O pólo do enunciado - Renovação

Propaganda
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
A CONSTRUÇÃO DE INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS EM
TEXTOS ESCRITOS DO PORTUGUÊS CULTO DO
BRASIL
EDNA MARIA SANTANA MAGALHÃES
Belo Horizonte, Dezembro de 1998.
EDNA MARIA SANTANA MAGALHÃES
A CONSTRUÇÃO DE INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS EM
TEXTOS ESCRITOS DO PORTUGUÊS CULTO DO
BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Língua Portuguesa.
Orientador: Professor Doutor Milton
do Nascimento
Belo Horizonte, Dezembro de 1998.
Esta Dissertação foi aprovada pela BANCA EXAMINADORA
constituída pelos seguintes professores:
Esta pesquisa foi realizada com o apoio financeiro da
FAPEMIG que me concedeu bolsa de estudos de mestrado
durante o ano de 1996. Agradeço, pois, a esta instituição por
esta contribuição, sem o que teria sido difícil concluir, com
dedicação total, esta pesquisa.
AGRADEÇO
ao meu orientador, MILTON DO NASCIMENTO, grande MESTRE, pelo
NASCIMENTO de uma pesquisadora, pelo crescimento pessoal, pela confiança,
segurança e paciência e, principalmente, pelo constante aprendizado proporcionado
pela sua firme orientação;
aos colegas de curso, amigos das horas de angústia e de alegrias, pelas contribuições
diversas e críticas ao trabalho;
aos professores do curso, pelo amadurecimento dos meus verdes conhecimentos e pelas
muitas manifestações de amizade;
às funcionárias da Secretaria do Mestrado, Vera, Marieta e Cristina, pela eficiência e
paciência no trato conosco, os estudantes; ao André, pela serenidade e presteza;
a Reinildes, pela colaboração neste trabalho, sem, ao menos, conhecer-me;
aos colegas da Escola Fundamental do Centro Pedagógico da Universidade Federal de
Minas Gerais, pela liberação durante o ano de 1997; em especial, aos amigos do
Núcleo de Letras, pelas cobranças veladas, pelo incentivo e o carinho tantas vezes
manifestados; aos meus alunos, que alimentam meu desejo de descobertas;
a D. Ângela, exemplo de força, persistência, sabedoria, ética, pelo afeto e amizade com
que me acolheu desde o nosso primeiro encontro e, do fundo do coração, pela ajuda tão
preciosa e oportuna;
aos meus pais, pela minha existência e aos meus irmãos, por serem os filhos que eu não
fui.
a Ana Maria, Edenize e Regina, Sem palavras, pois o silêncio também significa;
a Paulo, amigo e companheiro incondicional, pela tolerância com minhas
intolerâncias, pelo “apoio moral”, pelas cobranças e, sobretudo, pelo seu imenso
amor;
a Fabiana e ao Felipe, pessoas em construção, pelos momentos de lazer subtraídos,
pela “colaboração e substituição” nas atividades domésticas e, sobretudo, por serem o
que são hoje: uma promessa de humanidade.
a Deus, por todos os vínculos criados e firmados ao longo destes anos, por ter-me
mostrado que ainda há pessoas de verdade a minha volta, por ter-me criado e dado
tantas dádivas sem exigir nada em troca.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................12
2. CONSTRUÇÃO E TRATAMENTO DO CORPUS...........................................................................15
3. O CORPUS ............................................................................................................................................16
4. JUSTIFICATIVA DO CORPUS.........................................................................................................17
5. OS OBJETIVOS...................................................................................................................................20
6. A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO...............................................................................................21
PARTE I – O pólo do enunciado ........................................................................................................22
1.1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................22
1.2. GRAMÁTICA TRADICIONAL ......................................................................................................22
1.2.1. AS FORMAS DO DISCURSO NA GRAMÁTICA TRADICIONAL........................................24
1.2.2. A CARACTERIZAÇÃO DAS FORMAS DE DISCURSO NA GT. ..........................................29
1.2.3. O PRODUTO – O TEXTO LITERÁRIO - COMO OBJETO DE ANÁLISE ..........................32
1.3. UMA PERSPECTIVA DE OBSERVAÇÃO DA CIE ....................................................................33
1.4. POR UMA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO ......................................................................................34
1.4.1 A TEORIA DA COMUNICAÇÃO ................................................................................................35
1.4.2 A TEORIA DAS FUNÇÕES DA LINGUAGEM..........................................................................36
1.4.3 A TEORIA DOS ATOS DE FALA ................................................................................................39
1.4.4. A TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGÜÍSTICA....................................................43
1.4.5. AS TEORIAS DO DISCURSO......................................................................................................45
PARTE II - O pólo da enunciação......................................................................................................47
2.1. A INTERAÇÃO LINGÜÍSTICA NUMA VISÃO PROCESSUAL...............................................47
2.2. A CONSTRUÇÃO DE INSTÂNCIAS ENUNCIATIVAS - CIE ...................................................48
2.3. A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM...............................................................................................49
2.4. O DISCURSO COMO INTERDISCURSO ....................................................................................52
2.5. A CONCEPÇÃO DE TEXTO ..........................................................................................................53
2.6. AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ................................................................................................55
2.7. POR UMA TEORIA MODULAR DA LÍNGUA............................................................................56
2.7.1. A VISÃO DE MORRIS..................................................................................................................57
2.7.2. A VISÃO DE ROULET .................................................................................................................58
2.7.3. A VISÃO DE CASTILHO .............................................................................................................60
2.7.3.1. CONSTRUÇÃO POR ATIVAÇÃO...........................................................................................63
2.7.3.2. CONSTRUÇÃO POR REATIVAÇÃO .....................................................................................64
2.7.3.3. CONSTRUÇÃO POR DESATIVAÇÃO ...................................................................................64
2.8. SÍNTESE ............................................................................................................................................66
PARTE III – As pistas do processamento discursivo..........................................................................69
3.1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................69
3.2. O SISTEMA DÊITICO.....................................................................................................................69
3.2.1. OS “SHIFTERS” DE JAKOBSON...............................................................................................71
3.2.2. OS ÍNDICES DA ENUNCIAÇÃO DE BENVENISTE ...............................................................75
3.2.3. AS EXPRESSÕES INDICIAIS DE BAR-HILLEL .....................................................................76
3.2.4. OS “EMBRAYEURS” DE DUCROT...........................................................................................78
3.3. AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NA CIE ................................................................................80
3.4. A POLIFONIA NO DISCURSO ......................................................................................................81
3.5. A CONCEPÇÃO DE AUTOR/LOCUTOR/ENUNCIADOR ........................................................83
3.6. SÍNTESE ............................................................................................................................................86
PARTE IV – A dêixis temporal/espacial na CIE ................................................................................88
4.1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................88
4.2. TEMPO E ESPAÇO NO PROCESSAMENTO DISCURSIVO....................................................89
4.3. TEMPO/ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DE PLANOS ENUNCIATIVOS ..................................93
4.4. A CONFIGURAÇÃO DA INE NA TEORIA MODULAR............................................................97
4.4.1. A ARTICULAÇÃO DE TEMPOS/ESPAÇOS ENUNCIATIVOS...........................................100
4.5. SÍNTESE ..........................................................................................................................................102
5. Conclusões do capítulo ................................................................................................................102
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................105
2. O PROCESSAMENTO DISCURSIVO E A SELEÇÃO LEXICAL .............................................106
2.1. A ATIVAÇÃO/REATIVAÇÃO/DESATIVAÇÃO DO LÉXICO ...............................................106
2.2. A SELEÇÃO LEXICAL .................................................................................................................108
3. IDENTIFICAÇÃO DOS PROCESSOS DE CIE .............................................................................113
3.1. FORMAS DE ATIVAÇÃO DE PLANOS ENUNCIATIVOS E CIES .......................................114
3.2. ATIVAÇÃO DAS “FORMAS DE DIZER” NO PROCESSAMENTO DISCURSIVO ............122
vii
3.2.1. A ATIVAÇÃO DA “SITUAÇÃO DEFAULT” E A CONSTRUÇÃO DO PLANO BASE DE
INTERLOCUÇÃO .................................................................................................................................123
3.2.2. A “SITUAÇÃO DEFAULT” EM PLANOS SUBALTERNOS ................................................129
3.2.3. PESSOALIZAÇÃO/IMPESSOALIZAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE EN1 ..........................131
3.3. VERBOS “DICENDI”.....................................................................................................................138
3.3.1 . VERBOS “DICENDI” NA REFERENCIAÇÃO DE INES .....................................................142
3.3.2. VERBOS “DICENDI” E MODALIZAÇÃO DOS TIPOS DE DISCURSO ............................144
3.4. VERBOS NÃO-DICENDI ..............................................................................................................147
3.5. DEVERBAIS....................................................................................................................................150
3.7. PARÊNTESES, ASPAS, TRAVESSÕES ......................................................................................158
4. OPERAÇÕES NO MÓDULO GRAMATICAL NA CIE ...............................................................165
4.1. FORMAS DE ARTICULAÇÃO DA CIE .....................................................................................167
4.1.1. USO DA DÊIXIS ESPAÇO/TEMPORAL .................................................................................172
5. A ATIVAÇÃO DO MÓDULO SEMÂNTICO NA CIE ..................................................................175
5.1. A MODALIZAÇÃO NA CIE .........................................................................................................176
5.1.1 MODALIZADORES DO DISCURSO E SEMANTIZAÇÃO DE INES...................................178
6. A CIE E O MÓDULO DISCURSIVO ..............................................................................................184
7. TAXIONOMIA DAS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE CIES ................................................186
7.1. ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE CIES ..................................................................................188
8. SÍNTESE .............................................................................................................................................193
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................196
2. OS PRESSUPOSTOS DA PESQUISA .............................................................................................197
3. AS CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA...........................................................................................202
CONTRIBUIÇÕESS EMPÍRICAS ......................................................................................................202
CONTRIBUIÇÕES METODOLÓGICAS...........................................................................................203
CONTRIBUIÇÕES PRÁTICAS ...........................................................................................................204
CONTRIBUIÇÕES PARA AS ÁREAS DO CONHECIMENTO......................................................206
viii
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1
Esquema da Teoria da Comunicação: fatores envolvidos ................ 35
Figura 2
Esquema da Teoria da Comunicação: funções da linguagem .......... 37
Figura 3
Esquema de uma Teoria Modular .................................................. ... 62
Figura 4
O tempo da enunciação ..................................................................... .. 90
Figura 5
Articulação de instâncias enunciativas ................................... .......... 96
Figura 6
Hierarquia dos planos enunciativos de (8) ........................................ 99
Figura 7
Multiplicidade de tempo/espaço de INEs ......................................... 101
Figura 8
A Construção de instâncias enunciativas em (10) .......................... 110
Figura 9
Classificação I dos verbos “dicendi” ................................................. 141
Figura 10
Classificação provisória dos verbos “dicendi” ................................ 177
INOPSE
Numa perspectiva discursiva, fundamentada em uma concepção de linguagem como
atividade, esta pesquisa propõe identificar, classificar e analisar as “formas de dizer”
implementadas na construção de instâncias de enunciação, na modalidade escrita do
Português culto do Brasil.
“A
palavra é uma espécie de
ponte lançada entre mim e
os outros. Se ela se apoia
sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o território
comum do locutor e do interlocutor.” (Bakhtin)
xi
CAPÍTULO 1
Por uma análise das estratégias discursivas de construção de instâncias
enunciativas
1. Introdução
Nossa decisão de estudar as marcas lingüísticas utilizadas para a construção de
instâncias de enunciação (CIE)1 de um texto escrito nasceu da observação de textos
produzidos por alunos das 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental (antigo 1º grau).
Constatamos que, apesar das condições em que são produzidos e da supremacia do
discurso escolar, esses textos possuem, em seu corpo, um conjunto de pistas (marcas
lingüísticas) que consideramos como índices de estratégias discursivas reveladoras do
trabalho do seu autor com e na linguagem. Essas estratégias discursivas não são
consideradas como objeto de ensino/aprendizagem. Como hipótese de trabalho - que
justificaremos posteriormente - postulamos que tais pistas remetem a estratégias
discursivas adotadas pelo próprio autor do texto, ao instituir-se como enunciador, ou ao
agenciar outros enunciadores a quem dá voz, na construção de seu texto. Os
profissionais do ensino não dão a importância devida a essas estratégias, que são
fundamentais na construção de textos.
Constata-se a presença dessas mesmas marcas no exame de qualquer texto escrito, no
Português considerado culto do Brasil. Em vista disso, parte-se das seguintes premissas
nesta pesquisa: (a) um texto evidencia, em sua materialidade, as marcas lingüísticas de
estratégias discursivas adotadas pelo seu autor na CIE; (b) tais estratégias envolvem
mecanismos e/ou princípios de construção de textos que carecem de um estudo mais
sistematizado, constituindo-se justificadamente como um objeto de estudo.
Essas premissas assumem grande importância, se consideradas como pistas do
processamento discursivo de um texto. O leitor poderá constatar esse fato, ao longo
1
Utilizaremos CIE quando se fizer referência à construção de instâncias de enunciação.
12
desta dissertação, principalmente, no capítulo que trata da análise do corpus, visando à
construção de uma taxionomia das estratégias discursivas utilizadas na CIE. Conforme
dissemos, as estratégias discursivas não pertencem ao elenco dos conteúdos
tradicionalmente privilegiados pelos professores e, por extensão, pelo sistema escolar,
apesar de envolverem, de maneira decisiva, o conhecimento lingüístico do falante,
manifestando-se, a todo momento, no seu desempenho, enquanto ser de linguagem, na
produção de qualquer tipo de texto - quer no padrão culto (como se verificará nos textos
jornalísticos), quer em outras situações de interação verbal (na escrita e na fala).
Sabe-se que o maior interesse de grande parte dos professores de língua materna, na
leitura das redações escolares, diz respeito à correção ortográfica e à obediência às
normas gramaticais cultas. Assim, esses professores debruçam-se sobre as produções
escritas de seus alunos na busca de “erros”, sem se preocupar em entender os
mecanismos utilizados pelos aprendizes no registro escrito ou em explicitar outros
mecanismos que ajudem estes a aprimorar-se em tal atividade. Perpetua-se, dessa forma,
“um grave problema: alunos (e professores) com muitos anos de escola enfrentam
traumáticos momentos sempre que têm que produzir um texto escrito” (Possenti, 1998,
no prelo)2. E mais: no final do tempo escolar, os alunos, de uma maneira geral,
continuam a apresentar alguns “erros” inconcebíveis e não conseguem construir um
texto coeso e coerente quando as situações efetivas de uso exigem deles um bom
desempenho escrito.
O uso adequado de expressões, como “é claro”, “certamente”, “é evidente”, o uso de
citações, de parênteses, o uso de elementos dêiticos (os pronomes pessoais e
demonstrativos, os advérbios, as desinências verbais), o uso de modalizadores
temporais, espaciais e de atitudes e o uso de verbos “dicendi” são alguns dos recursos
discursivos utilizados pelos autores para a CIE e são negligenciados pelos professores e
pelos manuais utilizados no ambiente escolar.
Esses mecanismos lingüísticos, que constituem parte do conhecimento dos alunos, são
representativos do seu desempenho no uso da linguagem escrita ou oral. No entanto tais
13
mecanismos não são tomados sequer como ponto de partida para a organização e
implementação do processo de ensino e aprendizagem do Português culto do Brasil.
Caberia à escola oferecer aos alunos recursos que os ajudassem a interagir, com mais
facilidade, com interlocutores reais, em situações efetivas de uso da linguagem. Este
estudo pretende, dentre outros objetivos, contribuir para que se focalizem, no ensino de
língua, as referidas estratégias discursivas.
Essa questão da relação escola e do ensino da língua, apesar de não se constituir como o
objeto desta pesquisa, será considerada no momento de se avaliar as possíveis
implicações desse estudo. Sua conseqüência maior, cremos, será evidenciar a
importância de uma mudança do que, hoje, considera-se relevante no contexto escolar,
pelo menos no que tange ao ensino/aprendizagem da língua: o deslocamento do foco no
enunciado para enfatizar a enunciação (CASTILHO, 1989).
Em suma, procurar-se-á responder à seguinte pergunta: que mecanismos são ativados,
na escrita, pelo autor, para constituir-se, ou a outros, como enunciador(es) de um
texto escrito? Ao definir tal objeto de estudo - os mecanismos de CIE - pretende-se,
também, contribuir para o avanço da pesquisa lingüística, no que se refere à descrição
do português contemporâneo.
Note-se, ainda, que o recorte que define esse objeto de estudo coaduna-se com o de
trabalhos que vêm sendo realizados por pesquisadores de várias universidades
brasileiras, que elegeram a língua falada como objeto de estudo, no intuito de se
elaborar uma gramática do português falado do Brasil. Resguardadas as diferenças
existentes entre este estudo e o de tais pesquisadores, podemos dizer que comungamos
objetivos comuns, ao tentarmos descrever o português contemporâneo abordando a
organização Textual-Interativa, a partir de uma perspectiva funcional da linguagem.
2
. Texto intitulado “Discurso, sujeito e trabalho de escrita”. In.: O SUJEITO FORA DO ARQUIVO
que ainda se encontra no prelo.
14
2. Construção e tratamento do corpus
De acordo com o que foi mencionado no item 1, a motivação para empreendermos esta
pesquisa foi, inicialmente, a verificação de um uso recorrente de determinados itens
lexicais, que remetiam à identificação de seus enunciadores, nos textos escritos de
alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública de Belo Horizonte. Num segundo
momento, procedemos a uma pesquisa, em textos jornalísticos, com o intuito de
observar como os enunciadores desses textos eram indiciados.
O resultado dessa pesquisa foi a constatação de que os autores dos textos escolares e dos
textos jornalísticos utilizavam, de forma semelhante, alguns recursos lingüísticos para
indiciar os seus enunciadores. Em conseqüência dessa observação, definimos o nosso
objeto de estudo: explicitar, de forma sistemática, como os autores de textos escritos no
português contemporâneo construíam os enunciadores de seus textos.
Em suma, partimos da relevância dos dados verificados nos textos produzidos no
cotidiano escolar e nos textos jornalísticos. Esses dados foram tomados como índices da
atividade lingüística de seus autores, e, nesse sentido, definimos como metodologia de
trabalho o paradigma indiciário. De acordo com Tfouni (1992, p.211)
“A concretização de tal metodologia implica que o(a) próprio(a)
pesquisador(a) deve colocar-se sempre três parâmetros básicos.
Em primeiro lugar, ele(a) deve considerar que o dado é um indício
(Ginzburg, 1989); em segundo lugar, que a situação de testagem
sempre se constitui em uma situação discursiva (Tfouni, 1988 a), e,
em terceiro lugar, que a posição do(a) pesquisador(a) exige uma
série de deslocamentos e posicionamentos em pontos de vista
diversos, o que lhe dará como conseqüência perspectivas
diferentes de onde olhar os dados e a situação discursiva da
testagem (Freire, 1990)”.
Em conformidade com essa metodologia de trabalho, Tfouni postula que seguir o
paradigma indiciário significa restituir ao texto suas qualidades individuais, restituirlhe os contextos em que foi produzido, a(s) história(s) de suas condições de produção
(Idem, p. 212). Por essa razão, partimos do pressuposto de que os recursos lingüísticos
que motivaram nossa pesquisa devam ser tratados como índices do trabalho de
15
linguagem dos autores de textos escritos. Citando Orlandi e Guimarães (1988),
observamos a relevância de se considerar essas pistas, pois
“As marcas são pistas. Não são encontradas diretamente. Para se
atingi-las, é preciso teorizar. Além disso, a relação entre as marcas
e o que elas significam é tão indireta quanto é indireta a relação do
texto com suas condições de produção. No domínio discursivo não
se pode, pois, tratar as marcas ao modo “positivista”3 como na
Lingüística.” (p. 18)
Encontramos, ainda, nesses autores, maiores razões para a utilização do método
indiciário, porque ele nos possibilita uma movimentação dinâmica, em termos de
perspectivas de observação do fenômeno a ser investigado. É nesse sentido que eles
afirmam que o pesquisador deve “passar por diversos lugares discursivos ou diversos
posicionamentos de observação desses dados e de análise desses contextos” (Idem,
p.212).
A partir do momento em que, nesta pesquisa, nos propomos a estudar um dado singular
– a construção de instâncias de enunciação em textos escritos – e a analisar esse dado
como um índice de interação verbal, justifica-se adotarmos um paradigma indiciário
como método de pesquisa.
3. O corpus
O corpus dessa pesquisa constituir-se-á de um conjunto representativo de textos
jornalísticos, argumentativos4, extraídos de jornais de grande circulação no país. A
escolha desse tipo de texto justifica-se por duas razões. Primeiramente pelo fato de
serem escritos no português culto do Brasil. E, em segundo lugar, pelo fato de os textos
argumentativos evidenciarem melhor o caráter polifônico do discurso. É na
argumentação que mais facilmente verifica-se a utilização de estratégias discursivas de
CIE.
3
O modo “positivista” corresponde ao método galileano, segundo o qual o dado é objetivo e pode ser
observado diretamente. De acordo com Tfouni, seguir esse método significa, na visão de Ginzburg,
efetuar “... uma progressiva desmaterialização do texto, continuamente depurado de todas as referências
sensíveis” (Ginzburg, 1989, p.:157).
4
Foram utilizados alguns textos narrativos, também jornalísticos, devido à natureza de alguns dos
recursos utilizados em sua produção.
16
Selecionamos uma amostra significativa de textos de jornais de grande circulação no
país: a Folha de São Paulo, O Globo, O Jornal do Brasil e o Estado de Minas. Na
construção desse corpus, não se levaram em conta fatores como autores, assuntos
abordados, cadernos e a data de circulação dos textos selecionados.
Os dados considerados no corpo desta dissertação, apresentar-se-ão:
a) numerados em ordem crescente;
b) seguidos de parênteses, que trazem o seguinte sistema de notação:
• T, da palavra texto, seguido de um número identifica os textos segundo a ordem em
que se apresentam no anexo;
• L, da palavra linha, seguido de número(s) identifica a(s) linha(s) que possibilitam a
localização do trecho no texto referido por T.
É importante registrar que um mesmo dado poderá ser arrolado mais de uma vez,
conforme seja necessário ilustrar fenômenos distintos. Quando isso ocorrer, ele receberá
uma nova numeração.
Assim, obter-se-á, por exemplo, a seguinte notação: (T45, L12). Essa notação nos
informa que o excerto foi extraído do texto 45, linha 12;
4. Justificativa do corpus
A escolha de um corpus dessa natureza – os textos jornalísticos – deve-se estritamente
ao pressuposto de que os interlocutores, em toda e qualquer atividade discursiva,
interagem através de textos, que são produzidos levando-se em conta diversos fatores de
natureza verbal e não verbal. Além disso, caracterizam-se por uma construção formal,
tendo em vista que revelam a preocupação em respeitar a norma culta da língua.
Caracterizam-se, também, por apresentarem vestígios de informalidade, que os
aproximam de uma linguagem mais informal, próxima da fala. Essa última característica
de tais textos garante uma maior proximidade com o leitor e visa a convencê-lo,
persuadi-lo da veracidade de suas notícias, informações, opiniões. Nesse sentido, a
mídia impressa revela o caráter interacional da linguagem.
17
É importante frisar que, ao adotarmos tal tipo de texto como fonte de observação, não
excluímos, de forma alguma, o caráter dialógico de que se reveste a língua em todas as
suas utilizações. Ao contrário, ao tomar como objeto de estudo recursos e estratégias
discursivas utilizadas em textos escritos, pretendemos reforçar a tese de que todo texto é
essencialmente dialógico. Essa postura, significa assumir, como afirma Bakhtin (1929),
que
“A verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada
através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua.” (p.: 123)
Baseamo-nos, também, em Perini (1995) para justificar a nossa escolha do corpus. Esse
autor apresenta as seguintes considerações sobre os textos jornalísticos: apresentam uma
linguagem padrão; há neles uma grande uniformidade gramatical e estilística, pois são
isentos de regionalismos. Essas seriam razões que, segundo o autor, justificam a
utilização de textos jornalísticos no ensino/aprendizagem de língua e subsidiam uma
análise lingüística em que a “gramática seja (...) uma descrição do português padrão tal
como se manifesta na literatura técnica e jornalística” (p.:88).
Estamos assumindo, ainda, que, apesar das diferenças inerentes à organização e à forma
de um determinado tipo de texto, decorrentes de suas condições de produção, a escrita
revela marcas da atividade lingüística de seu autor. Essa foi uma das hipóteses de que
partimos para definir o objeto deste nosso estudo. Assumimos, também, que essas
marcas do trabalho de linguagem dos autores de textos escritos podem ser tomadas
como indícios das estratégias discursivas implementadas na produção desses textos.
As estratégias discursivas, neste trabalho, não se restringem à utilização dos “Shifters”5
(terminologia usada por Jakobson (1963)), como tradicionalmente concebidos, mas
abrangem um conjunto de procedimentos mais variados. Esses procedimentos e/ou
5
Essa terminologia será apresentada mais detalhadamente a seguir no capítulo 2.
18
estratégias discursivas indiciam, lingüisticamente, a construção dos enunciadores de um
texto.
Em decorrência disso, concebemos a existência de um Autor-Modelo, entendido, nesta
pesquisa, como o interlocutor responsável pela produção dos enunciados e que,
obviamente, institui-se como um dos enunciadores de um texto. Essas duas instâncias
caracterizam-se como estratégias textuais que revelam papéis actanciais6 (termos
emprestados de Eco (1986)). Tais estratégias, como entidades lingüísticas, só se
explicam em função dos enunciados que as indiciam, evidenciando as condições em que
foram produzidas e, conseqüentemente, o processo de sua enunciação.
Com a finalidade de explicitar a importância de tais papéis actanciais no processo de
produção discursiva, propusemo-nos a empreender uma análise dos recursos utilizados
em sua implementação, visando a construir uma taxionomia das estratégias discursivas
básicas envolvidas na construção de instâncias de enunciação. Isso significa, pois,
conceber o Autor-Modelo como instância a partir da qual os enunciadores se
constituem. Tal concepção reconhece o Autor-Modelo, os enunciadores e seus
respectivos alocutores como instâncias ativas, em função dos quais a enunciação se
define. Tais estratégias revelam-se como resultantes das escolhas do autor, enquanto
actor maior, responsável por colocar em cena os actores os quais ele irá “dirigir” e com
os quais irá contracenar.
Ao darmos ênfase às estratégias textuais que indiciam os enunciadores de um texto
escrito, remetemo-nos a um conjunto diversificado de itens lexicais que apontam para
uma dimensão polifônica do discurso. Esse conjunto de itens lexicais - os embreantes7
ou a dêixis – que se configuram como elementos lingüísticos com que o autor opera
para indiciar, através do texto, aspectos de sua atividade discursiva são fundamentais
para o trabalho de produção de sentido, por parte de seu(s) interlocutor(es).
6
Para maiores esclarecimentos sobre o conceito de autor, enunciador e papéis actanciais, ver a Parte III
no capítulo 2.
7
Embreantes é uma tradução portuguesa de “embrayeurs”, que é a tradução do inglês shifter adotado por
Jakobson, utilizada na versão portuguesa de Maingueneau (1986).
19
Nesse ponto de vista, os embreantes8, bem como as estratégias discursivas que
envolvem sua utilização, são importantes indícios que revelam as condições de
produção de uma enunciação. O sistema dêitico constitui-se, pois, como um dos
principais fatores constituintes da competência lingüística do falante e, por tal, tem uma
importância fundamental na implementação das operações necessárias à efetivação do
processo da enunciação. É pela ativação desse sistema que os usuários da língua
distinguem as vozes que perpassam a enunciação e a constituem, garantindo, desse
modo, a sua unicidade, ou seja, o fato de que não há possibilidade de se repetir uma
enunciação.
5. Os objetivos
O quadro teórico utilizado nesta pesquisa (que será explicitado no capítulo 2) foi
especificado visando :
1. à identificação e à descrição de processos e/ou procedimentos lingüísticos utilizados
na CIE em textos jornalísticos argumentativos, tais como: o processamento dêitico,
a articulação de verbos “dicendi”, os modos de articulação de “vozes”, de citação
etc.. O trabalho realizado nessa etapa resultará em uma taxionomia de tais processos
e ou procedimentos;
2. a uma análise dessa taxionomia com o objetivo de explicitar as estratégias
discursivas que possam ser tomadas como evidências de fatores constituintes da
“competência textual” de autores de textos escritos no português culto do Brasil;
3. à tentativa de redução de tais estratégias discursivas a princípios e/ou mecanismos
lingüísticos constituintes da competência textual de autores de textos escritos no
português culto contemporâneo;
4. ao exame da possibilidade de sugestões para o tratamento a ser dado às referidas
estratégias no processo de ensino/aprendizagem do português culto, no contexto
escolar, a partir dos resultados obtidos na tarefa a que alude 3, acima,
8
Utilizaremos, neste estudo, “shifters”, termo emprestado de Jakobson (1963), referindo-nos aos
elementos que indiciam os enunciadores no discurso. No capítulo seguinte, explicitaremos esse conceito.
20
De uma forma mais específica, este trabalho pretende discutir formas de CIE na
produção de textos escritos, visando, inclusive, a rediscutir estudos realizados sobre
tópicos tais como “discurso direto”, “discurso indireto” e “discurso indireto livre”.
De uma forma mais geral, a pesquisa pretende apresentar novos dados que possam
favorecer outros trabalhos sobre o estudo da escrita, do ponto de vista de seu
funcionamento discursivo.
6. A organização do trabalho
Esta dissertação compõe-se de quatro capítulos. Neste primeiro, que tem um caráter
introdutório, faz-se a apresentação do objeto de estudo desta pesquisa, definindo-o em
termos da sua justificativa, dos objetivos pretendidos, da escolha do corpus e da
metodologia empregada e do tratamento desse corpus.
No segundo capítulo, faz-se uma resenha de teorias que dão suporte à pesquisa, com o
intuito de se definir a terminologia e especificar o quadro teórico a ser utilizado no
tratamento do corpus. Em função da delimitação do quadro teórico, palavras-chave, tais
como: autor, locutor, alocutário, interlocutor, enunciador, enunciatário, enunciação,
polifonia, vozes enunciativas serão explicitadas, ocorrendo o mesmo com o conceito de
texto, linguagem, discurso e estratégias discursivas. Com isso, tentar-se-á explicitar
melhor o objeto da pesquisa: os mecanismos envolvidos na CIE na produção de
textos escritos no Português culto contemporâneo, situando-o em uma perspectiva
discursiva, em uma visão processual de linguagem como uma atividade interativa.
No terceiro capítulo, empreende-se uma análise das estratégias de CIE identificadas na
produção dos textos do corpus, com o fim de explicitar processos envolvidos na CIE,
na produção de textos escritos no Português culto do Brasil.
No último capítulo, serão apresentadas as conclusões da pesquisa e as possíveis
contribuições para os estudos lingüísticos e para o redimensionamento do ensino de
língua materna, no que concerne ao ensino e à aprendizagem da produção de textos.
21
Capítulo 2DO PÓLO DO ENUNCIADO AO PÓLO DA ENUNCIAÇÃO
PARTE I – O pólo do enunciado
1.1. Introdução
O objeto de estudo desta pesquisa, embora já tenha sido abordado sob diferentes
perspectivas, ainda apresenta questões que necessitam ser elucidadas, como a que ora se
propõe: explicitar que conhecimentos lingüísticos são implementados, na escrita, pelo
autor, para a construção de instâncias enunciativas - CIEs - de um texto. Há, em quase
todos os trabalhos que abordam o discurso, tanto na Gramática Tradicional, quanto nas
teorias mais recentes da Lingüística, como é o caso da Teoria da Enunciação e da
Análise do Discurso, referências à possibilidade da existência de enunciadores
diferentes num texto. No entanto, pelo que sabemos, até o momento não se tratou o
objeto dessa pesquisa, de forma mais sistematizada, em uma visão mais funcional da
língua.
Em vista disso, neste capítulo, consideraremos algumas abordagens lingüísticas do
objeto desta dissertação. Partiremos de estudos centrados numa visão de língua
enquanto produto, passando, a seguir, por outras abordagens que consideram o
processamento discursivo. Nesse sentido, não nos preocuparemos em considerar tais
abordagens lingüísticas seguindo um critério cronológico, embora os desdobramentos
decorrentes de uma determinada concepção de língua possam estar direta ou
indiretamente relacionados a momentos anteriores. Iniciaremos pela abordagem da
Gramática Tradicional.
1.2. Gramática Tradicional
22
A Gramática Tradicional concebe a língua como um código lingüístico ou um sistema
de signos vocais e significativos utilizados pelo homem para expressar seus
pensamentos. Tal conceito está presente, também, nos estudos lingüísticos
desenvolvidos por Saussure. Nesse sentido, na Gramática Tradicional, constata-se uma
ênfase grande na estrutura da frase, identificada na materialidade dos enunciados. Não
se focaliza o conhecimento das estruturas da frase enquanto fator constituinte do
processo de produção dos enunciados.
Além disso, os exemplos arrolados nos manuais de gramática9, geralmente extraídos de
textos de autores consagrados na literatura brasileira e portuguesa, também não ilustram
o processamento discursivo da língua. A abordagem é de tal forma centrada na estrutura
desses textos que todo “uso” de fatos lingüísticos estranhos aos eternizados por aqueles
autores não são considerados, pelos gramáticos, como forma de expressão da norma
culta.
Nesse sentido, os textos que manifestam alguma variação lingüística ou fujam da
chamada norma culta, manifestada nesses, são atribuídos ao estilo do autor. Vale a pena
observar como Cegalla (1989:536) define esse termo: “Estilo é a maneira típica de
cada um exprimir seus pensamentos através da linguagem”, ou seja, é “o espelho onde
se reflete a alma do escritor, a tela em que se projeta a personalidade do artista” e
“revela também os traços psicológicos da raça e as tendências dominantes das diversas
correntes literárias que marcaram época através dos tempos”.
Nessa perspectiva tradicional, o tratamento da constituição de enunciadores, ou seja,
como dá-se a CIE, é abordado como propriedades do texto, do produto, e não em uma
perspectiva discursiva, como se verá a seguir.
9
O termo gramática é utilizado, nesse caso específico, para designar os manuais utilizados com o fim de
ditar as normas do bom uso e “funcionamento” da língua culta.
23
1.2.1. As formas do discurso na Gramática Tradicional10
Não há, nos manuais de gramática pesquisados, concordância no que concerne à
terminologia empregada - discurso/estilo- para a representação escrita das “falas” ou
“pensamentos” dos enunciadores no texto literário. Muitas vezes os dois termos são
utilizados como sendo equivalentes, podendo-se ler discurso direto/discurso
indireto/discurso indireto livre em alguns autores, como Garcia (1967), Cegalla (1989)
e Cunha (1980), e em outros, estilo direto/estilo indireto/estilo indireto livre, como se
encontra em Lima (1957). Além disso, não há como definir o que diferencia os
seguintes termos discurso/estilo/fala, tendo em vista serem eles utilizados como se,
entre eles, houvesse uma equivalência de sentidos. Assim, podemos encontrar as
seguintes menções:
“ (...) o narrador, após introduzir o personagem, o guaximim, deixa-o
expressar-se “lá na língua dele”, reproduzindo-lhe a fala tal como
a teria organizado e emitido.
A essa forma de expressão, em que o personagem é
chamado a apresentar as suas próprias palavras, denominamos
discurso11”. (CUNHA, 1980).
e
“Para fazer-nos conhecer, no curso de uma narrativa, palavras ou
pensamentos de outrem12, dispõe a técnica da redação de três processos
típicos. I.(...) estilo direto. II. (...) estilo indireto. III. (...) estilo
indireto livre.” ( LIMA, 1957: 496-98)
Nota-se que o termo discurso, tal como concebido na citação de Cunha (1980), remete à
Retórica, à arte da persuasão, cujos princípios remontam a Aristóteles. No capítulo 2 de
sua RHÉTORIQUE, Aristóteles postula que “a retórica é a faculdade de descobrir
especulativamente o que, em cada caso, pode ser apropriado à persuasão” (p.12).
10
Utilizaremos GT para nos referirmos à Gramática Tradicional.
Os itálicos são nossos, o sublinhado no termo “discurso”, no entanto, é do próprio autor. Nessa citação,
o autor define o discurso direto.
12
Os itálicos são nossos.
24
11
Nesse sentido, o papel do orador é fundamental para se conseguir o efeito desejado no
ouvinte, porque
“Persuade-se pelo caráter, quando o discurso é de natureza a
tornar o orador digno de fé, pois as pessoas honestas nos
inspiram a maior e mais pronta confiança sobre todas as
questões em geral e uma inteira confiança sobre aquelas que
não comportam nada de certo, e permitem a dúvida. Mas é
preciso que esta confiança seja efeito do discurso, não de uma
prevenção sobre o caráter do orador.” (Aristóteles.
RHETORIQUE I, cap. 2, 76-7).
Por seu turno,
“A persuasão é produzida pela disposição dos ouvintes,
quando o discurso os conduz a provar uma paixão. (..) É o
discurso que produz a persuasão, quando fazemos aparecer o
verdadeiro e o verossímil daquilo que cada tema comporta de
persuasivo.” (Ibid., 77).
Dessa forma, discurso é empregado referindo-se à expressão oral, cujo fim específico é
garantir a adesão dos ouvintes através dos efeitos do próprio discurso.
Discurso é também utilizado para referir-se a enunciado. Como sinônimo de
enunciado, discurso seria constituído por uma seqüência de vocábulos que forma uma
mensagem, com início, meio e fim. Essa caracterização do termo discurso, aludindo a
sua organicidade, não se coaduna com a concepção estruturalista de fala. Segundo essa
visão, a fala não possui sistematicidade, principalmente, por não ser planejada, tendo em
vista as condições em que se produz e se manifesta. O que distingue essas duas
concepções de discurso – a que se refere explicitamente à fala e a que se refere à escrita
- como postula Osakabe (1979: 135), é o fato de que, a primeira dessas
“... se refere não ao domínio frasal, mas ao domínio discursivo,
cujas finalidades e motivações, mesmo que possam ser
25
classificadas, não poderiam jamais ser sistematizadas
lingüisticamente, em virtude de sua natureza complexa.”13
Confundindo-se com o termo estilo, o termo discurso contrapõe-se à concepção de
Saussure. A dicotomia entre língua e fala, introduzida por esse autor, reside na
perspectiva formal que separa o material lingüístico do não-lingüístico. Dessa forma, a
concepção de estilo, citada acima, aproxima-se do conceito de fala e não do conceito de
enunciado/discurso, entendido no âmbito da delimitação frasal.
A utilização do termo estilo, na GT, coloca em foco uma dimensão individual da
produção/recepção de textos, ou características textuais ligadas a uma determinada
época, ou a uma estratificação social. Nesta perspectiva, as definições sobre as “formas
do discurso” referem-se a fatores psicológicos e individuais que podem manifestar-se de
uma ou de outra forma.
Assim, a questão da utilização de recursos para dar voz a outros enunciadores, no
discurso, é tratada, na GT, como um assunto à parte do qual poucos autores se ocupam.
E, quando o fazem, destinam-lhe um espaço pequeno, muitas vezes através de
definições suscintas, referindo-se apenas ao universo da escrita. A escolha do corpus
recai sobre os textos literários, privilegiados como lugar ideal para o estudo dos fatos da
língua. Considere-se, por exemplo, o que afirma Cegalla (1989:538), quando enfoca as
figuras do narrador e dos personagens como fatores constituintes da polifonia: “O
discurso: a transmissão ou a referência que o narrador faz da fala ou do pensamento
das personagens.”
Rocha Lima (1957) não reduz a utilização do que chamou “o estilo direto, o estilo
indireto e estilo indireto livre” ao domínio da literatura. Mas, por outro lado, limita-se
ao texto narrativo escrito, quando se refere aos três processos como “técnica de
13
Osakabe (1979) faz um estudo sobre as diversas formas de se conceber o termo discurso. Nessa citação,
o autor analisa esse termo de acordo com o que postulam Pêcheux (1969), Grimes (1972) e Ducrot
(1969).
26
redação”. Diz, dessa forma, que a língua possibilita a inserção de vozes na escrita. Ao
ilustrar os tipos de estilo, o autor não se distingue dos demais autores pesquisados.
Garcia (1969) refere-se à questão do discurso como uma “técnica do diálogo”, utilizada
pelo narrador para tornar conhecido o pensamento de personagem real ou fictícia. Essa
concepção vem de encontro ao que já se verificou nos outros autores acima citados: o
texto narrativo é o espaço ideal para verificar a existência de outros enunciadores, ou
seja, daqueles de quem o narrador reproduz a fala, quer de um modo direto, quer
indireto, quer mesclando essas duas formas de discurso. A técnica do diálogo, como
mencionada por Garcia, traduz-se como uma técnica de redação utilizada pelo autor ou
pelo narrador para demarcar as possíveis “falas” dos personagens. Essa técnica
possibilitaria a reprodução das variações de estilo. Como uma técnica estilística, ela
contribuiria para o enriquecimento da obra, evidenciando as características próprias de
uma determinada sociedade, em determinada época. Constituir-se-ia o “estilo” como um
importante instrumento para a expressão das diferenças sociais entre os personagens e
os traços distintivos específicos dos diversos escritores entre si.
Em SAID ALI (1966), no capítulo intitulado Pontuação, a menção às vozes presentes no
discurso se faz explícita quando o autor descreve as normas de utilização dos seguintes
sinais de pontuação: os “dous pontos”, as “aspas”, os “parênteses” e o ‘travessão”.
Extrapolando os limites do referido capítulo, não se encontra nesse autor nenhuma outra
referência às formas de indicar os pensamentos e as falas dos participantes de um
discurso.
De acordo com SAID ALI (1966), em relação à polifonia, são as seguintes as funções
desses sinais de pontuação:
“OS DOUS PONTOS usam-se:
1º depois de verbo que signifique “dizer”, “responder”,
“perguntar”, ou de expressões de sentido análogo, para mostrar
que vamos referir palavras textuais ou exatamente conformes
à enunciação do declarante: (...)
27
As ASPAS usam-se no princípio e no fim das citações,
para distingui-las da parte restante do discurso:
Ao brado “Cristo e avante!” todos obedeceram.
(...)
PARÊNTESES são dois sinais arqueados, ou
angulares, de abertura oposta, entre os quais se colocam
dizeres meramente explicativos com que às vezes se
interrompe o discurso. (...) Os parênteses usuais são arqueados.
Os de forma angular, ou colchetes reservam-se para casos
especiais, por exemplo em obras científicas quando o autor
quer intercalar uma observação própria em meio da transcrição
de opinião alheia.
(...)
TRAVESSÃO é um traço de certa extensão com que
se indica desvio de pensamento ou, em parágrafo diferente, a
mudança de interlocutor.” (p.: 231-4)
Em suma, o que se verifica na GT é uma importância muito grande à forma de
reprodução escrita do diálogo entre os personagens ou à manifestação do narrador/autor.
De acordo com a GT, só é possível detectar a presença de enunciadores, na escrita,
através das técnicas básicas já tradicionalmente instituídas como discurso direto,
discurso indireto e discurso indireto livre. Nesse sentido, tais técnicas possibilitariam a
reprodução do diálogo entre personagens ou a reprodução, por parte do narrador/autor,
da fala ou do pensamento dos mesmos. Como a referência da Gramática Tradicional são
os textos literários, necessária se faz a figura do narrador , a quem cabe a missão de
introduzir a “fala” ou o pensamento dos personagens participantes da narrativa por meio
das representações do discurso acima citadas. Nesse sentido, a técnica do diálogo
conferiria ao texto uma maior autenticidade, o que aproximaria a realidade materializada
na ficção da realidade do leitor ou apresentaria a este um mundo diferente do seu,
porque estariam ali representados, na escrita, traços da linguagem afetiva, características
de falares regionais ou de grupos, específicos de um outro tempo, como afirma Garcia
(1967).
28
1.2.2. A caracterização das formas de discurso na GT.
Uma pesquisa em alguns autores - Garcia (1967), Lima (1957), Cegalla (1989) e Cunha
(1980)14 revela que esses já acenam para a existência da polifonia no texto literário.
Isso, no entanto, não é bastante explorado nos manuais desses autores e não há interesse
em fazê-lo, uma vez que, na abordagem da GT, os traços que indicam as “vozes” dos
personagens não se constituem como objeto primordial de estudo dos sintaticistas. Esse
é um assunto tratado pela Estilística como já se disse anteriormente. Feitas essas
observações, proceder-se-á a uma síntese da caracterização dos mecanismos que,
segundo os autores citados, constituem-se como formas de discurso15 na GT:
(1) Discurso direto:
- utilização de verbos dicendi16 ou similares ;
- utilização de pontuação adequada: dois pontos,
travessão ou aspas.
- predomínio da parataxe: períodos compostos por
orações justapostas, independentes;
- ausência de conectivos entre as orações, pois a
pequena pausa - marcada por vírgula ou travessão cumpre a função de uni-las;
- quanto à localização em relação à fala do
interlocutor; os verbos dicendi podem ser colocados em
qualquer posição: início, fim ou nela intercalada;
- em caso de diálogos pequenos, permite a omissão
dos verbos dicendi;
- possível a transposição para o discurso indireto.
14
Os quadros abaixo resumem o que esses autores aventam como características do discurso direto, do
discurso indireto e do discurso indireto livre.
15
Neste item, a concepção de discurso que se utiliza é a mesma já explicitada em parágrafos anteriores.
16
Os verbos “dicendi” ou os verbos “de dizer” indiciam uma situação discursiva. Os verbos dicendi mais
comuns são: dizer, acrescentar, perguntar, responder . O uso, no entanto, favorece a utilização de outros
verbos com semelhante status, como é o caso dos verbos lamentar-se, queixar-se, gemer e outros.
29
Os verbos dicendi são tidos, nessa abordagem, como o fator básico para a caracterização
do discurso direto, por terem a função de pôr em cena a narração de fatos por
enunciadores diversificados, atualizá-los, mantendo intacta a expressividade do
interlocutor, além de contribuir para diferenciar social e culturalmente os personagens.
(2) Discurso indireto:
- os verbos dicendi constituem o núcleo da oração
principal;
- predomínio de hipotaxe: períodos compostos por
orações subordinadas entre si, porque o autor encaixa no
seu discurso a fala dos personagens;
- presença de conectivos subordinativos - que e o
se ou os pronomes e outro itens interrogativos indiretos quem, qual, onde, como, quando, etc..
- adaptação de tempos verbais, de advérbios
modalizadores
e
locativos
ao
distanciamento
caracterizado pela mudança de locutor;
- utilização de pronomes demonstrativos de 3ª
pessoa;
- transposição possível para o discurso direto.
A utilização dessa forma de discurso – o discurso indireto -, possibilita, segundo Rocha
Lima (1968), transmitir somente o “sentido intelectual e não a forma lingüística”
utilizada pelos personagens.
30
(3) Discurso indireto livre:
- os verbos dicendi não são utilizados;
- as orações que contêm a fala das personagens
são independentes;
- há adaptações de tempos verbais, advérbios
modalizadores e de pronomes;
-
conserva
a
afetividade
e
a
expressão
características do discurso direto;
- aproxima narrador e personagem;
- é impossível a transposição para o discurso direto
ou o indireto.
Com essa forma de discurso – o discurso indireto livre, postula-se ser possível mesclar a
fala e o pensamento dos personagens e do narrador. A fala dos personagens, ou
fragmentos, dela inserir-se-iam no discurso indireto do narrador. De acordo com Nicola
Vita17 (apud Cunha (1980: 629-30)), com esse recurso, (i) no plano formal, há
“absoluta liberdade sintática do escritor ( fator gramatical) e a sua completa adesão à
vida do personagem (fator estético)” e, (ii) no plano expressivo, observam-se algumas
vantagens, tais como: a narrativa se torna mais fluente, de ritmo e tom mais
artisticamente elaborados, é ideal para o monólogo interior nas narrativas de memória e
nem sempre aparece isolado em meio da narração.
De acordo com Díaz (1970: 149), pelo fato de o discurso indireto livre estar, às vezes,
incorporado à narrativa sua “riqueza expressiva aumenta quando ele se relaciona,
dentro do mesmo parágrafo, com os discursos direto e indireto puro”, confluindo para
o enunciado, “numa soma total , as características de três estilos diferentes entre si”.
17
Cf.: Nicola Vita, In.: CULTURA NEOLATINA, XV. Editora Moderna, 1955, p.18.
31
Díaz, no entanto, adverte que
“Seu emprego por parte dos personagens literários e dos
falantes não pode reger-se por capricho. É necessário que tanto
uns como os outros - personagens literários e falantes - se
encontrem diante de situações idôneas para poderem expressarse em discurso indireto livre. Quando se faz um uso adequado
do discurso indireto livre, este se torna natural, tão natural
como qualquer dos métodos de reprodução já conhecidos,
embora menos usado que eles nas obras literárias e na
linguagem coloquial. Quando se abusa do estilo em causa, ou
melhor, quando não se tem domínio sobre ele - não importa
qual seja a razão - violenta-se a sintaxe e o seu emprego passa
a constituir mais um defeito do que uma qualidade literária.”
(Ibidem, p. 156).
Esse item - Caracterização das formas de discurso na GT - teve como objetivo, além de
apresentar sumariamente as formas de inserção de vozes na escrita segundo visão da
GT, servir como parâmetro para uma comparação entre o que é estabelecido como
norma e o que se verifica no português contemporâneo. Essa comparação visa a
explicitar quais recursos lingüísticos são utilizados e como são construídas as instâncias
de enunciação, pelos autores de textos escritos. Em outras palavras, que tipo de recursos
são utilizados na implementação de CIE.
A GT não aborda exaustivamente o aspecto funcional da língua. Tal aspecto é
focalizado, a partir do advento das teorias do texto e de outras correntes da Lingüística
moderna. Dentre essas abordagens lingüísticas, a Teoria da Enunciação, a Teoria dos
Atos de Fala e as Teorias do Discurso são as que vêm apresentando trabalhos de grande
relevância para os estudos da linguagem.
1.2.3. O produto – o texto literário - como objeto de análise
É importante notar que a GT, conforme se destacou no item anterior, enfatiza a língua
enquanto forma. Nesse sentido, a ela importa, predominantemente, o produto, o texto
em si, sem considerar suas condições de produção.
32
Ao eleger o texto literário como corpus, a GT privilegia a escrita como objeto de estudo
e, dessa forma, subtrai de sua análise os dados lingüísticos que evidenciam o
processamento discursivo da linguagem. A variação lingüística é abordada como uma
questão de estilo e o seu reconhecimento, enquanto uma possibilidade de uso, está
atrelado à expressão artística. A Literatura, então, lugar, por excelência, da ocorrência
de textos narrativos, possibilita a manifestação lingüística dos autores de texto, pois
“Todo escritor tem seu próprio estilo, isto é, sua expressão
reveste uma forma característica, através da qual se
manifestam seus impulsos emotivos, sua sensibilidade e a
feição peculiar de seu espírito. Podemos, pois afirmar que o
estilo é o espelho onde se reflete a alma do escritor, a tela em
que se projeta a personalidade do artista.” (Cegalla, 1989: 536)
Então, segundo Cegalla (Ibidem, p.538), o discurso direto, o discurso indireto e o
discurso indireto livre caracterizam-se como estratégias lingüísticas que possibilitam aos
autores de textos literários “a transmissão ou referência que o narrador faz da fala ou
do pensamento das personagens.” Só a narração, lugar por excelência da existência de
interlocutores nas situações de diálogo, dispõe de recursos polifônicos.
Aliás, o recurso da polifonia, como evidência do processamento discursivo, não é
relevante para os autores pesquisados: a postura formal adotada por eles assume grande
importância nesta pesquisa, devido ao fato de não corroboramos essa perspectiva de
análise, conforme se verá a seguir.
1.3. Uma perspectiva de observação da CIE
Na construção do quadro de referência teórica a ser utilizado na análise pretendida,
levar-se-á em conta o fato de que o enunciado não pode ser analisado sem se considerar
as condições de sua produção. Tal posicionamento implica adotar, como suporte, teorias
que focalizam o processamento discursivo como variável indispensável na análise do
enunciado. É com essa finalidade que, neste trabalho, utilizaremos contribuições da
Teoria dos Atos de Fala, da Teoria da Enunciação, da AD, de uma Teoria Modular
33
desenvolvida por Castilho (1997, 1998) e, quando necessário, de outras teorias que
tratem o discurso do ponto de vista de seu processamento.
