqui no Rio, o poeta Afonso Santana chamou o romancista Márcio de Souza de canalha. Aguarda-se a sentença, sou admirador e amigo dos dois, lamento o entrevero, torço para que tudo termine bem, que um apresente e o outro aceite as desculpas. Seria a solução mais civilizada e digna de ambos. A Lei de Imprensa que está em discussão no Congresso pretende oficializar o preço da honra alheia. Fui processado por um promotor e condenado a pagar-lhe 200 salários de sua função, quase 200 mil. Depois de ter perdido nas instâncias estaduais, ganhei no STJ e nada lhe paguei. De forma que, para correr risco, agora só comprarei briga com quem ganhar menos de dois salários mínimos. Fonte: FOLHA SÃO PAULO, 26/10/97. Texto 46 FUGA Luís Fernando Verííssimo - Edgar, vê lá, hein? O Edgar era famoso pelas suas gafes. Embora as negasse. - O que é isso? Pode deixar. A mulher ficava em pânico. Depois, contando para os outros ela, ria. “O Edgar fez outra das dele.” Mas na hora ficava em pânico. - Edgar, por amor de Deus... - Mas que bobagem! - O Flores e a Noca acabaram de se reconciliar. Ela teve um romance com um violoncelista alemão, fugiu de casa, viveu um ano e meio com o alemão em Munique, mas voltou e agora eles estão juntos de novo. Não fala nem alemão, nem em violoncelo. Por amor de Deus, Edgar! - Pode deixar. Na chegada quando o Flores abriu a porta, o Edgar exclamou: - O Flores! Cê sempre teve cabelo dessa cor? - Não. Entrem, entrem. Como vão? A caminho da sala, a mulher ainda conseguiu dar um beliscão na manga do casaco do Edgar e dizer, entre dente: - É pe-ru-ca. - Que peru? - Pe-ru-ca, Edgar! - Ah. Durante o jantar, tudo bem. A mulher sentiu um frio na barriga quando viu o Edgar examinando o rótulo do vinho alemão.Mas o Edgar só sorriu para a anfitriã, a Noca, e comentou, sem qualquer maldade: - Coisa muito boa, hein? “Agora ele vai perguntar se a Noca trouxe da Alemanha, na volta”, pensou a mulher, mas o Edgar ficou firme. A mulher respirou, aliviada. Aconteceu depois do jantar, quando o Flores quis exibir seu novo “laser” e colocou um disco. Bach. Cordas. Se fosse um concerto de violoncelo, diria a mulher, depois, no carro, para o Edgar, ainda vá. Mas mal se ouvia o violoncelo. E no entanto o Edgar dissera: - Eu me amarro num violoncelo. Dissera mais: - Sou tarado por violoncelo. E mais: - O que esse alemão safado faz com um violon... - Edgar! A mulher tinha se levantado da poltrona. O Edgar levou um susto. - Que foi? - Me lembrei! Eu deixei o forno aceso! Temos que voltar para casa! - Mas... - Agora mesmo! No carro, ela não quis ouvir desculpas. O Edgar ainda tentou. - Ela fugiu com o Bach? Não fugiu. Mas a mulher não queria conversa. O Edgar ainda a matava. Luís Fernando Veríssimo. COMÉDIA DA VIDA PRIVADA. Pp 38-40. ABSTRACT Considering an Discursive approach, based on the view of language as activity, this research intends to identify, classify and analyze the “ways of saying”, that are embedded with the construction of instances of enunciation in the written pattern of Brazilian Portuguese.