Em vista disso, faz-se necessário que explicitemos as concepções de linguagem, de
texto, de enunciação e de discurso que subsidiam uma noção de língua escrita como
representação do processo de interação, ou seja, como representação de uma atividade
com/sobre a língua. Isso implica uma abordagem da língua em uma perspectiva
funcional, tendo em vista que a análise do produto (o enunciado/texto) orientar-se-á
pela análise do processo que o constituiu. Nessa perspectiva, pode-se dizer que
procuramos inserir nosso estudo na dinâmica da produção de análises lingüísticas a que
alude Castilho, ao afirmar que tais análises vêm
“... deixando o pólo da linguagem como enunciado, e se
desloca para o pólo da linguagem entendida como enunciação.
Já não se postula mais a linguagem como um código abstrato, e
se incorporam às análises do enunciado as condições de
produção. Em conseqüência, o eixo da indagação científica se
desloca da análise taxionômica dos produtos lingüísticos para a
análise dos processos psicossociais que constituem esses
produtos.” (CASTILHO: 1989).
1.4. Por uma Teoria da Enunciação
Segundo Castilho (1993: 8), em decorrência de uma visão de língua como atividade
social, surgiram teorias auxiliares preocupadas em descrever a língua em
funcionamento. O resultado dessa preocupação foi a gramática funcional, concebida
como “um conjunto de regras em que se procura correlacionar as classes e as funções
com as situações concretas em que elas foram geradas” (Ibidem, p.: 9).
Castilho menciona cinco teorias que comungam dessa visão de língua enquanto
atividade social: a Teoria da Comunicação, a Teoria das Funções da Linguagem, a
Teoria dos Atos de Fala, a Teoria da Variação e da Mudança Lingüística e as Teorias do
Discurso. Essas teorias trazem grandes contribuições para a análise que se pretende,
34
neste estudo, sobre a construção de instâncias enunciativas a partir do processamento
discursivo da língua. Em vista disso, proceder-se-á uma breve abordagem dessas teorias.
1.4.1 A Teoria da Comunicação
A Teoria da Comunicação, segundo Jakobson (1952), erige-se com base numa realidade
fundamental para os lingüistas: a interlocução - a troca de mensagens entre emissor e
receptor, entre remetente e destinatário, entre codificador e decodificador (1952: 22).
De acordo com o autor, toda atividade de comunicação pressupõe a existência desses
dois pólos básicos que intercambiam entre si o papel de protagonista no ato de
comunicação. Isso não impossibilita que, dependendo dos fatores envolvidos no ato de
fala, a ênfase possa recair em outros elementos que compõem o esquema da
comunicação proposto por Jakobson (1960:123): o código, a mensagem, o contexto e o
contato.
CONTEXTO
DESTINADOR
MENSAGEM
DESTINATÁRIO
CONTATO
CÓDIGO
Figura 1 - Esquema representativo dos fatores que compõem a Teoria da Comunicação
segundo Jakobson.
Nesse esquema, o autor introduz a noção de contexto (ou referente), que é captado pelo
destinatário, e a noção de contato, que habilita o destinador e o destinatário a
estabelecerem e manterem a comunicação. A noção de contexto abarca fatores verbais e
não verbais que interferem no processo de comunicação, tais como as representações
pré-concebidas. A noção de contato, por sua vez, refere-se ao canal físico em que se
dará a conexão psicológica entre os protagonistas do ato de comunicação. Assim,
35
conceber a língua como instrumento de comunicação, pressupõe uma ação do usuário
com a língua.
Na visão de Castilho (1990:113), pode-se abstrair dessa Teoria da Comunicação bases
para se construir um conceito de enunciação como o conjunto das circunstâncias que
cercam a produção da linguagem, tais como o locutor, o interlocutor, o assunto, o
código lingüístico, o canal utilizado e a mensagem. Nessa leitura de Castilho sobre a
teoria de Jakobson, percebe-se a importância dos elementos lingüísticos que evidenciam
as condições de produção de um ato de comunicação.
1.4.2 A Teoria das Funções da Linguagem
Partindo do que se afirmou em 1.4.1, constata-se que fatores externos e internos à língua
interferem no processo de comunicação e configuram-se como fatores intrínsecos,
definitórios, da atividade de comunicação. Isso se deve, segundo Jakobson (1952), ao
fato de que qualquer conduta verbal tem uma finalidade, mas os objetivos variam de
acordo com os meios utilizados e com o efeito visado pelos participantes do processo de
comunicação.
Embora constatando-se que Jakobson desenvolveu um trabalho importante sobre as
funções da linguagem, deve-se observar que cabe a Bühler (1934) o crédito de ter
lançado as bases de uma abordagem funcional da linguagem. Para esse autor, a
“linguagem, que é um sistema de sinais, funciona como instrumento por meio do qual
uma pessoa se comunica com a outra”.
Bühler propôs um modelo triádico, a partir de que seriam derivadas as demais funções
da linguagem. O seu modelo tinha como elementos constitutivos: o remetente,
correspondente à 1ª pessoa; o destinatário, correspondente à 2ª pessoa; e alguém ou algo
de que se fala, correspondente à “3ª pessoa”. Esses três elementos corresponderiam
36
basicamente às funções expressiva (emotiva), apelativa (conativa) e representativa
(referencial)18, podendo recair sobre cada um deles a ênfase comunicativa.
Jakobson amplia esse modelo triádico propondo que, a cada um dos elementos
identificados no processo de comunicação19, corresponda uma das funções da
linguagem. Assim, as funções básicas da linguagem seriam seis e não apenas três,
conforme Bühler tinha postulado. Desse redimensionamento resultou um esquema das
funções da linguagem como correspondentes aos fatores essenciais da comunicação.
Para Jakobson, então, a cada vez que um dos fatores presentes na comunicação fosse
colocado em foco, seria evidenciada uma função a ele correspondente. O autor chama a
atenção para o fato de o foco comunicativo poder recair sobre mais de um dos fatores ao
mesmo tempo, havendo sempre a supremacia de um fator em relação a outros.
O modelo proposto por Jakobson postula que a “linguagem deve ser estudada em toda
a variedade de suas funções” (Jakobson,1960:122) e, ao interpretar os estudos de Boas
(1938)20, o autor busca elementos que corroborem a sua concepção de linguagem e a
importância de se levar em consideração as funções de um ato de comunicação.
REFERENCIAL
EMOTIVA
POÉTICA
CONATIVA
FÁTICA
METALINGÜÍSTICA
Figura 2 - Esquema representativo das funções da linguagem segundo modelo proposto por
Jakobson (1960:129).
18
Os parênteses encerram a terminologia empregada por Jakobson e que correspondem às funções básicas
identificadas por Bühler.
19
Cf. o esquema proposto no item 1.4.1.
20
Cf. BOAS, Franz. “Language”. In.: GENERAL ANTHROPOLOGY. Boston: 1938.
37
De acordo com Jakobson (Ibidem: 92-3):
“Estava claro, para Boas, que toda diferença nas
categorias gramaticais conduz informação semântica. Se a
linguagem é um instrumento que serve para transmitir
informação, não se podem descrever as partes constituintes de
tal instrumento sem referir-lhes as funções, assim como a
descrição de um automóvel sem qualquer menção às tarefas de
suas partes ativas seria incompleta e inadequada.”
Nota-se que Boas constrói a sua teoria semântica com base no aspecto gramatical,
postulando que a utilização dos recursos lingüísticos se orientam por conceitos
culturalmente determinados por seu uso, numa comunidade lingüística.
No conjunto de teorias que concebem a língua como usos, há de se considerar, ainda,
Halliday21 (Apud Castilho, 1990:118), que postula a existência de três funções da
linguagem, as quais devem ser levadas em conta na descrição das estruturas
gramaticais. Segundo esse autor, não há como explicitar a estrutura das línguas sem
apreender simultaneamente e numa relação de explicação o conjunto das funções que
uma língua realiza e o conjunto de suas características estruturais. Halliday (Apud
Castilho, ibdem) estabelece, então, as seguintes funções:
“(1) Função ideacional: é a capacidade de informar e obter
coisas informando. Halliday acredita que o falante representa
na língua “diferentes tipos de processos do mundo exterior,
incluindo os processos materiais (ação, acontecimento,
criação, operação), mentais (percepção, reação, cognição) e
abstratos (relação) de todo tipo”.
(2) Função interpessoal: “abrange todos os usos da língua
para expressar relações sociais e pessoais, incluindo todas as
formas de intervenção do falante na situação da fala e no ato
de fala”.
(3) Função textual: Essas duas funções praticamente esgotam
as situações de uso da língua. Entretanto precisaríamos
postular a função textual, “que preenche a exigência de que a
língua seja operacionalmente relevante, que tenha textura, em
21
HALLIDAY, M. A. K..(1970) “Estrutura e função da linguagem”. In.: LYONS, J.. (Org.) NOVOS
HORIZONTES EM LINGÜÍSTICA. São Paulo: Cultrix-EDUSP, 1976, pp. 134-60. (Trad. de NEW
HORIZONS IN LINGUISTICS).
38
contextos situacionais concretos, que distinga uma mensagem
viva de um mero item numa gramática ou dicionário”.
As teorias das funções da linguagem de Jakobson e de Halliday privilegiam o aspecto
semântico, mas sua relevância recai sobre um conjunto de fatores que definem a
comunicação, tais como os recursos lingüísticos, o contexto e a situação dos falantes.
Nessa perspectiva, na determinação das funções da linguagem, há de se considerar as
informações lingüísticas e as informações extralingüísticas que interferem em sua
produção.
1.4.3 A Teoria dos Atos de Fala
A Teoria dos Atos de Fala está assentada sobre os estudos do funcionamento da
linguagem de Austin (1962) e Searle (1969). Tendo como foco a ação do locutor na
língua, essa teoria considera qualquer enunciado efetivamente realizado por um
determinado falante, numa dada situação, como um ato de fala. Segundo Castilho
(1990:17), nessa teoria, qualquer “ação realizada por um falante, através de um
enunciado, considerando as intenções de sua realização e os efeitos que visa alcançar
no alocutário” é um ato de fala.
Ao colocar uma ênfase maior no locutor, a Teoria dos Atos de Fala não privilegia a
atividade lingüística enquanto interação entre locutor e alocutário. No entanto a
contribuição desses estudos sistematiza-se na descrição que propõem sobre os tipos de
ações que estão na base da atividade dos locutores sobre a língua.
Para Austin (1962), usar a língua é sempre um ato, é sempre fazer algo com palavras.
Diante disso, colocam-se as perguntas: “em que sentido dizer alguma coisa é realizála? (...) em que sentido fazemos alguma coisa pelo fato de dizer algo?” (Austin,
1962:107). A busca de respostas para essas questões leva o autor à concepção de três
atos que possibilitam a produção de um ato de fala:
39
a) ato locutório refere-se ao próprio ato de o falante emitir um enunciado: a produção
dos sons; a produção de certos vocábulos (que fazem parte de um Léxico) de acordo
com uma certa organização ( ou seja, uma Sintaxe), usando uma entonação; empregar os
itens lexicais num sentido mais ou menos determinado, com uma dada referência
(sentido e referência compõem a Semântica). De acordo com isso, essa ação do locutor
já apresentaria, então, uma significação.
b) ato ilocutório refere-se ao ato que se realiza quando se diz algo a alguém. Significa
dizer que esse ato diz respeito ao efeito que se consegue sobre o interlocutor com o ato
de fala: a ação do locutor produz o efeito de ser compreendida e produz o efeito de criar
um compromisso, por exemplo.
c) ato perlocutório refere-se à fala enquanto um instrumento e implica a produção de
algum efeito decorrente do tipo de interlocução estabelecido. Esse ato não tem a força
de convencimento pretendido pelo ato ilocutário, porque nem sempre a enunciação
primeira que se pretende é percebida nessa dimensão.
No ato ilocutório concentram-se, portanto, as três dimensões fundamentais da
linguagem: a descrição da ação, da forma dos enunciados e da conseqüência do ato de
fala produzido, obtendo-se, dessa forma, as coordenadas da dimensão da linguagem
como atividade.
De acordo com Osakabe (1979:178):
“Uma das características mais importantes dos atos
ilocucionários, segundo Austin, é sua convencionalidade, isto
é, sua forte ligação com as convenções socialmente dadas
através das quais um ato de linguagem tem êxito ou não.”
Seguindo a hipótese austiniana de que falar uma língua é realizar certos atos, Searle
(1969) postula que todo ato lingüístico é também uma revelação do conhecimento que o
seu produtor possui. Assim, “falar uma língua é adotar uma forma de comportamento
40
regida por regras” (Ibidem, p.: 48). O autor orienta a sua investigação visando a
responder a pergunta: “Quais são os tipos de atos que permitem aos indivíduos agir no
mundo, pelo uso da língua?” e “como a significação dos diferentes elementos de uma
frase determina a significação da frase toda?” (Ibidem, p.: 55). Sua resposta se constrói
levando em conta que as duas perguntas se referem a um conjunto de fatores que atuam
simultaneamente e são ativados em relação ao momento de produção do ato de fala.
Assim, as duas perguntas
“são ligadas porque a todo ato de linguagem possível
corresponde uma frase ou um conjunto de frases possíveis cuja
enunciação literal em uma situação particular constitui a
realização de um ato de linguagem.” (Searle, 1969)
Searle parte de uma concepção comunicativa da linguagem, considerando a força do ato
de linguagem. Em decorrência disso, o ato de fala significa uma ação que tem como fim
provocar uma resposta - verbal ou não. De acordo com isso, o autor identifica quatro
atos de linguagem:
a) ato da enunciação, correspondente à realização formal do enunciado ou do ato de
fala, abrangendo, então, a realização sonora, morfológica e sintática do ato de linguagem
produzido. Esse ato refere-se sobretudo à capacidade de falar.
b) ato locutório, correspondente à função a que se destina o ato de fala: “afirmar”,
“referir”, “pedido”, “ordem”, “asserção”, etc.. É neste ato que se encontra a principal
distinção entre o que se propõe na teoria de Searle e na teoria de Austin, haja vista que,
para Austin, o ato ilocutório refere-se à capacidade de se fazer alguma coisa pela fala.
c) ato perlocutório, correspondente às intenções do falante de, por exemplo, “irritar”,
“informar”, “advertir”, “repreender”, etc., o ouvinte. Ou seja, através do ato perlocutório
busca-se uma reação no ouvinte, mas isso não implica que tal reação se realize ou não.
d) ato proposicional, correspondente à capacidade de fala tomada idealmente. Esse ato,
de acordo com Vilela (1995:347), “diz respeito ao estado de coisas subjacente: isto é, o
41
que pode ser verdadeiro ou falso, na medida em que a proposição se encontra ligada
com a ilocução (“asserção”)”.
De acordo com Guimarães (1995:41), as distinções entre Searle e Austin concentram-se
nos seguintes aspectos:
• Austin concebe a existência dos atos locucionais como responsáveis pela
significação, excluindo essa propriedade dos atos ilocucionais. O autor postula a
propriedade de significar como a distinção básica entre esses dois atos de fala.
• Searle concebe que a significação mesma dos enunciados é bastante para a
realização dos atos de linguagem: basta dizer para se significar o que se quer
significar, ou melhor, fazer o que se quer fazer.
• Austin postula que a significação se constrói na relação entre sentido e referência.
• Searle postula que a significação não se limita a sentido e referência, pois há atos,
distintos do de referir, como o de predicação e os ilocucionais, e que são realizados
em virtude da significação que possuem os elementos lingüísticos usados na sua
realização.
A Teoria dos Atos de Fala coloca em foco a ação do locutor na língua e, apesar de
considerar alguns fatores extralingüísticos, como a intenção do locutor e a função da
produção de um ato de fala, ainda não considera o contexto real de uso da linguagem.
Deve-se notar que, ao dar ênfase na ação do locutor,
“A concepção ativa da linguagem não se define, portanto, por
ela mesma, mas está indissoluvelmente ligada à sociedade e
individualidade que caracteriza o ato de fala. Em outras
palavras, o ato de linguagem tem uma definição social à
medida que não pode ser pensado fora das relações entre os
indivíduos.” (Osakabe, 1979: 182)
Segundo Koch (1995:23), os pontos mais criticados na Teoria dos Atos de Fala são, por
um lado, a ênfase em apenas um dos pólos da enunciação, ou seja, no locutor e, por
outro, na concepção de linguagem vinculada à função social. Segundo a autora, os
pesquisadores, em geral, se baseiam nesses dois pontos para propor reformulações a
42
essa teoria, levando-se em conta que essas considerações afastam a possibilidade de se
conceber a linguagem como fator de interação entre os usuários.
1.4.4. A Teoria da Variação e Mudança Lingüística
A Teoria da Variação e Mudança Lingüística corrobora as concepções das teorias,
acima, que a antecederam e, como afirma Castilho (1990:17), sistematizou muitas das
intuições nelas contidas. Essa sistematização foi apresentada inicialmente em 196622,
quando Weinreich, Labov e Herzog propuseram os princípios que fundamentavam a
Teoria da Mudança Lingüística. Segundo eles, os pontos que mais se destacavam nos
estudos lingüísticos, até então conhecidos, tinham como princípios básicos (i) a
heterogeneidade e (ii) a comunidade lingüística. Estabelecidos os princípios norteadores,
Labov (1982: 17) os concebe como
“1.1 Normal heterogeneity. The normal condition of
the speech community is a heterogeneous one: we can expect
to find a wide range of variants, styles, dialects, and languages
used by members. Moreover, this heterogeneity is an integral
part of the linguistc economy of the community, necessary to
satisfy the linguistic demands of every-day life. (...) The
heterogeneous character of the community appears in the fact
that there are many alternate, semantically equivalent ways of
saying “the same thing”
1.2 Linguistic community. The object of linguistic
description is the grammar of the speech community: the
system of communication used in social interaction.” 23.
22
No ano de 1966, foi realizada a primeira conferência intitulada DIRECTIONS in HISTORICAL
LINGUISTICS da qual participaram Weinreich, Labov e Herzog [WLH]. Dessa conferência resultou o
artigo “Empirical Foundations”, de 1966.
23
(Nota de tradução) 1.1 Heterogeneidade normal. A condição normal de uma comunidade de fala é a
heterogeneidade: podemos encontrar uma grande diversidade de variantes, estilos, dialetos e linguagens
usadas pelos membros. Além disso, esta heterogeneidade é uma parte integrante da economia lingüística
da comunidade, necessária para satisfazer as demandas lingüísticas da vida diária. (...) O caráter
heterogêneo da comunidade aparece no fato de que existem alternativas, que são formas semanticamente
equivalentes de se dizer “a mesma coisa”.
1.2 Comunidade lingüística. O objeto da descrição lingüística é a gramática da comunidade de fala: o
sistema de comunicação usado em interação social.
43
Tais princípios, no entanto, evidenciaram a existência de paradoxos que forneceram as
bases para o desdobramento dessa teoria em duas vertentes: a Teoria da Variação
Lingüística e a Teoria da Mudança Lingüística.
Na concepção da Teoria da Variação, os falantes, tendo em vista a interação lingüística,
usam os mecanismos lingüísticos de acordo com fatores externos (o espaço geográfico,
o espaço social e o espaço temático) e fatores internos (as variações decorrente de
operações efetuadas no plano lexical) que estão envolvidos na produção de sua
comunicação. Ao dar relevância aos fatores que atuam na caracterização das possíveis
variações que ocorrem na língua, essa teoria fundamenta uma análise gramatical que
considera o caráter dinâmico da língua, pois como afirma Labov (1972), é possível
estudar a língua em situações reais de uso, porque a heterogeneidade da língua é
estruturada (Apud Castilho (1990)).
Segundo Castilho (1990: 19), a partir dessa concepção
“Admite-se hoje que os falantes de uma língua operam com
uma variedade de gramáticas, de acordo com a situação
lingüística particular em que estão envolvidos.”
A Teoria da Mudança Lingüística, por sua vez, concebe que os falantes atuam num
determinado tempo ou espaço de acordo com o contexto histórico em que se inserem.
Nesse sentido, a época em que eles se encontram inseridos reflete-se na sua
manifestação lingüística, uma vez que “All language is an historical residue”24 como
atesta Labov (1988) no seu estudo sobre como se manifesta a aquisição das regras
lingüísticas por crianças.
Nessa abordagem, o objeto de estudo da lingüística é o conjunto de materiais que
servem como dados que atestam o uso lingüístico numa época específica. De acordo
com as abordagens dessas teorias, na análise lingüística devem ser consideradas as
variáveis que constituem o espaço sócio-cultural e temporal em que se realiza a
44
interação, pois a linguagem revela os traços que distinguem a fala dos indivíduos de um
determinado contexto para outro.
1.4.5. As Teorias do Discurso
Conforme postulam Koch (1983), Possenti(1988 ) e Castilho (1994), o que se observa
em relação às Teorias do Discurso é a existência de diversas teorias do discurso, e cada
uma delas se servindo de uma metodologia. Possenti (op. cit.) afirma que esta profusão
de teorias do discurso nasceram da tentativa de (1) delimitar o objeto da lingüística, (2)
levar em conta a natureza das línguas; e (3) da necessidade de um diálogo entre a
Lingüística e as outras ciências humanas. Em comum, todas elas têm a “determinação
de ultrapassar a sentença como limite máximo da análise lingüística” (Castilho, 1994:
20).
Faz-se aqui um resumo das diversas noções de “discurso” que orientaram o surgimento
dessas teorias. Utilizamo-nos, para isso, de Castilho (1994):
(i) “Discurso é a execução individual do sistema lingüístico, é o mesmo que fala e
corresponde à parole de Saussure”. Essa é a caracterização do objeto de estudo da
Estilística e contemporaneamente de algumas tendências da Análise do Discurso.
(ii) Discurso ou enunciado (“utterance”) é uma combinatória de sentenças sujeitas a
uma regularidade. Essa noção está presente nos estudos empreendidos pela Lingüística
Estrutural, principalmente nos trabalhos de Harris, Pike e Grimes.
(iii) Discurso é o mesmo que texto, entendido como uma estrutura acabada, de que se
podem identificar as unidades. Essa noção caracteriza o objeto de estudo dos
formalistas russos e da Sociolingüística.
(iv) Discurso é o mesmo que interação lingüística em presença, discurso é conversação.
Essa noção introduz a concepção de língua como atividade, implicando um “aparato
enunciativo”, que introduz o locutor, o alocutário, o assunto, as representações que os
interlocutores fazem de si e as pressuposições relacionadas ao assunto.
24
(Nota de tradução) Toda linguagem é um resíduo histórico.
45
(v) Discurso é a articulação ideológica contida nos textos. A análise lingüística tem
como objetivo depreender do texto suas “formações discursivas”. Assim sendo, todo
discurso veicula uma ideologia, porque o processamento semântico é definido
historicamente, nas representações que os indivíduos têm dos lugares sociais que
ocupam.
Para Castilho, as noções acima podem ser arroladas em duas tendências maiores da
Análise do Discurso que possibilitam a apreensão do discurso, enquanto objeto, nessa
altura, ainda muito amplo: a “Anglo-Saxã”, “que considera as conversações do dia-adia, com o objetivo de descrever suas propriedades formais” e a “Francesa”, “que
parte dos textos inscritos num quadro institucionalizado, com o objetivo de interpretálos”.
A Análise do Discurso Francesa focaliza a língua escrita como objeto de análise. A
concepção de discurso, enquanto uma interação lingüística, está presente na Análise do
Discurso Anglo-Saxã, que tem a conversação como objeto. Importante notar que os dois
objetos - a escrita e a fala – aproximam-se, uma vez que, na análise da forma, a AD25
focaliza o aspecto discursivo da língua. Em relação às formações sociais e suas
transformações, interessa à AD as representações que os indivíduos fazem em termos
do seu funcionamento na produção de sentidos.
Castilho cita Jakobson e Benveniste como precursores dessa vertente teórica da
lingüística – a AD. A Jakobson devem-se os estudos das classes de palavras
dependentes de uma ancoragem na enunciação; e a Benveniste, a caracterização das
categorias de pessoa, tempo e espaço como fatores básicos na constituição do aparelho
formal da enunciação.
A consideração do aspecto formal e do aspecto pragmático, na análise lingüística, está
estreitamente relacionada à concepção de que a forma de articulação do texto se dá em
25
Utilizaremos AD ao nos remetermos à Análise do Discurso.
46
função das condições de sua produção. Nesse sentido, as concepções de linguagem em
que se baseiam a Teoria da Enunciação, a Análise do Discurso e a Teoria dos Atos de
Fala26 põem em foco o caráter discursivo e pragmático da linguagem, considerando
como fator relevante, na interação lingüística, um sistema de referências, as condições
de produção, que instituem os enunciadores numa instância de enunciação.
PARTE II - O pólo da enunciação
2.1. A interação lingüística numa visão processual
A Lingüística da Enunciação, como se destacou em 1, acima, sem deixar de levar em
conta o enunciado, já focaliza como objeto de estudo também os mecanismos
envolvidos em sua produção. Constata-se isso, por exemplo, em Austin (1962) com a
Teoria dos Atos de Fala -, em Searle (1969), em Jakobson (1957) com suas funções da
linguagem e nos textos de Benveniste (1966, 197027) com seu “aparelho formal da
enunciação” e outros. Esses são alguns dos autores que, além do aspecto estrutural da
língua, já consideram as condições de uso de tais estruturas lingüísticas, ou seja,
instituem como objeto de estudo o funcionamento da linguagem.
Benveniste (1966), por exemplo, postula que se considere como objeto de estudo a
atividade lingüística dos falantes. Uma atividade que evidencia os pilares que
constituem o “aparelho formal da enunciação”:
1. um locutor ( aquele que institui a atividade lingüística - a alocução - );
2. um alocutário ( aquele instituído como o outro pelo locutor);
3. uma referência (“a necessidade (para o locutor) de referir pelo discurso e, para o
alocutário, a possibilidade de co-referir identicamente no e pelo discurso);
26
A Teoria dos Atos de Fala, apesar de enfatizar a ação do locutor, postula a importância de se considerar
o contexto extra-verbal na análise lingüística.
27
Publicado em LANGAGES, Paris, Didier-Larousse, 5º ano, nº 17 (março de 1970), p.12-18.
47
4. outras “entidades lingüísticas” (aquelas criadas na e pela enunciação, tais como
tempo, lugar e alguns elementos dêiticos).
Benveniste (1966) refere-se à mobilização da língua na enunciação nos seguintes termos
“ ... na enunciação, a língua se acha empregada para a
expressão de uma certa relação com o mundo. A condição
mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para
o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o
outro, a possibilidade de co-referir identicamente28, no
consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A
referência é parte integrante da enunciação.” (1974: 84)
Para Benveniste, “a enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato
individual de utilização” (1974:82) e “supõe a conversão individual da língua em
discurso.” (Ibidem, p.83).
Mais recentemente, tomam-se como objeto de estudos as condições de produção de um
enunciado ou, num sentido mais amplo, de um texto. Tais condições - a intenção do
enunciador ( os objetivos visados); a imagem que o enunciador faz do seu interlocutor e
vice-versa; o conhecimento prévio e enciclopédico compartilhado pelos interlocutores; e
a situação de interlocução - são tidas como fatores que definem a enunciação. Assim, a
enunciação se caracterizaria pelo conjunto de fatores e atos que determinam a produção
de enunciados. Nessa perspectiva, a enunciação, a linguagem, em suma, é caracterizada
como uma atividade em processo - um processo que visa à interação lingüística entre
interlocutores.
2.2. A construção de instâncias enunciativas - CIE
É relevante ressaltar que o que se propõe na Teoria da Enunciação, principalmente na
visão de Benveniste, é mostrar a ação do locutor com/sobre a língua e que, nesse
sentido, cada enunciado por ele proferido é único, tendo em vista que as condições de
produção, também, definem cada enunciação como única e irrepetível. Mesmo que um
28
Grifo meu.
48
enunciado possa ser repetido diversas vezes, a enunciação será outra, pois as condições
de produção serão sempre outras a cada nova atividade do falante sobre a língua, pois
“O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que
fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A
presença do locutor em sua enunciação faz com que cada
instância de discurso constitua um centro de referência
interno.” (Benveniste, 1974:84)
Vale notar que Benveniste postula a existência de instâncias de discurso e que cada uma
delas tem o seu próprio centro de referência interno. O autor identifica um conjunto de
termos lingüísticos produzidos na e pela enunciação que seriam responsáveis pela
identificação dessas instâncias do discurso: (i) os índices de pessoa; (ii) os índices de
ostensão; (iii) os “tempos” verbais29.
Tal conjunto de elementos lingüísticos abrangem, respectivamente, a classe dos ditos (i)
“pronomes pessoais”, (ii) dos pronomes demonstrativos, (iii) o presente lingüístico e
(iv) os tempos verbais. De acordo com Benveniste, esses elementos constituem os
recursos lingüísticos cambiáveis no processo de interlocução, possibilitando, em
situações distintas, a apropriação do discurso por aquele que, no momento, assume a
posição de locutor.
A construção de instâncias enunciativas, segundo Benveniste, dar-se-ia com base na
utilização desses recursos lingüísticos. Propomos expandir o universo desses elementos
lingüísticos, aventando que, no funcionamento discursivo da língua, outros recursos
lingüísticos são utilizados para indiciar a CIEs.
2.3. A concepção de linguagem
A proposta de tratar a CIE em uma perspectiva enunciativa/discursiva implica a adotar
uma concepção de linguagem como lugar de interação verbal, segundo postula a
29
Esse conjunto de elementos lingüísticos serão tratados mais profundamente no item 2.2 do próximo
capítulo desta dissertação.
49
Lingüística da Enunciação. A linguagem, assim concebida, institui-se, pois, como ponto
de partida para a constituição do enunciador e do enunciatário no processo de
enunciação e, nesse sentido,
“( ... ) a atividade lingüística, além de envolver a realização de
funções sociais exteriores em que a linguagem aparece como
possibilitando tarefas de ocasião, realiza-se em uma
multiplicidade de operações (em sentido intuitivo) subjacentes,
interiores ao sujeito, de que a configuração superficial das
expressões é traço revelador.” (Franchi, 1977, p.20)
Embora a interação verbal pressuponha, inicialmente, uma interlocução oral entre os
indivíduos no discurso, entende-se, neste estudo, que toda e qualquer expressão
lingüística, que tenha como fim a interlocução entre um eu e um tu, possa ser
considerada uma forma de interação verbal. Conceber, dessa forma, a interação verbal
implica adotar uma perspectiva discursiva da linguagem: uma “atividade” que se
desenvolve numa relação dialógica entre um enunciador que se enuncia como eu e um
enunciatário que é enunciado como tu. Esse dialogismo pode ocorrer de duas formas: a)
na presença dos alocutores, como se verifica numa situação de fala, em que os mesmos
se colocam como enunciadores no momento em que se dá a interlocução; b) na ausência
física do alocutário, como é o caso da escrita ou dos monólogos. Em b), apesar de
encontrarem-se
distantes
os
alocutários,
eles
se
constroem
como
enunciadores/enunciatários, uma vez que, quem enuncia, traz para a cena enunciativa o
outro a quem sua enunciação se dirige, instituindo uma instância de enunciação. Isso
significa que toda interação verbal pressupõe um diálogo construído em uma relação de
interlocução entre interlocutores reais ou imaginários, pois
“Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu
produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser
considerado como individual no sentido estrito do termo; não
pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do
sujeito falante. A enunciação é de natureza social30. (Bakhtin,
1977: 109)
30
Itálico do autor.
50
Em conseqüência disso, o processo de enunciação pode ser considerado, em si, como
dado de análise, focalizando-se especificamente o seu caráter dialógico:
“Do ponto de vista de sua natureza, o discurso caracteriza-se
inicialmente por uma maior ou menor participação das relações
entre um eu e um tu; em segundo lugar, o discurso caracterizase por uma maior ou menor presença de indicadores da
situação; em terceiro lugar, tendo em vista sua pragmaticidade,
o discurso é necessariamente significativo na medida em que
só se pode conceber sua existência enquanto ligada a um
processo pelo qual eu e tu se aproximam pelo significado; e,
finalmente, o discurso tem sua semanticidade garantida
situacionalmente, isto é, no processo de relação que se
estabelece entre suas pessoas (eu/tu ) e as pessoas da situação,
entre seus indicadores de tempo, lugar, etc. e o tempo, lugar,
etc. da própria enunciação.” (Osakabe, 1979a:21)
Conceber a linguagem como eminentemente dialógica é reconhecer o seu caráter social,
por um lado e, por outro, reconhecê-la como mecanismo revelador da atividade
lingüística do locutor e do alocutário em uma dada situação de interação verbal. Assim,
considera-se que:
“A verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da
língua.
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui é
claro, senão uma das formas, é verdade que das mais
importantes, da interação verbal. Mas pode se compreender a
palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como
a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face,
mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.”
(BAKHTIN; 1977, p. 123).
Toda comunicação verbal pressupõe, nessa perspectiva, um diálogo entre interlocutores
e, dessa forma, a construção de instâncias de enunciação – CIEs - oferece-se como
um objeto de estudo de fundamental importância, em se tratando de elucidar os
princípios e/ou mecanismos constituintes da atividade lingüística.
51
2.4. O discurso como interdiscurso
Na construção do quadro de referência teórico deste trabalho, adotamos, também,
contribuições de Possenti (1988) e Maingueneau (1987), que propõem conceber o
discurso como interdiscurso, ampliando a noção de enunciação de Benveniste.
Enquanto este enfatiza a ação do locutor na linguagem, Possenti postula que a
enunciação se caracteriza por estar marcada pela ação do sujeito31 com e sobre a
linguagem simultaneamente. Concebendo a enunciação como um processo de
“constituição, em qualquer instância, de enunciados”, Possenti chama a atenção para as
diversas possibilidades de uso que a “língua oferece à atividade do locutor a cada
discurso” (op. cit., p.:58), pois
“... dizer que o falante constitui32 o discurso significa dizer que
ele, submetendo-se ao que é determinado (certos elementos
sintáticos e semânticos, certos valores sociais) no momento em
que fala, considerando a situação em que fala e tendo em vista
os efeitos que quer produzir, escolhe, entre os recursos
alternativos que o trabalho lingüístico de outros falantes e o
seu próprio, até o momento, lhe põem à disposição, aqueles
que lhe parecem os mais adequados.” (Idem, idem: 59)
A tese de Possenti é a de que “o discurso é basicamente interdiscurso” e, nesse sentido,
“... quando um locutor qualquer produz um discurso qualquer,
este discurso não provém apenas de um lugar, mas de vários
lugares. Este discurso é construído sobre e a partir de outros
discursos (...). Os discursos têm entre si relações que são
determináveis (...). ”
É por isso que o leitor não é apenas um decodificador
dos sinais de uma cadeia lingüística, mas um perspicaz
caçador de pistas de interdiscursividade, daí porque ler um
texto é em grande parte dar-se conta de como ele é construído,
de que materiais ele é feito, isto é, de como outros textos estão
no texto.33. A palavra chave relativa ao discurso, ou à língua,
31
Sobre a noção de sujeito: usamos este termo nas citações, mas não é relevante para nós tal noção, na
extensão em que é utilizada na AD. Neste trabalho, preferimos os termos locutor/ enunciador.
32
Sublinhado nosso
33
Grifo nosso.
52
é heterogeneidade ( ou polifonia, ou dialogismo) 34...”( Idem,
1994:6 )
Em Maingueneau (1987), encontra-se também essa noção de interdiscurso. O autor
enfatiza que o discurso do outro, quer de forma implícita, quer de forma explícita,
sempre está presente na superfície discursiva. Isso se explica, segundo ele, pelo fato de
que
“Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade
mostrada, toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo,
pode estar inscrita em uma relação essencial com uma outra,
aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de
que ela deriva define sua identidade.” ( p.120 )
Assumir o discurso como polifônico, nesse ponto de vista, pressupõe aceitar o discurso
como jogo de representações, no qual o autor assume uma voz e/ou a situa entre outra(s)
voz(es).
Nessa perspectiva, consideramos, aqui, os conceitos de enunciação e de discurso como
intercambiáveis, tendo em vista a concepção de língua e de texto que os corrobora. Com
o termo “discurso” poderemos, pois, referirmo-nos ao processo de enunciação. Isso
significa considerar enunciação/discurso como sendo a “atividade comunicativa de um
falante, numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto de enunciados
produzidos pelo locutor (ou por este e o seu interlocutor, no caso do diálogo) e o evento
de sua enunciação” (Koch, 1983:25).
2.5. A concepção de Texto
O texto é concebido, nesta pesquisa, como produto do processo de enunciação. Sua
forma e tipo são funções de suas condições de produção. Nesta abordagem, o texto, no
34
Negritos nossos. É importante lembrar que a noção de heterogeneidade discursiva relaciona-se à de
dialogismo em Bakhtin (1977). O dialogismo ou polifonia é “a relação necessária entre um enunciado e
outros enunciados” [Stam, (s/d):72]. Para Bakhtin :
“Qualquer desempenho verbal inevitavelmente se orienta por outros
desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do mesmo autor como
de outros autores, originando um diálogo social e funcionando como
parte dele.” (1977)
53
processo de enunciação, pode ser entendido como lugar onde se materializam os
recursos lingüísticos da interação verbal, tornando possível a identificação do processo
de sua produção. Assim, a noção de texto com a qual esta pesquisa opera pode ser
explicitada através de KOCH (1983:25):
"... o texto, em sentido lato, designa toda e qualquer
manifestação da capacidade textual do ser humano (quer se
trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um
filme, uma escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação
realizado através de um sistema de signos. (...) O discurso é
manifestado, lingüisticamente, por meio de textos (em sentido
estrito). Neste sentido, o texto consiste em qualquer passagem,
falada ou escrita, que forma um todo significativo,
independente de sua extensão.”
É esta também a visão de Schimidt (1973:170)35 apud Koch (1983:21) para quem o
texto é “cada porção lingüística manifesta de um ato de comunicação em um jogo de
ação comunicativa - tematicamente orientada e que preenche uma função comunicativa
capaz de ser reconhecida.”
Nesta dissertação, analisaremos textos jornalísticos escritos, levando-se em conta o que
se disse anteriormente, pois consideramos que a atividade dos locutores e de seus
alocutários pode ser percebida em toda e qualquer forma de enunciação. Assim,
entendemos a escrita como uma das formas de representação da linguagem e, nessa
visão, na e pela escrita explicita-se a atividade ou a ação do interlocutor na construção
do(s) enunciador(es) e o processo de enunciação. Nessa atividade lingüística, então,
revela-se a “voz autoral” ou a “polifonia” – os recursos pelos quais o autor/enunciador
ativa outras vozes ou outros enunciadores, com o objetivo de (re)velar a sua própria voz
enunciativa. O texto materializa uma determinada enunciação, portanto é o lugar em que
se torna possível identificar os índices das operações realizadas em sua produção.
35
Cf. TESTTHEORIE. PROBLEMEINER LINGUISTIK SPRACHLICHEN KOMMUNIKATION.
Trad. bras. LINGÜÍSTICA E TEORIA DE TEXTO, Pioneira, 1978.
54
Em decorrência dessa visão de texto, o enunciador, na perspectiva que este estudo
contempla, é uma “entidade” lingüística construída na e pela enunciação, definindo-se
como fator básico na instituição do próprio processo de enunciação.
A utilização do termo autor está estritamente relacionada à concepção de Eco (1979:
43) sobre “Autor e Leitor-modelo”, tendo em vista que ambos só se definem enquanto
“tipos de estratégia textual36”.
2.6. As condições de produção
O conceito de condições de produção é básico para a compreensão do que se afirmou
em 2.4: no texto materializam-se os índices que revelam e/ou propiciam a atividade
lingüística dos interlocutores na interação verbal, sendo a forma e tipo de texto
determinados em função de suas condições de produção. Essas condições se
caracterizam como o conjunto de fatores, quer os de natureza lingüística, quer os de
natureza extralingüística, que atuam simultaneamente no processo de enunciação e
definem a produção e a recepção de textos. Fazem parte desse conjunto: 1) o
conhecimento lingüístico dos interlocutores que envolve o conhecimento gramatical e os
conhecimentos pragmáticos; 2) os objetivos da interação; 3) a situação, o tempo e o
espaço em que se realiza a interação; e 4) o conhecimento de mundo e o conhecimento
enciclopédico dos interlocutores. A conjunção desses fatores fornece aos interlocutores
informações precisas sobre as circunstâncias em que se realiza a enunciação, tais como:
as representações mentais dos interlocutores em relação às expectativas; aos interesses e
aos conhecimentos diversos dos interlocutores, partilhados ou não; o contexto de
produção e de recepção do texto; o suporte ou o veículo de sua transmissão.
O conhecimento gramatical e os conhecimentos pragmáticos articulam-se na produção e
na recepção de textos. Enquanto o conhecimento gramatical envolve a competência dos
interlocutores em relação aos recursos formais da língua nos níveis lexical, sintático e
36
Na 3ª parte deste capítulo, trabalharemos esse conceito de “estratégias textuais”.
55
semântico, os conhecimentos pragmáticos envolvem a competência dos interlocutores
para usar esses recursos lingüísticos, adequando-os à situação de interlocução.
Em decorrência disso, como afirma Villela (1998:68),
“... compreender a dinâmica textual implica, pois, perceber
como se dá a transformação de informações novas37 em
informações adquiridas, através da entrada de novos
elementos. Isso significa que, na análise de um enunciado,
deve-se considerar, além de suas condições de produção, as
dimensões lexical, sintática e semântica que o constituem.”
O enunciado deve, pois, ser analisado como parte integrante do processo que o
constituiu e, nessa perspectiva, revela a competência discursiva dos usuários de uma
língua.
Essa é a razão por que se procura explicitar um quadro teórico que corrobore uma
análise do enunciado que considere os fatores de naturezas diversas, que
necessariamente operam no processo de enunciação.
2.7. Por uma Teoria Modular da língua
De acordo com Castilho (1990), as diversas teorias lingüísticas, resguardadas as
diferenças metodológicas, possuem um traço comum: reconhecem a língua como um
conjunto de signos. Assim, tais estudos privilegiam, de acordo com seus respectivos
métodos de pesquisa, três ângulos distintos da linguagem: “(1) relação dos signos com
os usuários: dimensão pragmática da linguagem; (2) relação dos signos com os
referentes: dimensão semântica da linguagem; (3) relação dos signos com outros
signos: dimensão sintática da linguagem” (Castilho, 1990:118).
No prefácio do livro de Ilari (1992), Castilho retoma esses ângulos sob os quais a língua
é estudada, traduzindo-os em questões do seguinte tipo:
37
Segundo Villela, “O termo informação está sendo entendido como uma unidade informativa
significativa, um conjunto organizado de pistas materiais que possibilitem a construção do sentido
56
“qual é a relação entre a face estrutural e a face funcional da
língua? O sintático, o semântico e o pragmático ordenam-se em
alguma hierarquia visível ou constituem-se em esferas
autônomas de organização da linguagem? Como as línguas
naturais processam a informação, e que importância tem isso
em sua articulação gramatical.”
Assim, Castilho sinaliza para a necessidade de se utilizar uma teoria que, ao invés de
excluir um ou outro aspecto da linguagem, aborde a língua considerando três dimensões,
concebidas como módulos lingüísticos. Essas dimensões envolvem fatores que operam,
simultânea e concomitantemente, no processamento de textos.
Na reelaboração que propõe da Teoria Modular, Castilho considera contribuições de
estudos desenvolvidos por Morris (1938), que consideraremos a seguir, aludindo
também às contribuições oferecidas por Roulet (1991, 1995, 1996, 1997, 1997a).
Basearemos, no entanto, nossa análise do corpus nos desdobramentos propostos por
Castilho (1997. 1998).
2.7.1. A visão de Morris
Morris (1938) postula que toda língua natural é composta de três módulos interligados
entre si pelo léxico. Nessa sua concepção, o léxico abrange um conjunto amplo de itens
que caracterizam o conhecimento lingüístico do indivíduo. De acordo com o autor, são
os seguintes os módulos a partir dos quais pode-se explicitar o conhecimento de língua
do interlocutor: o módulo Pragmático (discursivo), definido como o módulo que revela
o trabalho dos falantes sobre a língua, numa dada situação de comunicação; o módulo
Semântico, que se refere aos processos de criação de sentidos; e o módulo Sintático
(gramatical), que se ocupa das relações entre os itens lexicais e das funções que estes
desempenham no enunciado.
naquilo que se poderia chamar de um esquema mental.” As informações novas, de acordo com essa
autora, “são aquelas pressupostas como não partilhadas pelos interlocutores”.
57
Considerando-se o que se afirmou anteriormente, é importante levar em conta a visão de
Morris sobre o fato de o conhecimento lingüístico dos falantes envolver uma gama de
recursos lingüísticos diversos, que são ativados de acordo as especificidades da
atividade discursiva. O que corresponde a dizer que a competência lingüística envolve
operações com os três módulos do discurso: o Pragmático, o Semântico e o Sintático.
2.7.2. A visão de Roulet
38
Roulet (1996: 4) postula a necessidade de se adotar uma hipótese modular que permita
explicar o funcionamento discursivo da linguagem. A partir dessa hipótese, o autor
constrói seu modelo teórico, que, segundo ele, é concebido como um instrumento
metodológico.
Na visão de Roulet, toda forma de comunicação verbal, nas suas dimensões lingüísticas,
textuais e situacionais, caracteriza-se como um discurso. O que o autor concebe como
dimensões do discurso corresponde, em parte, ao que Morris chama de “módulos do
discurso”. Roulet39, no entanto distingue as dimensões do discurso daquilo que chama
de “formas de organização”.
Segundo o autor, as diferentes dimensões do discurso são as seguintes:
1) a dimensão hierárquica, que compõe o módulo Textual, resulta das ligações de
dependência entre os constituintes de base da estrutura das interações verbais - a troca,
38
Incorporam-se a este item observações de Villela (1998) e Lopes (1998) que se propõem, também,
descrever o português contemporâneo na modalidade culta escrita.
39
Citação da nota apresentada por Lopes (1998: 110):
“O modelo de análise de Roulet aqui apresentado é a versão atual,
correspondente à 3ª etapa das pesquisas que desenvolve sob a
perspectiva modular desde 1995. O 1º modelo (1979 a 1989)
encontrou, na “extrema diversidade” dos discursos, seu maior
problema e apontou para a necessidade de um novo paradigma: "a
hipótese modular”. O 2º modelo (1990-1995) objetivou a articulação
das 3 dimensões discursivas, com seus respectivos módulos: (i)
lingüístico (fono-prosódico, lexical, sintático e semântico); (ii) textual
(hierárquico, relacional, enunciativo, polifônico, periódico,
58
as intervenções e os atos discursivos -; revelando os diferentes planos de organização do
discurso: hierárquico, relacional, enunciativo, polifônico, informacional, periódico e
composicional;
2) a dimensão sintática, que compõe o módulo Lingüístico, diz respeito à sintaxe, ao
léxico, à semântica e à fonologia;
3) a dimensão referencial, que compõe o módulo Situacional, diz respeito aos
recursos que possibilitam resgatar o conjunto das referências, do contexto social, da
situação de interação verbal e do contexto psicológico.
Para Roulet, o módulo discursivo ou textual ocupa papel central no sistema modular,
tendo em vista que ele se relaciona com os módulos sintático e fonográfico (na
delimitação dos constituintes discursivos) e com o os módulos social e interacional (na
determinação de certas estruturas dialógicas).
Essas dimensões são regidas por princípios independentes e podem, por isso, ser
estudadas separadamente. Ele chama a atenção, porém, para dois aspectos importantes:
(i) as estruturas produzidas por cada uma das dimensões do discurso estão relacionadas
entre si e combinam-se na produção e interpretação de um discurso particular; (ii) para
se chegar a uma interpretação adequada do enunciado é necessária uma descrição
sistemática das articulações entre as dimensões do discurso.
Nessa Teoria Modular, é de interesse para a análise da CIEs como se dá a organização
polifônica do discurso. De acordo com Roulet, a “polifonia é uma forma de
organização complexa, que compreende os discursos de vozes diversas identificadas em
diferentes níveis de interação” (Roulet, 1997: 11), os quais explicitam a articulação
entre as três dimensões discursivas.
informacional e composicional); (iii)
interacional, social e psicológico).
situacional (referencial,
59
O conceito de polifonia de Roulet ecoa o conceito de Bakhtin (1977), uma vez que para
ambos, a polifonia é uma forma de representação do discurso do outro. Em decorrência
da importância que Roulet dá às formas de articulação das três dimensões do discurso,
ele concebe a existência dos planos de enunciação40, que resultam das representações
dos discursos dos personagens e das estratégias de articulação entre eles. Os planos de
enunciação evidenciam a estrutura polifônica do discurso.
2.7.3. A visão de Castilho
A visão de Castilho (1998) sobre um modelo modular para a análise da língua falada se
constrói a partir do modelo proposto por Morris. Ele reelabora a teoria modular de
Morris, considerando os seguintes princípios:
“(1) A língua é uma atividade, uma forma de ação que se
manifesta em toda sua plenitude no texto.
(2) Para pôr em ação a língua, o falante/ouvinte opera sobre os
módulos discursivo, semântico e gramatical, mediados pelo
léxico.
(3) No coração da capacidade lingüística está alojado um
programa computacional, pré-verbal, alimentado pela
continuada análise da situação discursiva em que o ouvinte
falante está operando.” (Castilho, 1998:37-8)
Note-se que, de acordo com o principio (3), Castilho atribui ao módulo discursivotextual uma importância muito grande nas “reflexões sobre o sistema gramatical de
uma língua”. Segundo o autor, na análise lingüística devem ser identificados, em
primeiro lugar, os processos conversacionais, para, em seguida, proceder à identificação
dos processos de construção do texto e, por último, à identificação dos processos de
construção das sentenças.
Baseado em Morris e em outros teóricos, Castilho postula que o sistema lingüístico é
constituído por três domínios, o Gramatical, o Semântico e o Pragmático (Discursivo),
40
O conceito de Planos de Enunciação será utilizado no momento da análise dos dados e se constitui
como um importante conceito na CIE.
60
que são articulados pelo Léxico. Castilho caracteriza cada um desses três domínios (ou
módulos) da seguinte forma:
“O módulo discursivo abriga as negociações intersubjetivas que
se encadeiam no momento da enunciação: a constituição do
locutor e do interlocutor, a seleção e elaboração de um tópico
conversacional e as rotinas da conversação. Da conversação
resultam os textos.
O módulo semântico se define como diferentes processos de
criação de sentidos lexicais (denotação, conotação, sinonímia,
antonímia, hiperonímia, etc.) dos significados componenciais
(referenciação, predicação, dêixis, foricidade, etc.) e das
significações interacionais (inferências, pressuposições, etc.).
O módulo gramatical se ocupa das classes, das relações que
podemos estabelecer entre elas e das funções que as classes
desempenham no enunciado. Esse módulo compreende a
Fonologia, a Morfologia e a Sintaxe. O fonema, o morfema, o
sintagma e a sentença, como unidades de cada um desses
subsistemas, dispõem cada um de propriedades descritivas.”
(Castilho, 1998:9-10)
Castilho chama a atenção para o fato de que essa divisão da língua em módulos é uma
divisão artificial – com fins metodológicos -, pois as “propriedades do Discurso, da
Semântica e da Gramática alojados no Léxico são ativadas num mesmo ato de fala”
(1997:9).
Adotando essa versão da Teoria Modular, destacamos, de Castilho (1997), a idéia de
que na base de toda atividade discursiva está a ativação de um item lexical. Quer dizer,
o ofício de criar um texto é um ofício de reunir palavras. Para Castilho, no entanto, “o
Léxico não é uma mera lista de palavras. É um conjunto de itens dotados de
propriedades semânticas e gramaticais41 alternadas ou confirmadas no momento da
interação discursiva.” (1998, p. 37). Significa conceber que cada item lexical possui
propriedades semânticas, propriedades sintáticas (ou gramaticais) e propriedades
fonológicas. Nessa perspectiva, poderíamos esquematizar a proposta modular de
Castilho da seguinte maneira:
41
O grifo é de Castilho enfatizando as propriedades inerentes ao Léxico.
61
SEMÂNTICO
DISCURSIVO
LÉXICO
TEXTO
GRAMATICAL
Figura 3. A figura ilustra o texto como resultante das relações entre o sistema lexical e os três
módulos que compõem o sistema computacional numa atividade discursiva.
Segundo Castilho (op. cit.;8), a divisão da língua nesses três módulos – o Discursivo, o
Semântico e o Gramatical – pode ser explicada pela concepção de que no “coração da
atividade lingüística está alojado um programa computacional, pré-verbal, alimentado
por continuada análise da situação discursiva em que o falante/ouvinte está operando”
(op. cit. p.:38). Em decorrência dessa análise feita pelos interlocutores, dá-se a seleção
do Léxico, cuja administração, na visão de Castilho (Idem, idem), “configura um
conjunto de momentos mentais, no sentido etimológico de “movimentos””, tendo em
vista o fato de que os interlocutores decidem que propriedades do Léxico devem ser
ativadas, reativadas ou desativadas.
Para o autor, a construção de textos e de sentenças decorre, então, de três momentos ou
processos discursivo-computacionais, que, como na configuração dos módulos, atuam
simultânea e concomitantemente: a ativação, a reativação e a desativação.
De acordo com o autor, se a hipótese sobre o funcionamento desses três processos
discursivo-computacionais for verdadeira, isso significa que
“... teremos de admitir que nosso cérebro não processa a língua
num ritmo unilinear, aplicando instruções seqüenciadas. Ao
62
contrário, ele deve ativar ao mesmo tempo42 conjuntos de regras
semânticas e gramaticais, avançando, voltando atrás, e até mesmo
abandonando atividades de processamento que estavam em pleno
curso.” (1998:38)
Em linhas gerais, essa hipótese baseia-se no fato de que em toda e qualquer interação
lingüística, os indivíduos que dela participam, durante todo o processo discursivo,
tomam decisões sobre como administrar o Léxico: que palavras se adequam à situação
discursiva, que propriedades dessas palavras devem ser ativadas, reativadas ou
desativadas. Assim, os três momentos identificados pelo autor “se constituem em
mecanismos suficientemente fortes para revelar a maquinaria de constituição do texto e
da sentença” (Idem:39).
2.7.3.1. Construção por ativação
A construção por ativação é um processo básico de constituição da língua em qualquer
uma das suas formas de manifestação – quer a falada, quer a escrita. Nesse sentido, esse
processo possibilita ao usuário organizar o texto e as suas unidades, as sentenças e suas
estruturas sintagmática, funcional, semântica e informacional, dando-lhes uma
representação fonológica, administrando assim uma bateria de regras (Idem:38).
Em relação ao objeto de estudo desta dissertação, a CIE, a identificação desse processo
assume uma importância central. Isso porque o processo de construção por ativação
evidencia a organização do discurso, e, por conseguinte, das instâncias de enunciação
que o compõem. Por organização, entendemos a propriedade que é manifestada por
relações de interdependência que se estabelecem simultaneamente em dois planos: no
plano hierárquico, conforme as relações de coordenação e/ou subordinação entre as
instâncias enunciativas; no plano seqüencial, de acordo com as articulações dessas
instâncias em termos de sua localização - adjacentes ou intercaladas - no discurso.
42
O itálico é do próprio autor.
63
2.7.3.2. Construção por reativação
Na fala, é muito comum utilizarmo-nos do processo de construção por reativação, pois
retomamos o tópico conversacional para refazê-lo, para descontinuá-lo, para
interpolar outros tópicos, ou para omitir aqueles pragmaticamente considerados
desnecessários (Castilho, 1998:38). O mesmo acontece na escrita, tendo em vista ser
essa construção um tipo de “processamento anafórico”, por meio do qual voltamos
atrás, retomando e repetindo formas, ou repetindo conteúdos (Idem, idem).
A construção por reativação, segundo o autor, é, pois, uma sorte de “momento
parafrástico” (e, portanto, anafórico) do discurso (op. cit., p.:51). Nesse momento
discursivo-computacional, são utilizados dois processos: a repetição ou recorrência de
expressões, que consiste na repetição literal dos enunciados; a paráfrase ou a recorrência
de conteúdos, que se caracteriza pela repetição de uma idéia, sem, contudo, repetir as
palavras que a exprimiram.
No que diz respeito ao nosso objeto, tais processos mostram-se muito usuais, tendo em
vista que identificamos, no Léxico, um conjunto de itens que evidenciam, dentre as
estratégias discursivas de construção de instâncias enunciativas, a ação do enunciador de
reconstruir o(s) discurso(s) de outro(s) enunciador(es) e/ou o seu próprio, incorporandoo(s) no fluxo do texto.
2.7.3.3. Construção por desativação
A construção por desativação é, como o próprio nome sugere, um processo em que se
verifica um corte no fluxo do discurso. Nesse sentido, de acordo com Castilho (op. cit.:
39), a construção por desativação se caracteriza como
“o processo de ruptura na elaboração do texto e da sentença, de
que resultam o abandono de segmentos textuais, as digressões, os
parênteses, e, no domínio da sentença, a ruptura da adjacência por
64
meio de pausas, de hesitações, de inserção de elementos
discursivos, etc.. Também as elipses, e os anacolutos são
fenômenos sintáticos atribuíveis à descontinuação43”.
Para o autor, os processos que caracterizam a construção por desativação implicam dois
movimentos simultâneos: por um lado, tem-se a desativação de palavras principais e,
por outro lado, a imediata ativação de outras. Desses dois movimentos decorrem dois
fenômenos: a digressão, que é de natureza relacional, devido a “sua característica de
elemento encaixado e desviante só se ressalta por contraposição a um contexto,
recortado com base na dominância de um tópico discursivo” (Jubran, 1996:411); os
parênteses, devido a sua função de introduzir esclarecimentos, observações rápidas,
pequenos comentários, focalizam os interlocutores e inserem, no discurso, um discurso
outro. Em geral, os discursos demarcados pelos parênteses mantêm-se sintaticamente
independentes do discurso em que se inserem.
O processo de construção por reativação, como apresentado por Castilho, guarda relação
com o nosso objeto, pelo fato de entendermos a digressão e os parênteses como recursos
lingüísticos de CIE, pois esses dois fenômenos, tal como foram definidos, introduzem
novas vozes na malha discursiva.
Isso posto, voltamos à discussão da relevância dos módulos lingüísticos44. Nascimento
(1993) postula que “para pôr em ação a língua, o falante/ouvinte opera sobre os
módulos discursivo, semântico e gramatical”, mas, para isso, faz-se necessário que o
interlocutor possua os instrumentos básicos para ativá-los: o Léxico. A configuração dos
processos de ativação, de reativação e de desativação, por sua vez, evidenciam o caráter
dinâmico da enunciação, que é sempre um novo evento discursivo.
43
Castilho (1998) utiliza na página 38, num primeiro momento, o termo “desativação”, ao introduzir “os
três conjuntos simultâneos de instruções”, e, num segundo momento, o termo “descontinuação”, ao
caracterizar esses mesmos conjuntos. Optamos por usar o primeiro termo, com o fim de manter uma
simetria com os outros dois termos: ativação e reativação.
44
A discussão sobre os módulos lingüísticos voltará no próximo capítulo como subsídio para a análise dos
dados.
65
Tal característica da enunciação revela-nos que a relação de um indivíduo com a sua
língua é sempre uma experiência nova que se soma às anteriores. Esse caráter dinâmico
da língua está presente em cada novo texto produzido e explicita as condições de sua
produção.
Importante ter sempre em mente que, sejam quais forem os sistemas de referência (o
conjunto de conhecimentos lingüísticos, os conhecimentos prévios de cada enunciador e
as informações extraverbais) utilizados numa situação de interlocução, esses só se
justificam em relação a esta situação de enunciação, definida de acordo com estratégias
de ajustes utilizadas pelos falantes num determinado momento de interlocução.
2.8. Síntese
Essa parte pretendeu ser uma introdução do trabalho que aqui se propõe. Com o fim de
situá-lo no contexto das pesquisas lingüisticas, procuramos esclarecer a abordagem feita
pela GT acerca das formas de indiciar o discurso relatado (referenciado) na escrita,
reproduzindo, resumidamente, as regras que orientam a utilização dos recursos
lingüísticos usados para esse fim, de acordo com a tese de teóricos e gramáticos que
privilegiam a forma. Nessa ocasião, ressaltamos que o tratamento dado a esses recursos
lingüísticos como recursos polifônicos está centrado numa análise lingüística que
privilegia o produto.
Em seguida, abordamos as diversas teorias que tratam da atividade verbal, dando ênfase
àquelas que, em nosso ponto de vista, trouxeram contribuições relevantes para uma
visão de língua como atividade. No recorte dessas teorias, enfatizamos como se
modificou a noção de linguagem e, em conseqüência, a de texto, em decorrência das
novas abordagens da Análise do Discurso. Enfatizamos, ainda, o fato de a análise
lingüística ter se deslocado do foco no enunciado e ter passado a considerar, para a sua
análise, elementos lingüísticos e extralingüísticos envolvidos em sua produção. Assim, o
texto passou a ser concebido como o lugar de materialização e de explicitação de fatores
envolvidos no processo de sua produção. Ele traz as marcas da enunciação e tal
66
propriedade indicia o trabalho do seu enunciador na e com a língua. Nesse sentido, a
enunciação é concebida como um evento único, pois ela se define em função das
condições de sua produção. Por esse caráter unívoco da enunciação, depreende-se que, a
cada vez que alguém se enuncia, renova-se o discurso, haja vista a instauração de uma
nova instância de enunciação. Além disso, a CIE evidencia que um discurso se situa
num sistema de referências que está articulado a outras instâncias enunciativas. Essa
articulação de instâncias de enunciação põe em jogo os diversos discursos, trazendo à
luz os seus “actores”, evidenciando o caráter dialógico da linguagem que se traduz
pelas vozes que ecoam pela cena enunciativa. A CIE, então, é apresentada como uma
condição inerente da própria atividade discursiva, porque um discurso ocorre sempre em
relação a um outro discurso, constituindo cada um desses discursos um plano
enunciativo.
Por fim, resenhamos alguns estudos feitos no Brasil relacionados às pistas, do trabalho
dos enunciadores, no texto oral, mostrando a relevância de empreendermos esta
pesquisa, que busca explicitar as pistas do trabalho dos enunciadores de textos escritos.
O recorte do estudo - a análise das estratégias discursivas utilizadas na CIEs evidencia o caráter polifônico da linguagem e a necessidade de se construir um quadro
teórico que considere o enunciado como um dado material que possibilite a apreensão
do processo - enfim, da enunciação - que o gerou e não, apenas, como um dado abstrato
que revela “os mecanismos psicológicos ou do funcionamento do “espírito humano”
(Roulet, 1997: 07).
Tomamos como base as contribuições da Teoria Modular, segundo os desdobramentos
propostos por Castilho. Nessa abordagem, parte-se do pressuposto de que a capacidade
lingüística é estruturada em módulos computacionais, ativados simultânea e
concomitantemente, em cuja base está o módulo do Discurso responsável pela
“mediação entre o Léxico, concebido como um ponto de partida”, e os módulos
Semântico e Gramatical concebidos “como ponto de chegada” (Castilho,1998, p.38).
Conceber o Léxico como ponto de partida da atividade discursiva é pertinente para a
67
noção de língua que se adota nesta pesquisa e justifica o tratamento dado ao texto
escrito, isto é, a língua como atividade de interlocução e “o texto como o produto de
uma interação” (Castilho, (1997)). Essa interação remete à atividade dos interlocutores
na e com a língua. Assim, “para produzirmos textos, ativamos recursos lingüísticos
adquiridos” (Castilho (1997)) ao longo de nossa vida e, dessa forma, a seleção lexical
dar-se-á em virtude da situação de interlocução. Em virtude disso, focalizamos a
propriedade dêitica de que se revestem certos itens lexicais como “shifters” da atividade
discursiva, podendo ser tomados como indiciadores das instâncias enunciativas
constituintes de um texto.
Na Parte III, buscando ampliar as noções até aqui apresentadas, procuraremos explicitar
os termos básicos com os quais operamos nesta pesquisa. Com isso, pretendemos
evidenciar que uma abordagem discursiva da linguagem não pode prescindir de
considerar as operações lingüísticas básicas que se evidenciam no espaço textual e que
revelam o trabalho de linguagem dos seus enunciadores.
68
PARTE III – As pistas do processamento discursivo
3.1. Introdução
Para melhor caracterizar o objeto de estudo desta pesquisa, faz-se necessário definir,
num primeiro momento, dentro da perspectiva adotada, quatro conceitos:
1. sistema dêitico;
2. pistas ou índices reveladores do trabalho de linguagem;
3. estratégias discursivas;
4. polifonia discursiva.
Como afirmamos no capítulo anterior, adotamos a hipótese de que o texto guarda as
marcas de seu(s) enunciador(es), revelando, conseqüentemente, aspectos de sua
“atividade”45 lingüística. Procuraremos definir, repetimos, os mecanismos lingüísticos
que explicitam as marcas do(s) enunciador(es) de um texto, para além do conceito de
dêixis como índices de “mostração”, ou seja, como meros índices de localização do
locutor/enunciador. Consideraremos, então, neste capítulo, alguns trabalhos que tratam
de mecanismos envolvidos na atividade de construção de textos e da terminologia
utilizada para a sua identificação.
3.2. O sistema dêitico
O termo “dêixis” tem sua origem no grego e significa “apontar” ou “indicar”. Na
Lingüística, a sua aplicação está relacionada, segundo Lyons (1977),
“to the function of personal and demonstrative pronouns, of tense
and a variety of other grammatical and lexical features which
relate utterances to the spatio-temporal co-ordinates of the act of
utterance”46.
45
As aspas foram utilizadas para mostrar que o termo “atividade” não tem o mesmo sentido nas duas
expressões seguintes: atividade do locutor, “atividade” do enunciador. Isto se deve ao fato de que, no
primeiro uso, atividade está relacionado ao trabalho do falante/escritor na e com a língua.
46
(Nota de tradução) A dêixis refere-se “à função dos pronomes pessoais e demonstrativos, do aspecto
verbal e a uma variedade de itens lexicais que relacionam o discurso às coordenadas espaço-temporais
do ato de fala”. Esse conceito é, segundo o autor, desenvolvido em Antinucci (1974), Benveniste (1946,
69
Os elementos dêiticos indiciam, no enunciado, as informações essenciais para que os
interlocutores possam fazer as operações adequadas a seu processamento.
Nesse sentido, a dêixis é responsável por assinalar, dentro das várias operações
enunciativas, aquela(s) que melhor se aplica(m) ao processamento do enunciado. Lyons
(Idem, 637) define assim dêixis
“is meant the location and identification of persons, objects,
events, process and activities being talked about, or referred to, in
relation to the spacio-temporal context created and sustained by
the act of utterance and the participation in it, typically, of a single
speaker and at least one addressee”47.
De acordo com essa definição, é dêitico todo elemento lingüístico que faz referência; (1)
à situação em que um enunciado é produzido; (2) ao momento da enunciação; (3) aos
interlocutores. Inicialmente, eram considerados dêiticos os pronomes pessoais e os
demonstrativos, os verbos, através de suas desinências modo-temporais e, em extensão,
os advérbios de lugar e de tempo e os artigos. Tais classes de palavras, de acordo com o
que postulam muitos estudiosos, fornecem as coordenadas para situar o enunciado,
funcionando como um modo particular de atualização que usa ou o gesto, ou o próprio
sistema lingüístico e/ou esses dois juntos.
Mais recentemente, essa questão da dêixis tem sido retomada para além da sua função
como elemento mostrativo, e é nessa perspectiva, como já afirmamos, que nos situamos.
Em nossa concepção, a dêixis possibilita traduzir na e pela linguagem as condições de
produção de uma atividade discursiva. Os elementos dêiticos fazem parte, portanto, da
língua e abarcam uma classe muito grande de termos lexicais e gramaticais que têm
como função fornecer as pistas lingüísticas que nos permitem identificar os
1956, 1958a), Bühler (1934), Collinson (1937), Fillmore (1966,1970) Frei (1944), Hjelmslev (1937),
Jakobson (1957), Kurylowicz (1972), entre outros.
47
(Nota de tradução) Por dêixis é entendida a localização e a identificação de pessoas, objetos, eventos,
processos e atividades sobre que se falou ou a que se referiu, em relação ao contexto espaço-temporal
criado e sustentado pelo ato de fala e a participação nele, tipicamente, de um falante específico e o seu
destinatário.
70
enunciadores e o sistema de referência de um texto e instituir o processo de enunciação
em que são produzidos.
A dêixis introduz, na cena enunciativa, os seus “atores”, num espaço e num tempo
discursivos, definindo lingüisticamente quais as variáveis necessárias para referenciar a
atividade lingüística do(s) seu(s) autor(es) e do(s) enunciador(es) que aquele(s)
agencia(m), além, é claro, de referenciar as instâncias enunciativas.
48
3.2.1. Os “SHIFTERS ” de Jakobson
Jakobson (1957), no artigo intitulado “Shifters and Verbal Categories”, reconhece, na
língua, a existência de unidades gramaticais que desempenham um papel importante
dentro do processo de comunicação verbal. Essas unidades gramaticais destacam-se no
seu estudo (a) por definirem uma “classe de unidades gramaticais” e (b) por fornecerem
subsídios para uma “classificação universal das categorias verbais”.
A essas unidades gramaticais, cuja função é “fazer referência à mensagem na qual é
utilizada”, Jakobson denominou SHIFTERS. Tais unidades possuem uma propriedade
dêitica, pois fornecem informações com relação a sua utilização num evento de discurso
(“speech event”). Como tal, só têm sentido se levada em conta a sua utilização numa
determinada situação de comunicação, porque, extraídos da mensagem, nada
“apontam”. Segundo a tese defendida por Jakobson, toda comunicação verbal possui
uma dupla referencialidade, que é uma propriedade essencial: a decodificação da
mensagem está diretamente relacionada tanto ao código lingüístico, quanto ao
contexto49 de sua produção.
Para ilustrar a importância dos “shifters” dentro da sua teoria da comunicação, o autor
enfatiza o fato de que uma mensagem só é inteiramente eficaz se a mesma for
48
Embreantes é a tradução portuguesa do termo SHIFTERS, que foi traduzido para o francês
“embrayeurs”.
71
adequadamente decodificada, o que remete à capacidade de recepção do recebedor e à
de produção do emissor. Além disso, os dois - emissor/recebedor - devem compartilhar
conhecimentos lingüísticos e de mundo que garantam uma perfeita assimilação da
mensagem enviada, com uma gama maior de informações a ela relacionadas.
Assim, por exemplo, a enunciação abaixo
(1) “Repetem às escancaras agora o que há tempos vinham dizendo nos bastidores: ...”
(T9, L 3-4)
será decodificada adequadamente se o interlocutor/recebedor for capaz de abstrair das
coordenadas do contexto de sua produção as operações essenciais para a sua atualização.
Isso remete à alusão da existência de um trabalho de linguagem, em duas instâncias
distintas: a do locutor e a do seu interlocutor. A este cabe resgatar, por exemplo, o
agora do contexto de produção, que se refere a uma dada situação de interlocução e,
trazendo-o para o momento de recepção, identificar, no seu tempo, a referência que se
deseja construir. Nesse sentido, tais momentos, embora diferentes, são resgatados por
um mesmo item lingüístico.
De acordo com Jakobson(1963), na caracterização da comunicação lingüística, estaria,
basicamente, a oposição entre “shifter” e “non-shifter”. Na categoria de “shifter”,
estariam os pronomes pessoais ( eu/tu, nós/vós e as formas possessivas equivalentes ),
as desinências verbais e, como coadjuvantes dos verbos, os modalizadores temporais
(hoje/agora, etc..) e espaciais (aqui/lá).. Na categoria de “nonshifter”, os nomes próprios
e os pronomes indefinidos.
A utilização dos pronomes pessoais remete a uma relação cambial entre os participantes
do evento discursivo: aquele que, num primeiro momento, enuncia-se como “eu”,
49
A terminologia utilizada por Jakobson em sua TEORIA DA COMUNICAÇÃO é por nós citada para
ilustrar aspectos relevantes de sua abordagem, que corroboram, em parte, a tese que defendemos. Isso,
contudo, não significa que adotamos, na totalidade, o seu quadro de referência teórica.
72
dirige-se a um “tu” que, por sua vez, ao enunciar-se, será, nesse momento, o “eu”. Essa
troca de “papéis actanciais” no processo de interlocução, ilustra como cada interlocutor,
por seu turno, referencia a si mesmo em relação ao outro.
As desinências verbais, nesse processo, localizam temporalmente os “indivíduos
língüísticos” do discurso, distinguindo-se quatro importantes elementos discursivos , a
saber: um evento narrado50, um evento discursivo, um participante do evento narrado e
um participante do evento discursivo. Tal distinção evidencia a existência de, pelo
menos, dois momentos discursivos – o da enunciação propriamente dito (o evento do
discurso) e o do evento narrado, tendo cada um desses momentos os seus interlocutores.
Nesse sentido, temos as seguintes categorias expressas através das desinências verbais:
a) a desinência número-pessoal caracteriza os participantes do evento narrado com
referência aos participantes do evento do discurso. Dessa forma,
‘... first person signals the identify of a participant of the narrated
event with the performer of the speech event, and the second
person, the identify with the actual or potential undergoer of the
speech event.” (Jakobson, 1990:388)51
b) a informação sobre estado e aspecto caracteriza o evento narrado em si mesmo, sem
envolver, necessariamente, seus participantes e sem referência ao evento do
discurso. Enquanto o estado qualifica o evento (por exemplo, no inglês, há formas
lingüísticas específicas que distinguem uma afirmação de uma negação), o aspecto o
50
Utilizaremos nesse item o termo “evento” de Jakobson, tendo em vista que partimos de suas
contribuições para caracterizar as “pistas” do trabalho de linguagem do locutor/enunciador. Chamamos a
atenção para o fato de que sempre que esse termo for empregado, ele referencia uma situação de discurso,
ou seja, uma enunciação. Em relação ao termo “narrado”, ele será por nós entendido como
“referenciado”. Isto se justifica porque 1) a referência pode não se caracterizar como uma narrativa; 2) o
corpus dessa pesquisa é constituído por textos argumentativos. Assim, por “evento narrado” referimo-nos
a uma instância enunciativa diferente da instância fundadora do discurso, configurando, pois, o que
Possenti e Maingueneau concebem como a existência de “um discurso no discurso”.
51
(Nota de tradução) ...a primeira pessoa sinaliza a identificação de um participante do evento narrado
com o produtor do evento do discurso e a segunda pessoa, a identificação com o destinatário do evento do
discurso.
73
“quantifica” (por exemplo, no inglês, o uso da forma “do” que é opcional nas frases
afirmativas, mas obrigatório na construção das frases interrogativas e negativas).
c) a desinência temporal (tense) caracteriza o evento narrado em relação ao evento do
discurso. Assim, por exemplo, o pretérito informa-nos que o evento narrado é
anterior ao evento do discurso, que se localiza no aqui/agora do discurso.
d) a informação sobre a voz verbal caracteriza a relação entre o evento narrado e seus
participantes, sem referência ao evento do discurso ou ao locutor.
e) a desinência modal caracteriza a relação entre o evento narrado e seus participantes
com referência aos participantes do evento do discurso. De acordo com o que
postula Vinogradov (1947), essa categoria reflects the speaker’s view of the
character of the connection between the action and the actor or the goal52 ( apud
Jakobson op. cit., p.:391)
f) Jakobson reconhece uma outra informação contida no sistema verbal, que evidencia
a existência de tempos verbais explicitados no relacionamento entre os tempos dos
eventos narrados. Essa característica dos tempos verbais mostra que as coordenadas
temporais se constroem num movimento contínuo e não linear, pois caracteriza o
evento narrado em relação a um outro evento narrado, sem necessariamente fazer
referência ao evento do discurso. Dessa forma é-nos possível estabelecer relações
temporais distintas entre os diversos eventos que compõem uma situação discursiva,
identificando-os no eixo temporal como simultâneos, anteriores, posteriores etc. em
relação uns aos outros.
Num certo sentido, os nomes próprios possuem, também, a propriedade de referenciar
um dos participantes do discurso, mas essa referência limita-se a um uso muito
específico, porque se refere a um único indivíduo que por ele é designado e num espaço
e tempo específicos. Neles há uma diretiva que extrai a pessoa nomeada do universo dos
52
(Nota de tradução) Esta categoria reflete a visão do falante sobre o caráter da conecção entre a ação e o
ator ou o alvo.
74
seres do discurso. Os nomes próprios não conferem a quem eles designam um “papel
actancial” na cena enunciativa. Com o exemplo abaixo podemos ilustrar a problemática
que envolve os nomes próprios:
(2) “Lembro ( a memória de 88 anos ainda não me traiu) que o professor de Português,
José Schiavo, foi acerrimamente criticado, lá pelos idos de 30, ...” (T40, L 13-16)
Ao utilizarmos um sintagma como José Schiavo, selecionamos de um conjunto de
nomes de pessoas um dos elementos que não podem ter outra referência senão aquela
que sempre remetem no conjunto de que são subtraídos, contrariamente ao que acontece
com a utilização dos pronomes de 1ª e 2ª pessoas. Percebe-se claramente que José
Schiavo não se constitui como um dos interlocutores de (2), configurando-se como o
assunto ou o objeto da interlocução de (2). Esse sintagma - José Schiavo -, portanto,
remete a uma referência fixa, que não varia em função do movimento do fluxo
discursivo.
3.2.2. Os índices da enunciação de Benveniste
Para Benveniste (1970: 84), a “referência é parte integrante da enunciação”, sendo que
ela se institui e se define, sempre dentro de uma instância de enunciação, que se
caracteriza, por si mesma, como um centro de referência, um “lugar de referenciação”.
A referência manifesta-se, portanto, por “um jogo de formas específicas, cuja função é
de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação”(op. cit., p.
85). Esse “jogo de formas” é explicitado através de “índices” produzidos na e pela
enunciação.
Benveniste classifica esses índices em três categorias: (a) índices de pessoa, referindo-se
à relação eu/tu; (b) índices de ostensão, referindo-se à propriedade dêitica que
caracteriza os pronomes demonstrativos que remetem a “objetos”, localizando-os em
relação ao locutor e ao seu interlocutor; e (c) os “tempos” verbais, que têm sua origem
na forma do presente, na referência ao momento da enunciação.
75
De acordo com o autor, os pronomes de 1ª e 2ª pessoas53 e os pronomes demonstrativos,
diferentemente da concepção tradicional, são considerados como uma classe de
“indivíduos lingüísticos”, que, por sua forma, só podem fazer referência a “indivíduos”
também lingüísticos. Significa dizer que, por sua própria natureza, esses indivíduos só
têm sentido em relação à enunciação em que aparecem. Nessa abordagem, então, os
nomes próprios não se incluem na categoria de pessoas do discurso, por remeter, em
qualquer situação, a um conceito restrito, ao referente que nomeiam.
Nesse sentido, os “indivíduos lingüísticos” “são engendrados de novo cada vez que uma
enunciação é proferida, e cada vez eles designam algo novo”. (Idem, p.85). É nessa
propriedade que reside a diferença entre estes e os nomes próprios. Além disso, os
“indivíduos lingüísticos” podem remeter a nomes próprios.
No que concerne aos “tempos” verbais, o presente é considerado, pelo autor, como o
tempo por excelência da enunciação: a forma lingüística do presente explicita o tempo
da enunciação. No quadro de Benveniste, o conceito de “tempo” engloba a noção de
temporalidade e continuidade. Noções que “se engendram no presente incessante da
enunciação, que é o presente do próprio ser e que se delimita, por referência interna,
entre o que vai se tornar presente e o que já não o é mais” (Idem, p.86). A forma
gramatical do presente engendra a temporalidade que se, por um lado, revela o momento
em que se deu a enunciação, por outro, institui tal enunciação como sempre nova,
sempre atual.
3.2.3. As expressões indiciais de Bar-Hillel
Bar-Hillel (1963) define as expressões indiciais54 como as expressões que possibilitam
ao interlocutor compreender de uma forma totalizante a “referência visada pelo
produtor da ocorrência” (Idem, p. 38), ou seja, da enunciação. As sentenças indiciais,
53
Benveniste considera os “pronomes” de 3ª pessoa como não pronomes, pois os mesmos se constituem
como o assunto da interlocução entre um eu e um tu.
76
segundo Bar-Hillel, são aquelas que encerram uma declaração, têm o tempo verbal
numa forma finita e apresentam certos itens lexicais exigidos pela construção de
tempo/espaço, tais como ‘eu’, ‘tu’, ‘aqui’, ‘lá’, ‘agora’, ‘ontem’. ‘este’, etc.. A
interpretação das expressões indiciais pelo interlocutor – destinatário - está diretamente
relacionada ao contexto pragmático de sua produção.
Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que a habilidade de operar com as
informações verbais e as não verbais para produzir os efeitos de sentido necessários à
situação de interação faz parte da competência lingüística do falante. Contudo a
utilização das expressões indiciais na enunciação é condicionada pelo conhecimento do
contexto pragmático que as propicia. Isso, segundo o autor, acarreta problemas no
momento da interpretação das expressões indiciais55, pois o contexto pragmático é um
contexto extralingüístico e, por isso, inacessível ao interlocutor que estaria passível de
equivocar-se. Os equívocos seriam, então, resultado de ambigüidades geradas pela
presença, ou não, de expressões indiciais, ou pela tentativa do interlocutor de suprir
inconscientemente algum contexto que não o visado pelo locutor, tendo em vista que os
contextos são acontecimentos não-lingüísticos.
Bar-Hillel reconhece os pronomes pessoais eu/tu como “expressões indiciais” isentas de
gerar ambigüidades.Com relação aos demonstrativos, no entanto, não se mostra tão
confiante. Segundo o autor, a função de “este”, por exemplo, pode remeter a uma dupla
referência. A utilização do este, segundo o autor, dependendo da localização dos
interlocutores em relação ao objeto, ou aos diversos contextos pragmáticos, pode
suscitar uma referência distinta da pretendida pelo seu locutor.
Apesar dessa dificuldade do uso das expressões indiciais - a necessidade de se conhecer
o contexto pragmático de uma sentença indicial e a ambigüidade gerada pelo
54
Bar-Hillel utilizou o termo Indexical Expressions porque, segundo ele, em conformidade com a
terminologia “Indexical Sign” e “Index” de C. S. Peirce, esse é o termo que melhor combina com termos
como: ‘signo’, ‘palavra’, ‘expressão’, ‘sentença’, ‘língua e ‘comunicação’ (Bar-Hillel, 1963:37).
77
desconhecimento desse contexto - Bar-Hillel reconhece que elas têm um papel
fundamental na construção da enunciação.
3.2.4. Os “embrayeurs” de DUCROT
Ducrot (1972,1984) propõe, com base na Teoria da Enunciação, que, dos estudos
lingüísticos, seja excluída a busca da “lógica na linguagem” como princípio único no
qual os estudos lingüísticos se pautem. Os racionalistas, representados mormente pelos
filósofos da Gramática de Port-Royal, defendiam as teses de que a toda proposição
corresponderia uma e somente uma forma simbólica padrão e a de que as manifestações
lingüísticas seguiriam esquemas lógicos universais. De acordo com a concepção da
Gramática de Port-Royal, a “lógica na linguagem” se pautaria pela seguinte propriedade:
se uma fórmula “a” é convertida por uma regra em uma fórmula “b”, então a proposição
expressa por “b” se infere da expressa por “a” (Ducrot, 1981:21). Assim, de
“Pedro é homem. Todo homem é mortal.”
poderíamos inferir que
“Se Pedro é homem, logo Pedro é mortal”
Para Ducrot, é possível identificar a “lógica na linguagem”, tendo em vista que “existem
relações propriamente lingüísticas e suscetíveis de uma descrição sistemática” dos
enunciados. Mesmo se levada em conta a relação desses com as situações em que foram
produzidos (o que o autor chama de “situações de discurso”), será possível empreender
uma descrição da lógica na linguagem, pois as informações lingüísticas estão no
enunciado produzido. Nessa perspectiva, sua tese desloca-se da análise dos enunciados
em relação aos próprios enunciados para a análise das situações de sua produção.
55
A presença de expressões indiciais numa sentença caracteriza-a como uma sentença indicial. Para BarHillel, as sentenças indiciais, portanto, são aquelas que encerram proposições do tipo “Que X faça Y, no
78
Ao assumir essa nova postura em relação à análise lingüística, Ducrot considera de
fundamental importância três aspectos do processamento discursivo: o locutor, o
alocutário56 e a situação da enunciação. A enunciação é concebida, pelo autor, como
“um ato de dizer”, explicitado pelo próprio enunciado, isto é, o acontecimento
constituído pelo aparecimento de um enunciado (1984: 168). Nesse sentido, para
apreender a enunciação, faz-se necessário considerar “o conjunto dos factores que se
situam na relação entre o material lingüístico e a situação concreta” ( Ducrot, 1984:
393).
No conjunto dos conhecimentos partilhados entre locutor e alocutário situa-se o
conhecimento dos “shifters” ou “embrayeurs”, elementos que integram os enunciados
e a enunciação que os produz. O termo “shifters” é empregado por Ducrot (1984), sem
nenhuma restrição, para identificar, principalmente, as diferentes instâncias de vozes
que aparecem no discurso. A única função dos “shifters”, de acordo com o autor, como
elementos da língua, é dar determinadas orientações para que, em cada uma de suas
ocorrências, sejam instituídos os “indivíduos lingüísticos” (Benveniste, 1970:85),
responsáveis pela instauração e manutenção do processo enunciativo.
Ducrot concebe como “shifters” uma gama muito grande de expressões lingüísticas,
desde que tais expressões tenham como função indicar a atividade do enunciador no
trabalho de dar existência lingüística a um “indivíduo” a quem dá voz.
Nesse sentido, o autor reformula a tese de Bar-Hillel em relação à utilização da classe
dos ditos pronomes demonstrativos e indefinidos . Essa classe de palavras, segundo BarHillel, contém uma certa ambigüidade, porque pode, ao mesmo tempo, remeter a X ou a
Y que está no campo de visão do locutor, ou na sua imediação, necessitando, pois, de
momento T1”.
O termo “alocutário”, referindo-se ao recebedor da mensagem, corresponderia a um dos interlocutores,
a um ser empírico, responsável por resgatar a enunciação que lhe é destinada. Sem a sua atuação, não há
enunciação. Alocutário, também, pode se referir a uma entidade construída lingüisticamente, pois dentre
as estratégias postas em ação pelo autor, estão aquelas que o prevêem e definem.
79
56
uma informação extra-verbal (por exemplo, o gesto de apontar) para evitar tal
ambigüidade.
(3) “ “Essa é a tarefa”, disse o ministro da Fazenda, referindo-se ao trabalho que
ainda há a fazer para cortar gastos, reduzir custos ...” ( T16, L 42 - 44)
(4) “São muitos os que condenam essa liberdade. Consideram sacrílegas essas
versões.” (T 31. L 42-4)
Ducrot resolve essa questão colocando em evidência, como fator determinante para a
apreensão da enunciação, o conhecimento das circunstâncias que propiciaram a
enunciação. Caberia aos “shifters”, pois, a função de fornecer os elementos necessários
para resgatar tal conhecimento, definindo, dessa forma, as condições de sua produção e,
em conseqüência, a resolução de possíveis ambigüidades.
Operamos, fundamentados na Teoria Modular a que nos referimos na Parte II, com a
hipótese de que, na base de toda atividade discursiva, estão os dêiticos, que fornecem as
pistas ( ou os índices, ou as expressões indiciais, ou os “shifters”) dessa atividade. Os
dêiticos são itens lexicais que, ativados em função da situação discursiva - módulo
Discursivo -, revelam como se organizam os enunciados – módulo Gramatical - e que
efeitos de sentido se deseja alcançar com a sua utilização – módulo Semântico.
3.3. As estratégias discursivas na CIE
Ao nos remetermos aos estudos citados acima sobre a dêixis, procuramos enfatizar a
importância de se considerar o papel dos dêiticos no processamento discursivo e a
necessidade de se considerar, como pertencentes ao conjunto desses elementos, uma
gama maior de itens lexicais, que, no discurso, assumem a função de “shifters”. Embora
os autores citados apresentem alguma divergência em relação à abrangência da
referência induzida por alguns elementos dêiticos – lembre-se de Bar-Hillel no que se
refere aos pronomes demonstrativos e aos indefinidos -, eles concordam em que o
80
sistema dêitico está na base de toda atividade discursiva. Ressaltamos que, ao fundarem
suas análises sobre as pistas que indiciam o discurso, esses autores privilegiam, como
objeto de estudo, o sistema dêitico.
A dêixis é, pois, constitutiva do processo de enunciação e, como tal, revela as pistas que
constituem o processamento discursivo. Nessa perspectiva, a dêixis rege a construção
dos enunciadores no discurso, localizando-os em tempos e espaços discursivos,
instaurando, dessa forma, a polifonia, ou seja, promovendo a articulação das instâncias
enunciativas de um texto.
Assim, os elementos dêiticos que indiciam os enunciadores, num tempo e num espaço
discursivos são os elementos sobre os quais nos debruçaremos para identificar a
atividade lingüística do autor nas CIE. Nesse sentido, as estratégias discursivas
traduzem a atividade lingüística em si, levando-se em conta que os “shifters” – ou
dêiticos - são estrategicamente utilizados de acordo com a situação de enunciação, isto
é, visando à implementação e à organização das instâncias de enunciação articuladas na
construção de textos.
3.4. A polifonia no discurso
Partindo do desenvolvimento que Ducrot faz do conceito de Bakhtin sobre a polifonia,
Maingueneau (1986) analisa o discurso polifônico, afirmando que a questão
fundamental no seu tratamento reside na “questão da identidade do sujeito enunciador”.
Reconhecer a polifonia no discurso afasta de vez, segundo Maingueneau, a concepção
de que “um enunciado teria apenas uma fonte, denominada indiferentemente “locutor”,
“sujeito falante”, “enunciador”, etc..”. Isso significaria aglutinar numa única “pessoa”
funções distintas, que definem os papéis lingüísticos dos atores da atividade lingüística.
Como Maingueneau enfatiza, é possível que, quem profere um enunciado, assuma as
três categorias discursivas - o falante/escritor, o locutor e o enunciador -, mas tal fato
não justifica argumentar a favor da univocidade de um enunciado.
81
Corroboramos esse argumento de Maingueneau (1986) em relação à identidade do
sujeito enunciador. De acordo com esse teórico, o autor não é o único a dizer “eu” num
texto, pois outras “vozes” podem ser percebidas no discurso de um mesmo enunciador.
Ao analisar as falas que caracterizam um texto narrativo, o autor critica os estudos
referentes ao discurso direto, ao discurso indireto e ao indireto livre, por entender que
estes recursos caracterizam-se como estratégias que revelam a existência de sistemas
enunciativos e não, apenas, como formas de citação de discursos. A existência dos
sistemas enunciativos explicita o caráter polifônico do discurso. A polifonia se constrói,
pois, na articulação desses sistemas enunciativos, que chamaremos instâncias
enunciativas. Isso “implica uma integração de relações entre enunciadores, em tempos
e espaços57 constituídos na própria enunciação” (Lopes, 1998:106).
Nessa perspectiva, a polifonia (ou dialogia) é uma propriedade do discurso, da
discursivização e não do texto.Com base nessa hipótese sobre o papel da polifonia,
estamos pressupondo que:
(i) a voz autoral pode ser expressa por um enunciador que se identifica, explicitamente,
como o autor do texto;
(ii) a voz autoral pode estar implícita na voz de um enunciador outro que não remete ao
autor do texto;
(iii) a voz autoral pode ser expressa por diferentes vozes enunciativas;
(iv) outras vozes, com as quais a voz autoral não se identifica, podem ser expressas na
constituição de um texto.
É importante, pois, definirmos os seguintes termos: autor/locutor, enunciadores e
falante/escritor, destacando que a distinção entre os mesmos situa-se no plano
lingüístico. A polifonia, como é concebida neste estudo, manifesta-se na indiciação da
“atividade” desses “indivíduos lingüísticos” no discurso. A atividade lingüística, como
já dito acima, explicita-se a partir da utilização do sistema dêitico no processo
discursivo.
57
A noção de tempo/espaço discursivo será desenvolvida à parte, neste trabalho, tendo em vista a sua
importância para se entender o conceito de instâncias enunciativas.
82
3.5. A concepção de autor/locutor/enunciador
Ao utilizarmos o nome autor, estaremos adotando a concepção de Autor-Modelo de
Eco (1979), que não referencia o autor empírico de um texto qualquer , enquanto pessoa
do mundo físico, nem entidade dotada de uma consciência. O Autor-Modelo
caracteriza-se como um ser lingüístico que só tem existência, enquanto tal, se
considerado relativamente à própria enunciação, cabendo a ele a função de agenciar os
enunciadores que, porventura, se apresentam como “actantes” de uma determinada
enunciação .
Considerando o fato de que uma enunciação pressupõe a existência de dois pólos de
interlocução, a instituição desse Autor-Modelo implica a instituição de um LeitorModelo, que
constitui um conjunto de condições de êxito, textualmente
estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja
plenamente atualizado no seu conteúdo potencial. (Eco, 1979:45)
Ambos os pólos são entendidos como papéis actanciais do enunciado (cf. Jakobson,
1957), por sua característica agentiva, ou seja, por indiciar lingüisticamente as instâncias
de enunciação a que pertencem.
Fica claro, portanto, que, doravante, toda vez que usarmos termos
como Autor e Leitor-Modelo, sempre entenderemos, em ambos os
casos, tipos de estratégias textual. (Idem, Idem)
Tais estratégias textuais enquadram-se entre as pistas do trabalho constitutivo da
enunciação, pois a configuração delas
... depende de traços textuais, mas põe em jogo o universo do que
está atrás do texto, atrás do destinatário e (...) diante do texto e do
processo de cooperação. (Idem, p.49)
83
Essa concepção de Autor-Modelo aproxima-se da concepção de Locutor L usada por
Ducrot.
Segundo Ducrot, o Locutor L é “um ser que é, no próprio sentido do enunciado,
apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a
responsabilidade deste enunciado” (p. 182). Essa responsabilidade pela autoria do
enunciado, segundo Ducrot, só se justifica se os locutores – aquele que fala no discurso
e aquele que está na origem do enunciado - forem considerados como
“seres do discurso” constituídos no sentido do enunciado e cujo
estatuto metodológico é, pois totalmente diferente daquele do
sujeito falante (este último deve-se a uma representação “externa”
da fala, estranha àquela que é veiculada pelo enunciado) (Idem,
p.188).
De acordo com Ducrot, o locutor é construído lingüisticamente . Ele reconhece nessa
instância lingüística a existência de duas formas distintas de locutores: um Locutor “L” e um Locutor -“λ
λ“, cuja existência se dá de forma simultânea. Ao primeiro tipo de
locutor caberia a função de ser o responsável pela enunciação, ou seja, é ele quem
introduz os enunciadores numa determinada situação de enunciação. Ao segundo,
enquanto ser do mundo, caberia dar origem ao enunciado. Nessa perspectiva, “L” se
enuncia e dá voz aos possíveis enunciadores, que, por sua vez, só existem a partir da
ativação de “indivíduos lingüísticos” engendrados e revelados no enunciado.
Separados os “indivíduos lingüísticos” - que existem somente enquanto resultado da
atividade discursiva - dos seres empíricos do mundo - o falante ou o escritor -, Ducrot se
utiliza de um outro conceito – o de enunciador - para explicar como a polifonia é
instituída, ou seja, como o sentido do enunciado (...) pode fazer surgir na enunciação
vozes que não são as de um locutor ( Idem, p.192). De acordo com essa visão, Ducrot
concebe a existência de duas instâncias lingüísticas de instauração de vozes no discurso,
que são distintas: o locutor e o(s) enunciador(es). Essas duas instâncias, segundo o
autor, guardam entre si a mesma relação que existe entre o autor e os personagens, pois
84
O autor coloca em cena personagens que (...) em uma “primeira
fala”, exercem uma ação lingüística e extra-lingüística, ação que
não é assumida pelo próprio autor. Mas este pode, em uma
“segunda fala”, dirigir-se ao público através das personagens: seja
porque se assimila a esta ou aquela que ele parece fazer seu
representante, seja porque mostra significativo o fato de as
personagens falarem e se comportarem de tal modo. (op. cit., p.
102)
Da mesma forma se dá a ação do locutor em relação ao(s) enunciador(es):
O locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através
deste, a enunciadores de quem ele organiza os pontos de vista e as
atitudes. E sua posição própria pode se manifestar seja porque ele
se assimila a este ou aquele dos enunciadores, tomando-o por
representante (...), seja simplesmente porque escolheu fazê-los
aparecer, e que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que
ele não se assimile a eles (...). (Idem, p.193)
Corroborando a distinção entre locutor e enunciador, o autor define como
“enunciadores” estes seres que são considerados como se
expressando através da enunciação, sem que para tanto se lhe
atribuam palavras precisas; se eles “falam” é somente no sentido
em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista,
sua posição, sua atitude, mas não no sentido material do termo,
suas palavras. (Idem, p.192)
De acordo, pois, com essa definição, os enunciadores de um texto só existem porque são
instituídos pelo locutor e a “voz” deles só se configura através da “voz” do locutor, uma
vez que suas “palavras” não estão representadas na enunciação.
É exatamente neste ponto que propomos uma nova concepção de enunciador e diluímos
a distinção entre este e o locutor de um texto tal qual postula Ducrot. Apoiamo-nos, para
isso, numa propriedade que ambos possuem: evidenciam uma instância enunciativa.
Nesse sentido, aquele que fala, não importando se se trata de uma “primeira” ou de uma
“segunda fala”, pelo simples ato de enunciar ou ser enunciado, configura a existência de
85
um novo enunciador e, em conseqüência, a instituição de uma nova instância
enunciativa.
Nesse sentido, não reconhecemos na figura do enunciador um papel passivo, ou seja, o
fato de um enunciador ser introduzido por um outro enunciador não o obriga “a calarse”; pelo contrário, suas “palavras” podem estar textualmente representadas no discurso
do outro. Tal fato nos remete à noção já anteriormente apresentada de “discurso como
interdiscurso”, em que a polifonia se mostra como uma característica imanente da
própria atividade discursiva.
3.6. Síntese
Na perspectiva aqui adotada, a concepção de falante, de ouvinte, de escritor e de leitor
não é relevante para o trabalho que propomos. Reconhecemos nesses elementos a
origem e o destino dos enunciados e até uma possibilidade de “coincidirem”, em alguns
casos, com os indivíduos lingüísticos presentes na enunciação. No entanto, reforçamos a
tese de que os indivíduos empíricos não remetem necessariamente aos enunciadores de
um texto. Por isso, a ênfase nos “indivíduos lingüísticos”, que têm seus papéis definidos
apenas em relação à enunciação na qual se inserem.
Como vimos, tais “indivíduos” constroem-se na materialidade do texto, através de
elementos lingüísticos - os dêiticos -, que são empregados, em função de uma situação
discursiva. É com base nesse ponto que destacamos, neste capítulo, o caráter funcional
de que se revestem os “shifters”, pois, se extraídos do discurso, eles nada significam.
Em face da noção de “indivíduos lingüísticos” que caracterizam os “actantes” da
enunciação, faz-se necessário explicitar a concepção de tempo e espaço com que
operamos. Embora tenhamos mencionado, em momentos distintos, a importância de se
considerar essas coordenadas como elementos constitutivos das instâncias de
enunciação, não as definimos de forma mais sistemática. Decidimos fazê-lo em uma
Parte IV, por entendermos que tempo e espaço, juntamente com a noção de
86
enunciadores, são noções importantes para se entender a configuração do que
denominamos instâncias enunciativas.
87
PARTE IV – A dêixis temporal/espacial na CIE
4.1. INTRODUÇÃO
Fiorin (1996), em seu estudo sobre a questão da enunciação, parte do princípio proposto
por Greimas e Courtès (1979) de que a disjunção entre enunciação e enunciado é um
importante recurso no processo discursivo. E, embora reconheça que a instauração das
instâncias de pessoa, de tempo e de espaço enunciativos obedeça aos mesmos critérios
de debreagem e embreagem, analisa essas categorias lingüísticas isoladamente, como se
fossem categorias estanques, apesar de terem, em comum, a propriedade de serem
definidoras do processo de enunciação.
Concordamos, em parte, com o que postulam tais autores, mas propomos conceber essas
três categorias como elementos de um conjunto harmônico, cujas características se
definem em relação ao próprio conjunto e, portanto, subordinadas uma às outras. Em
outras palavras, as noções de tempo e espaço se definem em função da sua utilização no
discurso, o mesmo ocorrendo em relação à categoria de pessoa58. Não as entendemos
como índices independentes entre si, mas subordinados e formando um todo que se
completa e traz em si informações únicas e definidoras do que, neste trabalho,
denominamos instâncias de enunciação - INE59.
Isso se deve ao fato de que a categoria de pessoa é definida em relação a um tempo e a
um espaço, pois um ato discursivo tem como referência o “aqui/agora” de um
enunciador. Esses três elementos se articulam na CIE e evidenciam que, a cada vez que
houver a instauração de um novo enunciador, concomitantemente, tal enunciador será
instituído num novo tempo e espaço. Logo, quantos forem os enunciadores instituídos
58
A instauração da categoria de pessoa já foi explorada, neste capítulo. Tal como foi apresentada, a
pessoa é concebida como uma estratégia lingüística e, por isso, só se define em relação à enunciação em
que está inserida.
59
Usaremos INE ao nos referirmos à instância enunciativa.
88
num processamento discursivo, tantos serão os tempos e os espaços em que eles se
instituem.
Na perspectiva discursiva que adotamos, o tempo/espaço enunciativos não
correspondem ao tempo cronológico e ao espaço físico. São categorias construídas
lingüisticamente por meio da dêixis espaço-temporal instituída no discurso.
Em alguns momentos, no entanto, nossas reflexões sobre a construção de espaço e
tempo enunciativos podem sugerir uma separação entre essas duas dimensões dêiticas
de construção do discurso. Lembramos, contudo, que tal separação deve-se
exclusivamente a uma necessidade metodológica, tendo em vista que, na ativação dos
módulos Discursivo, Semântico e Gramatical, o processamento dêitico é
implementado de forma que a construção de tempo/espaço/pessoa efetue-se através de
operações que não se distinguem necessariamente na CIE.
4.2. Tempo e espaço no processamento discursivo
A compreensão do que aqui se propõe não se dará satisfatoriamente se não
construirmos, por inteiro, um quadro teórico que sirva de referência para o entendimento
das condições de produção das instâncias enunciativas construídas, no processamento
discursivo, em função das coordenadas de tempo e espaço.
Insistimos em ressaltar o fato de que cada instância de enunciação só se institui na e
pela instituição de um tempo e de um espaço próprio. Nesse sentido, falar em CIE várias vozes, várias instâncias de enunciação - corresponde a aludir a uma pluralidade
de tempos e de espaços, pois cada instância de enunciação cria o seu tempo, o seu
espaço, os seus interlocutores. Enfim, cada instância de enunciação possui o seu quadro
de referência interna, estabelecido em função das coordenadas de tempo/espaço.
Entendidos sob esse ponto de vista, o tempo e o espaço da enunciação caracterizam-se
como entidades lingüísticas, assim como o são o Autor-Modelo, os enunciadores e os
alocutários. Por isso, como ocorre com estes, o tempo e o espaço da enunciação só se
89
definem enquanto estratégias de CIEs. Em outras palavras, tempo e espaço não são
correlatos de tempo cronológico e de espaço físico do mundo empírico.
Em conformidade com isso, Benveniste (1974) postula a existência de três noções
distintas de tempo, a saber: a) o tempo físico; b) o tempo crônico e c) o tempo
lingüístico.
O tempo físico do mundo é, de acordo com Benveniste (1974, p.:71), “um contínuo
uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade” e
está relacionado ao tempo
psíquico, que é individual e se caracteriza pelo conjunto das experiências do indivíduo e
o modo como estas são por ele vividas, ou seja, corresponde ao tempo vivido por um
indivíduo. Suas experiências podem ser resgatadas psiquicamente, mas não podem ser
vividas novamente, porque “o nosso tempo vivido corre sem fim e sem retorno” (Idem,
p. 70). Apesar dessa peculiaridade do tempo físico, os acontecimentos, como a infância,
por exemplo, que marcam a vida de um indivíduo, constituem-se como “pontos de
referência” a partir dos quais as pessoas orientam-se para reconhecer a sua própria
vivência. Em outras palavras, o tempo vivido pode ser segmentado, uma vez que o
indivíduo pode “revisitar” os acontecimentos em dois aspectos: uma visão para o futuro
ou uma visão para o passado.
Tempo 0
0
Figura 4 - O tempo vivido decorre de um momento inicial - um tempo zero. A inserção do
indivíduo no mundo físico e sua continuidade estão diretamente relacionadas à vida e ao modo
como ele experimenta os acontecimentos pelos quais passa.
O tempo crônico, por sua vez, é o “tempo dos acontecimentos” e está diretamente
relacionado ao tempo vivido porque, se o tempo vivido é caracterizado por um conjunto
de experiências vividas pelo homem, tais experiências nada mais são do que uma
90
seqüência de acontecimentos distintos dispostos linearmente. A noção de “tempo” que o
caracteriza está diretamente relacionada à “continuidade em que se dispõem em séries
estes blocos distintos que são os acontecimentos”. Os acontecimentos, portanto, nada
mais são que pontos de referência que situamos exatamente numa escala reconhecida
por todos, e aos quais ligamos nosso passado imediato ou longínquo”( Idem, Ibidem,
p.71) e, como tal, se situam num determinado tempo e num determinado espaço.
A noção de acontecimento, segundo Benveniste, é essencial para a compreensão das
diferenças entre o tempo físico e o tempo crônico. Esse último é socialmente
estabelecido e é computado a partir da regularidade da ocorrência dos eventos naturais.
Por exemplo, o espaço decorrido entre o nascer do sol e o seu desaparecimento no
horizonte foi convencionalmente chamado de “dia” e assim por diante. Os calendários
nasceram dessa tentativa do homem de demarcar o “tempo” e orientam-se a partir de
três condições básicas:
a) estativa, que tem como referência o momento zero, ou seja, o ponto no qual se
encontra a origem de um acontecimento que, de algum modo, altera uma ordem
definida; por exemplo, o nascimento de Cristo, que marcou o início de uma nova
era para os cristãos;
b) diretiva, que tem como referência o ponto zero da ocorrência de um acontecimento
que se constitui como o ponto a partir de que o indivíduo se orienta para “antes ou
depois”;
c) mensurativa, que corresponde a uma delimitação, em termos de unidades de
medida, dos intervalos regulares dos fenômenos cósmicos, por exemplo, a
ocorrência dos dias, semanas, etc..
Em síntese:
“A partir do eixo estativo, os acontecimentos são dispostos
segundo uma ou outra visada diretiva, ou anteriormente ( para trás
) ou posteriormente ( para frente ) em relação a este eixo, e são
alojados em uma divisão que permite medir a sua distância do
eixo: tantos anos antes ou depois do eixo, depois de tal mês e de
tal dia do ano em questão. Cada uma das divisões (ano, mês, dia)
91
se alinha em uma área infinita na qual todos os termos são
idênticos e constantes, não admitindo nem desigualdade nem
lacuna, de tal modo que o acontecimento a situar está localizado
exatamente na cadeia crônica por sua coincidência com tal divisão
particular.” (Benveniste, Idem, p. 73)
Assim, os tempos definidos acima têm como característica um momento, um ponto
zero, em que se originam e em relação ao qual se dão as incursões - para o passado ou
para o futuro - dos indivíduos no eixo temporal.
Para Benveniste, o tempo lingüístico se distingue do tempo crônico (o tempo fixado
pelo calendário de acordo com as convenções sociais) ou do tempo psicológico (o
tempo enquanto experiência única do indivíduo, a experiência pessoal) porque o tempo
lingüístico está “organicamente ligado ao exercício da fala” e “se define e organiza em
função do discurso”(1974, p.74). Por essa sua peculiaridade, o momento da enunciação,
marcado como o presente, é reconhecido como um tempo zero a partir de que se definirá
a temporalidade da enunciação, instituindo-se passado(s) e futuro(s)60 em relação ao
próprio tempo zero do discurso. Se, por um lado, conforme postula Bakhtin (1974,
p.78), o presente é instituído como função do discurso, por outro lado, a cada vez que
for enunciado, o “agora” será sempre novo, considerando-se que, a cada instância de
enunciação, o tempo e o espaço se tornam, também, novos. Isso porque o “agora”
instituído no discurso será continuamente renovado, convertendo-se no “agora” do
interlocutor. Essa conversão implica um trabalho do alocutário que desloca o “agora”
instaurado no discurso, trazendo-o para o “agora” da sua recepção. Para serem bem
sucedidas as operações de debreagem e embreagem61, no texto escrito, faz-se necessário
60
Segundo Benveniste (1974, p.75), o tempo lingüístico é determinado no momento da discursivização e
é em função desta que se estabelece a organização temporal, tendo como eixo ordenador do tempo o
momento da enunciação.
61
Tais termos são assim denominados tendo por base a tradução francesa dos Shifters de Jakobson
(1963). “Les embrayeurs”, ou, em português, “embreantes”, remetem aos elementos dêiticos que
propiciam a construção da referência no discurso. Greimas e Courtès chamam de debreagem a operação
em que a instância de enunciação disjunge de si e projeta para fora de si, no momento da
discursivização, certos termos ligados a sua estrutura de base, com vistas à constituição dos elementos
fundadores do enunciado, isto é, pessoa, espaço e tempo. (Greimas e Courtès ( 1979, p.79) apud
Fiorin(1996, p.43). Chamam de embreagem a operação em que se verifica ““o efeito de retorno à
enunciação”, produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim
92
que o “agora” da enunciação esteja “ancorado” a uma referência do tempo cronológico,
dada a distância entre o momento da interlocução e a sua representação escrita.
Segundo Fiorin (1996, p.145), a “singularidade do tempo lingüístico” define-se
levando-se em conta dois pontos: “a) seu eixo ordenador e gerador é o momento da
enunciação; b) ele está relacionado à ordenação dos estados e transformações
narrativas no texto.”. Esses dois pontos, ao mesmo tempo que indicam uma polaridade
quanto à instauração do sistema temporal, evidenciam, também, que “o momento de
referência está relacionado ao momento da enunciação, já que este é o eixo
fundamental de ordenação temporal na língua” (Fiorin, 1996, p.:145-6). Isso porque se,
de um lado, temos “o momento da enunciação”, de outro, temos “os momentos de
referência instalados no enunciado”.
4.3. Tempo/espaço na construção de planos enunciativos
Essa noção de tempo lingüístico nos remete à noção de instâncias enunciativas de que
tratamos anteriormente. Uma vez que estas instâncias são instauradas a partir da
introdução de novos enunciadores na atividade discursiva, podemos, em conseqüência
disso, afirmar que a organização das instâncias de enunciação obedece a uma
organização caracterizada por uma articulação dos tempos/espaços da enunciação e
definida em função da própria atividade discursiva. Assim, se a articulação de tempos
define-se como uma das coordenadas que compõem o sistema de referência interna da
enunciação, cabe a nós buscar explicitar a base sobre a qual tal articulação se efetua.
De acordo com Weinrich (1973) e (1989), a noção de formas temporais está atrelada à
existência de dois sistemas temporais que obedecem a três eixos de orientação: a
“situação de elocução”, a “perspectiva de locução” e a “focalização do evento62”. O
primeiro desses eixos corresponde ao que Castilho (1998) define como resultante das
operações realizadas essencialmente no módulo Discursivo; o segundo e o terceiro
como pela denegação da instância do enunciado.”(Greimas e Courtès (1979, p.119-21) Apud Fiorin
(Idem, p.48)).
93
correspondem às operações no módulo Semântico. As operações no módulo
Gramatical correspondem à organização dada ao discurso, considerando-se a
articulação das instâncias enunciativas que o compõem.
Segundo Weinrich, esses três eixos temporais são subordinados uns aos outros. Percebese, nessa concepção da organização temporal, a importância de os alocutores, no
processamento
discursivo,
operarem
adequadamente
as
referências
temporais
construídas na e pela atividade lingüística. Dessa forma, os alocutores, na recepção do
texto reconstroem os planos temporais instituídos na e pela sua enunciação. A
localização dos discursos no plano da enunciação evidencia o fato de que uma
enunciação não se caracteriza por um discurso e um tempo singulares, mas por uma
cadeia de discursos que se situam em tempos e espaços distintos e subordinados entre si.
Em conseqüência, definem-se os níveis enunciativos que compõem a enunciação,
evidenciando que os mesmos obedecem a uma certa hierarquia, relativamente a sua
localização espaço-temporal. Tomemos, como exemplo, o trecho abaixo para ilustrar a
constituição de planos enunciativos:
(5) {INE1“Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, [dirige-se ao
sargento]]
INE2
[que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a
viatura para levá-lo ao quartel.] INE3} INE1 ”(T14. L 28-33)
O exemplo (5) articula três instâncias enunciativas:
a) EN1 é instituído em “situação default63” e “fala” para um leitor virtual referenciado
como AL1. O tempo e o espaço enunciativos referenciados nessa primeira instância
estão atrelados ao agora e ao aqui da enunciação –“Hoje”- em que EN1 toma a
palavra e, pela elocução da forma verbal “dirige-se”, introduz EN2.
62
Confira nota 50, da página 60, sobre a concepção de “evento” ( a enunciação).
Entende-se por “situação default” a “tomada de palavra” por parte do enunciador que funda o discurso
– EN1. Esse enunciador se situa no aqui/agora do processamento discursivo. Essa noção de “situação
default” será explorada no próximo capítulo.
94
63
b) Ao introduzir EN2 no discurso, indiciando-o através do verbo dirigir, EN1 instaura
a segunda instância enunciativa – INE264- formada pelo par EN2-AL2,
referenciados no texto como o soldado da PM, de um lado, e o sargento, de outro.
Essa instância
de enunciação situa-se temporalmente, num momento simultâneo, em relação ao
momento da enunciação de EN1 e é indiciada pelos termos: “Hoje”, “quando”.
c) EN1 instaura, ainda, uma terceira instância de enunciação – INE3 - ao referenciar a
interlocução do par EN3-AL3, indiciando-a pelo verbo “reporta”. Nessa instância,
que se situa num tempo simultâneo ao tempo lingüístico da INE2, o AL2 assume o
papel de EN3 e institui o seu próprio alocutário - AL3 -, referenciado no texto
lingüisticamente como o “oficial do dia”, a quem reporta o que lhe foi dito por EN2.
Tal jogo de tempos dicursivos situa uma pluralidade de discursos em tempos e espaços
próprios e põe em foco a força ilocucionária do operador – “quando” - usado no âmbito
da INE1, que subordina os tempos e espaços das outras instâncias enunciativas que
compõem a enunciação como um todo.
A categoria de tempo, como consta em (5), é construída a partir de um tempo zero - o
presente da enunciação - sendo este o plano que orienta o jogo dos outros tempos que
compõem a enunciação e possibilita, ainda, a sua localização em termos das
coordenadas espaciais nela referenciadas. O tempo lingüístico - que se institui a partir
do presente da enunciação - está marcado nas formas verbais e em expressões
temporais, e o espaço enunciativo, em expressões locativas ou outras informações
situacionais, como se vê no exemplo que aqui repito.
(6) “{{EN1Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, [dirige-se
ao sargento]] INE2 [que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a
viatura para levá-lo ao quartel.]] INE3 }INE1”(T14. L 28-33
64
Utilizaremos, a partir deste ponto, a notação INE seguida de um número, como usamos em relação à
identificação dos enunciadores e alocutários, para nos referirmos a uma instância enunciativa.
95
A configuração dos espaços enunciativos está diretamente relacionada à configuração do
tempo enunciativo, porque um acontecimento se define em função de sua localização
em dois aspectos: o momento e o lugar de sua ocorrência. Tal evidência vem ao
encontro do que afirmamos anteriormente sobre a indissociação de espaço e tempo.
Retomando (6), temos:
a. PLANO 1 = INE1 = TEMPO/ESPAÇO 1
b. PLANO 2 = INE2 = TEMPO/ESPAÇO 2
c. PLANO 3 = INE3 = TEMPO/ESPAÇO 3
A INE1 constitui o plano básico da enunciação como um todo. É esse plano que permite
a identificação das outras instâncias de enunciação que compõem (6) e possilbilita a
articulação destas, localizando-as uma em relação às outras e , é claro, em relação ao
todo. Ilustramos, esquematicamente, através da figura abaixo, como a configuração de
tempo e espaço articula as instâncias enunciativas de (6):
AL1
EN1
TU
EN2
EU
AL2
T/E2
TU
TU
EN3
REF2
AL3
EU
T/E3
TU
ELE
REF3
ELE
T/E1
REF1
ELE
Figura 5 - A figura 5 possibilita-nos visualizar mais claramente a articulação estabelecida entre
as instâncias de enunciação que compõem (6) pela configuração espaço-temporal da INE1.
96
Vê-se, na FIGURA 5 que o plano 1, EN1/REF1/AL1, representado pelo triângulo
maior, corresponde a todo o texto e os outros planos, representados pelos triângulos
menores, articulam-se no seu interior.
4.4. A configuração da INE na Teoria Modular
É importante lembrar que a caracterização de tempos/espaços enunciativos como
simultâneos, posteriores ou anteriores só pode ser considerada em relação ao
tempo/espaço configurado na INE1, que se localiza no plano 1 da enunciação, ou seja,
no aqui/agora da enunciação. A percepção dessas categorias de tempo/espaço dá-se pela
operacionalização de processos de gramaticalização responsáveis pela linearização dos
enunciados. Produzem-se, a partir do processamento das pistas fornecidas pelos
enunciadores, efeitos de sentido que, através de processos semânticos, correspondem à
criação de um “tempo cronológico” e um “espaço físico”, definidos em função do
tempo/espaço da INE1. Os efeitos de sentido produzidos pelo processamento dos
enunciados
configuram-se
em
processos
de
semantização
e
são
ativados
concomitantemente ao processamento dos enunciados, a partir de decisões do
ouvinte/leitor que situaríamos no módulo Discursivo.
Assim, a referência ao tempo e ao espaço lingüístico da INE1, apesar de ser marcada
como sempre presente e localizada em relação ao aqui/agora da elocução, não
impossibilita a referência a diferentes tempos e espaços que caracterizam as instâncias
enunciativas que constituem uma determinada enunciação. Além disso, os tempos e os
espaços enunciativos podem ser indiciados por outros elementos lingüísticos, além dos
verbos e dos tradicionais advérbios, conforme postula a GT. Isso pode ser verificado em
relação, por exemplo, à INE1 do exemplo (7), abaixo, em que se observa que a
referência temporal/espacial é instituída a partir de um operador - “enquanto isto” - que
liga referências instituídas dentro de uma mesma enunciação.
97
(7) “Enquanto isto - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas
se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas
eventualmente desarticuladas.” (T 14, L 43 - 47)
De acordo com a perspectiva discursiva que adotamos, a realidade temporal, assim
como a espacial, se constrói no próprio discurso, tendo como referência a localização
dos seus respectivos enunciadores. O excerto abaixo ilustra bem esse fato:
(8) {“Há poucos dias, diante de [comentário]]EN2 meu a propósito da demora do
Congresso na [revogação]]EN3 da [lei de imprensa]]EN4 imposta no regime militar, fui
surpreendido com [manifestação indignada de interlocutor amigo]]EN5 pelo fato de o
[projeto]]EN6 em andamento na Câmara dos Deputados excluir, em princípio, a pena de
prisão para os crimes contra a honra praticados por [jornalistas no exercício da
profissão. ]EN7”}}EN1 (T11, L 1-10)
O exemplo (8) é constituído por sete instâncias de enunciação. A INE1 é instituída em
“situação default”, em que EN1 se enuncia falando para um interlocutor virtual - AL1 que, no caso, é construído pelo leitor. As outras instâncias subordinadas a essa primeira
instância - INE1 – sucedem-se em planos espaço-temporais que as organizam
hierarquicamente em relação ao momento da “fala”- instaurada em “situação default”.
O efeito de sentido produzido no módulo Semântico pela subordinação das diversas
instâncias de enunciação em relação à instância de fundação da enunciação, pode ser
representado a partir da seguinte notação:
{INE1 [(INE2 - comentário) => (INE3 – revogação) => (INE4 – lei de imprensa) =>
(INE5 – manifestação indignada de interlocutor amigo) => (INE6 - projeto) => (INE7 jornalistas no exercício da profissão)]}
98
Em termos da localização no eixo das coordenadas espaço-temporais, a subordinação e
a hierarquia dos planos enunciativos, do exemplo acima, são organizadas, como se
mostra na figura abaixo, em movimentos para trás, na referência a tempos/espaços
enunciativos anteriores, ou simultâneos, ou se projetam num presente contínuo em
direção a um tempo/espaço posterior ao tempo/espaço da INE1. Dos movimentos
realizados a partir de INE1, configuram-se outros tempos e espaços enunciativos que
não têm uma importância secundária em relação a essa instância fundadora, embora
sejam constituídos como desdobramentos do tempo/espaço da enunciação construído
por EN1 e estejam subordinados a essa instância.
Tempo 0
INE1
INE2
INE3
INE4
INE5
INE6
INE7
Figura 6 - A figura 6 ilustra a hierarquia dos planos enunciativos, levando em conta a sua
localização espaço-temporal e a sua organização na cena enunciativa de (8).
A referência temporal está atrelada à referência espacial e uma só se define em relação à
outra, pois os acontecimentos “descritos” estão dispostos no tempo e são referenciados
como ocorrências situadas virtualmente num espaço discursivo. Esse fato, no entanto,
não impede que a referência espaço-temporal tenha uma ordenação subjetiva de acordo
com a especificidade exigida por uma determinada situação discursiva. É pelo tempo
lingüístico, caracterizado pelo “agora” da realização do discurso, que se torna explícita a
experienciação de tempo/espaço da enunciação. Esse tempo/espaço, marcado pelo
99
aqui/agora, possibilita a mobilidade com que os tópicos discursivos identificados na, e
a partir da instância fundadora e, também, nas outras instâncias, possam ser
referenciados na atividade discursiva.
A identificação do tempo lingüístico, pois, se dá dependentemente das formas
gramaticais usadas para referenciá-lo e, em função da diretiva que orienta o seu
reconhecimento, está intrinsecamente ligada ao momento/lugar em que a enunciação
ocorre/eu. Isso significa que as operações necessárias para que a enunciação se realize
são implementadas por processos de Discursivização, de Gramaticalização e de
Semantização responsáveis pela própria instauração do processamento discursivo. Se
tais processos não se articulam adequadamente até mesmo o processamento de um único
plano enunciativo fica prejudicado, como pode se verificar em (9):
(9) {INE1“A estabilidade da moeda brasileira foi conquistada graças à abertura às
importações e à ancora cambial que, logo no início, fez o real valer mais que o dólar, o
ritmo da abertura às importações tem sido revisado. Quanto à política cambial, mudou
a forma, não o conteúdo. Primeiro houve a valorização com relação ao dólar. Depois,
houve atraso na correção do câmbio comparada à inflação. Na fase mais recente, a
opção do governo é reduzir, ou mesmo eliminar, a longo prazo, a defasagem
cambial.”} INE1 (T 28, L 1-12)
4.4.1. A articulação de tempos/espaços enunciativos
Conceber uma multiplicidade de tempos/espaços enunciativos, considerando sua
organização em termos de planos enunciativos hierárquicos e subordinados entre si, é
reforçar a tese de que o discurso é, por natureza, polifônico65. Em decorrência disso, o
tempo/espaço discursivo, se constrói através da ativação de morfemas lexicais e/ou
gramaticais que fornecem as coordenadas para a sua construção.
65
Cf. LOPES (1998), Dissertação de Mestrado que analisa a constituição da polifonia textual através do
processamento dêitico.
100
A ativação desses itens está, pois, diretamente relacionada à implementação de
operações nos módulos Gramatical e Semântico. Em vista desse procedimento, o autor
de textos ao constituir-se como enunciador, instituindo-se em INE1, ativa as
propriedades gramaticais e semânticas do léxico, que são responsáveis por todo o
processo de discursivização.
Esquematicamente, podemos ilustrar, pela figura abaixo, como se engendram os planos
enunciativos, configurando a instauração de novas instâncias enunciativas como
constituintes de um discurso.
AUTOR
EN1
EU
AL1
EN2+EU
AL 2 EN3
TU EU TEMPO/ESPAÇO
2
3
TEMPO/ESPAÇO
REF2
1
REF3
ELE
ELE
EN4
AL4
EU
TEMPO/ESPAÇO
TU
4
TEMPO/ESPAÇO
AL3
TU
TU
REF4
ELE
REF1
ELE
FIGURA 7 - A figura ilustra a multiplicidade de tempos/espaços configurados numa
instauração de instâncias enunciativas.Nota-se que cada instância enunciativa possui um par de
interlocução (EN/AL), suas coordenadas de tempo/espaço e o seu quadro de referência.
Nessa perspectiva, se o enunciador se define na relação com o enunciatário, o mesmo
dar-se-á em relação ao tempo e ao espaço. Um enunciador institui-se num determinado
lugar construindo uma referência temporal. Logo, não faz sentido defini-los como
elementos independentes entre si. E mais, um enunciador só se constrói enquanto
101
enunciador levando-se em conta o fato de estar inserido em um determinado
espaço/tempo.
4.5. Síntese
A polifonia é uma característica definidora do processamento discursivo: a atividade
lingüística é, por natureza, interlocutiva, dialógica. Isso significa que o uso da língua se
justifica se, e somente se, esse uso tiver como fim a interlocução. É nesse sentido que
nos apropriamos do conceito de dialogismo proposto por Bakhtin (1929). Pensar o
discurso como dialógico levou-nos a projetar a noção de dialogia de Bakhtin sobre o
processo de CIEs, a fim de tentar explicitar que o chamando discurso citado ou relatado
nada mais é do que o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, podendo ser,
ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.”
(op. cit., 144).
Assumir a perspectiva da articulação dos níveis enunciativos nos remete às noções, a
que já nos referimos neste capítulo, de instâncias de enunciação, de “indivíduos
lingüísticos” e corrobora a importância de:
a) considerar os “shifters” como índices do processamento discursivo;
b) considerar o papel dos “shifters” na construção e articulação dos tempos espaços
como fatores básicos das CIEs.
5. Conclusões do capítulo
Neste capítulo, definimos o nosso objeto de estudo. Partimos, para fazê-lo, de estudos
desenvolvidos pela Gramática Tradicional e chegamos aos estudos mais recentes
desenvolvidos pelas Teorias do Discurso. Traçamos, numa trajetória que não pretendeu
ser uma análise cronológica desses estudos, as bases e as contribuições dos teóricos que,
em nosso ponto de vista, subsidiaram a mudança do foco no enunciado para o foco da
enunciação.
102
Situamos o nosso objeto de estudo no âmbito da enunciação entendida como a
efetivação da atividade discursiva numa visão processual. Nesse sentido, postulamos a
necessidade de se adotar um quadro teórico que analisasse a enunciação, considerando
todos os fatores envolvidos na sua produção: os locutores, os interlocutores, as
representações diversas destas duas instâncias interlocutivas, os conhecimentos
enciclopédicos e de mundo que possuem, os objetivos visados, o tempo e o espaço em
que se dá a atividade discursiva.
A enunciação, concebida desta forma, evidencia uma visão de linguagem enquanto
atividade e, nesse sentido, a ação do usuário da língua pode ser detectada através das
pistas ou índices lingüísticos que caracterizam essa atividade. Em decorrência disso,
utilizamos a noção de “indivíduos lingüísticos” postulada por Benveniste, ampliando a
noção tradicional de dêixis. Ainda relacionado ao conceito de dêixis, propusemos, com
base em Jakobson, que todo elemento lingüístico que indicia o discurso seja considerado
um “shifter”. Portanto todo “shifter” é um dêitico e, como tal, só tem sentido em relação
à situação de discurso em que foi produzido. Chamamos a atenção para o fato de que
esses “indivíduos lingüísticos” têm como fundamento o sistema dêitico, ou seja, as
instâncias de enunciação são construídas tendo como referência os morfemas lexicais
e/ou gramaticais que remetem aos papéis actanciais da enunciação.
Além da configuração dos “actantes” da enunciação, na produção de um texto, podemos
identificar a criação de múltiplos planos espaço/temporais - que chamamos planos
enunciativos - que caracterizam as instâncias enunciativas e que determinam a
articulação destas na cena enunciativa. Essas instâncias, por sua vez, são definidas por
um conjunto de coordenadas do sistema dêitico que as explicitam.
A par do caráter polifônico da linguagem, assumimos que todo texto é dialógico, como
atesta Bakhtin, na medida em que sobre ele se projeta o caráter dialógico do Discurso
em que ele se produz. Toda enunciação, portanto, se caracteriza como uma situação de
interlocução, de dialogia, construída em função de um eu que se dirige a um tu. Esse par
interlocutivo é cambiável no processo discursivo e explicita a ativação de instâncias
103
enunciativas. Cada instância enunciativa constiuída evidencia a voz de um ou mais
enunciadores e, conseqüentemente, a configuração de seu tempo e espaço. Assim, as
diversas instâncias enunciativas se entrelaçam na tecitura do Discurso, manifestandose na materialidade do texto.
Para explicar como essas instâncias enunciativas são ativadas propusemo-nos basear nas
contribuições da Teoria Modular, principalmente nos princípios propostos por Castilho.
De acordo com esse autor, a nossa mente processa informações de forma simultânea e
não linear. Assim, através de operações de ativação, reativação e desativação, o Léxico é
acessado pelo usuário em função da organização do discurso, levando-se em conta,
numa dada situação discursiva, os efeitos de sentido que se deseja obter. Em resumo: a
atividade discursiva do usuário da língua se realiza por meio de operações com e sobre o
sistema lexical. Essas operações dão-se nos Módulos Discursivo, Gramatical e
Semântico, e implicam crucialmente a implementação do processamento dêitico.
É nessa perspectiva teórica que o nosso objeto de estudo explicita as operações de
ativação do sistema lexical como sendo operações básicas constitutivas das instâncias de
enunciação, levando-se em conta os três módulos a que nos referimos anteriormente. De
acordo com isso, o sistema lexical possui elementos – os “shifters” – que indiciam as
operações realizadas pelos usuários com e sobre a língua, na e pela enunciação. Assim,
a taxinomia que pretendemos construir, no próximo capítulo, procurará explicitar:
a) os recursos lingüísticos utilizados na CIE, no português culto escrito;
b) como esses recursos lingüísticos são ativados na CIE;
c) como a utilização de tais recursos pode refletir aspectos da competência discursiva
dos autores de textos, no português culto escrito; e, por último,
d) a importância de se considerar, nos estudos lingüísticos, esses fatores da competência
discursiva dos falantes de uma língua.
104
CAPÍTULO 3
PROCESSAMENTO DISCURSIVO E CIE
1. Introdução
Para facilitar a análise dos dados do corpus, retomo, a seguir, os pressupostos
norteadores desta pesquisa: (i) a voz autoral pode ser expressa por um enunciador, que
se identifica, explicitamente, como o autor do texto; (ii) a voz autoral pode estar
implícita na voz de um enunciador outro que não a do autor do texto; (iii) a voz autoral
pode expressar-se através de diferentes vozes enunciativas; e (iv) outras vozes, com as
quais a voz autoral não se identifica, podem se expressar na constituição de um texto.
De tais pressupostos depreende-se, como vimos até aqui, a seguinte proposição: a
polifonia é uma característica imanente da atividade discursiva e, por isso, nas malhas
do texto, vozes de enunciadores distintos evidenciam-se como constituintes do processo
de enunciação. Essas “vozes do discurso”, na verdade, indiciam a construção de
instâncias enunciativas – CIEs, que, cada uma constituindo o seu centro de referência
interno, articulam-se sempre como “um discurso no discurso”, uma “enunciação na
enunciação”66 .
Isso posto, o texto – lugar de materialização da enunciação – revela como se dá a
ativação dos três módulos lingüísticos, a que nos referimos no capítulo anterior, na
ativação das operações responsáveis pela instauração do processamento discursivo.
Como expusemos no referido capítulo, consideramos que, na base de toda atividade
discursiva, está a operação denominada por Castilho de “ativação”, uma operação
básica do módulo Discursivo. Tal operação implica a ativação de itens lexicais com
66
As noções de “discurso no discurso” e de “enunciação na enunciação”, a que nos referimos
anteriormente, pertencem a Bakhtin (1977).
105
suas propriedades semânticas e gramaticais, determinantes de operações nos módulos
Semântico e Gramatical. A CIE e a sua articulação dependem de tais operações nos
três módulos lingüísticos. Com base nisso, nossa análise do corpus se desenvolverá em
função de processos de ativação do sistema lexical e de operações identificadas nos três
módulos.
No trabalho com os dados, constatamos que diversos são os “shifters” utilizados para
construir as instâncias enunciativas. Na perspectiva aqui adotada, pressupõe-se que
descrever e analisar os processos de constituição do fenômeno implica explicitar o
processo de ativação de instâncias enunciativas através de operações que se dão
simultaneamente nos três módulos: Discursivo, Semântico e Gramatical. Essas
operações, como já dissemos no capítulo anterior, pressupõe a mediação pelo sistema
lexical. É essa mediação que constitui o objeto desse nosso trabalho. É óbvio que tomar
essa mediação como objeto de estudo significa considerar operações nos módulos
Gramatical e Semântico. Essas operações serão tomadas em função das operações
básicas de CIEs que constituem a mediação, objeto deste estudo. Outras operações de
gramaticalização e semantização não serão consideradas, por extrapolarem a
delimitação do objeto de estudos dessa dissertação.
Levando-se em conta a perspectiva modular adotada, nossa análise terá, como ponto de
partida, a identificação de operações no módulo Discursivo, responsáveis pela CIE.
Abordaremos, a seguir, operações de ativação das propriedades constituintes dos
módulos Semântico e Gramatical.
2. O processamento discursivo e a seleção lexical
2.1. A ativação/reativação/desativação do Léxico
Detectamos nos textos jornalísticos, constituintes do nosso corpus, categorias
diversificadas de palavras - verbos não-ilocucionários, substantivos, advérbios – que
106
indiciam os “actores”, os enunciadores, na enunciação e, conseqüentemente, a
instauração de distintas instâncias enunciativas constituintes dos textos analisados.
A possibilidade de termos outras categorias de palavras utilizadas como elementos
desencadeadores da CIE, diferentes das postuladas pela GT, deve-se ao fato de que o
falante, em uma atividade de interação lingüística, opera com e sobre o Léxico para
enunciar-se, em uma dimensão mais ampla do que a prevista pela GT. É nesse sentido,
que a seleção dos itens lexicais, feita pelo falante, levando-se em conta as propriedades
sintáticas e semânticas desses itens ocorre em função das condições que a situação de
interlocução exige. São essas propriedades inerentes ao Léxico que o situam em uma
posição intermediária dos módulos lingüísticos. O fato é que um item lexical nada
indicia se usado sem uma função, sem que sobre ele e com ele seja detectada uma ação
lingüística. Operar o Léxico é, além de ativar suas propriedades sintáticas e semânticas,
dar um sentido a um conjunto de elementos lingüísticos até então vazios, construindo,
assim, a enunciação.
Essa construção da enunciação efetiva-se através da ativação, reativação e desativação
de propriedades semânticas e gramaticais dos itens lexicais, indiciando o conhecimento
lingüístico do falante. Tais operações estão na base do trabalho do falante com e sobre o
Léxico e é a partir delas que se pode detectar, no processamento discursivo, as
estratégias básicas de CIEs.
Fundamentados nisso, podemos conceber a existência das diversas “formas de dizer” ,
ou seja, de indiciar a CIE no discurso, tais como a “situação default”, os verbos
“dicendi”, os verbos “não-dicendi”, os “sintagmas de elocução”, a utilização recursos
próprios da escrita, como: aspas, parênteses, travessões, dois pontos, sublinhados,
itálicos67” etc..
67
O negrito, o sublinhado e o itálico não foram analisados nesta pesquisa, mas reconhecemos neles tipos
de estratégias discursivas utilizadas para indiciar instâncias enunciativas no discurso e também
responsáveis por caracterizar, em alguns casos, o julgamento do enunciador a que se referem.
107
2.2. A seleção lexical
O Módulo Discursivo é fundamental na CIE. Entre os vários processos que podemos
situar nesse módulo está o da escolha do assunto, do tópico discursivo, que implica,
entre outras coisas, a ativação de um ou mais itens lexicais. Identificamos uma
variedade desses itens ativados pelo falante especificamente para a CIE, tais como: a
ativação de morfemas responsáveis pela construção de pessoa, de tempo e de espaço; os
sinais gráficos (aspas, travessão, dois pontos, parênteses), alguns operadores discursivos
(então, mas, agora, ora e outros ); os advérbios de discurso (atualmente, hoje, agora,
felizmente etc.); e um conjunto múltiplo de “formas de dizer” que assinalam a inserção
do “discurso de outrem” no processamento discursivo.
Devido à multiplicidade de estratégias discursivas e, em conseqüência, da variedade dos
recursos lingüísticos utilizados em sua implementação, tornou-se necessária uma maior
delimitação dos dados com que trabalhamos. Decidimos centrar nosso trabalho nas
“formas de dizer”, dado que suas funções e a freqüência em que ocorrem já justificam
um estudo mais cuidadoso: os verbos “dicendi” não constituem exclusivamente a
categoria lexical por excelência utilizada para indiciar a voz dos enunciadores. Ao
contrário do que se afirma na GT, há uma gama de itens lexicais, incluindo verbos não
“dicendi” que, no processamento discursivo, assumem esse papel. Ao lado dos
“dicendi” e outros tipos de verbos, há, ainda, os deverbais68, os nomes de elocução e
outros elementos que, em situação “default”, exercem tal função. O exemplo abaixo
ilustra a complexidade do fenômeno em estudo:
(10) “{{EN1Lembro69 (a memória de 88 anos ainda não me traiu) que o professor de
Português, José Schiavo, [foi acerrimamente criticado]]EN2, lá pelos idos de 30, quando
se estudava e aprendia, pelo [escritor]]EN3 Carlos Imbassahy por [haver escrito]]EN4 no
68
São chamados “deverbais” os substantivos formados a partir de radicais verbais, como é o caso de: o
gasto (de gastar), a marcha (de marchar), o salto (de saltar).
69
Nesse exemplo, colocamos em negrito a primeira palavra de uma “situação default”. Ao enunciar-se a
partir do verbo “lembrar”, EN1 na verdade está nos dizendo algo como: “Com esse verbo, eu estou lhes
dizendo que me lembro disso.”
108
“Jornal do Povo, da querida e velha Ponte Nova: [ “Responsabilizo as asneiras do
Pires”.]]EN5}EN1” (T40, L 13-20)
Os itens lexicais em negrito, em (10), indiciam a articulação de diversas instâncias de
enunciação, constituindo níveis enunciativos hierarquicamente organizados em função
da construção da referência de cada instância enunciativa. Insistimos no fato de que as
instâncias de enunciação são construídas a partir da construção, no discurso, de um novo
enunciador, que institui, a seu turno, um novo par interlocutivo em determinado
tempo/espaço marcado pelo aqui/agora de cada instância enunciativa.
Em (10), a primeira instância de enunciação é construída por um EN1 que funda o
discurso, localizado no tempo/espaço de sua interlocução com um AL1, que representa
lingüisticamente o seu Leitor-Modelo. Essa instância está indiciada pelo morfema verbal
do presente - lembro - e por uma forma adverbial – ainda -, que gramaticalizam o
presente lingüístico, que caracteriza o momento da enunciação. Note-se que “lembrar”,
não se configura como um verbo de elocução.
A segunda instância – INE2 – é indiciada, também, por morfemas verbais que
configuram “criticar” na voz passiva e por formas adverbiais (“lá pelos idos de 30”,
“quando”) que situam o EN2 num tempo anterior e um espaço distinto ao do par EN1AL1.
O termo “escritor” gramaticaliza e semantiza uma terceira instância enunciativa – EN3
– que não traz em si as marcas de tempo, sendo este indiciado pelo item “quando”,
associado às marcas verbais de “estudar” (estudava) e “aprender” (aprendia) ativado no
módulo Gramatical, que semantiza essa terceira instância de interlocução.
A quarta instância enunciativa é indiciada pelo verbo de dizer “escrever”, através de
morfemas verbais do infinitivo pretérito impessoal e pelas expressões locativas “no
Jornal do Povo, da querida e velha Ponte Nova”.
109
A quinta instância de enunciação, além de possuir o verbo de dizer “responsabilizo”,
vem indiciada pelas aspas duplas. Esses recursos instituem a INE5, construída pela
semantização do EN5.
Como vimos em (10), as formas verbais não são exclusivamente as únicas formas que
indiciam a CIEs. Entre os itens que as gramaticalizam temos, em (10), o nominal
“escritor” e as várias expressões adverbiais a que se aludiu acima. Esse conjunto de
itens,
ativam, pois, processos de gramaticalização/semantização que instituem e
delimitam as cinco instâncias de enunciação de (10), cada uma delas constituindo “um
centro de referência interno”. Observa-se, portanto, que, considerando a situação
discursiva, o autor, que se constitui como EN1 na primeira instância, toma “decisões”
relativas ao processo de Discursivização, que implicam a seleção, no Léxico, de
morfemas que desencadeiam operações nos módulos Gramatical e Semântico. Em
decorrência dessas operações, indiciam-se em (10) cinco instâncias de enunciação que
manifestam o caráter polifônico do discurso, pela articulação de planos enunciativos da
maneira esquematicamente representada a seguir.
AUTOR
EN1
AL1
EN2
AL2
EN4
AL4
EN5
AL5
T/E5
T/E4
REF5
T/E2
T/E1
REF4
REF2
EN3
AL3
T/E3
REF3
REF1
FIGURA 8 – A figura 8 ilustra como se dá a CIE em (10). Vê-se que cada INE se caracteriza
por ter o seu próprio quadro de referência interno, instituindo, assim, os planos enunciativos.
110
No exemplo que se segue, destacaremos outros itens lexicais que, ao serem ativados
desencadeiam processos nos demais módulos lingüísticos, em função das CIEs.
(11)
“{{EN1Um
deles
[está cobrando]EN2, com progressivo entusiasmo, as
[promessas]EN3 de saúde, educação, segurança – nem [lembro]EN1 mais os cinco dedos
que foram exibidos na mais dispendiosa e sofisticada [campanha eleitoral]EN24 de
nossa história.}}EN1” (T43, L 4-9)
O enunciado (11) ilustra bem a multiplicidade de recursos usados para CIEs.
(a) A instância EN1-AL170 é instaurada a partir de uma “situação default” - ou seja,
pelo ato de o autor tomar a palavra e constituir-se como EN1 ao “dizer” “UM deles está
cobrando ...” dirigindo-se a um leitor virtual que irá atualizar-se como AL1. O
morfema de 1ª pessoa de “lembro ” reforça esse ato discursivo pelo qual se constrói
EN1.
Denominamos “Situação default”, então, a situação de interlocução na qual um locutor
assume a palavra, construindo-se como enunciador. Com esse recurso, uma situação de
interlocução é instituída sem que, para isso, tenha o locutor de “avisar” aos alocutários,
através de um verbo “dicendi”, por exemplo, que ele está “falando” alguma coisa para
alguém.
Desse modo, considere, por exemplo, em (11), o locutor não precisa começar o seu texto
“dizendo” “Eu digo que um deles está cobrando ...”, porque, quando alguém fala alguma
coisa para outro, já institui uma instância de enunciação, já se constrói como um
enunciador, instituindo uma instância de enunciação, no caso, EN1-AL1. A operação de
constituição da “situação default” é uma das decisões básicas do módulo Discursivo, ou
70
Utilizaremos a notação EN - AL para nos referirmos às instâncias de enunciação constituídas pelo par
Enunciador (x) -Alocutário (x), onde x indica a que instância enunciativa pertence o par mencionado.
111
seja, é uma decisão que se processa concomitantemente à da escolha de um tópico
discursivo.
(b) O EN2 - “Um deles” - é colocado em cena, por EN1, quando este o referencia numa
nova instância de enunciação, através do “dicendi” “cobrar” (“está cobrando”). Nessa
instância de interlocução, EN2 dirige-se a um AL2 - indiciado através da referência a
uma terceira INE, referenciada pelo sintagma nominal “promessa”.
(c) Na referência à cobrança de EN2, EN1 coloca em cena uma outra instância de
interlocução- a INE3, cujo enunciador é indiciado através do deverbal “ promessa” e,
dessa forma, indicia uma interlocução: alguém promete(u) algo a alguém. A situação de
interlocução é estabelecida entre EN3 e um AL3.
(d) Na referência à promessa feita pelo EN3 ao seu AL3, o EN1 institui a INE4, através
do sintagma nominal “campanha eleitoral”. Com esse recurso, a instância de
interlocução indicia o par EN4, referenciado na INE3, como o EN2 responsável pelas
promessas, e o AL4, referenciando o leitor virtual, que, nesta instância, está indiciado
pela gramaticalização da forma pronominal “nossa”.
(e) Além do mais, (11) ilustra também o quadro figurativo da enunciação postulado por
Benveniste ( 1974: 87). É característica da enunciação o estabelecimento de uma
situação de interlocução que põe em cena, de um lado, aquele que fala e, de outro,
aquele a quem se fala. Essas duas “figuras” no discurso indiciam, respectivamente, a
origem e o fim da enunciação. E mais: na relação discursiva, aquele que, num momento,
se coloca como o fim da enunciação - o enunciatário -, no processamento discursivo,
tornar-se-á, em um outro momento, a sua origem. Tal relação discursiva é atestada, por
exemplo, pelas alíneas (b) e (c) acima. O AL2 indiciado por “promessa” numa instância
de interlocução, torna-se o EN3 em outra, instituindo-se, por sua vez, como seu
enunciatário.
112
3. Identificação dos processos de CIE
As estratégias - “situação default” (“assumir a palavra”), uso de verbos “dicendi”, uso
de deverbais, uso de sintagmas de elocução, uso do travessão - utilizadas na construção
de (11) acima evidenciam que:
a) vários podem ser os recursos lingüísticos utilizados para dar voz aos enunciadores
na produção de um texto;
b) são diversificadas as operações que, na interação dos módulos lingüísticos,
promovem a articulação das instâncias enunciativas na configuração de um discurso;
c) “as formas de dizer” englobam um conjunto bem maior de itens lexicais e/ou
recursos lingüísticos do que aqueles já arrolados pela Gramática Tradicional.
Vale notar, ainda, que, na perspectiva modular aqui adotada, os recursos que
possibilitam as CIEs definem-se no e pelo processo de enunciação. É nesse quadro que
podemos afirmar que não só os verbos, mas também nomes, como os destacados abaixo,
constituem-se como recursos utilizados para indiciar as “formas de dizer”.
(12) {EN1“Essa [cláusula]]EN2 - [será que é constitucional?]]EN1 - talvez isente grande
número de empresas jornalísticas de multas mais significativas.”}}EN1 (T5, L 71-74)
(13) {EN1“Ausente do país, só agora me dou conta, pelos bons ofícios de um amigo, do
[artigo]]EN2 do ministro Antônio de Pádua Ribeiro, do STJ. Trata-se de matéria tão
relevante que, enquanto estiver em [debate]]EN3, sempre merecerá observações. O
magistrado, em seu [arrazoado]]EN4, afirma verdades indiscutíveis, ao mesmo tempo em
que, infelizmente, deixa de fazer reflexão mais profunda para, com o peso de seu
múnus, provocar a [autocrítica]]EN5 do judiciário, abrindo alamedas mais amplas para
o reconhecimento de sua dignidade e do papel insubstituível que lhe confia o estado
democrático e de direito.}}EN1 (T 42,L 1-14)
(14) [ “Cada vez mais freqüentes, os [desabafos]]EN2 presidenciais revelam a crise de
um arlequim que aceitou trabalhar para dois senhores.”]]EN1 (T43, L 1-4)
113
Os termos sublinhados indiciam instâncias de enunciação que se articulam na
configuração dos “discursos” em que se produzem os exemplos (12) a (14). Nesses
exemplos, pode-se observar como o uso dos nomes é relevante em relação ao processo
de CIE. Como aconteceu com os verbos “dicendi”, o emprego dos termos acima
indiciam instâncias de enunciação, mas o uso de nomes obriga o leitor a buscar as
referências necessárias para a sua construção, no conjunto de referências explicitadas no
texto em que se inserem. Isso, no entanto, como se verá abaixo, não constitui um
problema, haja vista o fato de que as diversas instâncias de enunciação articulam-se em
função da referência explicitada na INE1.
3.1. Formas de ativação de planos enunciativos e CIEs
Os recursos acima destacados articulam-se de várias formas na CIEs, como ilustram os
enunciados de (11) a (14), repetidos abaixo:
(11)
{EN1“Um
deles
[está cobrando]EN2, com progressivo entusiasmo, as
[promessas]EN3 de saúde, educação, segurança – nem [lembro]]EN1 mais os cinco dedos
que foram exibidos na mais dispendiosa e sofisticada [campanha eleitoral]EN4 de nossa
história.}}EN1” (T43, L 4-9)
Em (11), a INE que constitui o plano de base da interlocução de EN1-AL1 ativa-se pela
“situação default”, em que EN1 é construído como enunciador, Nessa operação, a dêixis
de 1ª pessoa, ativada pela desinência número-pessoal do verbo “lembro” e pelo pronome
pessoal oblíquo “me” é um dos recursos de gramaticalização implementados pelo seu
autor.
É no interior da INE1 que se semantizam as duas outras instâncias de enunciação
referenciadas por EN1.
a) A INE2 é introduzida através de um verbo “dicendi” “cobrar”, cuja interpretação
está diretamente relacionada à gramaticalização e semantização do deverbal
“promessa” da INE3 .
114
b) Nessa terceira instância, por sua vez, ancoram-se as ativações das propriedades
semânticas
dos
itens
“saúde,
segurança,
educação”
interpretados
como
correspondentes ao sintagma “cinco dedos” que remetem ao nome “promessa” no
interior da INE2.
c) A INE4 é instituída através do sintagma nominal “campanha eleitoral” – cuja
interpretação está diretamente relacionada ao deverbal promessa da INE3.
d) A par dessas operações para se identificar os planos enunciativos que constituem
(11), há de se considerar, ainda, que a INE1, instituída em “situação default”, é ela
mesma referenciada numa operação metalingüística através do verbo “lembrar” e
sua desinência verbal – o morfema de 1ª pessoa de “lembro” - e pelo me. Em outras
palavras, o autor referencia EN1-AL1, num recurso de metalinguagem, ou seja,
constituindo, no processo discursivo, um discurso sobre o discurso.
(12) {EN1 “Essa [cláusula]]EN2 [- será que é constitucional? -]]EN1 talvez isente grande
número de empresas jornalísticas de multas mais significativas.”}}EN1 (T5, L 71-74)
Em (12), EN1 institui-se pela “situação default” e não é marcado ostensivamente pela
dêixis. EN1 institui AL1 como um leitor virtual a quem ele se dirige, apresentando o
seu ponto de vista sobre EN2. Este é introduzido na INE1 pelo nome “cláusula”. Notase, ainda, que tais recursos evidenciam como se configuram os planos enunciativos
instituídos no texto (12), conforme será exposto abaixo.
a) A delimitação dos dois planos enunciativos que constituem (12) é indiciada pelos
seguintes “shifters”: a operação de instituição da “situação default”, a desinência
verbal de “isente” e a operação metalingüística, orientando o leitor para a
configuração das INEs, pois:
1) o que é estabelecido pela instituição de EN1, por uma ativação da “situação
default”, obriga o leitor a buscar a identidade da relação EN1/Autor em outros
dados do texto em que (12) se situa. Nesse sentido, o discurso de EN1 é autoreferenciado pela marca do presente em “será que é constitucional?”. A auto115
referência está indiciada também na utilização dos travessões, que explicita a
existência de um outro discurso no interior da INE1. Esse recurso, como se deu
em (11), evidencia a propriedade de um discurso referenciar a própria instância
enunciativa em que se insere. Deve-se atentar para o fato de que, no interior da
INE1 de (12) já ativada em “situação default”, ativa-se uma outra “situação
default”, configurando-se, então, como um recurso metalingüístico, através do
qual o EN1 faz “um discurso sobre o discurso”.
2) o plano de EN2, instituído pela gramaticalização do nome “cláusula” e pela
desinência verbal de “isente” obriga o leitor a buscar a identificação de EN2AL2 alhures, no texto em que (12) se situa.
b) A existência de uma outra entidade lingüística: a interrogação71 que, segundo
Benveniste (1970: 86), “é uma enunciação construída para suscitar uma
“resposta”, por um processo lingüístico que é ao mesmo tempo um processo de
comportamento com dupla entrada”. A interrogação funciona, pois, como um
recurso dêitico do qual EN1 se utiliza para “influenciar de algum modo o
comportamento
do
alocutário”
–
AL1.
A
interrogativa
“será
que
é
constitucional?” é interpretada no interior da INE1 , que, metalingüisticamente
refere-se ao par EN2-AL2, numa operação discursiva de discurso remetendo a um
outro discurso, isto é, um discurso interrogando um outro discurso. Dessa forma,
retomando o que dissemos em a) acima, esse metadiscurso, ativado em “situação
default” no interior de uma outra “situação default”, promove uma dupla
referenciação no interior da INE1: 1) a auto-referência à INE1 e 2) a referência à
INE2, em ambos os casos caracterizando o que denominamos acima “um discurso
sobre o discurso”.
c) O processo de referenciação, que se caracteriza como uma operação realizada no
módulo Semântico, dá-se sempre no interior de instâncias enunciativas específicas.
71
A enunciação, segundo Benveniste (1970: 86), “além das formas que comanda (...) fornece as
condições necessárias às grandes funções sintáticas.” Essas condições caracterizam o que o autor chama
116
Assim, a ativação da “situação default”, institui a INE1, cujo enunciador se institui
ao referir-se a um AL1 virtual fazendo um comentário sobre uma cláusula da Lei de
Imprensa. O fato de o EN1 enunciar o termo “cláusula” já institui uma outra
instância de enunciação - a INE2 – cujos interlocutores são, de um lado, o aparato
judiciário da nação, como EN2 – e, de outro, os jornalistas e a imprensa de uma
forma geral – como - AL2. A gramaticalização do discurso de EN1 sobre EN1,
instituído pela interrogação, na instância de EN2, caracteriza-se como um discurso
pertencente a EN1 configurando-se, pois, como um discurso metalingüístico,
semantizado no interior da INE2.
d) A identificação das operações características do módulo Semântico, no interior das
INEs, é um dos fatores constitutivos dos Planos Enunciativos e de sua articulação
no texto.
(13) {EN1“Empenhado na eficiência, é característico do Executivo tender a presumir
que os fins da ação do Estado, que ele próprio [estipula]]EN2, são objetivos nacionais
inequívocos [(“Não pensam no Brasil?”)]]EN3 e que a questão é dispor de maneira
adequada os meios.”}}EN1 (T3, L 72-78)
Em (13), a INE que constitui o plano básico de enunciação – EN1-AL1 – ativa-se pela
“situação default”, a partir da qual se constrói EN1. Nessa operação, a gramaticalização
da INE1 efetiva-se através da desinência de presente indiciada no verbo “ser” e pela
ativação da INE2. Essa instância é instituída pelo verbo “estipular” e “ser”, que se
articulam gramaticalmente em função de explicitar o “Poder Executivo” como o EN2 e
a nação como AL2. Nesse sentido, a gramaticalização de EN2 ocorre no interior da
INE1 em função de explicitar os recursos semânticos utilizados na construção da
referência da INE1. A instituição de EN3, no interior da INE2, é gramaticalizada pelo
uso de recursos exclusivos da escrita - os “parênteses” e as “aspas” que delimitam um
um “aparelho de funções”. A interrogação é uma dessas “formas” a que se refere Benveniste e que, na
perspectiva aqui adotada, será considerada como um dos recursos dêiticos usados na CIE.
117
discurso que interroga o discurso da INE2. Essas três instâncias enunciativas se
constituem, pois, considerando operações já ilustradas acima.
a) A delimitação dos três planos enunciativos de (13) não se dá de forma muito
ostensiva, apesar da existência de um conjunto de recursos que contribui para a
mostração das suas INEs: a operação de instituição da “situação default”, a
desinência verbal dos verbos que caracterizam cada uma das INEs e a operação
metalingüística, orientando o leitor para a configuração das INEs.
1) A instituição do plano a que pertence EN1, instituído em “situação default”, dáse nos mesmos moldes de (12), ou seja, no interior desse plano, o conjunto das
referências é construído pela ativação da desinência verbal e de outros recursos
lingüísticos que possibilitam ao leitor a identificação da relação EN1/Autor.
2) O plano de INE2 é construído no interior da INE1 e traz indícios que orientam o
leitor para a identificação do EN2, instituído pelo verbo “estipular”. A
gramaticalização desse plano enunciativo, construído com marcas dêiticas de
pessoa ( a 3ª pessoa gramatical - ele), de tempo (o morfema do presente
gramatical) e de espaço (a expressão locativa “no Brasil” instituída na INE3),
institui-se pela referência suscitada por essas propriedades gramaticais ativadas
nestes itens. Tais propriedades obrigam o leitor a identificar outros itens, que, no
texto, se configuram como articulados a essa instância.
3) O plano de EN3 é instituído no interior da INE2 caracterizado por uma
utilização ostensiva de recursos lingüísticos, usados nos moldes da GT, que
indiciam a existência de um outro discurso ali referenciado. Esse discurso, além
disso, vem marcado com índices de 3ª pessoa do plural.
b) A existência de duas outras entidades lingüísticas – os parênteses e as aspas - que
funcionam como recursos dêiticos delimitam ostensivamente um discurso “(“Não
pensam no Brasil”)” que é interpretado no interior da INE1 e, que se refere
diretamente ao par EN2-AL2. Como vimos em (12), a instituição desses recursos na
118
INE1 justificam-se em função do próprio discurso, uma vez que indiciam o par
EN2-AL2 como alocutários da INE3. Além disso, referenciam um ponto de vista de
EN1 em relação ao discurso da INE2. Observe que o discurso da INE3, da mesma
forma como ocorre nos exemplos acima, exerce uma função metalingüística, por
introduzir um comentário de EN3 em relação ao discurso da INE2.
c) A ativação das operações gramaticais dos itens lexicais que indiciam as INEs dá-se
concomitantemente à operação do módulo Semântico, em função da construção do
quadro de referência de cada uma das instâncias em que ocorrem e em função da
INE1.
d) A inserção de um discurso indiciado por esses sinais gráficos – as aspas, os
travessões, os parênteses, convencionalmente utilizados na escrita -, revela-nos que
duas ou mais instâncias enunciativas podem ser articuladas entre si, não apenas
através dos elementos tradicionalmente concebidos como coesivos, como os
advérbios, as conjunções e quaisquer outros itens lexicais72, mas também por
recursos de natureza diversa, como os identificados em (12) e (13) acima.
e) A identificação das operações realizadas a partir do módulo Semântico evidencia
como se dá a constituição dos planos enunciativos e a sua configuração e articulação
em termos das instâncias enunciativas. No módulo Gramatical, as propriedades
gramaticais (coesivas) desses recursos semantizam-se para indiciar como se constrói
a articulação semântica – a coerência – entre as instâncias de enunciação e auxiliar
na delimitação dos planos que as compõem.
(14) {EN1“Cada vez mais freqüentes, os [desabafos]]EN2 presidenciais revelam a crise de
um arlequim que aceitou trabalhar para dois senhores.”}}EN1 (T43, L 1-4)
72
Os termos “advérbio” e “conjunção”, usados como elementos coesivos, são, neste momento, tomados
de acordo com a concepção da Gramática Tradicional. Isso se faz necessário para enfatizar a importância
de se retomar a pesquisa lingüística, levando em conta uma abordagem funcional da linguagem, tal qual
têm feito muitos pesquisadores em todo o mundo e, no caso do Brasil, o grupo do Projeto da Gramática
119
Em (14), há dois planos de enunciação, sendo o primeiro, o plano base, caracterizado
por EN1- AL1, ativado em “situação default”. Nessa operação, indiciada pelo sintagma
adverbial “cada vez mais freqüentes”, o autor constrói-se como enunciador “falando”
para um leitor virtual, que se gramaticaliza como AL1 e, ao mesmo tempo, indicia o
discurso da INE2 como um “evento” referenciado no tempo da enunciação. Além disso,
há propriedades gramaticais ativadas na criação do segundo plano de enunciação, no
qual EN2 é instituído como enunciador. A ativação desse plano 2 de enunciação dá-se
através do nome “desabafos”, cujas propriedades gramaticais indiciam a formação de
uma INE2, constituída pelo par EN2, gramaticalizado como “presidente”, e AL2,
gramaticalizado como um leitor virtual, correspondente à sociedade brasileira, e da
desinência verbal de “revelam”. As operações de gramaticalização desses recursos
permitem ao leitor, na ativação do módulo Semântico, articular as instâncias de
enunciação. Nesse sentido, o nome “arlequim” com o qual EN1 denomina o EN2 –
presidente – já se configura como um recurso de articulação das INEs de (14) e instaura
um jogo de sentidos que obriga o leitor a buscar relações entre os dois nomes
empregados no texto: presidente/arlequim. O mesmo se dá na construção da referência
do EN2: a semantização das formas gramaticais “desabafos presidenciais” é que
possibilita a interpretação de EN2 como presidente, cuja referência o situa num
tempo/espaço concomitante ao tempo/espaço em que se situa o EN1, ou seja, ao tempo
da enunciação de (14).
Como se viu acima, na análise dos dados de (11) a (13), em (14):
a) o plano base de constituição de uma instância enunciativa dá-se pela ativação de
uma “situação default”;
b) é no interior da INE1 que se dá a gramaticalização da INE2;
c) é no interior da INE1 que se dá a semantização da INE2, referenciada por EN1;
do Português Falado. Para maiores referências sobre o trabalho desenvolvido por esse grupo de pesquisa,
o leitor pode consultar a bibliografia no final deste trabalho.
120
d) é no interior de cada uma das INEs que se definem as operações realizadas no
módulo semântico para constituição dos planos de enunciação e da sua
articulação.
Em suma, a análise preliminar de (11) a (14) aponta algumas evidências, que não podem
ser desprezadas na análise dos dados.
1) Cada INE constitui um plano enunciativo: nesse sentido, as operações nos módulos
Discursivo, Gramatical e Semântico constituem-se como operações essenciais para a
configuração dos diversos planos que se articulam gramatical e semanticamente. Em
conseqüência disso, cada INE constrói um quadro de referência interna, delimitado
pela construção do par EN–AL que institui um tempo e um espaço próprios. Os
itens lexicais, que ocorrem no interior das INEs, são, portanto, interpretados em
função dessas coordenadas de pessoa/tempo/espaço.
2) As operações realizadas no módulo Discursivo, que são caracterizadas pelo conjunto
de decisões tomadas pelo autor de texto relativas à escolha de Tópicos e
Subtópicos73 e pelas decisões relativas à ativação de INEs, definem-se através da
seleção e da ativação de itens do Léxico e de recursos gramaticais ligados à
realização morfo-fonêmicas dos itens lexicais. Essas operações do módulo
Discursivo são exteriores às CIEs.
3) As operações realizadas no módulo Semântico têm seu domínio delimitado por
INEs. Esse módulo caracteriza-se pela ativação das propriedades semânticas
ativadas dos itens lexicais e de outros recursos lingüísticos, visando a definir as
73
Nesta pesquisa, baseamo-nos nas noções de tópico e subtópico adotadas por Jubran et alii (1993:361).
Segundo os autores, o “tópico decorre de um processo que envolve colaborativamente os participantes do
ato interacional na construção da conversação, assentada num complexo de fatores contextuais, entre os
quais as circunstâncias em que ocorre o intercâmbio verbal, o conhecimento recíproco dos interlocutores,
os conhecimentos partilhados entre eles, sua visão de mundo, o background de cada um em relação ao
que falam, bem como suas pressuposições.” Os autores definem o subtópico como uma das condições
necessárias para se compreender como se dá a organização interna dos tópicos. Assim, “a divisão interna
em tópicos co-constituintes (subtópicos – SbT), situados numa mesma camada de organização tópica, na
medida em que apresentam o mesmo teor de concernência relativamente ao ST (tópico central, mais
abrangente) que lhes é comum.” (Idem, Ibidem, p. 364).
121
instâncias enunciativas instituídas no texto e a caracterizar as articulações
semânticas entre elas;
4) As operações realizadas no módulo Gramatical dependem essencialmente do
processamento dêitico. Nesse módulo, são ativadas as propriedades gramaticais dos
itens selecionados no módulo Discursivo e definidos quais recursos lingüísticos,
além dos lexicais, serão utilizados relativamente à organização e àarticulação
gramatical entre as INEs.
5) A dêixis é fundamental na construção e na articulação dos planos enunciativos. Isso
se deve ao fato de que cabe ao sistema dêitico o papel de indiciar os planos
enunciativos, explicitando as CIEs, de forma que se revelem as condições
envolvidas na situação discursiva de sua produção.
6) A ativação do processamento dêitico, como vimos, está diretamente relacionada à
ativação de itens lexicais. Nesse sentido, a operação de ativação dos recursos que
instituem as “formas de dizer” implicam a ativação desse sistema e revelam a
construção dos planos enunciativos que caracterizam as diversas INEs.
Com base no que apresentamos nesse item, postulamos a necessidade de se fazer um
levantamento dos recursos lingüísticos, que, a exemplo dos citados acima, funcionam
como “shifters” da instituição dos planos enunciativos em que se constroem os
enunciadores de um texto.
3.2. Ativação das “formas de dizer” no processamento discursivo
O estudo das “formas de dizer” é fundamental para se compreender a criação e a
articulação dos planos enunciativos e a configuração das instâncias de enunciação por
eles instituídas no discurso. Como vimos em 3.1, os recursos lingüísticos utilizados
como “shifters” das CIEs são ativados em função de indiciar os enunciadores, as
instâncias enunciativas e as operações de semantização que se definem no âmbito de
cada INE.
122
Propomo-nos, aqui, além de explicitar os diversos recursos implementados como
“formas de dizer”, estabelecer uma classificação do mesmos em função de defini-los e
de identificar as operações por eles desencadeadas no processamento discursivo. Dentre
os recursos identificados encontram-se: 1) a “situação default”; 2) os verbos “dicendi”;
3) “os verbos não-dicendi”; 4) os deverbais; 5) os “sintagmas de elocução”; 6) os
recursos próprios da escrita. De um modo geral, podemos caracterizar esse conjunto
das “formas de dizer” da mesma maneira que Maingueneau (1986) caracteriza o
conjunto dos verbos “dicendi”, o qual “- indica que há uma enunciação e, como tal,
contém de algum modo um verbo de “dizer”; - especifica semanticamente essa
enunciação em diferentes registros” (p. 112).
3.2.1. A ativação da “situação default” e a construção do plano base de interlocução
A “situação default” é uma operação do módulo Discursivo, uma “forma de dizer” que,
geralmente, indicia a instância fundadora do discurso. Ao se construir como enunciador
por este recurso, o autor de textos institui-se diretamente no processamento discursivo, o
que caracteriza o ato de enunciar como um ato de constituição de voz, que institui o
enunciador, o seu tempo e espaço como referências constitutivas do eixo gerador do
discurso e , portanto, definitórios na instituição dos demais planos de enunciação de um
processamento discursivo.
Quando a INE constituinte do plano básico é ativada, pela “situação default”, seu
domínio de referência é construído pelo eu/aqui/agora do autor de textos, no ato de se
construir como enunciador de seu texto.
Como demonstramos em 3.1, gramaticalmente a instância enunciativa que
denominamos INE1 é básica para a construção de outras instâncias de enunciação
ativadas na produção de um texto. As diversas instâncias que a ela se articulam são dela
dependentes, tendo em vista que cada INE é semantizada e gramaticalizada no interior
da INE1. Há de se notar que a aparente independência sintática de INE1 não caracteriza
uma independência semântica em relação às outras INEs, porque o “jogo” de sentidos
123
ativado no módulo Semântico, que nos permite identificar a hierarquia estabelecida
entre as INEs e os diversos planos que as constituem, está diretamente relacionado à
organização discursiva, gramatical e semântica de todas as INEs ativadas na produção
de um texto. Essa hierarquia entre as INEs é ordenada a partir do quadro de referência
explicitado pela construção de EN1 da INE1, que, repetindo, de um modo geral,
institui-se pela utilização da estratégia discursiva a que denominamos “situação
default”.
É necessário ter sempre em mente que essas operações identificadas nos módulos
Gramatical e Semântico só se efetivam a partir de escolhas que definem as operações no
módulo Discursivo. Tais operações implicam decisões de diversos tipos relativas à
situação discursiva e aos fatores que sobre ela atuam e a definem e à ativação do sistema
lexical, visando selecionar e ativar as propriedades gramaticais e semânticas que melhor
se adeqüem às funções a que o discurso se destina.
A título de ilustração, consideremos a ativação, em (15), da “situação default” na CIE, a
partir de operações no módulo Discursivo, explicitando que recursos lexicais são
ativados e como outras instâncias de enunciação caracterizam-se e articulam-se umas
em relação às outras no discurso:
(15) {EN1“Aguarda-se a [sentença]]
EN2
, sou admirador e amigo dos dois, lamento o
entrevero, torço para que tudo termine bem, que um apresente e o outro aceite as
[desculpas]]EN3.” } EN1 (T45, L 32-36)
Em (15), a “situação default” é instituída pelo ato de “pegar a palavra”. Por esse ato, o
autor se constrói como um dos enunciadores instituídos no e pelo discurso. Ao instituir
a INE2, através do sintagma “sentença”, o enunciador da INE1 é gramaticalizado pelo
uso da dêixis explicitada nas desinências dos verbos – “ser”, “lamentar”, “torcer” - que a
ele se referem. Assim, esse enunciador, indiciado pela dêixis de 1ª pessoa do singular,
identifica-se como o autor do texto, cuja referência é construída a partir das informações
gramaticais explicitadas no enunciado. Nesse sentido, o tempo enunciativo, o presente
124
da enunciação, explicita-se por meio das marcas do tempo gramatical, nas desinências
verbais. Essa coincidência entre o tempo do discurso e o tempo gramatical dos
enunciados dilui-se na semantização das formas gramaticais empregadas para explicitálos, pois a orientação primeira a ser considerada na construção da referência temporal
está diretamente relacionada ao momento da enunciação. Dessas operações, que se
caracterizam pela ativação das propriedades dos itens lexicais nos módulos Gramatical e
Semântico, resultam na distinção entre os três planos enunciativos que compõem (15).
Já em relação a (16):
(16) {“Quanto à política cambial, mudou a forma, não o conteúdo. Primeiro houve a
valorização com relação ao dólar. Depois, houve atraso na correção do câmbio
comparada à inflação. Na fase mais recente, a opção do governo é reduzir, ou mesmo
eliminar, a longo prazo, a defasagem cambial.” ]INE1 (T28, L 6-12)
A
“situação
default”
em
(16)
explicita-se
pela
dêixis
temporal,
a
qual
gramaticaliza/semantiza distintas referências temporais, construídas a partir do tempo
zero de INE1. Isso obriga o leitor - o AL1 -, a construir, com base na ativação das
propriedades semânticas dos “shifters” – “mudou”, “primeiro”, “houve”, “é”, “depois”,
“na fase mais recente” e “a longo prazo” -, no módulo semântico, as referências
necessárias para a identificação do jogo de “tempos” construídos no interior de (16), que
é formado por apenas um plano enunciativo. Em conseqüência desse jogo de “tempos”,
o tempo referenciado pela dêixis “na fase mais recente” evidencia-se como distinto do
tempo zero de INE1. Enquanto o tempo da enunciação identifica a INE1 como
referência ao momento do discurso, os tempos construídos no seu interior aparecem
referenciados num contínuo que pode ser interpretado como correspondente ao “tempo”
cronológico.
(17) {INE1“Rio de Janeiro - [Editorial da Folha]]INE2, no último domingo, fez
considerações sobre a dificuldade das novas gerações em consumir os clássicos de
nossa literatura.
125
Apoiado em [pesquisas]INE3 junto a dez escolas, o [editorial]INE4 constatou que
[“aumentam as dificuldades dos alunos em ler autores dos séculos passados que vão
se tornando incompreensíveis”] INE5”.} INE1 (T30, L 1-9)
A “situação default” em (17) é instituída de forma semelhante ao que se verifica em (15)
e (16), considerando-se que o EN1 de cada uma delas se institui pelo mesmo tipo de
recursos de gramaticalização e semantização. No caso de (17), constata-se a existência
de dois sintagmas adverbiais, os quais situam o enunciador da INE1 num tempo e num
espaço referenciados gramaticalmente como “Rio de Janeiro” e “no último domingo”.
Em relação ao exemplo (18), observa-se uma outra forma de construção da “situação
default”:
(18) “{INE1 [ - Edgar, vê lá, hein?] INE2
[O Edgar era famoso pelas suas gafes. Embora as negasse.] INE1’
[- O que é isso? Pode deixar.]INE3
A mulher ficava em pânico. [ Depois, contando para os outros ela, ria. “O
Edgar fez outra das dele.”] Mas na hora ficava em pânico.” } INE1 (T4674, L1-8)
O texto de onde extraímos (18) é um texto tradicionalmente classificado como narrativo.
A sua utilização nesta pesquisa justifica-se pela forma como nele se institui a “situação
default”. Observa-se que, no interior da INE1, construída em “situação default”, há uma
outra instância enunciativa que é ativada pelo autor de texto, cujo enunciador também é
construído em “situação default”. Esse enunciador, que denominamos EN2, é
gramaticalizado/semantizado como uma instância caracterizada por uma voz distinta da
voz autoral. Sua referência é construída por uma sobrecarga do módulo Semântico,
instituindo-se como uma instância de enunciação subordinada à construção dos efeitos
de sentido produzidos pela utilização do parágrafo e do travessão, tendo, por base, a
referência do texto em que se insere.
74
O texto 46 é um texto narrativo, mas consideramos relevante a sua inclusão no corpus desta pesquisa
pelo fato de concebermos a linguagem, em todas as suas formas de expressão, como basicamente
argumentativa e pelo fenômeno descrito em (18).
126
A INE2 distingue-se da INE1, no entanto, com base no que já apresentamos acima: a
INE1 referencia a instância fundadora do discurso, na qual são tomadas, pelo autor de
textos, decisões importantes acerca da ativação dos recursos lingüísticos selecionados e
das operações necessárias, relativas ao processamento discursivo, para a sua
implementação no discurso. Nesse sentido, a INE2 caracteriza-se como um dos recursos
utilizados pelo autor de textos na construção de seu discurso. A voz por ela expressa é a
voz de um enunciador, cujo discurso é referenciado pelo autor como sendo um discurso
citado, definindo-se, pois, como um dos “indivíduos lingüísticos” agenciados pelo autor.
Dentre os “shifters” que indiciam esse EN2, está a utilização de recursos característicos
da escrita: os dois pontos, os travessões, os parágrafos e as aspas duplas. Mais
especificamente, o fato de o texto iniciar-se com um travessão indicia para o leitor que o
discurso começa com um discurso referenciado. Tais recursos são empregados, de
acordo com o que postula a GT, para introduzir no corpo do discurso a “fala” dos
personagens, ou seja, usando a terminologia por nós selecionada, para indiciar as
diversas instâncias de enunciação constituintes de um discurso. Disso depreende-se que
o autor de texto, gramaticalizado e semantizado como o enunciador da INE1, institui,
no discurso, um outro enunciador que, também em “situação default”, é referenciado
como INE2.
Com base nisso, postulamos que o fenômeno verificado em (18) é significativo, pois
indicia a configuração de um subplano no interior da instância básica, instituído também
por uma “situação default”. Tal plano, no entanto, da mesma forma como se verificou
em relação as outras INEs secundárias, está diretamente articulada à INE1.
Observa-se que (15), (16), (17) e (18) indicam-nos que a voz de EN1 se institui sem a
implementação de verbos de dizer, mas coloca sempre em cena outros recursos dêiticos
que a indiciam. (18), no entanto, indicia que uma INE secundária pode, dependendo da
forma lingüística utilizada na sua explicitação, ser instaurada por uma segunda “situação
default”.
127
Nota-se que, semanticamente, é como se resgatássemos, na base de uma “situação
default”, um verbo “dicendi”, indiciado sempre como o agora do discurso, que localiza
o EN1 num tempo/espaço sempre presente, que se renova a cada vez que for enunciado.
Em síntese, podemos identificar a “situação default”, considerando que esse recurso se
define de acordo com as propriedades ativadas nos três módulos lingüísticos.
1) Em relação ao módulo Discursivo, a “situação default” caracteriza-se como o
próprio ato de tomada da palavra por parte do EN1:
a) abriga decisões relacionadas ao momento da discursivização;
b) define, em relação à discursivização, a ativação e seleção do Léxico.
2) Em relação ao módulo Gramatical, esse recurso caracteriza-se como um discurso
sempre presente em relação ao momento da enunciação, tendo em vista que:
a) institui-se como um plano enunciativo básico em que se constrói o EN1;
b) a gramaticalização desse plano enunciativo configura a INE1, instituída pela
“situação default”, como a instância na qual o autor75 do texto escrito se institui
como enunciador do discurso; caracterizando-se, pois, como aquele enunciador
que “funda” o discurso. Tal característica confirma o pressuposto (i) de nossa
pesquisa, a voz autoral pode ser expressa por um enunciador, que se identifica,
explicitamente, como o autor do texto;
c) a gramaticalização do plano da INE1 possibilita a instituição de um outro plano
enunciativo, caracterizado também em “situação default”, no seu interior;
d) a gramaticalização desse segundo plano enunciativo no interior da INE1
configura a INE2 como uma instância na qual o autor do texto institui um outro
indivíduo lingüístico como um enunciador de seu texto. Esse enunciador – EN2
– indicia um discurso que, embora esteja subordinado à instância fundadora do
discurso, não remete à voz autoral. Isso caracteriza, pois, o que identificamos
128
como o pressuposto (ii) de nossa pesquisa, a voz autoral pode estar implícita na
voz de um enunciador outro que não a do autor do texto.
e) a gramaticalização de outros planos enunciativos dá-se em função do plano
básico, normalmente, instituído pela “situação default”;
f) a articulação entre os diferentes planos enunciativos dá-se em função da
localização espacial e temporal definida na implementação do plano base.
3) Em relação ao módulo Semântico, o plano base caracteriza-se como o eixo
referencial da instituição ou referenciação das diversas INEs, definindo-se como:
a) o fator constituinte das diretivas que orientam a construção da referência
espaço/temporal que institui o EN1;
b) o “lugar” da articulação semântica das demais INEs.
Considerando que a construção do plano base dá-se normalmente pela “situação
default”, propomos duas formas de categorizá-la em termos dos recursos lingüísticos
ativados na sua implementação: a pessoalização/impessoalização em “situação default
que serão tratadas no item 3.2.3.
3.2.2. A “situação default” em planos subalternos
A “situação default” é uma estratégia muito utilizada na fala e na escrita, pois o autor de
texto, ao se construir como enunciador da INE1, não precisa avisar ao seu alocutário a
sua intenção de enunciar-se. O fato de “tomar a palavra” já é, em si mesmo, a senha para
que a interlocução se dê. Por isso mesmo, a “situação default” geralmente é a estratégia
utilizada pelos autores de texto na construção do plano base. Mas é possível que tal
estratégia seja utilizada na construção de um plano subalterno, também em “situação
default” como vimos em (18) acima e em (19) abaixo:
(19) { INE1“Quanto mais esquentar o clima político que precede as eleições, mais atenta
deve ficar a [opinião pública]]INE2 para separar o que é [retórica]]INE3 do que é verdade.
75
Note-se que a noção de autor adotada nesta pesquisa está diretamente relacionada à noção de estratégia
textual.
129
A questão dos juros já entrou naquela faixa onde [uns dirão]]INE4 que o Brasil está
pagando um preço escorchante pelo dinheiro, e [outros]]INE5 que as taxas estão caindo,
mas ainda há muito chão pela frente até os juros aterrissarem em patamares
civilizados.} INE1
{
INE1
Foi mais ou menos este o tom do [diálogo]]INE6 aberto entre o ministro da
Fazenda, Pedro Malan, e o novo presidente da Abrasca, Alfried Plogher. A entidade
reúne as sociedades anônimas de capital aberto, com um faturamento de 284 bilhões de
dólares, o que representa cerca de um terço do PIB brasileiro.”} INE1 (T16, L 1-18)
Em (19), o plano subalterno não é interpretado imediatamente pelo leitor. A sua
interpretação como um discurso referenciado só é possível quando o leitor refaz a sua
leitura, reinterpretando-o à luz de outros indícios que o próprio texto lhe fornece., como
o início do segundo parágrafo e a utilização do nome “diálogo”, que indicia a INE6:
“Foi mais ou menos este o tom do diálogo aberto entre os ministro da fazenda (...) e o
novo presidente da Abrasca (...).”
Com base no que se verificou em (18) e (19) sobre a construção dos planos subalternos
através da “situação default” evidencia-se que:
a) a utilização da “situação default”, na construção do planos subalternos, assemelha-se
ao que a GT chama de “Discurso Direto”, que pode ser descrito, como no caso de
(18), ou comentado, como em (19);
b) a utilização da “situação default” em planos subalternos – a configuração da INE2 caracteriza uma relação de subordinação entre esta instância e a instância fundadora
do discurso – a INE1;
c) essa subordinação do plano subalterno ao plano base permite ao leitor interpretar o
discurso da INE2 como um discurso referenciado, ou seja, como um discurso citado,
na perspectiva da GT;
130
d) a utilização da “situação default” permite ao leitor, quando o tempo/espaço não está
explicitamente indiciado, identificar o tempo/espaço da interlocução como o “lugar
do discurso”.
Essas evidências permitem, portanto identificar a utilização da “situação default” com a
constituição do plano base de enunciação.
3.2.3. Pessoalização/impessoalização e a construção de EN1
Conforme explicitamos acima, na CIE são utilizados outros recursos, além da dêixis de
tempo e espaço. Tal fato explicita, também, que a CIE, principalmente na construção da
instância que caracteriza o plano base da enunciação, pode se dar através de um maior
ou menor uso de recursos dêiticos ativados na sua implementação. Isso implica que o
EN1 – e, portanto, a INE1 como a instância fundadora do discurso –, construído pela
“situação default”, é sempre construído como “a pessoa que toma a palavra”, remetendo
sempre a uma primeira pessoa, a um EU, segundo o qual se definem as coordenadas
espaço/temporais que orientam a construção das referências das outras INEs.
O fato de EN1 indiciar-se “mais ou menos presente” nos enunciados constitui uma
forma de modalização do discurso. Nessa perspectiva, a modalização define-se como
uma estratégia discursiva, através da qual o autor de textos explicita, no discurso, um
número maior ou menor de pistas que revelam o seu trabalho de e com a linguagem.
A essas estratégias de modalização do discurso de EN1 denominamos pessoalização e
impessoalização. A modalização permite, pois, a identificação do enunciador instituído
pela “situação default”, quer seja o enunciador do plano básico, quer seja o enunciador
do subplano. Nesse sentido, como dissemos acima, é nos possível identificar ou não a
voz autoral com a voz dos enunciadores materializados no discurso.
a) A pessoalização em “situação default” está diretamente relacionada a uma utilização
mais ostensiva dos recursos dêiticos, no sentido de identificar a voz autoral com a
voz do enunciador que “toma a palavra” e se enuncia como eu. Essa interpretação
pressupõe a inserção de um eu que é referenciado no e pelo discurso, como alguém
131
que “fala algo para alguém”. Vejamos como se dá a estratégia de pessoalização da
“situação default” nos exemplos abaixo:
(20) {
INE1
“É todo dia: a gente abre o jornal e lá está alguém, até mesmo pessoas
progressistas, com preocupações sociais, ao lado dos conservadores de sempre,
repisando o [argumento]]INE2 de que o ensino superior deve ser pago “por quem pode”.
Isso não é novidade. Nos meus 55 anos de vida, me habituei a ver surgirem e
ressurgirem, com a periodicidade de um fenômeno da natureza, [campanhas]]INE3
contra a gratuidade do ensino superior.”}INE1 (T 19, L 1 - 10)
(21) {
INE1
“[[Falou]]INE2 em tom exaltado. Eu estava de bom humor, mas senti
necessidade de esclarecer que já não sou mais jornalista. Fato do passado. Só então,
num [diálogo]]INE3 que se foi acomodando, abrindo espaço para [audiência
recíproca]]INE4, pude [esclarecer]]INE5 meu ponto de vista, afinal aceito.
Entendo que o ideal seria excluírem-se da [lei de imprensa]]INE6, justificável
para tratar de outros ângulos dessa atividade essencial à vida democrática, todos os
[preceitos]]INE7 destinados a tipificar crimes contra a honra e fixar penalidades.
Tratam-se de matérias próprias do Código Penal. Acontece que existem dois aspectos
perturbando o bom critério, que não podem deixar de ser considerados pelo analista
brasileiro.”}INE1 (T 11, L 16-32)
O exemplo (20) indicia o EN1 através de morfemas gramaticais de 1ª pessoa presentes
em diferentes itens lexicais, tais como o uso de pronomes pessoais e a desinência verbal.
Quanto ao tempo/espaço enunciativo, a desinência modo-temporal das formas verbais,
gramaticalizadas na forma do presente localizam o discurso atribuído a EN1 como o
tempo/espaço referenciado no presente da enunciação. Apesar de, num primeiro
momento, esse enunciador ter sido indiciado por meio do sintagma “a gente”, que é uma
forma lingüística que referencia a uma pluralidade de sujeitos, esse item semantiza um
“eu” nele incluso e que coincide com o eu gramaticalizado nos itens” - “meus”, “me” - e
na desinência do verbo “habituei”. Ao lado dessas formas, há outras que indiciam o
132
tempo/espaço de EN1 – “é todo dia”, “lá”, “de sempre”, “a periodicidade de um
fenômeno da natureza” fornecem indícios que referenciam a instância geradora do
discurso, situando-a num tempo e num lugar definidos, em conseqüência das operações
de gramaticalização/semantização.
Devido às operações nos módulos Gramatical e Semântico, nota-se que, por exemplo
em (20), o verbo “falar” não se refere ao EN1. Outros índices contribuem para que o
leitor construa as referências que remetem a esse enunciador da “situação default”,
identificando-o com a voz autoral subjacente ao discurso de EN1, instituído por
“shifters” de 1ª pessoa (“eu”, “meu”). Além disso, a existência de diferentes desinências
modo-temporais nos verbos “estava”, “senti”, “sou”, “pude” e nas formas adverbiais
“já”, “só então” que indiciam esse enunciador, institui um jogo de “tempos”, os quais
permitem ao leitor referenciar múltiplos “tempos” enunciativos na constituição da
INE1.
Em relação a (22), por exemplo, a referência ao EN1 está indiciada principalmente
através da gramaticalização e semantização do “agora” e dos morfemas de presente nos
verbos que situam a instância fundadora do discurso num tempo/espaço equivalente ao
aqui/agora da enunciação. A utilização de outros sintagmas adverbiais na construção das
outras INEs explicitam um jogo de “tempos” diretamente vinculado à interpretação da
referência temporal instituída na INE1: “em 1998”, “undécima hora”, “há tempos”, “até
abril”, “como sempre”, “depois”, “enquanto”, “até quando”, “em 1994”.
Ao lado da utilização desses recursos, ressaltamos a função da interrogação, delimitada
pelos travessões “- o candidato deles em 1994 chamava-se Orestes Quércia, lembramse? –”, e de um conjunto de sintagmas adjetivos ou adverbiais (trechos sublinhados
abaixo), que qualificam as INEs, referenciando o ponto de vista do EN1 em relação ao
discurso da INE referenciada.
133
(23) {“Soam extemporâneas e inúteis as [reclamações] INE2 dos ministros candidatos
em 1998, que resolveram [explicitar publicamente]
INE3
o desejo de desfrutar das
benesses dos cargos até a undécima hora. [Repetem] INE4 às escâncaras agora o que há
tempos [vinham dizendo] INE5 nos bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até
abril, como já [avisou] INE6 o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla,
geral e irrestrita.
Como sempre, o apego assumido e sem constrangimentos parte com mais força
do PMDB, partido cujas lideranças, à falta de projetos unitários e consistentes para o
país, dedicam-se com afinco à administração de suas conveniências individuais.
Nisso, perdem o pé da realidade. Agora, por exemplo, a ala governista [diz] INE7
que só sai do Ministério depois que pela mesma porta passar o último tucano, enquanto
o presidente pemedebista [vocifera] INE8 que só reúne o partido depois que os ministros
saírem do governo.
Esquecem-se de que não cabe a nenhum deles decidir até quando, ou mesmo se,
ficam num governo que não só não ajudaram a eleger - o candidato deles em 1994
chamava-se Orestes Quércia, lembram-se? - como hesitam em apoiar. (...)”}INE1 (T 9,
L 1-14)
A esses recursos lingüísticos empregados para especificar ou qualificar as INEs
denominaremos “descrições de elocução”, por introduzirem, a título de modalização, o
ponto de vista do enunciador da INE1 a respeito dos enunciadores por ele referenciados.
Essas “descrições de elocução” definem-se como estratégias resultantes de operações de
gramaticalização e semantização que explicitam o processamento discursivo de sua
produção. Vejamos, a seguir, esse tipo de modalização:
(24) {INE1 “Um dos elementos que mais freqüentemente utiliza o homem, tanto para
fazer-se entender como para estabelecer uma relação harmônica com seus semelhantes,
é a [palavra]]INE2 , condutora do pensamento individual e que contribui em muito para a
formação do próprio conceito.
134
A importância que ela reveste, ou melhor, assume na vida, evidencia-se em
múltiplas formas, e quanto mais respeitável é a posição do que [fala] INE3, tanto mais
confiança inspira sua [palavra]]INE4, a qual, não sofrendo modificação alguma, se
manterá como elemento de juízo para prestigiar o conceito de quem a [emite]]INE5.
Quando a [palavra]]INE6 é pronunciada para manifestar uma convicção, definir
uma atividade ou uma situação, ou expressar um sentimento, e leva em si o sadio
propósito de oferecer aos demais a oportunidade de conhecer o pensamento que a
anima, tende sempre a superar o conceito de quem a [emite]INE7. Outra coisa acontece
com [aquela]INE8 que é pronunciada com a intenção de enganar ou que surge sem
reflexão, num impulso fugaz, porquanto costuma afetar ou ferir aos que [a ouvem]INE9,
ainda que nada tenham a ver com a mesma, pois só o fato de [escutá-la]INE10 causa-lhes
mal-estar, contribuindo, conseqüentemente, para que se elabore um juízo adverso a
respeito de quem [a expressou. ]INE11 (...)
Quem pensa bem se esforça em [falar]INE12 melhor. Benéfico resultará, então,
aprender a sincronizar os movimentos da mente com a [expressão oral]INE13, de modo
que a [palavra]]INE14 seja a condutora fiel do pensamento. Isso fará com que a
[palavra]]INE15 se revista de interesse, contrariamente ao que ocorre quando se
[fala]INE16 sem pensar no que [se diz]INE17, pois, neste caso, a [palavra]]INE18 costuma
parecer vazia ou sem sentido.
Se se quisesse apresentar uma imagem que refletisse com mais convívio colorido
o mecanismo da [palavra]]INE19, haveria que imaginá-la como um vagão que, à medida
que passa pelo conduto vocal, é preenchido com o pensamento que formará seu
conteúdo. (...)”}INE1 (T 10, L 1-25)
(24) evidencia as seguintes “descrições de elocução” introduzidas pelo EN1 como
determinantes de algumas das INEs que compõem o seu enunciado:
a) “condutora do pensamento individual e que contribui em muito para a formação do
próprio conceito” qualifica a INE2;
b) “a posição do que fala” qualifica a INE3;
135
c) “a qual, não sofrendo modificação alguma, se manterá como elemento de juízo”
qualifica a INE4;
d) “de quem a emite” - (quem emite a palavra) – qualifica a INE5;
e) “é pronunciada para manifestar uma convicção, definir uma atividade ou uma
situação, ou expressar um sentimento, e leva em si o sadio propósito de oferecer aos
demais a oportunidade de conhecer o pensamento” qualifica a INE6;
f)
“de quem a emite” - quem emite a palavra – qualifica a INE7;
g) “que é pronunciada com a intenção de enganar ou que surge sem reflexão” qualifica
a INE8;
h) “aos que a ouvem” – aqueles que ouvem a palavra - qualifica a INE9, etc..
b) A impessoalização em “situação default” está diretamente relacionada à construção,
também em “situação default”, de um subplano de enunciação no interior da INE1.
Como vimos em 3.2.1 e 3.2.2 acima, a instituição de uma “situação default” a partir
de uma outra “situação default” configura-se como uma estratégia discursiva
empregada pelo autor, visando à construção de uma instância enunciativa, cujo
enunciador não se identifica gramaticalmente com a voz autoral. Além disso, essa
”situação default” – que institui a INE2 - é gramaticalizada e semantizada como um
discurso
referenciado.
Essa
forma
de
modalização
é
menos
indiciada
gramaticalmente, o que obriga o leitor a basear-se em índices de outras instâncias
enunciativas para reinterpretá-la e construir o quadro de referenciação dessa INE.
É fundamental observar como se dá, em (25) a construção dessa segunda estratégia de
modalização:
(25) {INE1 “Segundo o [noticiário]]INE2 da semana passada, a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) estaria estudando a adoção de um “selo social” em
todos os países como garantia do cumprimento de padrões trabalhistas mínimos..
Essa é uma nova [versão]]INE3 da [“cláusula social” ]INE4 que muitas nações
desenvolvidas pretenderam aprovar no âmbito da Organização Mundial do Comércio
136
(OMC). Se adotada, a OMC ficaria com plenos poderes para aplicar [sanções]]INE5
comerciais aos violadores dos padrões trabalhistas.
A [tese]]INE6 vem revestida de [argumentos]]INE7 humanitários em favor dos
povos mais pobres. Mas como no campo dos negócios os países ricos jamais
[defenderam]]INE8 estratégias desse tipo, o seu repentino surto de generosidade nos76
põe com a pulga atrás da orelha. O que há por baixo disso?” }INE1 ( T 1, L 1-20)
Há, no exemplo acima, uma referência explícita à caracterização da INE2, já no início
do discurso, pela enunciação do sintagma “segundo” que a referencia pelo nome
“noticiário”, instituído como EN2. A utilização do termo “segundo” obriga o leitor a
interpretar o discurso contido em (25) como um discurso produzido pelo autor para
referenciar uma situação de interlocução que, embora distinta do plano da
discursivização a que pertence a voz autoral, caracteriza-se como um desdobramento
desse plano. Em outras palavras, o autor, em “situação default”, constitui-se como
enunciador e ativa um segundo “indivíduo lingüístico” – INE2 -, também em “situação
default”, a quem cabe reportar o discurso do enunciador da INE2 e das demais INEs.
Conjuntamente com a utilização de “segundo”, outros recursos lingüísticos indiciam a
INE2 como uma instância instituída com base num discurso referenciado (ou reportado,
como postula a GT): um sintagma adverbial “da semana passada”, formas verbais
empregadas no futuro do pretérito – “estaria estudando”, “pretenderam aprovar”,
“ficaria” - e no presente - “vem revestida”, “põe” – e a utilização dos pronomes
demonstrativos – “desse”, “disso” - com as quais são indiciadas outras instâncias
enunciativas de (25). A gramaticalização e semantização dessas formas lingüísticas
explicitam essa instância e, ao mesmo tempo, a INE1.
O “nos” referencia esse segundo “indivíduo lingüístico” – o INE2– porque explicita um
eu que, incluso nessa forma plural, é construído lingüisticamente no texto, exigindo do
leitor um esforço maior no sentido de construir tal referência. O uso do plural
76
Esta forma gramatical – o “nos” – não indicia o EN1. De acordo com Cunha (1972), este plural
caracteriza o “plural de modéstia”, em que a 1ª pessoa do plural é empregada como correspondente à
primeira pessoa do singular.
137
interpretado como equivalente ao singular caracteriza o que o Cunha (1972:286) chama
de “plural majestático” ou “plural de modéstia”.
A gramaticalização e semantização dessa forma de plural, partindo do pressuposto de
que a sua utilização tem como fim referenciar um “eu”, obriga o leitor, ao semantizá-lo
no interior da INE2, reinterpretá-lo como referente ao EN2. Essa referência a EN2
expressa pelo “plural de modéstia” está presente em outros trechos do texto 1, como
ilustra (26) em que a gramaticalização das formas de 1ª pessoa do singular indiciadas
nas formas pronominais e verbais, ao serem semantizadas explicitam a referência ao
“eu”, instituído em “situação default”.
(26) {INE1Se o propósito é afastar o Brasil do comércio internacional, o tiro é certeiro.
Mas se o objetivo é, de fato, melhorar nossas condições de trabalho, não há saída:
precisamos produzir mais, crescer depressa e exportar muito.
Esse é um daqueles temas ingratos para ser abordado, pois, no seu [debate]]INE2,
os países ricos tendem a ficar com a fama de defensores dos nossos trabalhadores e
nós corremos o risco de ficar sem o que fazer com uma monumental legião de
desempregados.
Afinal, será que o Primeiro Mundo está com medo do Terceiro Mundo? É isso
que a OIT pretende?”}INE1 (T 1, L 66 - 80)
Os exemplos (20) – (26) ilustram que a modalização pode ser estudada do ponto de vista
discursivo como uma estratégia de que se valem os autores de textos na construção do
seu discurso. Nesse sentido, a modalização implica o agenciamento de recursos,
utilizados, por esses autores, na gramaticalização e semantização de “indivíduos
lingüísticos”, visando à construção de seus enunciadores e enunciatários, bem como a
construção de seus pontos de vista, seu maior ou menor “distanciamento” em relação
aos conteúdos referenciados
3.3. Verbos “dicendi”
138
Por verbos “dicendi” designaremos todos os verbos que diretamente referenciam uma
elocução. Nessa categoria estão, além do “dizer”, os seguintes verbos: afirmar, citar,
comentar, explicar, expor, pronunciar, falar, eleger, nomear, chamar, denominar,
designar, determinar, advertir, fixar, postular, advertir, notificar, avisar, aventar,
murmurar, sussurrar, resmungar e outros, com sentido correspondente.
Os verbos “dicendi” desempenham uma importante função como recursos utilizados
para CIEs. Assim, o postulado da Gramática Tradicional sobre o empregos dos
chamados verbos “dicendi” confirma-se, mas cabe-nos acrescentar que tais verbos
indiciam a voz de um enunciador que pertence a uma instância de enunciação distinta
daquela a que pertence a voz fundadora do discurso. Esse tipo de verbo é utilizado pelo
falante77 que institui a INE1, indiciando a instauração de uma nova instância de
enunciação. Nos enunciados abaixo, ilustramos várias ocorrências de situações de
comunicação em que se percebe a atuação de um falante que, ao instituir-se como
enunciador, institui outros “actores” que irão compor uma determinada cena
enunciativa, por meio da ativação de verbos “dicendi”..
(27) {INE1 “[Disse-me]]INE2 ainda Florspanca que o cheque encerrando a dívida já saiu
de sua conta. Mas o documento de quitação só deve chegar às suas mãos dentro de dois
ou três meses.
[Contou-me]]INE3 também que, outro dia, na fila da Caixa, uma funcionária
corpo mole [mandou]]INE4 uma pobre cliente tirar [“xerox autenticado” ]INE5.”}INE1 (T
32, L 43-51)
(28) {INE1 “Impressiona o grau de desconhecimento do real funcionamento do mercado
de trabalho no Brasil por aqueles que, em vez de [informar, pretendem denunciar]]INE2
os elementos de rigidez impostos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) num
ambiente de grande escassez de empregos.”}INE1 (T37, L 1-7)
(29) {INE1“Em vez de [propor]INE2 acabar com as poucas oportunidades de
fortalecimento dos interesses dos trabalhadores, os mercadores de ilusão devessem
139
refletir mais e melhor sobre as realidades do mercado de trabalho no Brasil.”}INE1
(T37, L 79 - 84)
(30) { INE1“[Repetem]INE2 às escâncaras agora o que há tempos [vinham dizendo]INE3
nos bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até abril, como já [avisou]INE4 o
presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla e irrestrita.”}INE1 (T9, L 35)*
(31) {INE1“Virgílio [explica]INE2 a sutileza dessa operação moral com o seu famoso
“tempora mutantur” - os tempos mudam.”}INE1 (T45, L6-8)
(32) {INE1 “Stendhal [narra]INE2 um caso espantoso.”}INE1 (T45, L 16)
(33) {“Como já [disse]INE2 o presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho, [“toda lei de
imprensa é nefasta” INE3].”}INE1 (T18, L 20-22)
Os exemplos acima ilustram a instauração de, no mínimo, duas instâncias de
enunciação, como é o caso de (27): o EN1, através do verbo “dizer” insere EN2 a quem
é atribuído o discurso instituído no interior da INE1, devidamente colocado entre aspas
– “xerox autenticado” -. No caso de (30), observa-se que, embora tenhamos em INE2
como interlocutores, um enunciador identificado lingüisticamente por uma forma de 3ª
pessoa do plural, esse mesmo enunciador indicia-se em INE3 pelo sintagma verbal
“vinham dizendo” e que, no eixo das coordenadas espaço-temporais, tem como
referência um tempo e um espaço anterior ao tempo/espaço da INE2. A INE4, por sua
vez, remete-nos a um recuo no eixo tempo/espacial da INE1, mas posterior aos
tempos/espaços definidos nas INE3 e INE4.
77
Tendo em vista a dimensão discursiva, com que operamos, o termo falante pode ser empregado como
correspondente ao termo autor de textos.
*
Interessa-nos, neste momento específico, ilustrar a instauração de instâncias enunciativas a partir dos
verbos “dicendi”. Por isso não nos referimos às outras instâncias presentes nos exemplos alistados de (25)
a (31).
140
Maingueneau (1986) distingue duas classes de verbos “dicendi”, levando em conta a
situação de enunciação: uma classe é a dos verbos que “têm um valor descritivo”, como
repetir, anunciar, responder, etc.; a outra classe engloba os verbos que “implicam um
julgamento de valor do enunciador quanto ao caráter bom/mau ou verdadeiro/falso do
enunciado”. Nessa classe, estão os verbos reprovar, ousar, afirmar, lamentar, etc.
Maingueneau (1986, p. 112) ilustra essa divisão em classe dos verbos “dicendi”, usando
um quadro proposto por C. Kerbat-Orecchioni78:
Informações
descritivas
(murmurar)
apreciativas
julgamento atribuído
ao enunciador do
discurso citado
(bom/mau)
bom/mau
(lamentar)
(vociferar)
julgamento atribuído
ao relator
verdadeiro/falso
(ousar, afirmar)
FIGURA 9 - A figura reproduz a divisão em classe dos verbos “dicendi”, segundo
proposta de Kerbat-Orecchione. Na sua perspectiva, tais verbos se dividem em:
descritivos, apreciativos (os que encerram julgamentos atribuídos a enunciadores
distintos de duas instâncias também distintas de interlocução.
Fiorin (1996, p.81) amplia essa subdivisão proposta por Maingueneau (1986). Segundo
Fiorin, os verbos descritivos se subdividem em:
78
L’ÉNONCIATION DE LA SUBJECTIVITÉ DANS LE LANGAGE. Paris: A.Colin, 1980, p.115.
141
1) “verbos que situam o discurso reportado na cronologia discursiva”, a saber:
concluir, repetir, responder;
2) “os que explicitam a força ilocucionária do ato enunciativo”, como suplicar,
prometer;
3) “os que indicam o tipo do discurso reportado”, como contar, relatar, demonstrar;
4) “os que especificam o modo de realização fônica do enunciado”, como gritar,
murmurar;
5) “os que indicam uma qualidade não-fônica do enunciado, uma qualidade do
enunciador”, como o verbo obtemperar, retrucar, redargüir, admitir. Fiorin postula
ainda que tais verbos “impõem ao enunciatário a visão do enunciador sobre o
discurso reportado.”(Op. cit., p. 80).
Ilustramos, a seguir, no item 3.3.1, com trechos do nosso corpus, a subdivisão dos
verbos “dicendi” proposta por Fiorin (op. cit.), redefinindo-a em função de inserir o
“discurso narrado”, na perspectiva de análise aqui adotada, como uma nova instância
discursiva. Em decorrência disso, os verbos que os introduzem classificam-se como
verbos que tomam como referência uma outra instância de enunciação.
3.3.1 . Verbos “dicendi” na referenciação de INEs
Os verbos “dicendi” são ativados no módulo discursivo, visando a articular instâncias de
enunciação. Ao serem ativadas suas propriedades gramaticais e semânticas,
operacionalizadas através dos módulos Gramatical e Semântico, esses verbos articulam
instâncias de enunciação, podendo, também, denotar a forma de sua articulação no
discurso.
Contrariamente ao que aconteceu na ativação de INEs pela “situação default”, os verbos
“dicendi” sempre obrigam o AL1 a buscar a referência da INE por eles criada em um
plano enunciativo diferente do plano básico. Assim, podemos afirmar que as cinco
categorias de Fiorin se reduzem à primeira, pois as outras quatro também, citando as
palavras do próprio autor, “situam o discurso reportado na cronologia discursiva”. Em
142
outras palavras, todas as categorias propostas por Fiorin constituem-se de verbos que
articulam INEs num plano básico já estabelecido. Esses verbos, que o autor
subcategoriza em 2), 3), 4) e 5), além de cumprir essa tarefa, denotam a modalidade da
articulação de INEs, como ilustram os exemplos (34)-(37):
(34) {INE1“[Repetem]INE2 às escancaras agora que há tempos [vinham] INE3 dizendo nos
bastidores: ...”} INE1 (T9, L 3-4)
(35) {INE1“E [repetiu]INE2 o que [havia dito] INE3 em artigo publicado simultaneamente
em 50 jornais de 30 países: [“O Brasil está pronto para exercer papel de peso na
ordem econômica do futuro”.]INE4”}INE1 (T12, L 9-13)
(36) {INE1 “Nada se [questiona]INE2 quanto à novidade da tecnologia, quanto à
atividade inventiva.”}INE1 (T38, L 75-77)
(37) {
INE1
“Na busca de esotéricos significados, o psicotécnico [questiona]INE2
Garrincha. que [arremata]INE3 com a simplicidade de um de seus dribles pela direita:
[“Não quer dizer nada, não, doutor. É só o Quarentinha”.]INE4”}INE1 (T 35, L 68-72)
Todos os verbos “dicendi”, destacados nesse conjunto de exemplos, criam e articulam
INEs dentro de um plano básico de uma INE criada por “situação default”. Assim, os
tipos de criação e articulação de planos enunciativos reduzem-se a dois:
a) pela ativação de “situação default”;
b) pela ativação de um item lexical, no caso, um verbo “dicendi”.
Se quisermos estabelecer distinções entre os verbos “dicendi”, devemos fazê-lo na
perspectiva de estudo da modalização. Tal estudo – que não é objetivo deste trabalho –
englobaria a modalização da operacionalização dos dois tipos de CIEs: o da “situação
default”, como sugerimos em 3.2.3, e o da CIEs em planos subalternos ao plano básico,
como é o caso dos planos instituídos pela ativação de todos os verbos “dicendi”.
143
Convém atentar para o fato de que verbos como “concluir”, por exemplo, podem,
dependendo do contexto em que são empregados, não funcionar como verbos “dicendi”.
É o que se verifica nos exemplos alistados abaixo:
(38) {INE1“Como se [diz]INE2 que há no Estado 350 mil firmas de pequeno porte, podese concluir que, aprovado o projeto, em breve prazo elas poderão criar pelo menos 350
mil novos empregos, um por empresa.”} INE1 (T13. L 33-37)
(39) {INE1“Isso é o que se pode concluir das análises realizadas a partir dos dados
apresentados pelo [gráfico] INE2...”} INE1 (T37, L 51-54)
3.3.2. Verbos “dicendi” e modalização dos tipos de discurso
Se fôssemos estudar especificamente a modalização da CIEs, teríamos de considerar os
dois tipos de CIEs, como afirmamos acima. Este é um estudo que foge ao âmbito de
nosso trabalho. Por isso, apenas para ilustrar o fenômeno, consideraremos os verbos que
constituem as quatro últimas categorias propostas por Fiorin: os “verbos que explicitam
a força ilocucionária do ato enunciativo”, os verbos que “indicam o tipo do discurso
reportado”, os verbos que “especificam o modo de realização fônica do enunciado” e
os verbos “que indicam uma qualidade do enunciador”. Entendemos que esses verbos
funcionam, no discurso, como todos os verbos “dicendi”, apenas modalizando as INEs
que criam de uma forma mais explícita:
(40) {INE1“... como já [avisou] INE2 o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser
ampla, geral e irrestrita.”}INE1 (T9, L 4-5)
O verbo “avisou” pode ser substituído pelos verbos que Fiorin inclui em sua primeira
categoria – “concluir”, “repetir”, “responder” – sem que se altere a configuração formal
de (40).
144
É relevante notar que, em (41) (42) e (43), abaixo, temos verbos que seriam
classificados como performativos pela Teoria dos Atos de Fala:
(41) {INE1“Em vez de [propor]INE1 acabar com as poucas oportunidades de
fortalecimento dos interesses dos trabalhadores, ...”} INE1 (T37, L 79-81)
(42) {INE1“E não será o PMDB (...) que vai [determinar] INE1 os rumos das orientações
estratégicas do presidente em busca da reeleição.” (T9, L 19-20)
(43) {INE1“Imobilizá-la é [decretar]INE2 a morte da Petrobras, pois seus competidores
farão o que ela está fazendo.” (T25. L 32-34)
O fato de esses verbos serem classificados como performativos não implica,
necessariamente, sua reclassificação por critérios sintáticos. É esse tipo de raciocínio
que estamos adotando aqui, ao abandonar a subclassificação de Fiorin. Em outras
palavras, estamos incluindo todos os verbos “dicendi” numa mesma classe por critérios
formais: todos eles se contrapõem à CIEs instituídas pelas “situação default”, criando,
por sua vez, CIEs em planos subalternos ao plano básico.
As suas nuances semânticas seriam, segundo essa nossa proposta, consideradas numa
outra perspectiva de estudo, a da modalização no módulo Semântico. Exemplificamos
em (44), abaixo, como o verbo “dizer”, um “dicendi por excelência, é modalizado por
toda a expressão sublinhada, e isso não se configura como um motivo para incluí-lo na
subcategorização 2 de Fiorin, ou seja, como os verbos “que explicitam a força
ilocucionária do ato enunciativo” do tipo de suplicar, prometer.
(44) {INE1“O cronista e escritor Roberto Drumond (...) vem-no [louvando]INE2
muito.”}INE1 (T40, L 73-6)
Nessa perspectiva, propomos que se adote uma classificação dos verbos “dicendi” por
critérios formais, como afirmamos acima, porque todos eles criam INEs e as articulam
145
num plano subalterno ao plano discursivo básico, como se pode constatar nos exemplos
abaixo. Além disso, respeitando-se, é óbvio, as especificidades semânticas de cada
verbo, propomos considerar o seu emprego, no discurso, como uma questão de
modalização discursiva.
(45) {INE1“ [“Essa é a tarefa”] INE2, [disse] INE3 o ministro da Fazenda, referindo-se ao
trabalho que ainda há a fazer para cortar gastos, reduzir custos...”}INE1 ( T16, L 4244)
(46) {INE1“ ... [recomenda-se] INE2 que se empenhem pelas reformas tributárias e fiscais
(...)”}INE1 (T19, L 87 - 88)
(47) {INE1“Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, [dirigese]INE2 ao sargento que, por sua vez, [se reporta] INE3 ao oficial do dia, que enviará ou
não a viatura para levá-lo ao quartel.”}INE1 (T14. L 28-33)
(48) {INE1“São muitos os que [condenam] INE2 essa liberdade. Consideram sacrílegas
essas versões.”} INE1 (T 31. L 42-4)
(49) {INE1 “Durante os 21 anos seguintes era proibido [mencionar]INE2 seu nome.”}INE1
(T44, L 15-16)
(50) {INE1“... e [vociferem]INE2 em favor do projeto de taxação das grandes heranças e
fortunas.”}INE1 (T19, L 89-92)
(51) {INE1“[“Todos os meses era obrigada a ir pessoalmente a uma agência da Caixa
fazer o levantamento do número do contrato para efetuar o pagamento”]INE2,
[resmungou] INE3.”}INE1 (T32, L 33-36)
(52) {INE1“[Queixa-se]INE2 o nobre juiz de que [“continua o processo de
estrangulamento e destruição do judiciário, no contexto de uma opinião pública
146
vulnerável pela ação da mídia, de tal ordem que sua noção de justiça se transforma
rapidamente em versão de justiceiro”]INE3, com todas as negativas ao [“due process of
law”] INE4, preceito natural entre os povos civilizados.”} INE1 (T42, L 15-22)
(53) {INE1“A questão grave não é o interesse dos competidores, como a Dow Chemical,
por exemplo, que [reclamou]INE2.”}INE1 (T25, L 40-42)
(54) {INE1“Não há, portanto, como [negar]INE2 que a trajetória de crescimento
moderado [admitida] INE3 pela atual política econômica (...) [cobra]INE4 um alto preço
do ponto de vista social.”} INE1 (T26, L 13-17)
(55) {INE1“FHC [anunciou] INE2 o fim da Era Vargas. Em 1945, [decretaram] INE3 o fim
de Vargas quando ele partiu para o exílio em São Borja.”} INE1 (T44, L 1-3)
(56) {INE1 “Impressiona o grau de desconhecimento do real funcionamento do mercado
de trabalho no Brasil por aqueles que (...) pretendem [denunciar]INE2 os elementos de
rigidez impostos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) num ambiente de
grande escassez de empregos.”}INE1 (T 37, L 1-7)
(57) {INE1“... ele também [prometeu]INE2 servir a outro senhor, o qual pode ser
esquematicamente representado pelas elites dominantes na sociedade brasileira desde
1500, substituindo-se o português pela globalização.”}INE1 (T43, L 10 -15)
(58) {INE1“Antes de existir a figura e a função de arlequim, já o evangelho
[advertia]INE1 que não se pode servir a dois senhores.”}INE1 (T43, L 10 -15)
3.4. Verbos não-dicendi
O processo de gramaticalização das INEs pode ser ativado, também, por verbos nãodicendi do tipo que Maingueneau denomina verbos “desviados” de seu contexto original
para definir uma situação de locução. Fiorin (op. cit.) chamou a esse tipo de verbo de
147
“verbos não-elocutários”79, reconhecendo sob essa denominação duas subclasses: os
verbos que instrumentalizam o dictum e os “verbos circunstanciais80”
Tais subclasses englobariam, segundo Fiorin:
a) os verbos que indicam ações realizadas mediante um instrumento, como é o caso de
“atacar” em (59):
(59) {INE1“... o ex-ministro continua enredado numa costura de alianças que (...)
chocam-se com [a própria virulência verbal com que ataca]INE2 a “barganha
politiqueira dos outros”.”} INE1 (T24, L 7-12)
Importa acentuar que a categorização proposta por Fiorin sobre esses verbos só se
justifica se os considerarmos em relação ao contexto discursivo em que se instituem,
pois, como se observa em (59), a INE2 é referenciada por toda a expressão destacada e
não, apenas, pelo verbo “atacar”.
Esses verbos, de acordo com Fiorin, devido ao significado que lhes é inerente, quando
utilizados numa situação discursiva como equivalente a um “dicendi”, imprimem, no
discurso, uma propriedade descritiva, ou seja, apresentam algumas das características
que definem a atividade discursiva. Mas, como se constata em (59), não podemos apelar
para “o significado inerente do verbo” para explicar a construção dessa INE2, uma vez
que essa instância é referenciada por toda a expressão, principalmente, pelo adjetivo
“verbal”, que, se extraído do enunciado, destrói a INE2.
79
Oliveira et alii postulam que, além dos verbos de locução, há outros - os chamados não elocutários que são utilizados como verbos introdutores do discurso (1985, p.91-6).
80
Para ilustrar as subclasses dos verbos não-elocutários, Fiorin (1996, p 80) utiliza os verbos ameaçar e
inclinar, respectivamente a) e b) citados acima. São os seguintes os exemplos do autor:
“Wanderley de Mendonça chegou ao ponto de ameaçar:
- Estou disposto a derrubar esse jumento de estátua eqüestre.”
e
“O capitão se inclinou interessado:
- É isso que eu dizia.”.
148
Continuamos, pois, optando por um critério formal, para identificar e caracterizar os
recursos lingüísticos implementados para a CIE. E, sendo assim, temos que admitir que
a CIE pode ser ativada por elementos lingüísticos outros, diferentes dos itens lexicais,
como é o caso de (59), cuja INE2 foi construída por um sintagma prepositivo “com a
própria virulência verbal com que ataca a “barganha politiqueira dos outros”.
b) Segundo Fiorin, uma outra classe de verbos não “dicendi” seria constituída pelos
verbos que expressam ação ou processo que se realizam ao mesmo tempo que o ato
de falar, como “inclinou” em (60), que é um exemplo dado por esse autor.É
interessante observar que Fiorin, ao ressaltar essa propriedade dos verbos “que
expressam ação”, apoia-se na utilização de recursos próprios da escrita - os dois
pontos, o parágrafo e o travessão - para ilustrar que a ação expressa por verbos
desse tipo relaciona-se diretamente com o discurso, como ilustra o referido exemplo
desse autor (1996, p.: 80):
(60) {INE1“O capitão se inclinou interessado:
[- É isso que eu dizia.”] INE2.} INE1
Convém ressaltar, no entanto que, numa visão imanentista de “sentido”, poderíamos,
sim, dizer, que o verbo “inclinar”, empregado no enunciado acima, descreve uma ação
que acontece ao mesmo tempo que o dizer, mas ele não caracteriza a enunciação
atribuída ao enunciador do verbo dicendi (o verbo de dizer). Isso porque um ato físico,
como o caracterizado pelo verbo “inclinou” neste exemplo, não influencia na
significação da situação de fala, tal qual proposto por Fiorin (1996)81.
Continuamos defendendo a idéia de que, para explicar as CIEs, temos de contar com
fatores contextuais, considerando níveis estruturais mais altos do que o dos itens
lexicais. Nesse sentido, contrapomos à tese do autor também o exemplo (61):
81
Após a nossa explanação das “formas de dizer”, apresentaremos uma proposta de reagrupamento dos
verbos “dicendi” e, é claro, em conseqüência da abordagem dada a tais formas de dizer, dos verbos nãodicendi.
149
(61) {INE1“Segundo o advogado, a “dó” foi expressada ao deixar o nome de Mendonça
de Barros fora da [redação]INE2 da ação. [“Não incluí seu nome por bondade
(...)”]INE3”}INE1 (T8, L 17-24)
Em (61), a INE2 é ativada pelo nome “redação” que, em nossa proposta, funciona como
uma das “formas de dizer”, ativa gramatical e semanticamente propriedades inerentes
tanto do verbo “incluir” como do nome “redação”, obtendo-se um efeito de sentido, que
poderia ser descrito pela noção de contigüidade entre o dizer e o processo físico descrito
pelo dito.
Continuamos, no entanto, a nos apoiar em critérios formais para proceder a
identificação e explicação das CIEs. Isso porque a gramaticalização e semantização de
“incluir” dentro da INE2 só se institui em relação à gramaticalização/semantização da
INE instituída em “situação default”, o que obriga o AL1 a recorrer a todo o texto para
definir em função de que se articulam os itens lexicais que o compõem: no caso de (61),
associar “deixar de fora da redação” a “não incluí seu nome...”
3.5. Deverbais
Por deverbais entendem-se todos os nomes - substantivos ou adjetivos - que possuem
na língua um correlato de origem verbal. Entre os deverbais, alguns são correlatos de
verbos “dicendi”, como conversa, diálogo, sussurro, escritor, escrito, escrita, promessa,
desabafo, confissão, acusação, afirmação etc. Esses itens podem, também, criar e ou
participar da criação e articulação das CIEs, como podemos contatar em relação aos
exemplos abaixo:
(62) {INE1“Sob o [argumento]
INE2
de que deve se manter isento, o presidente da
Câmara, Michel Temer, não dá sinais públicos sobre quando colocará em votação os
seis casos de cassação de deputados hoje arquivados em sua gaveta.
150
É uma decisão curiosa. Afinal, também não é isento quem segura processos
prontos para serem votados.”}INE1 (T 29, L 43-50)
(63) {INE1“Mas a democracia se distingue pela problematização dos fins, reconhecendoos como múltiplos e de compatibilização difícil. Como instrumento por excelência de
garantia desse aspecto da vida democrática, não admira que o Judiciário seja alvo
freqüente da impaciência do Executivo.
Resta a dimensão da [opinião popular]INE2. A popularidade do presidente é
parte importante do jogo entre os poderes, condicionando o suposto “rolo compressor”
no Congresso e provavelmente calçando a motivação dos desafios ao Judiciário.”}INE1
(T3, L 71-83)
(64) {INE1“Há poucos dias, diante de [comentário]INE2 meu a propósito da demora do
Congresso [na revogação da lei de imprensa]INE3 imposta no regime militar, fui
surpreendido [com manifestação indignada de interlocutor amigo]INE4 pelo fato de o
projeto em andamento na Câmara dos Deputados excluir, em princípio, a pena de
morte para crimes contra a honra praticados por jornalistas no exercício da
profissão.”}INE1 (T11, L 1-10)
(65) {
INE1
“Quem procurou munição para [críticas]INE2 ficou [com a parte do
discurso]INE3 que apontou as altas taxas de juros reais, num contexto onde só um
pequeno número de sociedades anônimas abertas consegue rentabilidade anual média
acima de 6%.”}INE1 (T16, L25-30)
(66) {INE1“Resta a nós meditar e agir sobre tais [propostas]INE2 e, se possível, implantálas o mais rapidamente! Poderão existir outros caminhos para o desenvolvimento
nacional e empresarial? Claro que sim. Mas bem poucos terão uma [resposta]INE3 tão
rápida e eficiente quanto as “ínsulas estratégicas” de Pedro, O Grande e as da China
atual, dentre outros.”}INE1 (T23, L72-79)
151
(67) {INE1“Segundo os [críticos] INE2, uma cláusula do contrato da Companhia Nacional
de Produtos Petroquímicos, associação entre a Petrobras e o Grupo Odebrecht, coloca
este último em vantagem não só no empreendimento paulista mas em qualquer outro
projeto da Petrobrás na área petroquímica.”}INE1 (T25, L8-14)
(68) {INE1“Soam extemporâneas e inúteis as [reclamações]INE2 dos ministros candidatos
em 1998, que resolveram [explicitar publicamente]INE3 o desejo de desfrutar das
benesses dos cargos até a undécima hora. [Repetem]INE4 às escâncaras agora o que há
tempos [vinham dizendo]INE5 nos bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até
abril, como já [avisou] INE6 o presidente, eles acham que a prerrogativa deve ser ampla,
geral e irrestrita.”}INE1 (T9, L 1-5)
(69) {INE1“Os [reclames]
INE2
, que também existem com menos vigor do PFL, soam
extemporâneos porque há algum tempo no próprio governo chegou-se a cogitar de um
recuo na reforma, chegando a ser aventada a possibilidade de os ministros-candidatos
saírem mesmo todos em abril. Agora, no entanto, o quadro é diferente.”}INE1 (T9, L 2124)
(70) {INE1“Rio de Janeiro - Editorial da Folha, no último domingo, fez [considerações]
INE2
sobre a dificuldade das novas gerações em consumir os clássicos de nossa
literatura.”}INE1 (T31, L 1-5)
(71) {INE1“Fato do passado. Só então, num [diálogo]INE2 que se foi acomodando,
abrindo espaço para audiência recíproca, pude esclarecer meu ponto de vista, afinal
aceito.”} INE1 (T11, L 18-22)
(72) {INE1“A [discussão] INE2 sobre a chamada Lei Kandir deve começar repondo uma
verdade: nenhum governador de estado, em nenhum momento, no passado ou hoje,
deixou de apoiar a desoneração das exportações.”}INE1 (T22, L1-6)
152
(73) {INE1 “O contrato da Petrobrás com a Odebrecht tem sido objeto de [críticas]INE2
tanto pela oposição como por empresários próximos ao Governo.” (T25, L 1-4)
(74) {INE1“Entretanto, essas [discussões]INE2 devem fazer parte dos currículos das
escolas e não ocorrerem só depois da tragédia consumada.”}INE1 (T6, L 121-123)
(75) {INE1“A grande [indagação]INE2 é como possibilitar de modo concreto que países
em desenvolvimento, corporações e instituições possam produzir essas altíssimas
velocidades sem desequilibrar [“o todo já existente”]INE3.”} INE1 (T23, L 43-48)
(76) {INE1“As [declarações]INE2 do ministro de Minas e Energia mostram isto, sem
nenhuma dúvida.”}INE1 (T25, L 74-76)
(77) {INE1“O [argumento]INE2 principal é sempre o mesmo: não é justo que alguém que
pode pagar estude de graça financiado pelo conjunto da sociedade. Aparentemente uma
[afirmação]INE3 irretorquível.”}INE1 (T19. L 14-18)
(78) {INE1“Quem apoia o governo encontrou mais um motivo nos rasgados [elogios]INE2
do Sr. Plogher às reformas que permitiram, por exemplo, um tratamento diferenciado
aos dividendos pagos aos acionistas, ou à estabilidade que permite planejar a longo
prazo.” (T16, L 19-25)
3.6. “Sintagmas de elocução”
Os “sintagmas de elocução” são, geralmente, constituídos por substantivos que
designam uma situação de elocução, mas não são derivados de verbos, como os que
foram definidos em 3.5 (os deverbais). É o caso de termos como: tese, lei, cláusula,
lição, texto, palavra etc.. Tais termos têm, como referência, um ato de interlocução e
funcionam como elementos que o determinam, ou que participam da referência de um
sintagma qualquer que semantiza uma situação discursiva. Esses “sintagmas de
elocução”, da mesma forma que os verbos “dicendi”, os verbos “não-dicendi” e os
153
deverbais, referenciam as instâncias instituídas em subplanos no interior da instância
fundadora do discurso. Além de participarem da referência às instâncias de enunciação
criadas no interior da INE1, esses sintagmas podem criar INEs, modalizá-las e
promover a articulação das CIEs, segundo o que demonstramos em relação aos recursos
explicitados acima. É isso que ilustram os exemplos abaixo:
(79) {INE1“A princípio, os partidos que ocupam hoje os cargos poderão indicar
substitutos, desde que os nomes combinem com a concepção de dinamismo
administrativo. Se chegarem a um acordo, muito bem. A [palavra] usada no Planalto é
“parabéns”. Se não, o novo ministério sai de qualquer forma, o mais tardar na última
semana de dezembro.”}INE1 (T 9, L 50-53)
(80) {INE1“A discussão sobre a chamada [Lei] INE2 Kandir deve começar repondo uma
verdade: nenhum governador de estado, em nenhum momento, no passado ou hoje,
deixou de apoiar a desoneração das exportações.” (T22, L1-6)
(81) {INE1“O [contrato] da Petrobrás com a Odebrecht tem sido objeto de críticas tanto
pela oposição como por empresários próximos ao Governo.”}INE1 (T22, L 1-6)
(82) {INE1“Segundo os críticos, uma [cláusula] do [contrato] da Companhia Nacional
de Produtos Petroquímicos, a associação entre a Petrobras e o Grupo Odebrecht,
coloca este último em vantagem não só no empreendimento paulista, mas em qualquer
outro projeto da Petrobras na área petroquímica. Ou seja, há um consenso que a
abrangência é muito grande no escopo e no tempo, em favor da Odebrecht.”}INE1 (T25,
L8-16)
(83) “Se o presidente evitou apoiar o [plebiscito] como tal, apesar de falar em [“voz das
ruas]”, a consulta popular não só não foi objeto de [clamor] análogo às denúncias
correntes de despotismo, mas foi mesmo unanimemente ungida em recurso
sacrossanto.”}INE1 (T3, L 96-101)
154
(84) { INE1 “A nova [versão] da Lei de Imprensa, que veio a público na semana que
passou, acaba com a pena de prisão para os crimes de [ofensas] praticadas por
jornalistas.”}INE1 (T5, L 1-4)
(85) {INE1“Se uma [notícia] ofensiva no “The Wall Street Journal”, por exemplo,
acarreta a falência de uma empresa do ramo financeiro, por que não pode o jornal
defrontar-se com indenizações de vulto, que reparem o dano eventualmente causado e
até, como conseqüência, possam vir a ser fator de instabilidade ou falência para a
empresa de comunicação?”}INE1 (T5, L 48-56)
(86) “Apoiado em [pesquisas] junto a dez escolas, o [editorial] constatou que
“aumentam as dificuldades dos alunos em ler [autores] dos séculos passados que vão
se tornando incompreensíveis”.(T31, L 5-9)
A terminologia “sintagmas de elocução” justifica se, devido ao fato de que, em tais
“formas de dizer”, o foco da referência não se situa num item verbal, mas no contexto
maior de uma estrutura sintagmática. Insistimos em reafirmar o critério formal que está
na base da caracterização e da identificação desse recurso de CIEs e de articulação das
INEs que compõem o plano básico de enunciação. A questão apresentada explicita que,
na CIE, e é claro, na criação, na referenciação e na articulação das INEs, o falante,
levando em conta os fatores definidores da situação de discursivização, ativa as
estratégias discursivas de “situação default” e de ativação do sistema lexical.
Essa última envolve operações em dois níveis:
1) a seleção de um item lexical: verbo “dicendi”, verbos “não-dicendi”, a utilização
de deverbais, cuja referência é construída a partir da sua elocução em relação à
INE1;
2) a articulação de itens lexicais no sentido de formar uma construção sintagmática,
cuja referência é construída, levando-se em conta o sintagma completo, e não um
dos itens que o compõe.
155
Dessa forma, considerando o que dissemos logo acima, os “sintagmas de elocução”,
para referenciar as instâncias que criam, estruturam-se como construções complexas,
uma vez que obrigam o falante a buscar a referenciação tanto na articulação entre os
itens lexicais que a formam, como na referência explicitada pelo enunciado de que
fazem parte. Nesses “sintagmas de elocução”, portanto, não há como definir um termo
nuclear, pois o conjunto todo é que explicita a referenciação da INE que institui. É isso
que ilustramos nos exemplos, a seguir:
(87) {INE1“ [“Para usar palavras de FHC]INE2, ele é um moço tosco. Não tem
consciência, é imprudente, sem qualificação e indelicado.” “}INE1 (T8, L 30-32)
(88) {INE“ Em relação à referência à “idade avançada” de autores da ação]INE2, feita
pelo presidente do BNDES, Bandeira de Mello [ironizou].”}INE1 (T8, L 33-36)
(89) {INE1“Apenas o sono conturbado, [segundo eles]INE2, já afetaria esse fluxo, o que
seria verificável em animais nos laboratórios.”}INE1 (T33, L 17-19)
(90) {INE1“Eles [levantam a tese]INE2 de que o estresse afeta o fluxo normal de
hormônios responsáveis pelo crescimento..”}INE1 (T33, L 15-17)
(91) {INE1“Para um dos autores da principal ação contrária à privatização da
Companhia Vale do Rio Doce, Luiz Carlos Mendonça de Barros só não foi [citado em
seu texto]INE2 por “comiseração, dó mesmo”.”}INE1 (T8, L 1-6)
(92) {INE1“[Essa cláusula]INE2 - será que é constitucional? - talvez isente grande
número de empresas jornalísticas de multas mais significativas.”}INE1 (T5, L 71-74)
(93) {INE1“[O texto veio acompanhado de reação crítica]INE2 da Associação Nacional
de Jornais.” (T5, L 29-30)
156
(94) {INE1 “O contrato da Petrobrás com a Odebrecht tem sido [objeto de críticas tanto
pela oposição como por empresários próximos ao Governo]INE2”}INE1 (T25, L 1-4)
(95) {INE1“Essa é [uma nova versão da “cláusula social” ]INE2 que muitas nações
desenvolvidas pretenderam aprovar no âmbito da Organização Mundial do Comércio
(OMC). Se adotada, a OMC ficaria com plenos poderes para aplicar sanções
comerciais aos violadores dos padrões trabalhistas.”}INE1 (T1. L 7-13)
(96) {INE1“Até então, [a lei que determina]INE2 que o TMA de um benefício
previdenciário não poderia superar 45 dias era [letra morta]INE3.”}INE1 (T36, L 54-56)
(97) {INE1“Como se lê [na lei nº 9.279/96]INE2, [o recente Código]INE3 da Propriedade
Industrial, é patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade ...”}INE1 (T
38, L 35-39)
Há casos, no entanto, em que temos expressões como as alistadas a seguir, nas quais o
elemento caracterizador de uma situação de discurso é o adjetivo. Isso se aplica no caso
dos “sintagmas de elocução”. A “focalização” no adjetivo que compõe esse tipo de
sintagma é relativa, pois, apesar de essa classe de palavra possibilitar a referenciação,
isso ocorre em função da organização do próprio sintagma por ele formado.
(98) {INE1“Dois meses depois do seu telúrico reaparecimento, o ex-ministro continua
enredado numa costura de alianças que, além de serem incompreensíveis para o
eleitor, chocam-se [com a própria virulência verbal]] com que ataca a “barganha
politiqueira” dos outros.” }INE1 (T24, L6-15)
(99) {INE1“No primeiro caso, [o da contestação discursiva], o festival de tolices começa
na instituição política e chega à Universidade e suas adjacências.”}INE1 (T7, L 13-18)
157
Nos exemplos (98) e (99), acima, para a semantização das INEs formadas pelos
“sintagmas de elocução” faz-se necessário que se ativem propriedades gramaticais que
liguem uns itens lexicais a outros e, nessa articulação, os adjetivos desempenham um
papel fundamental na caracterização da situação discursiva. Em qualquer um dos dois
exemplos acima, se tentarmos isolar os termos que os constituem, comprometemos a
caracterização de uma situação discursiva.
3.7. Parênteses, aspas, travessões
Os parênteses, as aspas, os travessões e os dois pontos são recursos lingüísticos
utilizados convencionalmente na escrita. Nesse contexto, são recursos que também
indiciam a instauração de instâncias enunciativas, ou indiciam, dentro de uma mesma
instância, a modalização de seu discurso, no sentido de que expressam o ponto de vista
do enunciador instituído por “situação default”.
A utilização de tais recursos realiza-se de formas distintas, conforme o sentido que o
locutor de INE1 queira imprimir ao processamento discursivo, ou queira enfatizar um
determinado julgamento, numa mesma instância discursiva ou em instâncias diferentes.
Assim, por exemplo, em (100):
(100) {INE1 “[“O seu pai dá o traço em todas as pesquisas”], [disse]INE2 outro dia,
irritado, o deputado Eduardo Magalhães (PFL - BA)...”}INE1 (T 29, L 25-8)
A INE2 é instituída pela elocução do verbo “disse” que gramaticaliza e semantiza o
discurso entre as aspas como um discurso referenciado, o qual indicia o EN2 como o
“indivíduo
lingüístico”
que
o
enunciou,
num
“tempo/espaço”
distinto
do
“tempo/espaço” em que se situa o enunciador da “situação default”. As aspas indiciam
também que o enunciado contém as palavras exatas de EN2 numa situação de discurso.
Em outras palavras, as aspas em (100) indiciam a existência, no interior da INE1, de um
discurso referenciado pela INE2.
158
Em (101), pode-se observar tanto a utilização das aspas indicando essa referência ao
discurso citado, como também a sua utilização com a finalidade de modalizar o discurso
da INE a que se refere, explicitando, assim, o ponto de vista do enunciador da INE1. Há
casos em que as aspas são usadas ora conjuntamente com os parênteses, ora com os dois
pontos, explicitando, ainda, mais a referência ao discurso citado, nos moldes propostos
pela GT. Para ilustrar os usos desses e dos demais recursos a que este item se refere,
apresentamos, a seguir, alguns trechos extraídos de um mesmo texto, os quais
evidenciam diferentes formas de referenciar, ou modalizar as INEs:
(101) {INE1“Dois meses depois do seu telúrico reaparecimento, o ex-ministro continua
enredado numa costura de alianças que, além de serem incompreensíveis para o
eleitor, chocam-se [com a própria virulência verbal]INE2 com que ataca a “barganha
politiqueira” dos outros.
Admitindo-se que Ciro Gomes tenha algo a ver com o PPS (o que já é um
favor), salta aos olhos que nada tem a ver com o PT, muito menos com o
brizolismo.”}INE1 (T 24, L 6-16)
{INE1 “( ...) É pelo menos divertido ver a esquerda, em nome da unidade,
conversando em torno da hipótese de se lançar como candidato à Presidência um
político que [informa] INE2: “Não tenho tradição de esquerda e nem pretendo ser líder
de esquerda.””}INE1 (T24, L 18-24)
{“(...) À parte o fato de ser sustentado por forças que julgam desnecessária a
apresentação de um plano de governo, um resumo de suas idéias [informa]INE2 que ele
[defende]INE3 o “desenvolvimento sustentado nos princípios da democracia, da
eqüidade social, da eficiência econômica, do equilíbrio ambiental e da diversidade
cultural.” (...)”}INE1 (T 24, L 45-51)
{INE1“(...) Assim como os trabalhistas ingleses só chegaram ao poder quando
[convenceram]INE2 o eleitorado de que tinham um programa de governo alternativo - e
eficaz - a oposição a FFHH só terá espaço quando se fizer entender na [discussão]INE3
dos temas terrenos. (...)”}INE1 (T24, L 61-6)
159
{INE1 “(...) Está certo que Ciro Gomes não queira [expor]INE2 às tribos
oposicionistas o fato óbvio de que o PT está a um passo de desarticulação. Pode-se
entender também que não queira comprar uma briga com Brizola (coisa de resto
inevitável) [dizendo]INE3 que seu apoio, numa eleição federal, é pouco mais que uma
irrelevância. São astúcias políticas (ele diria “politiqueiras”) perfeitamente
compreensíveis. (...)” (T24, L 80-89)
Frisamos que os discursos em destaque acima são usados no texto, ora coordenando as
instâncias enunciativas, ora subordinando-as entre si. Observe o exemplo (112), em que
temos, basicamente, no aspecto formal, uma representação do chamado discurso direto.
Nele há uma estrutura típica de subordinação entre o discurso do enunciador de INE2 e
o discurso de EN1, que reproduz literalmente a fala de EN2.
Em (101), temos os recursos em questão - os parênteses, as aspas, os dois pontos, os
travessões - sendo usados de formas distintas, ao longo de todo o texto82. O emprego
dessas formas explicita-se como uma decisão tomada pelo falante, no módulo do
Discurso, para a indiciação do processo discursivo, utilizando-se de convenções próprias
da escrita.
Assim, em relação ao emprego das aspas, observamos que as mesmas delimitam
enunciados no interior de INEs já constituídas, citando discursos. Quanto à forma de
citação dos discursos aspados, eles podem ou não estar seguidos dos dois pontos, tal
qual explicitam as linhas (L 6-16 e 18-24), que repito abaixo sob o exemplo de número
(102):
(102) {INE1“Dois meses depois do seu telúrico reaparecimento, o ex-ministro continua
enredado numa costura de alianças que, além de serem incompreensíveis para o
82
Como pode ser verificado em (113), foram transcritos vários trechos de um mesmo texto e, por esse
motivo, foram eles agrupados sob o mesmo número. Mantivemos a notação após cada transcrição para
evitar termos que introduzir uma nova referência para identificação dos excertos.
160
eleitor, chocam-se [com a própria virulência verbal]INE2 com que ataca a “barganha
politiqueira” dos outros.
Admitindo-se que Ciro Gomes tenha algo a ver com o PPS (o que já é um
favor), salta aos olhos que nada tem a ver com o PT, muito menos com o
brizolismo.”}INE1 (T 24, L 6-16)
{INE1 “( ...) É pelo menos divertido ver a esquerda, em nome da unidade,
conversando em torno da hipótese de se lançar como candidato à Presidência um
político que [informa] INE2: “Não tenho tradição de esquerda e nem pretendo ser líder
de esquerda.””}INE1 (T24, L 18-24)
Os parênteses e os travessões circunscrevem enunciados justapostos que funcionam
como uma observação, um discurso sobre o discurso, num processo metalingüístico pelo
qual o EN que está com a palavra fala, comenta, retifica, etc. o enunciado que está
produzindo. Dessa forma, lado a lado coexistem discursos que pertencem a uma mesma
instância enunciativa, como em (103), ou a instâncias distintas, como em (104):
(103) {INE1“(...) Assim como os trabalhistas ingleses só chegaram ao poder quando
[convenceram]INE2 o eleitorado de que tinham um programa de governo alternativo - e
eficaz - a oposição a FFHH só terá espaço quando se fizer entender na [discussão]INE3
dos temas terrenos. (...)”}INE1 (T24, L 61-6)
(104) {INE1 “(...) Está certo que Ciro Gomes não queira [expor]INE2 às tribos
oposicionistas o fato óbvio de que o PT está a um passo de desarticulação. Pode-se
entender também que não queira comprar uma briga com Brizola (coisa de resto
inevitável) [dizendo]INE3 que seu apoio, numa eleição federal, é pouco mais que uma
irrelevância. São astúcias políticas (ele diria “politiqueiras”) perfeitamente
compreensíveis. (...)” (T24, L 80-89)
Em relação ao emprego dos parênteses, baseamo-nos em Jubran (In: Castilho & Basílio,
1996, pp. 411-22) para propor uma descrição de seu uso na escrita, considerando sua
161
utilização no processamento discursivo. Ao analisar como se configura a conversação
em termos de organização tópica, Jubran conceitua os parênteses como “fatos textuais
que indiciam o processo comunicativo” (p.413).Como outros recursos lingüísticos sua
função é explicitar a ação dos interlocutores e, por isso mesmo, “tornam-se elementos
intrínsecos ao texto, articulados aos demais componentes textuais, na medida em que
põem à mostra a geração desses elementos” (p.413).
Sem nos determos em uma descrição mais minuciosa do estudo realizado por Jubran,
propomos estender aos demais elementos descritos neste item - as aspas, os travessões a caracterização de Jubran sobre os parênteses. Não devemos nos esquecer, no entanto,
de que o trabalho que aqui realizamos restringiu-se a apontar a utilização dos parênteses
como indiciadores de instâncias de enunciação, e, em decorrência disso, eles definem-se
como alguns dos recursos língüísticos usados na CIE no texto escrito.
Quanto aos travessões, podem ser usados nas mesmas condições dos outros recursos
descritos neste item, tanto como indiciadores de INEs, quanto como elementos que
indiciam discursos modalizantes no interior da INE1. Observe o uso83 deles nos
exemplos abaixo:
(105){INE1[“- Edgar, vê lá, hein?] INE2
O Edgar era famoso pelas suas gafes. Embora as [negasse.] INE3
[- O que é isso? Pode deixar.] INE4
A mulher ficava em pânico. Depois, [contando]
INE5
para os outros ela, ria. [“O
Edgar fez outra das dele.”] INE6 Mas na hora ficava em pânico.
[- Edgar, por amor de Deus...] INE7
[- Mas que bobagem!”] INE8}INE1 (T46, L 1-10)
83
Estamos limitando-nos a esses poucos exemplos, porque já nos referimos aos usos descritos acima, no
item 3.2.
162
(106) {
INE1
“Um deles está cobrando, com progressivo entusiasmo, as promessas de
saúde, educação, segurança - nem lembro mais os cinco dedos que foram exibidos na
mais dispendiosa e sofisticada campanha eleitoral de nossa história.}INE1 (T43, L4-9)
Há, claramente, uma situação de interlocução no primeiro enunciado de (105): o leitor
que tem conhecimento das convenções escritas sobre o uso dos travessões, no primeiro
contato com o texto, já identifica que alguém está nos dizendo algo. Como vimos na
caracterização da “situação default” em planos subalternos (em 3.2.1), essa foi uma das
formas de construção de uma segunda “situação default” no interior da INE1.
Além dessa utilização – a criação de um plano subalterno em “situação default”,
indiciando o enunciador que agencia outros enunciadores –, os travessões são usados
para indiciar outras INEs, nas quais se referenciam um discurso citado, nos moldes do
que se verificou em relação à utilização das aspas. Nesse uso, o travessão vem
acompanhado de outros recursos gráficos da escrita (os dois pontos, o recuo de
parágrafos) e é introduzido por um verbo “dicendi” ou por um verbo a ele equivalente.
Esses usos “mais ostensivos” dos parênteses como índices de interlocução são
semelhantes aos usos das aspas duplas e dos travessões de (107) e (108), como se
comprova em 109:
(107) {INE1“Mas o Edgar só sorriu para a anfitriã, a Noca, e [comentou]INE2, sem
qualquer maldade:
- Coisa muito boa, hein?
“Agora ele vai [perguntar]INE3 se a Noca trouxe da Alemanha, na volta”, pensou
a mulher, mas o Edgar ficou firme. A mulher respirou, aliviada..”}INE1
Ao que se refere à forma de esse conjunto de recursos promover a articulação entre as
INEs que referenciam, observamos que o discurso incorporado ao discurso de EN1
pode ser construído pelo uso de qualquer um de seus elementos. Vale ressalva em
relação à utilização desses recursos na instituição de “situação default” que cria a
INE1’, pois tal uso se restringe aos travessões. Embora, do ponto de vista formal, os
163
discursos indiciados por tais recursos possam ser usados ora justapostos, ora
subordinados à INE a que se referem, a gramaticalização e semantização dos mesmos
orientam o leitor para interpretá-los como índices constitutivos da referência na CIEs.
(108) “Seguindo esse raciocínio, Marafon diz que nem seria preciso esperar os 90 dias
para voltar a tributar as sociedades. “O governo cumpriu o prazo para evitar brigas
na Justiça utilizando esse argumento””. (T 4, L 30-3)
(109) “Empenhado na eficiência, é característico de Executivo tender a presumir que
os fins da ação do Estado, que ele próprio estipula, são objetivos nacionais inequívocos
(“Não pensam no Brasil”) e que a questão é dispor de maneira adequada os meios.”
(T 3, L 71 - 78)
Chamamos a atenção , ainda, para o fato de que por esses recursos, mas sem a utilização
das aspas, EN1 pode se inserir no discurso de uma outra instância, quer para acrescentar
alguma explicação ao que vem sendo enunciado, quer para inserir o seu ponto de vista
em relação ao discurso do outro e, assim, destacar um discurso modalizante no interior
da INE1, como em:
(110) “O projeto, porém, mantém alguns parâmetros importantes para a fixação do
valor da indenização em caso de ação judicial. Determina que ela deve levar em conta
“a extensão do prejuízo à imagem do ofendido (pessoa física ou jurídica, parênteses
meu), tendo em vista sua situação profissional, econômica e social”. ( T5, L 14-21)
(111) “Mais especificamente, as nossas exportações, por se basearem em custos mais
baixos (especialmente de mão-de-obra), estão destruindo os postos de trabalho da
Europa e Estados Unidos.” (T 1, 31 - 36)
(112) “Enquanto os empresários pedem limites, os jornalistas reclamam deles. Américo
Antunes, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenai), considerou muito alta a multa
164
prevista para jornalistas ofensores, de até R$ 50 mil (atenção, não confundir
indenização com multa, são duas coisas diferentes). (...)
Essa cláusula - será que é constitucional? - talvez isente grande número de
empresas jornalísticas de multas mais significativas. Muitas delas, principalmente fora
dos grandes centros, podem provar ser insolventes e livrar-se da pena.” (T 5, L 35-42 e
71-4)
(113) “O raciocínio vale para todos os segmentos da indústria e do comércio. O que é
necessário, no caso das empresas de comunicação (isto sim é muito importante). é
fixar regras claras e bastante rígidas para o direito da resposta. Ele é fundamental
para evitar injustiças, facilitar correções e evitar que qualquer indivíduo seja
eventualmente prejudicado por uma informação incorreta (o que sempre pode
acontecer) ou ( o que também pode ocorrer) por perseguições de caráter pessoal ou
político.” (T 18, L 99-110)
(114) “Foi ela que ajudou a denunciar os abusos cometidos nos tempos de repressão
política, a viabilizar a anistia, a resgatar a liberdade democrática (com a volta das
eleições diretas inclusive para presidente), a levar a cabo o impeachment de um
presidente acusado de corrupção, a denunciar a manipulação de verbas do Orçamento
Federal e a estimular a investigação sobre a negociação irregular de títulos públicos
estaduais.
Ou seja, a mídia tem sido uma espécie de quarto poder que colabora com cada
um dos outros três, ainda que denunciando irregularidades a que cada um está sujeito.
Este poder não é dos proprietários dos meios de comunicação (o que às vezes imagina,
erradamente).” (T 18, L 120-48)
4. Operações no módulo gramatical na CIE
Como já mencionado em 3, o módulo Gramatical é um dos responsáveis pela CIE, no
discurso. As operações que decorrem de processos nesse módulo estão diretamente
165
relacionadas à ativação de determinadas propriedades gramaticais dos itens
selecionados.
Uma das propriedades sintáticas dos itens lexicais que instituem INEs é a chamada
“recursividade84” que, segundo Perini (1995: 124), promove o “encaixe de estruturas
dentro de outras estruturas da mesma classe. Com base nisso, a ativação dos planos
subalternos no interior da “situação default”, que propicia a CIE constituinte do plano
básico do processo discursivo, caracteriza-se pela ativação de itens lexicais, os quais,
recursivamente, possibilitam o encaixe de outras INEs, de outros planos enunciativos no
plano base.
Nessa perspectiva, as propriedades dos itens que instituem INEs são também
responsáveis pela sua criação e sua articulação no âmbito do plano base. Entre as
propriedades sintáticas dos referidos itens, a recursividade é de fundamental importância
na ativação de instâncias enunciativas.
Assim, na instituição do plano base, que é construído pela “situação default”, são
ativados, do Léxico, itens com propriedades sintáticas e fonológicas que atendam a
exigências do módulo Discursivo, quanto à:
1) construção do tempo lingüístico, através das formas verbais (as desinências modotemporal e número-pessoal) que possibilitam a construção dos tempos/espaços das
diversas INEs;
2) utilização de outros itens (ver capítulo 3), que possibilitam a construção do
enunciador/tempo/espaço lingüístico e a articulação tempo/espacial pretendida na
construção e na articulação das diversas INEs do processamento discursivo em
questão;
84
A noção de recursividade foi originalmente desenvolvida por Chomsky ( 1957) numa tentativa de
explicar as inúmeras estruturas lingüísticas que podem ser formadas por um falante de uma língua. Perini
(1976 e 1995: 124) utiliza-se desta noção, mostrando que esta é uma das propriedades mais importantes
das línguas humanas e (...) permite aos falantes produzir um número potencialmente ilimitado de
sentenças.
166
3) utilização de outros itens ou sintagmas constituintes do conjunto das “formas de
dizer”;
4) implementação de outros recursos necessários à articulação das INEs;
5) implementação de recursos da escrita utilizados na operacionalização de INEs, tais
como os parêntesis, os travessões, as aspas.
Logo a articulação sintática das INEs pode ser indiciada de diferentes formas no
discurso em função das exigências explicitadas na configuração do plano básico,
instituído pela “situação default”.
4.1. Formas de articulação da CIE
A função de articuladores de INEs define-se, pois, com base no processamento
discursivo. Tal fato explicita que essa função pode ser exercida por distintas categorias
de recursos gramaticais e não só pelas conjunções, advérbios e pronomes relativos como
postula a GT. De acordo com este postulado da GT, dentre os articuladores mais
utilizados pelos escritores está o “que”, cujo uso pode estar diretamente relacionado aos
verbos “dicendi” e, em alguns casos, aos verbos “não dicendi”.
(115) “Disse-me ainda Florspanca que o cheque encerrando a dívida já saiu de sua
conta. Mas o documento de quitação só deve chegar às suas mãos dentro de dois ou
três meses.
Contou-me também que, outro dia, na fila da Caixa, uma funcionária corpo
mole mandou uma pobre cliente tirar “xerox autenticado”.” (T 32, L 43 - 51)
(116)“O magistrado, em seu arrazoado, afirma verdades indiscutíveis, ao mesmo
tempo em que, infelizmente, deixa de fazer reflexão mais profunda para, com o peso de
seu múnus, provocar a autocrítica do judiciário, abrindo alamedas mais amplas para o
reconhecimento de sua dignidade e do papel insubstituível que lhe confia o estado
democrático e de direito.” (T42, L 6-14)Os exemplos abaixo ilustram isso:
167
(117) “Temos, ainda, a questão da enxurrada de medidas provisórias. Mas a
enxurrada flui nas brechas de uma legislação permissiva e com o apoio ao menos
tácito do Congresso.” (T 3, L 40 - 44)
(118) “Os fazendeiros, que não são mais obstáculo, insistem no cumprimento da lei e se
sentem objeto de pressão política injustificável, pois só querem continuar a produzir e
em paz, o que, aliás, têm feito com sucesso, apesar de enormes dificuldades.
Precisamos, pois, de grande discussão e esclarecimento nacional sobre a
questão agrícola e agrária, da qual a reforma agrária é um pedaço - ainda que, no
momento, agudo e preocupante.” (T 2, L 41 - 51)
(119) “Quanto ao Congresso, parte importante das preocupações manifestadas se
dirige, sobriamente apreciada, ao fato simples de que o presidente erigiu ampla base
de apoio parlamentar.
Ora, o controle pelo presidente dos recursos institucionais de poder que a
democracia lhe faculta não significa ameaça à democracia. Não há por que entender a
idéia da separação de poderes em termos de hostilidade permanente entre o Executivo e
o Legislativo.”(T 3, L 15 - 26).
(120) “Enquanto isto - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as
quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas
eventualmente desarticuladas.” (T 14, L 43 - 47)
(121) “A Lei de Imprensa que está em discussão no Congresso pretende oficializar o
preço da honra alheia. Fui processado por um promotor e condenado a pagar-lhe 200
salários de sua função, quase 200 mil. Depois de ter perdido nas instâncias estaduais,
ganhei no STJ e nada lhe paguei. De forma que, para correr risco, agora só comprarei
briga com quem ganhar menos de dois salários mínimos.” (T 45, L 38 - 46)
(122) “Se uma notícia ofensiva no “The Wall Street Journal”, por exemplo, acarreta a
falência de uma empresa do ramo financeiro, por que não pode o jornal defrontar-se
168
com indenizações de vulto, que reparem o dano eventualmente causado e até, como
conseqüência, possam vir a ser fator de instabilidade ou falência para a empresa de
comunicação.”
A utilização de elementos tradicionalmente coesivos, concebido por nós, em
conformidade com Koch (1997), como “operadores” discursivos, tem um papel
importante na configuração de instâncias enunciativas, embora, não se caracterizem, de
acordo com o que propomos, neste capítulo, como únicos elementos responsáveis pela
articulação sintática das INEs.
Como se observa acima, o uso de tais articuladores varia de acordo com as condições
definidas no momento da enunciação, o que acarreta, em determinadas situações, um
emprego bem distinto para formas lexicais que aparentemente são as mesmas.
Acrescentamos, pois, à classe das conjunções, outros elementos coesivos, como a classe
dos advérbios e outros itens lexicais que servem como “shifters” que indiciam a forma
de articulação e construção das INEs utilizadas pelos falantes, como ilustram os
exemplos abaixo:
Colocamos num mesmo conjunto tais elementos, pois não é relevante aqui separá-los
em termos de sua classificação gramatical. Esclarecemos, no entanto, que as distinções
entre os mesmos se fará em termos de sua utilização, levando-se em conta que
1. as conjunções relacionam entre si as INEs que caracterizam o enunciado,
principalmente aquelas indiciadas por verbos “dicendi”. Nesse sentido, elas podem
ocorrer no interior da INE1, ligando entre si os diversos planos que caracteriza o
plano básico de enunciação.
2.
os advérbios, dêiticos por excelência, acrescentam, de acordo com o seu uso,
informações que, além de orientar o leitor sobre a localização espaço/temporal que
ocupam os enunciadores, funcionam como modalizadores do discurso.
169
3. os marcadores discursivos, itens lexicais, sem classe gramatical definida, nos quais o
interlocutor se apóia. Esses são sintaticamente independentes, mas, semanticamente,
acrescentam ao discurso informações modalizantes que revelam a atitude do falante
em relação ao enunciado que produz.
Observemos como a escolha de um determinado “operador” pode modalizar o discurso
que referencia:
(123) “São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se páreo para as de sexo
explícito. Talvez para as de perversidade sexual.” (T 6, L 74 - 76)
a. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de
sexo explícito. Talvez (sejam/fossem páreo) para as (cenas) de perversidade sexual.
b. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de
sexo explícito. Com certeza, (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual.
c. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de
sexo explícito. Indubitavelmente, (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual.
d. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de
sexo explícito. De fato (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual.
e. São cenas com fortíssimo apelo sexual. Aliás, nem sei se (estas são) páreo para as de
sexo explícito. Evidentemente, (são páreo) para as (cenas) de perversidade sexual.
Acrescentaríamos na classificação de ‘operadores discursivos” outros itens lexicais,
como: agora, assim, até, então, por exemplo, inclusive. Esses itens lexicais marcam a
instância enunciativa em que estão inseridos, sem, contudo, estar sintaticamente
subordinados ao enunciado. Corroboramos, portanto, o postulado de Risso et alii (1996)
170
segundo o qual esses itens lexicais, denominados por esses pesquisadores “marcadores
discursivos”85, evidenciam a organização textual e o processo discursivo. A análise de
Risso et alii (1996:55-6) baseia-se nas seguintes propriedades desses itens:
“a) Atuam no plano da organização textual-interativa (...);
b) Operam no plano da atividade enunciativa e não no plano do
conteúdo; por isso mesmo, são exteriores ao conteúdo
proposicional (...). Entretanto, asseguram a ancoragem pragmática
desse conteúdo, ao definirem, entre outros pontos, a força
ilocutória com que ele pode ser tomado, as atitudes tomadas em
relação a ele, (...) Codificam, portanto, uma “informação
pragmática” (FRASER, 1990)86. Nessa qualidade estabelecem-se
como embreadores dos enunciados com as condições da
enunciação, apontando para as instâncias produtoras do discurso e
definindo a relação dessas instâncias com a estrutura textualinterativa;
c) Manifestam um processo de acomodação do significado literal
da(s) palavra(s) que os constituem à sinalização de relações dentro
do espaço discursivo. (..);
d) ... são unidades independentes, que, portanto, não se constituem
como parte integrante dessa estrutura; (...)”
(124) “Santos, aliás, só ficará até lá porque o líder do governo na Câmara Luís
Eduardo Magalhães, não aceitou acumular missões de varejo político que , em janeiro,
o governo espera que sejam apenas residuais. Devido ao recesso parlamentar, ao início
da campanha eleitoral dos estados e ao abandono temporário das votações das
reformas constitucionais, à exceção talvez da tributária.” (T9, L31-33)
(125) “Ora, o controle pelo presidente dos recursos institucionais de poder que a
democracia lhe faculta não significa ameaça à democracia.” (T3, L 19-22)
(126) “Só então, num diálogo que se foi acomodando, abrindo espaço para audiência
recíproca, pude esclarecer meu ponto de vista, afinal aceito.” (T11, L19-21)
Em suma, o uso dos diversos articuladores do discurso evidenciam a necessidade de um
estudo mais detalhado do conjunto de “operadores” como recursos lingüisticos que, no e
85
Só neste momento utilizaremos o nome “marcadores discursivos” uma vez que nos decidimos, no
capítulo 2 pelo termo usado por ILARI (1990), “operadores discursivos”, a nosso ver, é mais abrangente
em termos de explicitar as operações feitas pelos interlocutores em uma atividade lingüística.
86
FRASER, B. “An approach to discourse markers”. In: JOURNAL OF PRAGMATICS 114, North
Holland, 1990.
171
pelo discurso, são utilizados para articular as INEs. Isso é importante para melhor
explicitar a articulação das INEs, num processamento discursivo, e caracterizar a
polifonia como propriedade definidora do discurso.
É importante lembrar, ainda, que, nessa perspectiva, os parêntesis, as aspas, os
travessões, os dois pontos se caracterizam como recursos de escrita - agrupam-se no
mesmo conjunto desses ditos “operadores” e, como tal, podem ser caracterizados
também como “operadores discursivos”, por possibilitarem a articulação das instâncias
enunciativas instituídas no interior da INE1.
4.1.1. Uso da dêixis espaço/temporal
Além da dêixis explicitada nas formas verbais, podemos encontrar como elementos
caracterizadores da dêixis de tempo e/ou de espaço, outros itens lexicais ou sintagmas,
como:
(127) “Hoje, quando o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao
sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para
levá-lo ao quartel. ]”(T14. L 28-33
Em (127), o operador discursivo quando ilustra bem o multiprocessamento temporal,
podendo ser substituído por outros operadores que, assim como ele, possibilitam a
percepção de uma simultaneidade de tempos que se cruzam e se fundem num domínio,
num escopo, por eles determinado. Assim, (127) possibilita as seguintes substituições
do operador quando:
A. Hoje, toda vez que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao
sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para
levá-lo ao quartel.
172
B. Hoje, sempre que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao
sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para
levá-lo ao quartel.
C. Hoje, no momento em que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirigese ao sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura
para levá-lo ao quartel.
D. Hoje, na hora em que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao
sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para
levá-lo ao quartel.
E. Hoje, assim que o soldado da PM encontra na esquina um suspeito, dirige-se ao
sargento que por sua vez se reporta ao oficial do dia, que enviará ou não a viatura para
levá-lo ao quartel.
O mesmo processo pode ocorrer em relação ao “shifter” “hoje” em (127) ou, ao
“enquanto isto” em (128):
(128)“Enquanto isto - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as
quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas
eventualmente desarticuladas”.
A. Simultaneamente - enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas
se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente
desarticuladas.
B. Ao mesmo tempo- enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se
organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente
desarticuladas.
173
C. Paralelamente- enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as quadrilhas se
organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas eventualmente
desarticuladas.
(129) “Pois aqui quero, neste instante, apropriar-me da parcela de participação nessa
epopéia, a mim devida por direito do acaso.” (T35, L30-32)
Os dêiticos acima indiciam o aqui/agora da enunciação como constituinte do plano base
e dos outros tempos instituídos a partir do presente da situação discursiva. Como
“indivíduos lingüísticos” criados na e pela enunciação, o jogo de tempos/espaços das
INEs articulam-se com o tempo/espaço explicitado na instância fundadora do discurso.
É importante ter em mente que as operações realizadas no módulo Gramatical estão
diretamente relacionadas à operação de recursividade, entendida, aqui, como uma
operação básica da constituição de um texto e, em conseqüência, da CIE. A sua
utilização, portanto, não se restringe aos limites da sentença como tradicionalmente se
concebe. Consideramos que esta propriedade é inerente aos “shifters” e, como tal, ela é
ativada no e pelo processamento discursivo.
Em virtude da perspectiva de análise adotada neste trabalho, expusemos como a GT
trata a instauração de vozes no texto, enfatizando que, para ela, os recursos lingüísticos
utilizados para esse fim podem ser analisados num conjunto finito e restrito de recursos
que se restringem aos chamados Discurso Direto, Discurso Indireto e Discurso Indireto
Livre. Essa abordagem não se sustenta, tendo em vista que as “Formas do Discurso87”
devem ser consideradas levando-se em conta o conjunto das estratégias de CIE, cuja
articulação está diretamente relacionada ao processamento dêitico.
Em decorrência, pois, da forma como concebemos a CIEs , a classificação e a distinção
das “Formas de Dizer” postuladas pela GT, diluem-se e mostram-se insuficientes para a
apreensão do “discurso do outrem”.
174
5. A ativação do módulo semântico na CIE
Como se observou em relação à seleção lexical no módulo discursivo, a CIE instaura-se
em função da situação de enunciação e, nesse sentido, não há como falar em
regularidades, relativamente à obediência de normas rígidas dos manuais de gramática,
na ativação do Léxico, nem em restrições como as demonstradas na caracterização das
“Formas de Dizer”, nos moldes da GT. As regularidades verificadas no corpus são
estabelecidas no e pelo discurso, haja vista as ocorrências verificadas nos textos
jornalísticos escritos no português contemporâneo, como, por exemplo, a construção de
uma instância enunciativa baseada na utilização de parênteses, aspas, travessões que ora
se dá numa instância, ora se apresenta por justaposição em outras INEs, como em (130)
e (131), abaixo:
(130) “É pelo menos divertido ver a esquerda, em nome da unidade, conversando em
torno da hipótese de se lançar como candidato à Presidência um político que informa:
“Não tenho tradição de esquerda e nem pretendo ser líder de esquerda.” (T24, L 1824)
(131) “Está certo que Ciro Gomes não queira expor às tribos oposicionistas o fato
óbvio de que o PT está a um passo de desarticulação. Pode-se entender também que
não queira comprar uma briga com Brizola (coisa de resto inevitável) dizendo que seu
apoio, numa eleição federal, é pouco mais que uma irrelevância. São astúcias políticas
(ele diria “politiqueiras”) perfeitamente compreensíveis.” (T24, L80-88)
Ao lado dessa utilização que é formalmente explícita, há casos em os discursos
entrecruzam-se, apesar das marcas sintáticas explícitas como evidencia (132). A
identificação de um discurso do outro, nesse caso específico, manifesta-se
87
“Formas do Discurso” é a referência ao título que demos ao item em que abordamos a citação do
“discurso de outrem” na perspectiva da GT.
175
sobrecarregando o módulo Semântico através de operações que envolvem o contexto de
produção discursiva.
(132)“Não há, portanto, como negar que a trajetória de crescimento moderado
admitida pela atual política econômica (...) cobra um alto preço do ponto de vista
social.” (T26, L 13-17)
O exemplo (132) explicita a semantização da subordinação de INEs, através de índices
de subordinação – a ativação da subordinada adverbial reduzida de infinitivo “como
negar”, instituída pela “situação default” e a reduzida de particípio “admitida”– e dos
tempos verbais operacionalizados no módulo Gramatical.
As operações realizadas no módulo Semântico efetivam-se, não só a partir das
construções no módulo Gramatical, mas também a partir da ativação das propriedades
semânticas dos itens lexicais e sua articulação nos enunciados, que propiciam diferentes
processos de construção de efeitos de sentido.
No módulo Semântico, a referenciação das INEs e de sua articulação deveria merecer
uma análise lingüística mais acurada, principalmente em razão de o processamento
dêitico implicar operações de semantização do tipo “produção de inferências”, trabalho
com “pressuposições” e outros “implícitos” que são importantes para o estudo da
referenciação de INEs.
Esse estudo, como já foi dito, ultrapassa o âmbito do objeto deste nosso trabalho. Não trataremos aqui
sequer do processamento de articulação “Tópico/Comentário”, fundamental para a articulação das INEs.
5.1. A modalização na CIE
Embora não seja objeto de nosso estudo, consideramos relevante, neste momento,
explicitar o conceito de modalização com que operamos, haja vista que, na perspectiva
da Teoria Modular, a ativação dos recursos lingüísticos de CIEs envolvem a
operacionalização dos mesmos nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico. Além
176
disso, a modalização, como postulada por Koch (1986:228), constitui-se como um
recurso lingüístico utilizado pelo falante para
“ ... marcar a distância relativa em que se coloca com relação ao
enunciado que produz, seu maior ou menor engajamento com
relação ao que é dito, determinando o grau de tensão que se
estabelece entre os interlocutores.”
A modalização, assim entendida, permite-nos,então, reduzir a classificação de KerbatOrecchioni (1980) e Fiorin (1996) sobre os verbos “dicendi” a dois grupos apenas: os
“dicendi” descritivos e os “dicendi” modalizadores, como ilustra o quadro abaixo:
Verbos “dicendi”
descritivos
descrição pura do processo
de enunciação
( dizer, propor, afirmar, avisar,
responder, concluir, anunciar
contar, vociferar, denunciar,
reafirmar...)
modalizadores
descrição do processo de enunciação
e referência ao julgamento atribuído
ao enunciador de qualquer instância de
enunciação
(lamentar, desabafar, repetir, julgar,
criticar, queixar-se , negar, questionar,
reclamar, ponderar, sussurrar...)
FIGURA 10 - A figura 10 ilustra uma proposta, provisória, de reclassificação dos verbos
“dicendi”, levando em conta a significação de tais verbos e, em extensão, dos verbos “nãodicendi”.
No primeiro grupo, estariam os verbos ilocucionários e os não-ilocucionários, que
fornecem as características da enunciação sem trazer para a cena enunciativa as
informações que explicitam o julgamento do seu enunciador. Há de se notar que essa
reclassificação em descritivos e modalizadores não está muito distante da proposta de
Kerbat-Orecchioni (1980). Porém ela alarga o conceito do que foi chamado de verbos
177
que fornecem “informações apreciativas”88. Consideramos que tais verbos têm uma
dupla propriedade, pois, ao mesmo tempo que indicam julgamentos atribuídos a seus
enunciadores, trazem para a cena enunciativa informações sobre a forma utilizada para
dizer o que se diz.
Isso posto, não iremos manter a classificação provisória aventada na Figura 10.
Defenderemos o tese de que, na perspectiva de modalização que estamos adotando, não
faz sentido falar em subclassificação dos verbos “dicendi”. A classificação provisória,
então proposta, evidenciou o fato de que :
a) tal como acontece com as classificações a que nos referimos anteriormente, no item
3, ela baseia-se apenas em critérios semânticos;
b) ela mostra que uma classificação semântica dos verbos dicendi, e em extensão do
conjunto de recursos por nós identificados como “formas de dizer”, pode ser
reduzida a duas classes, se o critério adotado for o da modalização.
Em outras palavras, o que mostra a classificação provisória proposta na Figura 10 é que
há modalidades de semantização das INEs que podem ser estudadas de forma mais
ampla, sem se restringir a uma classificação dos “dicendi”, se tomarmos a modalização
como um fenômeno mais amplo do processamento discursivo.
A questão básica, então, na modalização das CIEs, reside no fato de o falante utilizar,
no processamento discursivo,
mais ou menos os recursos dêiticos, que se
gramaticalizam em função de referenciar, no módulo Semântico, um grau maior ou
menor de modalização das INEs constitutivas do discurso.
5.1.1 Modalizadores do discurso e semantização de INEs
A utilização da dêixis pessoal, temporal e espacial está estreitamente relacionada com a
escolha que o falante faz em relação à forma de CIE, pois, ao mesmo tempo em que ele
se constrói como um dos enunciadores de seu texto, já se situa num espaço e num
88
Cf. Figura 9 apresentada no item 3.3 deste capítulo.
178
tempo. Em relação à instituição dos tempos enunciativos, Neves (1996) levantou a
hipótese de que uma das formas de modalização, no discurso, está diretamente
relacionada à escolha das desinências modo-temporais utilizadas pelo falante para
referenciar o jogo de tempos enunciativos, como em .
(133) “A estabilidade da moeda brasileira foi conquistada graças à abertura às
importações e à ancora cambial que, logo no início, fez o real valer mais que o dólar, o
ritmo da abertura à s importações tem sido revisado. Quanto à política cambial, mudou
a forma, não o conteúdo. Primeiro houve a valorização com relação ao dólar. Depois,
houve atraso na correção do câmbio comparada à inflação. na fase mais recente, a
opção do governo é reduzir, ou mesmo eliminar, a longo prazo, a defasagem cambial.
Ainda, segundo Neves, o emprego de um determinado embreante em detrimento de
outro define a modalização pretendida pelo seu enunciador e, em conseqüência, afetará
a organização sintática a ser dada ao enunciado, como podemos observar em (134),
abaixo:
(134) “Talvez, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo
estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações.” (T 5, L 925)
a. É possível que, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo
estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações.
b. Possivelmente, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo
estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações.
c. É provável que, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo
estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações.
179
d. Provavelmente, em alguns casos, até amplie o mercado de trabalho, favorecendo
estruturas de apuração e checagem mais pesadas e estáveis nas redações.
A gramaticalização dos elementos dêiticos de (134) (“talvez”, “em alguns casos”, e da
desinência modo-temporal do verbo “amplie”) são semantizados para referenciar o
discurso instituído pela “situação default” como uma possibilidade, indiciado o ponto de
vista de EN1 em relação ao discurso de um EN referenciado numa outra INE. Dessa
forma, com a semantização da desinência do modo subjuntivo, o falante teve que optar
por um modalizador cujas propriedades gramaticais referenciassem, ao ser
semantizadas, um discurso cujo significado situa-se no mundo das possibilidades e não
no da certeza.
Deve-se atentar para o fato de que, na base da construção da referência, está a
semantização do tempo/espaço da enunciação – referenciado como o presente, o
aqui/agora do discurso - instituída por uma operação “default” e cujo locutor é
semantizado como EN1. Assim, mesmo que esses “indivíduos lingüísticos” não estejam
marcados morfofonemicamente, eles são referenciados como índices pertencentes ao
plano base: aquele que se enuncia “eu”, o faz de um “lugar” e de um “tempo”. Esses
“shifters” são operacionalizados no módulo Gramatical pelo sistema dêitico e no
módulo Semântico indiciam-se como fatores definitórios do momento em que se realiza
o ato discursivo.
No entanto, por decisões do falante definidas no módulo Discursivo, pode-se criar
outros tempos, a partir do presente da enunciação. Esses tempos, que caracterizam os
subplanos enunciativos, são semantizados a partir de índices, pertencentes ao sistema
dêitico, deixados no enunciado por operações do módulo Gramatical. As operações
realizadas no módulo Semântico indiciam tais pistas como constitutivas do conjunto de
referências necessárias para se construir a articulação das INEs ao plano base de
enunciação.
180
Essas operações no módulo Semântico possibilitam a construção de um jogo de
“tempos” lingüísticos estabelecidos em função do tempo da enunciação. Em outras
palavras, a escolha e a articulação dos tempos, no processamento discursivo, pode ser
utilizada como um dos recursos de modalização do discurso.
Em seu estudo sobre a modalização, Neves (1996:194) mostra-nos que “a modalização
lingüística ocorrente em enunciados efetivos de uma língua e a modalização lógica têm
diferente natureza.” Enquanto os lógicos concebem a modalização com base na
distinção do dito e do modo de dizer e na sua dupla orientação em termos de
conceituação, o que é do conhecimento e o que é da conduta do falante, dentro de um
ponto de vista do funcionamento da língua, a modalização explicita a relação daquele
que enuncia com o seu enunciado. Nesse aspecto, a abordagem pragmática concebe a
modalização como um dos recursos utilizados pelos enunciadores para expressar sua
atitude em relação ao que se enuncia.
Também de acordo com Neves, “muitos meios se usam para os mesmos fins”
(1996:166). Assim, as decisões do falante, no módulo Discursivo, sobre categorias
diferentes de itens lexicais, sintagmas e outros recursos lingüísticos (as desinências
modo-temporais, os parênteses, as aspas, etc.) ativados do Léxico são indiciados por
operações no módulo Gramatical e podem ser usados como reveladores da modalização
do discurso de EN1, por operações no módulo Semântico. Isso pode ser ilustrado, nos
exemplos abaixo, pelo emprego dos itens em negrito:
(135)“Não se deve considerar irrelevante o fato de cerca de 70% das “empresas
mortas” terem apenas dois empregados e 10% mais de cinco contratados.” (T13, L 1316)
(136)“Impressiona o grau de desconhecimento do real funcionamento do mercado de
trabalho no Brasil por aqueles que, em vez de informar, pretendem denunciar os
181
elementos de rigidez impostos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) num
ambiente de grande escassez de empregos.” (T37, L 1-7)
(137) “Achava que o verbo não pode reger coisa.” (T40, L 40)
(138) “Marafon entende que “a incidência já é uma revogação da isenção”...” (T4, L
24)
(139) “Acredito sim, naquilo que é cientificamente testado e seriamente apresentado
nos locais e ocasiões apropriadas para tal.” (T43, L 54-57)
(140) “Há exceções, evidentemente - e Tarso Genro, em que pese sua conversa
engomada, é uma delas.”(T7, L 39-43)
(141) “O primeiro é a lei vigente, instrumento de arrocho, torneado pela ditadura,
contra a liberdade de imprensa, que não é um direito do jornalista, como erradamente
se pensa, mas da própria sociedade para a prática do autogoverno.” (T11, L 33-38)
(142) É igualmente inaceitável a proposta do estabelecimento de multas para os meios
de comunicação sem fixação de um teto ou limite. (T18, L 70-73)
(143) “Jospin precisa convencer os franceses, depois o resto da Europa principalmente a Alemanha, que no ano que vem também escolhe a sua alternativa - e
depois o resto do mundo de que seu capitalismo com cara de gente é viável, e que a
lógica americana não é uma fatalidade nem aqui nem em qualquer outro lugar, leiase o Brasil.” (T20, L 5-12)
(144) “Hoje, a economia avança a um ritmo asiático (8% de crescimento no primeiro
semestre) e o desemprego, embora ainda brutalmente elevado (16,1%), é dois pontos
inferior a 95.” (T27, L 17-21)
182
(145) “Ninguém conseguiu provar que tais medidas contribuam efetivamente para
gerar empregos, pagar bons salários e manter as crianças na escola.” (T1, L 62-5)
(146) “É perdoável errar o capítulo mais difícil da sintaxe da língua portuguesa - a
regência.” (T 40, L 1-3)
(147) “Quanto ao voltei novamente, o verbo voltar significa ir e vir pela segunda vez.
É, pois, correto o emprego de novamente ou de novo.” (T40, L 39-42)
(148) “É necessário esclarecer e debater o assunto para que a opinião pública, o juiz
numa democracia, autorize e legitime o Legislativo e o Executivo nas suas ações.” (T2,
L 33-6)
(149) ”É mais do que evidente que este aspecto da lei coloca espadas sobre a cabeça
dos jornalistas”. (T 18, L 73 - 75)
(150) “Certo que algumas experiências, e muitos dos métodos adotados, naufragaram
na demagogia e na violência.” (T 44, L 27 - 29)
(151) “Claro que as causas são complexas, se bem que uma delas aflora com certa
facilidade.” (T42, L 25 -27)
(152) “Claro que sempre se poderá dizer que a eleição de domingo não põe em jogo o
principal (a Presidência), o que permite ao eleitor brincar de voto de castigo ao
governo, sem o risco de mudanças fundamentais no jogo.” (T 27, 25 - 30)
(153) “A verdade é que aplica-se à Argentina de 1997 o que o general Médici dizia do
Brasil, um quarto de século atrás: o país vai bem, o povo vai mal.” (T 27, 34 - 37
183
(154) “A defesa da elevação das condições de trabalho nos países pobres, portanto,
nada tem de humanitária. Ao contrário, é mais um lance de deslavado protecionismo.
Ela visa, no fundo, encarecer nossas exportações.”(T 1, L 37 -41)
(155) “Interessa ao público e também aos veículos, na minha opinião, que haja mais
responsabilidade.” (T , L 77-9)
(156) “No meu juízo, a prescrição ou sugestão de pena de cadeia, no Brasil atual,
anima-se na irreflexão ou no sentimento sádico.” (T 11, L 74-7)
(157) “Afinal, será que o Primeiro Mundo está com medo do Terceiro Mundo? É isso
que a OIT pretende?” (T1, L 78 - 80)
(158) “Como o arlequim da peça famosa, ele também prometeu servir a outro senhor,
o qual pode ser esquematicamente representado pelas elites dominantes na sociedade
brasileira desde 1500, substituindo-se o português pela globalização.” (T43, L 10-15)
(159) “Os reclamos, que também existem com menos vigor do PFL, soam
extemporâneos porque há algum tempo no próprio governo chegou-se a cogitar de um
recuo na reforma chegando a ser aventada a possibilidade de os ministros-candidatos
saírem todos em abril.” (T9, L 21-24)
(160) “Saí fora, mas plantei uma semente, observação que já havia publicado na minha
coluna do “JT”: ...” (T35, L 43-45)
6. A CIE e o módulo discursivo
De acordo com o exposto neste capítulo, a CIE está diretamente relacionada às
operações de ativação de instâncias enunciativas, que se configuram pela inserção de
uma nova situação de interlocução, resultando, pois, na indiciação da enunciação,
caracterizada pelo módulo discursivo. A ativação desse módulo possibilita a instituição
184
de planos discursivos distintos, cada um constituído pelo seu próprio sistema de
referência – o seu “aparelho formal da enunciação”. Assim, cada instância é construída
em torno de um enunciador que “fala” para um enunciatário, estando ambos
referenciados pelo tempo/espaço interno à instância de enunciação em que se inserem.
Destacamos, no capítulo 2, que os módulos do discurso seriam apresentados
separadamente, apenas por motivos metodológicos. Nesse momento, no entanto,
retomamo-los como parte de um sistema único, a partir do qual se pode conceber a
situação de interlocução como a base de construção de instâncias enunciativas, de CIEs,
e de sua referenciação. Nesse sentido é que postulamos, com Castilho (1998), que a CIE
resulta de operações de ativação dos módulos Discursivo, Sintático e Semântico
intermediados pela ativação do Léxico, num movimento simultâneo.
As operações no módulo Gramatical explicitam as “pistas” para a construção de
sentidos, pois o
“O leitor lê em planos, em instâncias de enunciação (e na
articulação entre planos e instâncias), daí a impossibilidade de se
interpretarem os tempos verbais de uma forma convencional.”
(Lopes, 1998:159).
Além disso, a articulação sintática (e a semântica) na CIE evidenciou que todo e
qualquer item lexical deve ser analisado levando-se em a situação de discurso. Na
intermediação do sistema lexical com os módulos lingüísticos, formando um sistema
único, é que se caracteriza o papel do processamento dêitico na instituição da polifonia
no discurso.
As operações realizadas no módulo Semântico operacionalizam a ativação das
propriedades semânticas do item lexical selecionado e promovem a construção do
sentido na situação discursiva. A construção do sentido não é possível sem o
processamento dessas propriedades a partir de operações dos dois outros módulos
lingüísticos.
185
A Teoria Modular, na visão de Castilho (1998), possibilita constatar que a sintaxe e
semântica de um texto evidenciam uma pluralidade de usos do léxico que fogem às
“regularidades” postuladas pela GT. A CIEs, em conseqüência disso, envolve essa
pluralidade de uso dos itens lexicais. Essa pluralidade, no entanto, não impede que se
detectem regularidades no processamento discursivo.
As regularidades, relativas ao processo de CIEs identificadas nos textos jornalísticos
analisados, apontam para a importância de se considerar uma sintaxe e uma semântica
integradas ao discurso, ou seja, à situação de interlocução.
A configuração da “situação default” – INE1 constituinte do plano base - evidencia que
a construção de outras instâncias enunciativas são engendradas a partir das coordenadas
fornecidas no e pelo plano base ( a INE1). O sistema de referência da INE1 constitui a
diretiva a partir da qual se constroem as múltiplos INEs com seus respectivos
enunciadores/tempos/espaços enunciativos.
Com base nas regularidades no processo de CIEs apresentamos, a seguir, a taxionomia
dos recursos lingüísticos utilizados pelos falantes para constituir a si próprio e/ou a
outros falantes como enunciadores, “indivïduos lingüísticos”, de seus textos no
processamento discursivo
7. Taxionomia das estratégias discursivas de CIEs
Um dos objetivos propostos, neste estudo, é a construção de uma taxinomia, para
explicitar quais recursos lingüísticos constituem-se como estratégias empregadas pelo
autor de textos para se construir como enunciador e a outros como enunciadores de seu
texto escrito. Nesse sentido, a análise empreendida nesta pesquisa evidenciou que
1. a CIE está diretamente relacionada às decisões tomadas pelos falante no módulo
Discursivo, uma vez que a situação de interlocução é fator determinante na
operacionalização dos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico, com vistas a
ativar, no Léxico:
186
1.1. as propriedades gramaticais e semânticas dos itens lexicais;
1.2`. as formas de articulação desses itens no discurso.
2. as operações no módulo Gramatical definem-se basicamente pela ativação das
propriedades gramaticais dos itens lexicais, considerando:
2.1. a sua configuração formal em um item lexical, ou em um sintagma;
2.2. a sua articulação gramatical a partir das relações explicitadas no enunciado.
Em relação à ativação das operações realizadas em 2.1, são definidas as estratégias de
gramaticalização do plano básico pela “situação default” e dos planos subalternos pela
ativação de um item lexical e/ou a combinação desses, com fins a constituir uma
estrutura sintagmática para indiciar a CIE. Dessas operações resultam:
2.1.1
a caracterização do plano básico, indiciado como o eu/aqui/agora da
enunciação;
2.1.2
a caraterização dos planos subalternos em decorrência das
coordenadas definidas no plano básico;
2.1.3. a caracterização das “formas de dizer” pela ativação de um item
lexical, ou a ativação de um conjunto desses itens, com objetivo de indiciar o
discurso.
A articulação gramatical, referida em 2.2, define-se em função das estratégias
implementadas em 2.1, para que o leitor explicite como são gramaticalizados os itens
e/ou sintagmas ativados no processamento discursivo. Enfim, revelam-se as formas de
organização do discurso, relativas à organização gramatical dada ao enunciado. .
3. as operações no módulo Semântico definem-se basicamente pela ativação das
propriedades semânticas dos itens lexicais, considerando
3.1. a construção da referência da “situação default”, visando a sua interpretação
como o plano básico de CIE, que a situa como o presente da enunciação;
3.2 a identificação do jogo de “tempos” e “planos enunciativos” visando à
articulação desses tempos e à referenciação dos discursos que os caracterizam. como
subordinados a uma instância básica;
187
3.3. a construção da modalização, visando a um distanciamento maior ou menor
do falante, construído em “situação default”, em relação ao discurso por ele
instituído.
Essas operações estão diretamente relacionadas à semantização das propriedades
ativadas nos recursos lingüísticos no módulo Gramatical, com vistas a possibilitar a
interpretação das informações gramaticalizadas na materialidade dos enunciados.
Em suma, tais operações nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico explicitam
que as estratégias de CIEs, de fato, estão relacionadas a uma utilização maior ou menor
dos recursos dêiticos que referenciam e articulam as instâncias enunciativas dos planos
subalternos à instância fundadora do discurso.
7.1. Estratégias discursivas de CIEs
Tendo em vista a multiplicidade de recursos dêiticos utilizados pelos falantes para
indiciar mais ou menos os enunciadores de seus textos, no processamento discursivo,
definimos apenas duas estratégias básicas de CIEs que revelam como se dá a
intermediação do Léxico na operacionalização dos módulos lingüísticos. A primeira
delas é a “situação default”, estratégia discursiva que gramaticaliza e semantiza o autor
de textos como um “indivíduo lingüístico”, situado num tempo/espaço também
lingüístico, a partir do qual se constrói o conjunto de referências do texto.
A segunda estratégia define-se pela ativação do Léxico. Essa estratégia, como
demonstramos ao longo dessa análise, caracteriza-se pela atividade do falante na
mediação pelo sistema lexical, visando a ativar/reativar/desativar as propriedade
gramaticais e semânticas dos itens lexicais para indiciar-se, no processamento
discursivo, como enunciador de seu texto.
Essas duas estratégias discursivas podem ser construídas com base num conjunto amplo
de recursos lingüísticos que, empregados no discurso, explicitam se como recursos
188
indiciares da situação discursiva. Numa tentativa de ilustrar como se realizam essas duas
formas de CIE, reunimos, abaixo, o conjunto de recursos que as possibilitam.
(A) – “Situação Default”
Como vimos no desenvolvimento de nossa análise, a “situação default” é a estratégia
discursiva utilizada para identificar a instância fundadora do discurso:
(A1) pode estar ostensivamente marcada pela dêixis de pessoa, de tempo e de espaço;
(A2) pode estar menos indiciada, o que obriga o leitor a buscar a sua identificação e
referenciação na gramaticalização e semantização de recursos dêiticos constitutivos do
seu enunciado.
Disso depreende-se que, a existência de mais ou menos recursos dêiticos estão
relacionados à questão de uma modalização maior ou menor do enunciador da “situação
default”. Nesse sentido, a ocorrência (A1) explicita que a voz autoral identifica-se com a
voz do EN1 e (A2), que a voz autoral remete a um enunciador com o qual, embora seja
instituído como EN1, não se identifica explicitamente.
As operações relativas à construção da “situação default”, nos módulos lingüísticos,
estão relacionadas à ativação e seleção de certos recursos lexicais, cujas propriedades
gramaticais serão ativadas e semantizadas em função de indiciar a instância fundadora
do discurso e as outras instâncias que a ela se articulam. Em decorrência dessas
operações no três módulos lingüísticos, podemos postular que as características acima
são ativadas visando a possibilitar ao AL1 operar os recursos lingüísticos presentes no
enunciado e ativar as propriedades semânticas dos mesmos, identificando a modalização
da “situação default”, relativas à: (i) pessoalização, que nos remete ao caso (A1); (ii)
impessoalização, que remete ao caso (A2), cuja identificação encontra-se ancorada na
articulação gramatical e semântica dos dêiticos espaço/temporais que indiciam a INE1
como o ponto zero para onde convergem as informações dos dêiticos. Sua
gramaticalização e interpretação ancoram-se nas informações dêiticas de outras
instâncias enunciativas, uma vez que sua instituição somente se efetiva através das
189
operações no módulo Semântico que apontam para o seguinte: “alguém está dizendo
que ...”.
(B) Ativação do Sistema Lexical
(B1) Ativação de um item lexical: verbos “dicendi"
Esse recurso define-se como um dos recursos característicos da estratégia de ativação de
um item lexical. Os verbos “dicendi” evidenciaram-se como um dos importantes
recursos lingüísticos utilizados pelos autores de texto na instituição de instâncias
enunciativas, uma vez que o simples fato de enunciá-lo já institui uma situação de
interlocução. Esses verbos podem gramaticalizar, referenciar e modalizar tanto (A) a
“situação default”, como (B) as outras instâncias enunciativas, definindo-as como
formas de explicitação dos recursos dêiticos presentes nos morfemas verbais.
(B1) Utilização de verbos “não-dicendi”
Os verbos “não-dicendi” têm a mesma importância que os verbos “dicendi” na
caracterização das instâncias de enunciação. Um fator importante a se considerar em
relação aos verbos “não-dicendi” é a sua classificação estar diretamente relacionada às
operações ativadas nos módulos lingüísticos. A seleção de um “não-dicendi” do Léxico
implica a ativação de suas propriedades gramaticais, que são semantizadas em função de
se criar um efeito de sentido próximo ao dos característicos “dicendi”. Esses verbos,
considerados no processamento discursivo, são empregados da mesma forma que os
“dicendi” na caracterização de (A) - “situação default” - e (2) de outras instâncias
enunciativas diferentes da INE1.
(C) Utilização de deverbais
190
Os deverbais constituem-se como um recurso, ao lado dos verbos “dicendi” e dos “nãodicendi”, muito empregado na caracterização das instâncias de enunciação. Há dois
fatores importantes a se considerar em relação aos “deverbais”.
Em primeiro lugar, a sua classificação estar diretamente relacionada às operações
ativadas nos módulos lingüísticos, pois a seleção de um deverbal do Léxico implica a
ativação de suas propriedades gramaticais, que são semantizadas em função de se criar
um efeito de sentido semelhante ao dos “dicendi”. Em segundo lugar, os deverbais
selecionados são correlatos dos verbos “dicendi”. Considerados no processamento
discursivo, os deverbais são empregados da mesma forma que os “dicendi” na
caracterização de instâncias enunciativas tanto do plano básico como dos planos
subalternos.
(B2) Os “sintagmas de elocução”
Os “sintagmas de elocução” são formados a partir da articulação gramatical e semântica
de itens lexicais, constituindo um conjunto harmônico, cuja articulação não pode ser
quebrada sem o risco de comprometer a CIE que eles instituem e/ou modalizam e a que
se referem. Considerados no processamento discursivo, os “sintagmas de elocução”
classificam-se em três categorias: (1) os que fazem uma referência explícita à situação
de interlocução; (2) os que fazem uma referência indireta à situação de interlocução; e
(3) os que exigem um esforço maior dos prováveis interlocutores para a identificação de
uma situação de interlocução.
(C) Recursos exclusivos da escrita
Nesse grupo, incluem-se os seguintes itens: parênteses, aspas (duplas ou simples),
travessões, os dois pontos e os parágrafos. O corpus apontou para a necessidade de se
considerar esses recursos como importantes recursos para a constituição de instâncias
enunciativas. O seu emprego indicia ostensivamente a instauração de uma nova
191
instância de enunciação, com o fim de caracterizar um discurso referenciado e/ou
modalizador (1) quer no interior da INE1; (2) quer no interior de um discurso de
qualquer outro enunciador; (3) quer no interior de seu próprio discurso. Esses recursos
estão sendo chamados de modalizadores devido ao fato de que instituem, no discurso,
em que se inserem o ponto de vista de um determinado enunciador.
Tais recursos indiciam como se dá a articulação das diversas instâncias de enunciação,
tendo em vista o fato de que (i) a sua gramaticalização aponta para as formas de
articulação das INEs do plano subalterno no interior da INE do plano básico,
caracterizadas por operações no módulo Gramatical; (ii) as operações no módulo
Semântico indiciam a configuração semântica das relações explicitadas no módulo
gramatical, caracterizando, dessa forma, a modalização pretendida no módulo do
Discurso.
(D) Formas de articulação na CIE
As formas de articulação entre as diversas instâncias de enunciação, constatamos que,
basicamente, ocorre de duas maneiras: indiciadas mais ou menos ostensivamente por
diferentes categorias de itens lexicais ou sintagmas instituídos nas instâncias de
enunciação. A articulação entre as diversas INEs poderá ser indiciada pelos diversos
recursos descritos acima, sendo sua característica promover a referenciação e/ou a
modalização dos discurso constitutivos das diversas INEs.
Podemos notar que, pela taxionomia acima, um outro dado explicita-se: não há como
falar de “regularidades”, pelo menos no que diz respeito à concepção tradicional das
formas de se explicitar as vozes diferentes de um texto, relativamente à forma de
articulação entre as instâncias de enunciação. Por um lado, se a utilização mais
ostensiva dos dêiticos que indiciam a situação de interlocução explicita como ocorre a
organização gramatical e semântica entre as INEs; por outro, a utilização menos
ostensiva indicia que a articulação sintática e semântica das INEs pode se dar
192
diretamente ancorada em outros itens responsáveis pela instituição das INEs. Nessa
perspectiva, essa duas formas de articulação de INEs são consideradas estratégias de
modalização do discurso.
Tal fato evidencia um outro fator a ser considerado em relação aos estudos lingüísticos:
a necessidade de repensar o que se entende por regularidades na utilização da língua. Na
perspectiva discursiva que adotamos para essa análise, falar em regularidade pressupõe
falar de discursivização, ou seja, reconhecer a importância de se levar em conta os
diversos fatores que promovem e definem a produção de um texto, de uma enunciação.
8. Síntese
A CIE decorre, principalmente, da habilidade do autor de textos em operacionalizar os
recursos lingüísticos para que os enunciados produzidos possibilitem a enunciação
almejada. Isso, em outras palavras, refere-se à competência dos interlocutores para
operar com e no Léxico e, levando em conta a situação de interlocução (uma operação
com e no léxico e, em conseqüência, a ativação do módulo Discursivo), dar
significação aos elementos lingüísticos (ativação do módulo Semântico) e organizá-los
(ativação do módulo Gramatical) de acordo com a função a que se destina a
enunciação. Essas operações constituíram o objetivo de nossa análise, no que concerne à
CIEs. As estratégias identificadas e tomadas como objeto de estudo neste trabalho, se,
de um lado, têm como origem os recursos lexicais, de outro, revelam que os arranjos
lingüísticos feitos pelos interlocutores só se efetivam se ativados os módulos
Discursivo, Gramatical e Semântico. Sistematicamente, trazem à tona um outro fator
importante: a enunciação traz as marcas de seu enunciador (hipótese em que nos
baseamos para empreender esta pesquisa) e revelam o nível de conhecimento que o
produtor de textos possui dos mecanismos lingüísticos que possibilitam um exercício
com e na língua, visando a interação verbal.
Procuramos demonstrar que a CIE está diretamente relacionada ao funcionamento
discursivo, considerando-se as operações de ativação/reativação/desativação das
193
propriedades discursivas, sintáticas e semânticas dos itens lexicais nos módulos
Discursivo, Gramatical e Semântico. Essas operações explicitam como estratégias
discursivas (1) a utilização da “situação default” e (2) utilização do Léxico que, no e
pelo processamento discursivo, implementam-se através do seguintes recurso dêiticos:
1. a “situação default”;
2. a utilização de verbos “dicendi”;
3. a utilização de verbos não-dicendi;
4. a utilização de deverbais;
5. a utilização de “sintagmas de elocução”;
6. a utilização de recursos próprios da escrita;
7. a articulação das diversas instâncias
Relativamente a 7, os operadores discursivos89, entendidos como toda uma classe de
recursos que orientam para a articulação semântica e sintática na articulação das
instâncias enunciativas, desempenham um papel fundamental na CIE e, como já
dissemos anteriormente, da enunciação por inteiro.
Adotando uma Teoria Modular, demonstramos que a ativação do Léxico, um importante
mediador no processamento dêitico, está diretamente relacionada às operações
realizadas nos módulos Discursivo, Gramatical e Semântico, tendo como base a situação
de enunciação.
Desta forma, no e pelo discurso, as “vozes” dos enunciadores - expressas segundo uma
organização definida pela ativação dos módulos lingüísticos – (re)velam os pontos de
vista deles, definindo, assim, as formas de modalização dos discursos em sua
89
Utilizamos essa terminologia de acordo de Ilari (1990) por dar conta de uma universo bem amplo de
itens lexicais utilizados na atividade discursiva. Apresentamos no capítulo 2 uma definição dos termos
utilizados nesta pesquisa. Nele deixamos claro que da forma como define o autor os operadores
discursivos abrangem uma categoria ampla e bem diversificada de termos lingüísticos que no discurso
desempenha a função de organizar o discurso e se refere a “unidades (...) que ultrapassam não só os
limites dos constituintes, como também da sentença” (Ilari, 1990: 84). Significa, então, que não ficamos
restritos à concepção das conjunções segundo a Gramática Tradicional.
194
enunciação. Além disso, essa organização explicita os diversos fatores envolvidos na
produção de um discurso.
Em suma: a ativação de operações de CIEs resulta da competência lingüística do autor
de textos - orais e escritos - em povoar a sua enunciação de enunciadores, operando os
recursos lingüísticos de forma a se obter os efeitos de sentido desejados. Na base dessa
competência está o Léxico e, dentro deste, o sistema dêitico responsável por indiciar a
sua atividade discursiva.
Faz parte da competência lingüística do autor de textos operar com o sistema lexical, de
acordo com os índices definidos no e pelo ato de enunciação, que são processados pelo
falante na ativação dos módulos lingüísticos, numa intermediação com o Léxico. Nesse
sentido, postulamos que a CIE decorre dessa capacidade do falante e revela, também
como se constrói a polifonia, que resulta da articulação dos planos enunciativos
relativamente à instauração da instância fundadora do discurso – INE1.
No próximo capítulo, tendo em vista que já adiantamos parcialmente no corpo deste
capítulo algumas das conclusões a que chegamos, essas serão retomadas a fim de dar
mais ênfase às conseqüências e às contribuições decorrentes dos resultados por nós
obtidos.
195
Conclusão
Introdução
No capítulo anterior já adiantamos, concomitantemente, à análise dos dados e à proposta
da taxionomia das estratégias discursivas de construção de enunciadores no texto
escrito, algumas das conclusões decorrentes da abordagem teórica com que tratamos o
objeto analisado. Contudo retomamos tais conclusões com o intuito de reuni-las e
fornecer ao leitor o conjunto delas, dando-lhe subsídios que o façam compreender a
importância de adotar se uma nova perspectiva de análise da língua..
Sob essa perspectiva, a análise da língua deve ser orientada pela atividade lingüística do
falante no e pelo processamento discursivo, no eu/aqui/agora da enunciação,
considerando, para isso, as variáveis que interferem na produção de uma enunciação e
que se definem como as condições de sua produção. Assim, uma enunciação é única
porque as condições de sua produção serão sempre novas. Em outras palavras, cada vez
que um mesmo enunciado é proferido, a enunciação que ele encerra renova-se, pois
outras são as condições presentes a cada vez que ele for enunciado. Cada enunciação
possui em si um conjunto de coordenadas que a definem e a localizam como
pertencentes a um tempo e espaço, pois, no eixo das coordenadas espaço/temporais,
cada enunciação ocupa seu espaço e seu tempo, sendo o presente lingüístico o tempo a
partir do qual as enunciações presentes numa enunciação orientam-se para um momento
posterior, simultâneo ou anterior ao momento em que aquela se deu.
Reconhecer esse movimento no eixo do tempo/espaço lingüísticos é, também,
reconhecer o caráter polifônico da enunciação, concebendo que cada nova orientação
temporal indiciada instaura uma nova instância de enunciação. Cada instância, por sua
vez, institui seu próprio sistema de referência, indiciados lingüisticamente pelo sistema
dêitico. Tal fato permite que identifiquemos as diferentes instâncias que se articulam
196
sintática e/ou semanticamente como partes de uma única enunciação. A organização
interna das instâncias enunciativas está diretamente atrelada à diretiva estabelecida no
primeiro plano de enunciação, identificado como sendo o momento axial, o ponto 0, da
atividade lingüística.
Assim, os pressupostos que nortearam a nossa pesquisa se confirmaram como decisões
importantes a serem tomadas pelos autores de textos na configuração de sua enunciação,
pois as estratégias lingüísticas identificadas por nós são empregadas de acordo com as
coordenadas situacionais definidas como condições para a produção de um texto e
evidenciam o caráter polifônico da enunciação.
2. Os pressupostos da pesquisa
Os pressupostos iniciais da pesquisa obrigaram-nos a especificar os conceitos com os
quais trabalharíamos para definir, com precisão, a concepção de linguagem, de texto, de
discurso, de enunciado e de enunciação e de termos como: autor, enunciador, locutor e
interlocutor.
Isso feito, postulamos que todo texto guarda as marcas dos seus enunciadores,
entendidos estes como os “actores” da enunciação e, como tal, só se definem se
entendidos enquanto elementos lingüísticos. Em virtude disso, tempo/espaço
enunciativos também são concebidos como elementos que só têm existência em função
da enunciação em que se inserem. O texto, portanto, lugar de materialização da
enunciação, fornece-nos as pistas da atividade lingüística de seus interlocutores,
orientando-nos em termos das operações lingüísticas necessárias para a apreensão da
enunciação nele contida. O texto é, então, o lugar da materialização das estratégias e dos
recursos lingüísticos ativados durante o processo de interação.
Os pressupostos básicos de nosso estudo - (i) a voz autoral pode ser expressa por um
enunciador que se identifica, explicitamente, como o autor do texto; (ii) a voz autoral
pode estar implícita na voz de um enunciador outro que não remete ao autor do texto;
197
(iii) a voz autoral pode ser expressa por diferentes vozes enunciativas; (iv) outras vozes,
com as quais a voz autoral não se identifica, podem ser expressas na constituição de um
texto – apontam para as seguintes conclusões em relação à polifonia presente na
enunciação:
• todo texto explicita lingüisticamente a ação de, no mínimo, dois interlocutores, os
quais denominamos EN1-AL1, que caracterizam o par de interlocutores que
caracterizam a primeira instância de enunciação;
• todo texto explicita, em conseqüência da atividade lingüística do par interlocutivo da
primeira instância enunciativa (EN1-AL1), o agenciamento de outros enunciadores;
• todo texto explicita, a partir do agenciamento de outros enunciadores, a instituição de
outras instâncias enunciativas constituídas cada uma por um sistema próprio de
referências, um par de interlocução e uma localização no eixo das coordenadas
espaço/temporais;
• todo texto explicita, a partir da instituição das instâncias enunciativas, a existência de
planos enunciativos que fornecem os indícios de uma organização hierárquica das
instâncias de enunciação;
• todo texto explicita, em decorrência da organização dos planos enunciativos, a
coordenação ou a subordinação das instâncias enunciativas umas às outras, em
termos da sua organização formal ou dos efeitos de sentido produzidos, no
processamento discursivo;
• todo texto materializa as pistas do processamento dêitico no discursivo. Isso revela
que esse processamento está diretamente relacionado às operações realizadas, com a
mediação do Léxico, cujos itens têm ativadas/reativadas/desativadas as suas
propriedades discursivas, sintáticas e semânticas pelos autores de textos nos módulos
Discursivo, Gramatical e Semântico.
Logo a voz autoral explicita-se pela voz atribuída ao enunciador de primeira instância
que é autorizado a pôr em cena os outros enunciadores de seu discurso. Essa voz autoral
institui-se em “situação default”, quando, pela tomada da palavra, o EN1 é introduzido
no discurso.
198
A “situação default” pode ser instituída de duas formas, as quais remetem aos
pressupostos (i) e (ii). Na primeira forma, que se dá mais ostensivamente, EN1 utilizase de recurso ostensivos de indiciação e pessoaliza a sua voz, construindo-se
lingüisticamente como eu, revelando-se, então, como aquele que enuncia, ou seja, como
a fonte produtora da enunciação. Na segunda, EN1, apesar de ser a voz que funda o
discurso, mantém uma certa distância do texto, utilizando-se, de uma forma menos
ostensiva, de elementos lingüísticos que tendem a apontar para uma “voz”, que se
gramaticaliza e semantiza como uma voz distinta da voz autoral, que se mantém mais
distante do texto que constrói.
Essas duas estratégias de CIE em “situação default”- a pessoalização e a
impessoalização – foram identificadas como formas de modalização do discurso do
enunciador da instância caracterizada no plano básico de discursivização, por indiciarem
um maior ou menor engajamento do enunciador em relação àquilo que enuncia.
Verificamos também que os recursos lingüísticos empregados em “situação default”
sempre apontam para a voz do enunciador de primeira instância, cuja característica
principal é a marca do eu que se enuncia e que, com este seu ato, funda a atividade
discursiva, ou seja, referencia o presente da enunciação.
Em vista disso, os outros pressupostos decorrem da atividade interlocutiva de EN1 que
opera na e com a língua, introduzindo outros enunciadores - outras vozes - que,
juntamente com ele, compõem o cenário da enunciação.
Vale a pena registrar que, no conjunto, esses pressupostos acima não se excluem; muito
pelo contrário, completam-se. A reunião deles em termos de princípios evidenciam a
propriedade polifônica da enunciação e a atividade lingüística dos enunciadores que
operam os recursos lingüísticos de acordo com as condições do momento da interação
verbal.
199
Com base no que postulamos acima, esta pesquisa forneceu evidências que sugerem
que, em textos escritos, é possível detectar a atividade lingüística dos seus enunciadores,
e que, na origem, dessa atividade, está a competência dos enunciadores em operar com e
sobre o Léxico para a ativação dos conhecimentos lingüísticos armazenados em sua
memória (ativação/reativação/desativação das propriedades discursivas, sintáticas e
semânticas dos itens lexicais), em vistas das operações nos módulos lingüísticos,
visando à enunciação pretendida. Procuramos contribuir, também, com um
levantamento dos recursos discursivos utilizados na construção de enunciadores do
texto escrito e dos recursos lingüísticos que os operacionalizam, enfatizando que o uso
de um recurso lingüístico em detrimento de outro na construção de um enunciador – ou
de uma INE - não se dá aleatoriamente, porém está relacionado com a enunciação
atribuída a ele. Em conseqüência das estratégias discursivas identificadas e dos recursos
lingüísticos ativados na CIE, evidenciou-se ser necessária uma nova classificação dos
verbos “dicendi” em duas classes mais gerais, contudo mais abrangentes - verbos
descritivos e verbos modalizadores. Levando-se em conta a forma como esses verbos
funcionam no interior de uma enunciação. Concluímos esta parte propondo também que
se considerasse os verbos “dicendi”, os verbos “não-dicendi” e os deverbais como
elementos que constituem um mesmo conjunto de itens, cujas propriedades sintáticas e
semânticas, em função da situação discursiva, aproximam-se. A nossa proposta
culminou com a indicação de classificá-los todo como “formas de “dizer”.
De uma forma geral, esta dissertação sugere questões a serem trabalhadas em pesquisas
futuras, que se incluem
• a questão da modalização do discurso de um enunciador: fizemos um levantamento
dos recursos lingüísticos que, a nosso ver, introduzem a modalização no discurso.
Basicamente, apoiamo-nos em estudos realizados pelo subgrupo da Organização
Textual/Interativa do grupo de pesquisadores do Projeto de Gramática do Português
Falado, que elegeram a língua oral como objeto de estudo. Foi-nos possível esse
200
diálogo com tais estudos, pois a concepção de língua e de texto que adotamos é a
mesma adotada por eles. Por outro lado, reconhecemos que nossa análise situou a
questão da modalização num nível descritivo. No entanto, para os objetivos a que nos
propomos, tal descrição foi satisfatória, culminando com a explicitação de dados para
a taxionomia das estratégias discursivas utilizadas na construção de enunciadores do
texto escrito.
• a questão dos operadores discursivos: baseamo-nos, ainda, nos estudos do PGPF, no
subgrupo de Sintaxe. Vislumbramos a possibilidade de se desenvolver um trabalho
que tenha como objetivo descrever, com base em textos escritos, como os itens
lexicais agrupados sob essa denominação são utilizados nesse tipo de discurso.
Conseguimos identificar alguns operadores discursivos, mas acreditamos que há, em
relação a eles, um universo bem grande e complexo de itens lexicais usados,
comumente, na fala e na escrita, com esta função.
• a questão das “formas de dizer”: o processamento discursivo da língua favorece a
utilização de uma gama bem variada de itens lexicais com a função de indiciar o
“dictum”. Dentre esses itens, existem aqueles que, em sua significação pura, não
remeteriam ao “dizer”, mas assumem, no uso, forma e significação ilocutória.
Necessário se faz rever, em termos do que verificamos aqui, uma redefinição dos
ditos verbos não-ilocucionários90.
• A questão de os resultados apontarem para a importância de se repensar a
delimitação das fronteiras que separam entre si os discursos “direto”, “indireto” e
“indireto livre” e as formas de representação destes na escrita.
• A questão do discurso citado e o discurso citante, na perspectiva que foram por nós
analisados, não serem
introduzidos apenas pelos verbos “dicendi” e seus
equivalentes, mas revelarem a existência de outros itens lexicais e de estruturas
sintagmáticas que, ao lado dos “dicendi”, assumem a função de CIEs no discurso.
90
Tal implicação está relacionada à proposta que apresentamos de agrupar num mesmo conjunto os
verbos “dicendi” e os verbos “não-dicendi” sob a denominação de verbos de “dizer”.
201
Propomos as seguintes nomenclaturas e um questionamento relativo à nomenclatura
proposta: “deverbais” e “sintagmas de elocução”; até que ponto tais nomes descrevem
bem a categoria lexical a que se referem?
3. As contribuições da pesquisa
Quanto a essas questões, propomos possíveis desdobramentos desta dissertação.
Conseqüências teóricas
• A identificação de itens lexicais que se juntam à classe de itens que indiciam o
processamento discursivo.
• A indicação de uma terminologia para as “formas de dizer”.
• A proposta de reagrupamento dos verbos ilocutórios.
• O levantamento e a análise das estratégias discursivas que indiciam a construção de
enunciadores no texto escrito.
• A construção de uma taxinomia das estratégias discursivas, apresentando um
detalhamento dos recursos lingüísticos que indiciam a construção dos enunciadores
de textos escritos.
• A identificação dos conhecimentos lingüísticos que revelam a competência básica
dos autores de textos escritos no português contemporâneo.
• A integração teórica entre as abordagens da Teoria da Enunciação e da Organização
Textual/Interativa e da Teoria Modular.
•
A concretização da proposta da mudança do enfoque dado à pesquisa lingüística:
deslocando a lente de análise do “pólo do enunciado para o pólo da enunciação”,
em que nos afastamos do estudo do texto exclusivamente como produto para
considerar o processamento discursivo de que resultam os textos.
Contribuiçõess Empíricas
202
• Coleta de dados em textos jornalísticos, de jornais de grande circulação no país,
visando a descrever um aspecto do português do Brasil contemporâneo. No caso
desta dissertação, como os autores de textos escritos no português culto do Brasil
constroem os seus enunciadores?
• Os textos jornalísticos91, escritos em uma modalidade de registro culto, fornecem
dados que possibilitam a descrição de fenômenos lingüísticos próximos da situação
de uso identificadas na língua real. Sublinhamos o “próximos”, por entendermos que
ambas as representações - a escrita e a fala - manifestam em si as operações do
escritor/falante em situações de comunicação que, embora diferentes na
representação, têm como resultado os textos nos quais ficam indiciadas as pistas que
revelam seu trabalho com e na língua, a sua enunciação.
Contribuições metodológicas
• Os textos jornalísticos foram investigados a partir dos pressupostos levantados em
textos escolares que registravam um uso recorrente de itens lexicais os quais
indiciavam o autor como enunciador. Na investigação dos textos jornalísticos,
inicialmente, construímos a hipótese de que essa atividade estava relacionada ao que
Benveniste chamou de “subjetividade na linguagem”.
• Entendemos que a subjetividade pode ser uma das variáveis que compõem os
elementos da enunciação. Se por um lado, um enunciado resulta de uma seleção
lexical, que envolve um trabalho na e pela linguagem, por outro lado, dependendo
dos recursos implementados na sua produção, ele pode conter um discurso
modalizador, ao exprimir o ponto de vista de seu enunciador em relação ao discurso
do outro, ou caracterizar-se com um metadiscurso.
•
Referirmos à questão da subjetividade como uma forma de modalização do discurso,
não significa que corroboramos essa tese. Essa menção se justifica levando-se em
91
Constam do Anexo os textos jornalísticos de onde extraídos os dados para a análise, conforme já
mencionado no capítulo 1.
203
conta que essa é uma estratégia utilizada pelo autor de texto, para indiciar-se como
um “indivíduo lingüístico”, um enunciador, que pode ou não ter correspondência
com seres do mundo real.
• A sistematização da análise dos dados revelou que não se pode falar das marcas
lingüísticas indiciadas num texto do ponto de vista, apenas, da Subjetividade
Lingüística, mas, muito mais, como indícios que revelam as incursões sempre
dinâmicas do escritor/falante na e com a língua. Esses indícios, portanto, são pistas
importantes que nos obrigam a reelaborar toda uma metodologia própria que nos
permita, a partir dos dados observados, definir caminhos novos a serem trilhados
para explicitar os mecanismos e as operações lingüísticas necessárias à efetivação de
uma enunciação.
• A Teoria da Enunciação, tratada de acordo com uma abordagem mais funcional da
língua, tornou-nos possível o tratamento descrito acima, dentro de uma perspectiva
da Organização Textual/Interativa.
• Em relação à determinação da competência dos falantes, valemo-nos dos princípios
de uma Teoria Modular da Língua, segundo os quais os módulos Gramátical,
Semântico e Discursivo, intermediados pelo Léxico, constituem o sistema
computacional de toda e qualquer língua, sendo, portanto, constituintes do
conhecimento dos autores de textos.
• A sistematização das estratégias discursivas identificadas nos textos jornalísticos
evidenciou que faz parte do conhecimento lingüístico dos falantes a habilidade de
operar, mediados pelo sistema dêitico, com e sobre a língua. Nesse sentido, foram
relevantes as contribuições da Teoria Modular, que evidenciou o fato de o
conhecimento lingüístico do falante caracterizar-se como um sistema computacional,
em que os módulos são ativados concomitantemente.
Contribuições práticas
204
•
A sistematização dos recursos lingüísticos em uma proposta de taxionomia contribui
para acrescentar novos elementos ao conjunto de dados costumeiramente abordados
nas pesquisas lingüísticas e vem ao encontro da proposta do Projeto de Gramática do
Português Falado, que tem como alvo a descrição do português contemporâneo.
Enquanto os pesquisadores buscam, nessa primeira fase, descrever a língua em
situação de fala, nossa pesquisa abordou a situação de escrita, tendo ambas como
orientação a língua em uso, numa tentativa de descrever o seu processamento
discursivo.
•
O detalhamento dos recursos lingüísticos e das estratégias discursivas lança luzes
para a constatação de que, não importa qual seja a forma escolhida para representar
uma situação de interlocução, o seu resultado - o texto, o discurso - estará
impregnado dos fatores envolvidos em sua produção. E mais: defini-los como
elementos que revelam a subjetividade de seu autor é renegar indícios da ação desse
enunciador em termos de indiciar toda uma situação de interlocução e não apenas um
dos aspectos nela envolvidos.
• O detalhamento acima traz contribuições para o ensino de língua, uma vez que, ao
conceber a produção de textos escritos como uma atividade de interlocução, os
profissionais da área estarão assumindo a perspectiva de que o “aprendizado” da
língua materna não deve estar centrado em normas rígidas de gramática, distantes da
necessidade real de uso de sua clientela. Isso porque o ensino de normas gramaticais,
no ambiente escolar, tem como objeto a descrição do enunciado, sem levar em conta
a sua enunciação. Desse modo, o estudo proposto lança elementos novos em relação
à abordagem dos textos escritos e a sua produção, enfatizando a necessidade de se
privilegiar o processo de interação como um todo que influencia no produto final.
Nesse sentido, é importante que os professores tenham uma formação voltada para a
compreensão dos fenômenos envolvidos no processamento discursivo e possam, a
partir das pistas deixadas no texto, sistematizar as regras de sua utilização e, assim,
implementar os conhecimentos básicos que seus alunos possuem, alimentando-os
205
com novos dados que lhes permitam produzir textos adequados à situação de
comunicação.
• Interessa-nos contribuir para um melhor conhecimento da competência dos alunos,
em processo de aquisição da escrita culta, relativamente ao seu desempenho na
construção de textos escolares.
• Em relação a discussão acerca dos discursos “direto”, “indireto” e “indireto livre”, a
pesquisa evidenciou que se faz necessário repensar essa classificação, porque
enunciar é pôr em cena enunciadores outros, compondo um discurso em que vários
outros discursos se imbricam ou apenas se tocam. O discurso é polifônico por
excelência e, portanto, há fronteiras concretas que possam delimitar com clareza tais
formas de indiciar o “discurso de outrem”.
Contribuições para as áreas do conhecimento
• Esta dissertação contribui com uma nova perspectiva de abordar a língua, uma vez
que lança pistas de que o processamento lingüístico envolvido na produção de textos
escritos está estreitamente relacionado com o processamento lingüístico necessário à
produção de textos orais. Esse enfoque comprova a tese de que textos são sempre
textos, não importa que forma utilizamos para representá-los, pois o fim é o mesmo:
a interlocução, condição necessária a uma atividade de comunicação.
• Esta dissertação contribui, ainda, para corroborar os trabalhos realizados pelo PGPF,
uma vez que aplicamos os conhecimentos já produzidos em Sintaxe I e em
Organização Textual/Interativa.
• Em suma: abrem-se caminhos para a interdisciplinariedade e para a integração de
estudos voltados para a descrição do português contemporâneo, em vistas de termos
privilegiado uma descrição do produto lingüístico, sempre relacionado à sua
enunciação, ao seu processamento discursivo.
206
BIBLIOGRAFIA
ANTUNES, Maria Irandê Costa Morais. ASPECTOS DA COESÃO DO TEXTO: UMA
ANÁLISE EM TEXTOS JORNALÍSTICOS. Recife: Ed. Universitária da UFPE,
1996.
ARISTÓTELES. RHÉTORIQUE. Livro I (Trad. de M. Dufort), Paris: Les Belles
Lettres, 1967.
AUSTIN, John Langshaw. PHILOSOPHICAL PAPERS. Oxford: Clarendon Press,
1961.
____________________. HOW TO DO THINGS WITH WORDS. Cambridge:
Cambridge University Press, 1962.
BAKHTIN, Mikhail. ( 1929) MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. São
Paulo: Editora Hucitec, 5ª edição, 1990.
BAR-HILLEL, Yehoshua. ( 1954) “Expressões indiciais”. In: DASCAL, Marcelo
(Org.). FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS DA LINGÜÍSTICA, vol. IV,
Campinas: Ed. do autor, pp. 23-49, 1982. ( trad. de “Indexal Expressions”).
BENVENISTE, Émile.(1966) PROBLEMAS DE LINGÜÍSTICA GERAL I. Trad.: de
Maria da Glória Novak e Maria Luísa Neri. Campinas, SP.: Pontes, 4ª edição, 1995. (
trad. de PROBLÉMES DE LINGUISTIQUE GÉNÉRALE).
__________________. (1970) “O aparelho formal da enunciação”, in.: PROBLEMAS
DE LINGÜÍSTICA GERAL II. Trad.: Eduardo Guimarães ... et al. Campinas,
SP.: Pontes, 1989, pp. 81-90. (Trad. de PROBLÈMES DE LINGUISTIQUE
GÉNÉRALE II. 1974)
BÜHLER, K.. (1934) TEORIE DEL LINGUAJE. Madrid: Revista do Ocidente, 1950
(Trad. de SPRACHTHEORIE).
CÂMARA JR., Joaquim M. PRINCÍPIOS DE LINGÜÍSTICA GERAL. Rio de Janeiro,
RJ: Livraria Acadêmica, 1969.
_____________________. (1970) ESTRUTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA.
Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1995, 23ª edição.
207
CASTILHO, A. T. (Org.). PORTUGUÊS CULTO FALADO NO BRASIL. VOLUME I:
A ORDEM. Campinas, São Paulo: Editora da
UNICAMP/FAPESP, 1989.
______________.______________. (1990) PORTUGUÊS FALADO E ENSINO DA
GRAMÁTICA. LETRAS DE HOJE. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 25, nº 1, pp.
103- 136, março.
___________________________ (1993) “Lingüística Portuguesa. Introdução”. Versão
preliminar (texto mimeo.).
______________. (1996) (Org.). GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS FALADO.
VOLUME III: AS ABORDAGENS. Campinas, S.P.: Editora da UNICAMP/
FAPESP.
________________. (1997) PORTUGUÊS FALADO E REFLEXÃO GRAMATICAL.
Campinas, São Paulo.
________________. (1998) PORTUGUÊS FALADO E REFLEXÃO GRAMATICAL.
Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP/FAPESP.
CASTILHO, A. T. de, BASÍLIO, Margarida. (1996) (Org.). GRAMÁTICA DO
PORTUGUÊS FALADO. VOLUME IV: ESTUDOS DESCRITIVOS. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP; São Paulo: FAPESP.
CEGALLA, Domingos Paschoal. NOVÍSSIMA GRAMÁTICA DA LÍNGUA
PORTUGUESA. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 31ª edição, 1989.
CHOMSKY, Noam. (1957) SYNTACTIC STRUCTURES. Haya. Mouton: 8ª
Impressão, 1969.
CORACINI, M. J. (1991) “O discurso subjetivo da ciência.” In: UM FAZER
PERSUASIVO. São Paulo: Pontes, EDUC.
CUNHA, Celso Ferreira da. (1980) GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio
de Janeiro: FENAME, 6ª edição.
CUNHA. Maria Antonieta Antunes. (1971) O DISCURSO INDIRETO LIVRE EM
CARLOS DRUMOND DE ANDRADE. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado
de Minas Gerais, maio de 1971. (Tese apresentada junto à FALE/UFMG).
DASCAL, Marcelo. (Org). PRAGMÁTICA – PROBLEMAS, CRÍTICAS,
PERSPECTIVAS DA LINGÜÍSTICA. Campinas, SP.: I.E.L., 1982.
DÍAS, Guilhermo Verdín. (1970) INTRODUCCIÓN AL ESTILO INDIRETO LIBRE
208
EN ESPAÑOL. Madrid.
DUBOIS, Jean et alli (Orgs.). DICIONÁRIO DE LINGÜÍSTICA. Trad. de BLIKSTEIN
et alli (Orgs.). São Paulo: Editora Cultrix Ltda, 9ª edição, 1993. (Título original:
DICTIONNAIRE DE LINGUISTIQUE. Paris: Librairie Larousse, 1973.
DUCROT, Oswald , ANSCOMBRE, J.C.. (1981) PROVAR E DIZER: LINGUAGEM
E LÓGICA. Trad.: Maria Aparecida Barbosa, at alii. São Paulo: Global Ed.,
1981.Título
original:
LA
PROUVE
ET
LE
DIT.
Paris:
S.A.
Editions
Universitaires/Jean Pierre Delarge, Editeur.
DUCROT,
Oswald..(1969)
“Pressuposés
et
Sous-entendus”.
In.:
LANGUE
FRANÇAISE 4, Paris, Larousse.
________________ (1984) O DIZER E O DITO. (Rev. téc. da Tradução) Eduardo
Guimarães. Campinas, SP.: Pontes, 1987. Título original: LE DIRE ET LE DIT.
_______________.
(1989)
“Argumentação
e
“Topoi”
Argumentativos”.
In:
GUIMARÃES, Eduardo. HISTÓRIA E SENTIDO NA LINGUAGEM. (Org.).
Campinas, S. P.: Editora Pontes.
DUCROT, º & TODOROV, T.. “Referente”. In.: ENCICLOPÉDIA EINAUDI.
LINGUAGEM – ENUNCIAÇÃO. (Vol. 2) Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da
Moeda, 1984, pp.418-438.
ECO, Umberto. (1986) “ O Leitor-Modelo”. IN.: LECTOR IN FABULADA
COOPERAÇÃO INTERPRETATIVA NOS TEXTOS NARRATIVOS. São Paulo:
Editora Perspectiva.
FARACO, Carlos Alberto. (1978b) “Marcas da subjetividade na linguagem
jornalística”. In: ESTUDOS BRASILEIROS. Vol. 6. Curitiba: pag.:169-78,
1978.
FRANCHI, C.. (1977) “Linguagem: atividade constitutiva”. IN: ALMANAQUE CADERNOS DE LITERATURA E ENSAIO. São Paulo: Brasiliense, 5:9-27.
____________. (1988) CRIATIVIDADE E GRAMÁTICA. São Paulo: Secretaria de
Estado da Educação- Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas.
FIORIN, José Luiz. (1996) AS ASTÚCIAS DA ENUNCIAÇÃO: AS CATEGORIAS
DE PESSOA, ESPAÇO E TEMPO. São Paulo: Editora Ática.
209
GARCIA, Othon Moacir. (1967) COMUNICAÇÃO EM PROSA MODERNA.
APRENDA A ESCREVER, APRENDENDO A PENSAR. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2ª edição, 1969.
GERALDI, João Wanderley. (1984) (Org.). O TEXTO NA SALA DE AULA. Cascavel:
Assoeste, 1984.
______________________.(1991) PORTOS DE PASSAGEM. São Paulo, SP.:
Editora Martins Fontes, 1991.
GREIMAS,
Algirdas
Julien
&
COURTÈS,
Joseph.
(1979)
SÉMIOTIQUE:
DICTIONNAIRE RAISONNÉ DE LA THÉORIE DU LANGAGE. Paris: Hachette,
vol.I.
GRIMES, J. E.. THE THREAD OF DISCOURSE. Connell University, 1972.
GUIMARÃES, Eduardo. (1995) “Sentido e ação”. In.: OS LIMITES DO SENTIDO.
Campinas, São Paulo: Editora Pontes.
HALLIDAY, M. A. K. (1985) AN INTRODUCTION TO FUNCTIONAL
GRAMMAR. London: Eduard Arnold Publisher Ltd..
___________________ & HASAN, Ruquaiya. (1990) LANGUAGE, CONTEXT AND
TEXT: ASPECTS OF LANGUAGE IN A SOCIAL-SEMIOTIC
PERSPECTIVE. Oxford University Press.
ILARI, Rodolfo. (1985) A LINGUAGEM E O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA.
São Paulo: Martins Fontes, pp.: 51-65.
____________.(1992) PERSPECTIVA FUNCIONAL DA FRASE PORTUGUESA.
Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP.
____________. (1995) A LINGÜÍSTICA E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA.
São Paulo: Editora Martins Fontes.
___________. (1996) SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA. (Texto apresentado por ocasião
do Concurso de Professor Titular na Área de Semântica e Pragmática - Departamento
de Lingüística do Instituto de Estudos Lingüísticos - IEL - UNICAMP). Campinas.
____________. (1996) (Org.).GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS FALADO. VOLUME
II: NÍVEIS DE ANÁLISE LINGÜÍSTICA. Campinas, São Paulo: Editora da
UNICAMP/FAPESP.
____________.(1997) A EXPRESSÃO DO TEMPO EM PORTUGUÊS. São Paulo:
210
Editora Contexto, Educ., 1997 (Coleção Repensando a Língua portuguesa).
JAKOBSON, Roman. (1952) “A linguagem comum dos lingüistas e dos antropólogos”.
In.: BLIKSTEIN, IZIDORO e PAES, J. P.. LINGÜÍSTICA E COMUNICAÇÃO.
São Paulo: Ed. Cultrix, 20ª edição, 1995, pp.15-33.(Publicado originalmente in.:
Suplemento do INT. JOURNAL OF AMERICAN LINGUISTICS, XIX, nº 2, abril,
1953).
_________________.(1957) “Shifters, verbal categories and the Russian verb”. In.:
SELECTED WRITTINGS, Haia, Mouton, pp.130-47.
_________________.
(1959)
“Boas’
view
of
gramatical
meaning”.
In.:
GOLDSCHIMIDT, W. THE ANTHROPOLOGY OF FRANZ BOAS. American
Anthropologist, vol. 61, nº 5, part 2, October,1959, Memoir nº 89 of the American
Anthropological Association. (Trad. de BLIKSTEIN, IZIDORO e PAES, J. P..
LINGÜÍSTICA E COMUNICAÇÃO. São Paulo: Ed. Cultrix, 20ª edição, 1995, pp.
87-97).
________________. (1960) “Linguistcs and Poetic”. In.: SEBEOK, Thomas
A.(org.).STYLE IN LANGUAGE. Nova Iorque: M. I. T. Press, 1960. (Trad. de
BLIKSTEIN, Izidoro e PAES, J. P..
LINGÜÍSTICA E COMUNICAÇÃO. São
Paulo: Ed. Cultrix, 20ª edição, 1995, pp. 118-62).
_________________. (1990) ON LANGUAGE. Edited by Linda R. Waugh, Monique
Monville-Burston.
London,
England:
Harvard
University,
Cambridge,
Massachussets, 2nd edition, 1995.
JUBRAN, C.C.A.S., et Alii. “Organização tópica da conversação”. In: ILARI, R. (Org.).
GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS FALADO. VOL. II: NÍVEIS DE ANÁLISE
LINGÜÍSTICA. Campinas, SP.: Editora da UNICAMP, 3ª ed.,1996.
JUBRAN, C.C.A.S. (1996) “Parênteses: propriedades identificadoras”. In: BASÍLIO,
M. (Org.). GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS FALADO. VOLUME IV: ESTUDOS
DESCRITIVOS. Campinas, SP.: Editora da UNICAMP/FAPESP.
_______________. (1996) “Para uma descrição textual-interativa das funções da
parentização.”
In:
KATO,
Mary
A.
(Org.).
GRAMÁTICA
DO
PORTUGUÊSFALADO. VOLUME V: CONVERGÊNCIAS. Campinas, SP: Editora
da UNICAMP; São Paulo: FAPESP.
211
KERBRAT-ORECCHIONI,
Catherine.
(1980)
L’ÉNONCIATION.
DE
LA
SUBJECTIVITÉ DANS LE LANGAGE. Paris: Armand Colin, pp.70-115.
KOCK, Ingedore Grünfeld Kock. (1986) “A questão da modalidade numa Nova
Gramática
da
Língua
Portuguesa.”
In:
ESTUDOS
LINGÜÍSTICOS.
Araraquara,pp.227-236.
________________________. (1987) ARGUMENTAÇÃO E LINGUAGEM. São
Paulo: Cortez, 2ª edição.
________________________. (1992) A INTER-AÇÃO PELA LINGUAGEM. São
Paulo: Ed. Contexto, 2ª edição, 1995.
_________________________. (1996) (Org.) GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS
FALADO. VOLUME VI: DESENVOLVIMENTOS. Campinas, SP.: Editora da
UNICAMP/FAPESP.
________________________.(1997) O TEXTO E A CONSTRUÇÃO DOS
SENTIDOS. São Paulo, SP.: Editora Contexto, Coleção Caminhos da
Lingüística.
LABOV, William. (1982) “Buiding on empirical foundations”. In.: LEHMANN, W. P.
& MALKIEL, Y. (Eds.). PERSPECTIVES ON HISTORICAL LINGUISTICS.
Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company ( Published as
Volume. 24 of the CURRENT ISSUES IN LINGUISTIC THEORY
series),1982,
pp.: 17-90.
______________. (1988) “The child as linguistic historian” In.: LANGUAGE
VARIATION AND CHANGE I . U.S.A.: Cambridge University Press, 1989, pp.: 8597.
LIMA, Carlos Heitor da Rocha. (1957) GRAMÁTICA NORMATIVA DA LÍNGUA
PORTUGUESA. CURSO MÉDIO. Rio de Janeiro: F. Brigüet & Cia. Editores, 13ª
edição, 1968.
LOPES, Maria Angela P. T. . O PROCESSAMENTO DÊITICO NA CONSTITUIÇÃO
DA POLIFONIA. Belo Horizonte: PUC - MINAS, 1998. Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade
Católica de Minas Gerais, 24/04/98. (Inédito).
LYONS, John. (1975) “Deixis as the source of reference”. In.: FORMAL SEMANTICS
212
OF NATURAL LANGUAGE. Cambridge: Cambridge University Press, 1975,
pp.: 61-83.
___________.(1977) SEMANTICS - vol.2. Cambridge: Cambridge University Press.
MAINGUENEAU, Dominique. (1976) NOVAS TENDÊNCIAS EM ANÁLISE DO
DISCURSO. Trad.:Freda Indursky. Campinas, SP.: Pontes, 2ª edição,1993. (trad. de
INITIATION AUX MÉTHODES DE L’ANALYSE DU DISCOURS).
_______________________.(1986) ELEMENTOS DE LINGÜÍSTICA PARA O
TEXTO LITERÁRIO. Trad.: Maria Augusta Bastos de Matos. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. ( Trad. de ÉLÉMENTS LE LINGUISTIQUE POUR LE TEXTE
LITTÉRAIRE. Paris: Bordas, 1986.
MANN, W. & THOMPSON, S. (1986) “Relational Propositions in Discourse”.In:
DISCOURSE PROCESSES, 9:57-90.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. (1989) A AÇÃO DOS VERBOS INTRODUTORES DE
OPINIÕES. Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife.
_______________________. (1991) A ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO. São Paulo,
SP.: Editora Ática, 1991.
______________________. (1995) “Fala e escrita: Relações vistas num continuum
tipológico com especial atenção para os dêiticos discursivos”. (Mimeo.) Texto
a ser publicado nos Anais do II Encontro Nacional Sobre Fala e Escrita, Maceió,
Alagoas.
_____________________. (1996a) “A dêixis discursiva como estratégia de monitoração
cognitiva”. (Mimeo.) Texto a ser publicado nos Anais do XI Encontro Nacional
da ANPOLL, João Pessoa, Pernambuco.
______________________. (1996) “A repetição na língua falada como estratégia de
formulação textual.” In: KOCK, I. O. V. (Org.). GRAMÁTICA DO
PORTUGUÊS FALADO. VOLUME VI: DESENVOLVIMENTOS. Campinas,
SP.: Ed. da UNICAMP/FAPESP.
MARI, Hugo. “Os lugares do sentido”. CADERNOS DE PESQUISA. Belo Horizonte,
213
MG.: NAPq – FALE – UFMG, nº 1, jul.,1991.
UFMG.
MORRIS, C. W.. (1938) FUNDAMENTOS DA TEORIA DOS SIGNOS. Rio de
Janeiro, Eldorado, São Paulo, EDUSP (Trad. de FOUNDATIONS OF THE
THEORY OF SIGNS).
NASCIMENTO, Milton do. (1993) “Proposta teórica para o PGPF”. (Mimeo).
______________________. (1996) “Notas sobre as atividades do Grupo de Trabalho
Sintaxe II”. In: CASTILHO, A. T. de. (Org.). GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS
FALADO. VOLUME III: AS ABORDAGENS. Campinas, S.P.: Editora da
UNICAMP/ FAPESP.
NEVES, Maria Helena. (1996) “A modalidade.” In: KOCH, I. G. V. (Org.)
GRAMÁTICA
DO
PORTUGUÊS
FALADO.
VOLUME
VI:DESENVOLVIMENTOS. Campinas, SP.: Editora da UNICAMP/FAPESP.
OLIVEIRA, Ana Maria P. de et alii.. (1985) VERBOS INTRODUTORES DO
DISCURSO DIRETO. São Paulo: Revista Alfa, nº 29, pp.91-96.
OSAKABE, H.. (1979a) ARGUMENTAÇÃO E DISCURSO POLÍTICO. São Paulo:
Editora Kayrós.
PÊCHEUX, M..(1969). ANALYSE AUTOMATIQUE DU DISCOURS. Paris, Dunod.
PERINI, Mário Alberto.(1976) A GRAMÁTICA GERATIVA: INTRODUÇÃO AO
ESTUDO DA SINTAXE PORTUGUESA. Belo Horizonte, MG.: Editora Ática.
___________________(1995) GRAMÁTICA DESCRITIVA DO PORTUGUÊS. São
Paulo, SP.: Editora Ática.
POSSENTI, Sírio. DISCURSO, ESTILO E SUBJETIVIDADE. São Paulo: Martins
Fontes, 1ª reimpressão, 1993.
______________.“A heterogeneidade e a noção de interdiscursos.” Texto apresentado
para aula de livre docência, Campinas: 30-31/05,1994. (Mimeo).
______________.“Gramática e Análise do Discurso”, “Discurso, Sujeito e Trabalho de
Escrita”, “O sujeito fora do Arquivo”, “Concepções de Sujeito na Linguagem”. In.: O
SUJEITO FORA DO ARQUIVO ( No prelo).
RISSO, Mercedes Sanfelice. (1996) “ “Agora ... o que eu acho é o seguinte” um aspecto
da articulação do discurso no português culto falado.” In: CASTILHO, ATALIBA T.
214
de. (Org.) GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS FALADO. VOLUME III: AS
ABORDAGENS. Campinas, São Paulo: Ed. da UNICAMP.
ROULET, E..(1991) “Vers une approche modulaire de l'ánalyse du discours”. In.:
CAHIERS DE LINGUISITIQUE FRANÇAISE. Nº 12, pp.:53-81.
___________.(1995) “Etude des plans d’organisation syntaxique, hiérachidque et
réferentiel du dialogue: autonomie et interrelations modulaires”. In.: CAHIERS DE
LINGUISITIQUE FRANÇAISE. Nº 17, pp.:123-40.
___________.(1996) “Une description modulaire de l’organisation topicale d’un
fragment d’entretien”. In.: CAHIERS DE LINGUISITIQUE FRANÇAISE. Nº 18,
pp.:11-32.
___________.(1997a)
“A
modular
approach
to
discourse
structures”.
In.:
PRAGMATICS. Nº 7, pp 126-46.
__________. (1997) “Un modéle et un instrument d’analyse de l’organisation du
discours”. (Texto mimeo.) 32p..
SAID ALI IDA, Manuel (s/d) GRAMÁTICA SECUNDÁRIA DA LÍNGUA
PORTUGUESA. São Paulo: Edições Melhoramentos de São Paulo, 7ª edição, 1966.
SAUSSURE, Ferdinand. (1916) CURSO DE LINGÜÍSTICA GERAL. São Paulo:
Cultrix, 1974. (Trad. de COURS DE LINGUISTIQUE GÉNÉRALE).
SEARLE, John R... (1996) SPEECH-ACTS, AN ESSAY IN THE PHILOSOPHY OF
LANGUAGE. Cambridge: University Press.
STAM, Robert. (s/d) “Dialogismo cultural e textual”. IN: BAKHTIN: DA TEORIA
LITERÁRIA À CULTURA DE MASSA. JAHN, Heloísa (Trad.),São Paulo: Ática,
pp.:72-8, (s/d).
TFOUNI, Leda Verdiani. (1992) “O dado como indício e a contextualização do(a)
pesquisador(a) nos estudos sobre compreensão da linguagem”. In.:REVISTA
DELTA. São Paulo: Educ., vol. 8, nº 2, pp.205-223.
VILELA, Mário. (1995) GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA. Coimbra:
Livraria Amedina, 1995.
VILLELA, Ana Maria Nápoles. (1998) PONTUAÇÃO E INTERAÇÃO. Belo
Horizonte: PUC - MINAS, 1998. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
215
de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais,
23/04/98. (Inédito).
WEINRICH, Harald.(1964). LE TEMPS. Paris: Ed. du Seuil, 1973.
________________. (1989) GRAMMAIRE TEXTUELLE DU FRANÇAIS. Paris,
Alliance Française/ Didier/Hatier.
216
Anexo
Textos jornalísticos
I
Texto 1
Proteção
ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES
às
avessas
Segundo o noticiário da semana passada,
a Organização Internacional do Trabalho
(OIT) estaria estudando a adoção de um
"selo social" em todos os países como
garantia do cumprimento de padrões
trabalhistas mínimos.
Essa é uma nova versão da
"cláusula social" que muitas nações
desenvolvidas pretenderam aprovar no
âmbito da Organização Mundial do
Comércio (OMC). Se adotada, a OMC
ficaria com plenos poderes para aplicar
sanções comerciais aos violadores dos
padrões trabalhistas.
A tese vem revestida de
argumentos humanitários em favor dos
povos mais pobres. Mas como no campo
dos negócios os países ricos jamais
defenderam estratégias desse tipo, o seu
repentino surto de generosidade nos põe
com a pulga’ atrás da orelha. O que há por
baixo disso?
Os países do hemisfério norte
enriqueceram extraordinariamente, mas
não conseguiram resolver o problema do
desemprego. Na verdade, suas economias
crescem e o emprego decresce. Os
estadistas do Grupo dos Sete (G7) se
reuniram várias vezes para equacionar o
flagelo e, até hoje, nada.
Para
tentar
escapar
dessa
contradição, nossos "muy amigos" do
hemisfério norte argumentam, agora que
os países pobres são os causadores do seu
desemprego. Mais especificamente, as
nossas exportações, por se basearem em
custos mais baixos (especialmente de
mão-de-obra) estão destruindo os postos
de trabalho da Europa e Estados Unidos.
A defesa da elevação das
condições de trabalho nos países pobres,
portanto, nada tem de humanitário, é mais
um lance de protecionismo. Ela, no
fundo, visa encarecer nossas exportações.
Os países desenvolvidos vivem
buscando motivos para bloquear as
exportações
dos
países
em
desenvolvimento. Ora é a necessidade de
preservar o meio ambiente dos países
mais pobres. Ora é a necessidade de
padronizar os processos e produtos por:
meio das ISOs. Outras vezes é a
necessidade de melhorar o estado de
saúde , de nosso gado, galinhas, peixes e
plantas.
E agora vem a questão de elevar
os padrões trabalhistas, melhorar os
salários e combater o trabalho infantil. É
claro que essas são metas de todos, os
países. O Brasil vem trabalhando nessa
direção há vários anos. Não há quem não
queira gerar empregos, aumentar salários
e educar as crianças.
Mas tudo isso é resultado de
investimentos, produção, exportação etc,
e não do uso de sanções comerciais ou
selos sociais.
Ninguém conseguiu provar que
tais medidas contribuam efetivamente
queira para gerar empregos, pagar bons
salários e manter as crianças na escola. Se
o propósito é afastar o Brasil do comércio
internacional, o tiro é certeiro. Mas se o
objetivo é melhorar nossas condições não
há saída: precisarmos produzir mais,
crescer depressa e exportar muito.
Esse é um daqueles temas ingratos
para ser abordado, pois, no seu debate, os
países ricos tendem a ficar com a fama de
defensores dos nossos trabalhadores e nós
com o o risco de ficar sem o que fazer
com uma monumental legião de
desempregados.
Afinal será que o Primeiro Mundo tem
medo do Terceiro Mundo? É isso que a OIT
pretende?
Fonte: Folha de São Paulo, 04/05/97.
Texto 2
Reforma agrária
LUIZ HAFERS
A questão da reforma agrária
encontra-se numa situação no mínimo
peculiar: todos estão a favor, e quase todos,
insatisfeitos.
I
5
10
15
20
25
30
35
Essa
questão
tornou-se
uma
embalagem para problemas mais amplos e
mais antigos, o principal deles uma grave
crise social no campo.
A falta de uma política agrícola, com
suas necessidades de produção e atendimento
social, desaguou numa situação na qual uma
grande massa de desassistidos, desamparados
e desempregados foi cooptada por um
movimento bem organizado, que lhe ofereceu
um mínimo de esperança e uma solução não
tão clara.
Esse problema não é agrícola, é
social e nacional. O que essa massa de
trabalhadores destituídos precisa é de
dignidade, e é impossível obtê-la sem
trabalho e na pobreza.
Terra é apenas uma das soluções. O
problema é mais vasto e passa por empregos
decentes,
educação,
saúde
e
até
assentamentos.
A sociedade, que se urbanizou
rapidamente e para a qual os problemas do
campo
eram
distantes,
difusos
e
desinteressantes, acordou e passa a ter
simpatia para com o problema, se bem que
não saiba qual a solução, e começa a ter
dúvidas quanto à liderança do MST, em sua
campanha de violência.
É necessário esclarecer e debater o
assunto para que a opinião pública, o juiz
40
45
50
55
60
numa democracia, autorize e legitime o
Legislativo e o Executivo nas suas ações.
O governo federal tem acelerado sua
atuação. os governos estaduais, ainda tímidos
no cumprimento da lei, aguardam os
acontecimentos.
Os fazendeiros, que não são mais
obstáculo, insistem no cumprimento da lei e
se sentem objeto de pressão política
injustificável, pois só querem continuar a
produzir e em paz, o que, aliás, têm feito com
sucesso, apesar de enormes dificuldades.
Precisamos,
pois,
de
grande
discussão e esclarecimento nacional sobre a
questão agrícola e agrária, da qual a reforma
agrária é um pedaço - ainda que, no
momento, agudo e preocupante.
A nação precisa se dar conta da
importância da agricultura brasileira. É ela
instrumento decisivo da segurança alimentar,
da segurança social e da segurança cambial.
Podemos,
devemos
e
vamos
solucionar essa questão. É só nos atermos às
soluções, esquecermos revanchismos e
dirimirmos inseguranças nas quais prospera o
radicalismo.
Não é fácil, precisamos de um
enorme esforço, mas vamos fazê-lo. Sou
otimista.
LUIZ MARCOS SUPLICY HAFERS, 61, fazendeiro, é presidente da Sociedade Rural Brasileira (SBR).
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97
II
Texto 3
Despotismo e confusão
FÁBIO WABDERLEY REIS
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
55
De
maneira
elaboradamente
criptográfica, como no caso das eruditas
ironias de Roberto Romano na Folha, ou
simplesmente
confusas,
como
nas
manifestações de José Arthur Giannotti,
denúncias ou advertências de “despotismo”,
“absolutismo” ou assemelhadas têm sido
dirigidas ao presidente Fernando Henrique.
Como avaliá-la? A questão envolvida
é a das relações do Executivo com o
Congresso e o Judiciário, condicionadas
naturalmente, pelo pano de fundo da opinião
popular.
Quanto
ao
Congresso,
parte
importante das preocupações manifestadas se
dirige, sobriamente apreciada, ao fato simples
de que o presidente erigiu ampla base de
apoio parlamentar.
Ora, o controle pelo presidente dos
recursos institucionais de poder que a
democracia lhe faculta não significa ameaça
à democracia. Não há por que entender a
idéia da separação de poderes em termos de
hostilidade permanente entre o Executivo e o
Legislativo.
Os comentaristas falam há tempos, a
propósito dos EUA, dos males do “governo
dividido”, e a busca de maioria estável é um
imperativo da busca da mera eficiência.
Na verdade, a aglutinação governista
no âmbito parlamentar pode mesmo ser vista
como bem -vindo estímulo ao rearranjo mais
geral das forças políticas, ajudando a talvez
superar a fragmentação atual.
Se essa aglutinação recorreu à
“política politiqueira”, é preciso lembrar que
a “grande política” não dispõe de um espaço
especial para a sua execução, mas se faz por
intermédio das realidades do dia-a-dia embora cumpra estar atento para o preço
simbólico que o realismo terá custado ao
presidente, e como esse preço se traduzirá,
mesmo instrumentalmente, ou seja, como
afetará a capacidade presidencial de liderar
com eficácia a reconstrução econômicosocial e institucional do país.
Temos, ainda, a questão da enxurrada
de medidas provisórias. Mas a enxurrada flui
nas brechas de uma legislação permissiva e
com o apoio ao menos tácito do Congresso.
Seria claramente impróprio esperar
que a busca de eficiência na realização dos
objetivos governamentais se detivesse diante
de tais brechas, com a autocontenção pessoal
do presidente representando a garantia contra
os efeitos equívocos de instituições
60
65
70
75
80
85
90
95
100
105
110
deficientes. Impõe-se, aqui, a tarefa de
aperfeiçoamento institucional e legal.
Há, de outro lado, o atrito ExecutivoJudiciário. A parte razões fúteis que
certamente contaminaram o recente bateboca, ele parece expressivo de um problema
mais sério e profundo do que o que se
pretendeu ver nas relações ExecutivoCongresso.
Empenhado
na
eficiência,
é
característico de Executivo tender a presumir
que os fins da ação do Estado, que ele
próprio estipula, são objetivos nacionais
inequívocos (“Não pensam no Brasil”) e que
a questão é dispor de maneira adequada os
meios.
Mas a democracia se distingue pela
problematização dos fins, reconhecendo-os
como múltiplos e de compatibilização difícil.
Como instrumento por excelência de garantia
desse aspecto da vida democrática, não
admira que o Judiciário seja alvo freqüente
da impaciência do Executivo.
Resta a dimensão da opiniãp popular.
A popularidade do presidente é parte
importante do jogo entre os poderes,
condicionando o suposto “rolo compressor”
no Congresso e provavelmente calçando a
motivação dos desafios ao Judiciário.
Sejam quais forem as boas razões
administrativas que possam assegurar essa
popularidade, aqui é que temos um possível
“cesarismo”
ou
“bonapartismo”
em
potencial: como nas propostas do plebiscito
brandidas a propósito da reeleição, em que a
consulta popular surgia como corretivo a
eventuais decisões do Congresso, a conexão
direta entre o líder e as ruas poderia vir a
transformar-se em fator de atropelo às
instituições.
Mas o curioso é que aqui é que as
coisas
se
confundem
de
maneira
desconcertante. Se o presidente evitou apoiar
o plebiscito como tal, apesar de falar em “voz
das ruas”, a consulta popular não só não foi
objeto de clamor análogo às denúncias
correntes de despotismo, mas foi mesmo
unanimemente
ungida
em
recurso
sacrossanto.
O governo FHC me parece
caracterizar-se por claro déficit de
investimento intelectual, com seu esforço de
“aggiornamento” econômico podendo ser
visto também como acomodação meio
preguiçosa às perversidades das novas
tendências mundiais. Mas há perplexidades
para
todos.
I
Fábio Wanderley Reis, 59, cientista político, doutor pela Universidade de Harvard (EUA), é professor-titular
aposentado da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos
Contemporâneos (Ibec).
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97.
Texto 4
Sociedades civis vão pagar a Cofins dia 9
MARCOS CÉZARI
da Reportagem Local
5
As sociedades civis de profissões legalmente regulamentadas recolhem na próxima sextafeira, dia 9 deste mês, a Cofins referente a abril (2% sobre a receita bruta).
A tributação dessas sociedades (escritórios de engenharia e arquitetura, advocacia,
economistas, clínicas médicas, dentárias etc..) foi instituída pelo artigo 56 da lei 9.430, de
dezembro de 96. Cumprindo o prazo de 90 dias, a Cofins é devida a partir de abril.
Até março, as sociedades estavam isentas da contribuição pelo inciso II do artigo 6º da lei
complementar 70, de dezembro de 91.
Polêmica
10
15
20
25
30
Apesar de ter sido estabelecida por lei e cumprido o prazo de 90 dias, a exigência da Cofias
para as sociedades ainda causa polêmica,
O advogado João Victor Gomes de Oliveira, do escritório de Gomes de Oliveira
Advogados Associados, entende que a exigência continua sendo indevida.
Ele lembra que o artigo 178 do CTN diz que a isenção só pode ser revogada ou alterada por
lei. Assim, deveria haver a revogação expressa da isenção também por lei.
Como a lei 9.430 não traz essa revogação expressa, Oliveira entende que a Cofins não
poderia ser cobrada daquelas sociedades. Sem a revogação, a lei 9.430 está considerando aquelas
sociedades “novamente como contribuintes”, diz.
O advogado Plínio Marafon, da Braga Consultores e Advogados, discorda desse tese. Ele
diz que quando há isenção, significa que há fato gerador. Entretanto, “a isenção impede que o fato
gerador seja tributado”.
Marafon entende que “a incidência já é uma revogação da isenção”. Em outras palavras, “é
a retomada da tributação”. Isso dispensa a revogação expressa.
Marafon cita uma decisão do ministro Moreira Alves, do STF, segundo a qual em casos de
restabelecimento da tributação nem seria preciso cumprir os 90 dias.
A decisão foi dada em um caso de retomada de tributação do ICMS. O ministro entendeu
que não era preciso esperar o exercício seguinte ( princípio da anterioridade) para restabelecer a
tributação.
Seguindo esse raciocínio, Marafon diz que nem seria preciso esperar os 90 dias para voltar
a tributar as sociedades. “O governo cumpriu o prazo para evitar brigas na Justiça utilizando esse
argumento”.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97
Texto 5
OMBUDSMAN
Imprensa resiste à dureza da lei
MÁRIO VITOR SANTOS
A nova versão da Lei de Imprensa,
que veio a público na semana que passou,
acaba com a pena de prisão para os crimes de
ofensas praticadas por jornalistas.
I
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
O projeto do deputado Vilmar Rocha
(PFL-GO), ainda em discussão em comissão
da Câmara, prevê a substituição da prisão por
penas de indenização, multa e prestação de
serviços comunitários.
Agora, não mais se estabelece, como
antes, um teto para a indenização aos
ofendidos, equivalente a 20% do faturamento
bruto da empresa.
O projeto, porém, mantém alguns
parâmetros importantes para a fixação do
valor da indenização em caso de ação
judicial. Determina que ela deve levar em
conta “a extensão do prejuízo à imagem do
ofendido (pessoa física ou jurídica,
parênteses meu), tendo em vista sua situação
profissional, econômica e social”.
Estabelece, ainda, como limitação
ao item anterior, que a pena deve “respeitar a
solvabilidade” do ofensor. Não há limites
para as indenizações.
A Folha, além de antecipar o
conteúdo do novo projeto na quarta-feira
passada, publicou sua íntegra no dia seguinte.
O texto veio acompanhado de reação crítica
da Associação Nacional dos Jornais.
A entidade das empresas considera
que as indenizações, “sem limites fixados,
serão estabelecidas pelos juizes mediante
forte dose de subjetivismo”.
Enquanto os empresários pedem
limites, os jornalistas reclamam deles.
Américo Antunes, da Federação Nacional
dos Jornalistas (Fenai), considerou muito alta
a multa prevista para jornalistas ofensores, de
até R$ 50 mil (atenção, não confundir
indenização com multa, são duas coisas
diferentes).
Jornais e jornalistas, portanto, já
manifestaram opiniões críticas. A sociedade
em geral, principal interessada, ainda não foi
ouvida.
A principal virtude do projeto é
justamente a possibilidade de a pena de
indenização ser proporcional ao dano
causado pela ofensa.
`Não haveria razão para que fosse
de outro modo. por que os meios de
comunicação no Brasil teriam que constituir
o único setor privilegiado por um limite, que
55 os livrasse da coincidência entre
60
65
70
75
80
85
90
95
100
plena
liberdade de ação e ampla responsabilidade
pelas conseqüência?
Se uma notícia ofensiva no “The
Wall Street Journal”, por exemplo, acarreta a
falência de uma empresa do ramo financeiro,
por que não pode o jornal defrontar-se com
indenizações de vulto, que reparem o dano
eventualmente causado e até, como
conseqüência, possam vir a ser fator de
instabilidade ou falência para a empresa de
comunicação?
No caso do novo projeto de lei no
Brasil, essa possibilidade nem existe, ao que
parece, pois ele recomenda que seja
“respeitada a solvabilidade” das empresas.
Essa cláusula - será que é
constitucional? - talvez isente grande número
de empresas jornalísticas de multas mais
significativas. Muitas delas, principalmente
fora dos grandes centros, podem provar ser
insolventes e livrar-se da pena.
Interessa ao público e também aos
veículos, na minha opinião, que haja mais
responsabilidade. É preciso pensar muitas
vezes antes de publicar algo que, por má-fé
ou imperícia, possa ser ofensivo a quem quer
que seja, Um processo pela Lei de Imprensa
no Brasil deveria causar tanto temor quanto
causam ações semelhantes nos Estados
Unidos, por exemplo.
A lei, depois de debatida e
aprovada, pode levar a uma evolução nos
critérios de qualidade e na credibilidade dos
órgãos de comunicação, instaurando mais
racionabilidade dos órgãos de comunicação,
instaurando mais racionalidade à competição.
Talvez, em alguns casos, até amplie o
mercado de trabalho, favorecendo estruturas
de apuração e checagem mais pesadas e
estáveis nas redações.
Garantida
a
liberdade
de
informação, um lei mais rigorosa será, no
devido tempo, benéfica para a sociedade e
para os próprios veículos.
Em tempo: o projeto considera
dever dos meios de comunicação manter
serviço permanente de atendimento ao
público, como o deste ombusdman da Folha.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97.
II
Texto 6
Caso pataxó: tentando entender
MARTA SUPLICY
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
55
Precisamos tentar compreender as
razões que elevaram rapazes que comem
bem, têm convívio familiar e freqüentam
boas escolas a se portarem com a selvageria
demonstrada ao incendiar o índio pataxó,
como “brincadeira” do grupo. O caso tem
algumas similaridades com o ocorrido na
mesma semana nos EUA, onde dois
adolescentes de 18 e 17 anos mataram dois
entregadores de pizza “para sentir a emoção
de matar uma pessoa”. Planejaram os
assassinatos a sangue frio, sem conhecer as
vítimas,
Diferentemente dos “bem nascidos
brasileiros,
os
americanos
eram
“problemáticos”, Um tinha largado a escola,
e o outro tinha passagens pela polícia , tendo
como hobby atirar em pessoas com pistolas
de bala de chumbo.
Em comum esses têm a mesma
programação violenta da televisão e a
sociedade de consumo, na qual as pessoas
valem pelo seu status e não como seres
humanos. Desde a infância, essa geração tem
sido submetida à violência ímpar dos meios
televisivos.
Ela vai desde os desenhos animados,
aos filmes e telejornais. A maioria das
crianças não tem ninguém para decodificar o
que vê. Um foguete que estoura no bandido, e
ele reaparece segundos depois, inteiro, ou
uma bala que atinge um gangster no coração,
e ele continua a dirigir, não causam
estranheza para uma criança com menos de
sete anos. Ela não tem pensamento abstrato,
não consegue elaborar que, na realidade,
aquilo não se passa assim. Como disse um
menino
ouvido
por
pesquisadores
americanos: “Eu não sabia que levar um tiro
sangrava e doía”.
Além disso, a criança e o adolescente
são expostos a formas extremamente
violentas de reagir ao que não agrada ou à
frustração. Não se aprende a negociar: falou
algo que não gostei, toma um soco ou um
tiro. E, no desenho, ou no filme, fica tudo por
isso mesmo. Solidariedade, então, nem se
fala.
A criança se torna adolescente e a
violência social a que está exposta vai se
ampliando. É o telejornal que invade, ao
vivo, colorido e aos gritos, a casa dos
suspeitos de crime, sempre pobres e na
maioria das vezes negro; é a polícia
agredindo ou matando o cidadão. isso ocorre
tanto nos filmes quanto na vida real: quando
se mata o vilão, não importa como, o bem foi
60
65
70
75
80
85
90
95
100
105
110
115
feito. É tanto o caso dos meninos de rua da
Candelária quanto o dos terroristas do Peru.
Precisou ser filmada uma cena com
policiais batendo e matando pessoas “de
bem” para que a população e os governos
percebessem que algo de muito sério está
ocorrendo. Quando os direitos humanos só
valem para alguns, acabamos todos correndo
riscos. Mas, como vimos no hediondo caso
de Brasília alguns, os mais feios, pobres e
sujos, correm mais risco. Um senhor bem
composto, à espera do ônibus em Brasília,
dificilmente seria incendiado.
E o que mais têm a TV e a família a
ver com tudo isso?
Situações que produzem medo,
pânico ou angústia, como as sentidas quando
se vêem filmes de terror ou violência,
provocam uma descarga de adrenalina, com
sensações muito parecidas com as do
orgasmo. São cenas com fortíssimo apelo
sexual. Aliás, nem sei se páreo para as de
sexo explícito. Talvez para as de
perversidade sexual. Os jovens absorvem
essa intensidade de estimulação diariamente.
Aí vão passear. E como se divertir obtendo o
mesmo nível de excitação? A resposta é dada
com clareza pelos assassinos adolescentes
dos dois países: “Era para dar um susto nele”,
“Era para sentir a sensação”.
E por que só alguns agem assim?
Não podemos esquecer o indivíduo,
sua herança genética, seu limiar maior ou
menor em relação à frustração, seu
aprendizado, resultado da interação com os
valores da sociedade, dom seus pais e
familiares, amigos e professores. Temos os
problema da desestruturação da família, a
falta de interação entre pais e filhos, a
valorização do dinheiro como bem supremo
pela sociedade - quem não consome não é
“gente” e, portanto, é descartável.
Mesmo os pais que se preocupam
com seus filhos têm pouco tempo para a
convivência. Os filhos, quando adolescentes,
sofrem uma pressão do grupo social e da
mídia fortíssima. Pressão que será enfrentada
com o que foi introjetado dos valores
parentais somados à capacidade única
daquele indivíduo. No caso do Brasil, temos
que acrescentar a impunidade a que estão
acostumadas as classes mais abastadas.
As escolas poderiam prover um
contraponto, mas não dão a menor
importância para a discussão dos direitos
humanos, cidadania, constituição, ética e
solidariedade. Recebi, em recente viagem, a
Constituição da África do Sul, em tamanho
I
de bolso, material que é distribuído e
discutido em todas as escolas do país. Um
belo exemplo. A decisão do governador
Cristóvão Buarque de definir um dia para que
120 o caso do índio pataxó fosse discutido em
todas as escolas públicas de Brasília foi uma
atitude neste caminho.
Entretanto, essas discussões devem
fazer parte dos currículos das escolas e não
125 ocorrerem só depois da tragédia consumada.
Filmes violentos, Os depois de certo horário.
Programas de TV que desrespeitam a
cidadania, como o do apresentador que
instiga uma jovem a colocar a mão num vaso
130 de vidro cheio de cobras e notas de R$ 100,
devem ser revistos. Esses também provocam
o gozo perverso, daí o seu sucesso.
A educação maciça da sociedade
quanto aos direitos humanos e valores éticos
135 e sua mobilização para repudiar os acintes
que constantemente presenciamos na TV são
passos importantes para uma sociedade mais
civilizada.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97.
Texto 7
Marxismo à lenha
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
5
10
15
20
25
30
35
Sem programa e
sem proposta viável para
apresentar à sociedade, a
esquerda - ou o que delas
sobrou no Brasil - vai
encenando um espetáculo
patético, onde retórica
alucinatória, no plano
institucional,
e
instrumentalização
irresponsável, no plano das
ações, dividem a cena.
No primeiro caso, o
da contestação discursiva,
o festival de tolices começa
na instituição política e
chega à Universidade e
suas adjacências.
Aqui, o grande
trunfo do “pensamento” de
esquerda é classificar o
governo de “neoliberal”, e
condenar o “desemprego
em massa”, censurar o
“entreguismo”
das
empresas estatais e referirse ao presidente como
“déspota esclarecido”.
Tem-se a nítida
impressão de que esse tipo
de crítica - sem a
consistência teórica, sem
demonstração objetiva, sem
conseqüência prática parte de militantes do
movimento
estudantil,
agira com cabelos grisalhos
e barrigas avantajadas.
Há
exceções,
40 evidentemente - e Tarso
45
50
55
60
65
70
75
Genro, em que pese sua
conversa engomada, é uma
delas.
No plano militante,
a coisa é mais grave. Não
falemos do MR-8, que
virou claque de defunto.
Mas da liderança do
Movimento dos Sem-Terra,
cujo
primitivismo,
se
transformado em lógica de
Estado e governo ... Por
favor,
reserve
minha
passagem.
No movimento de
invasões,
estamos
no
estágio do marxismo a
lenha. É evidente que a
causa é tão justa quanto a
distribuição de riquezas é
injusta. A questão não é
demonstrar
que
há
desigualdade e que é
preciso reforma -todos
sabem.
Mas que reforma?
E como fazê-la? Isso, a
esquerda rural - devo
poupá-la da frase de Marx
sobre a idiotia do campo? não quer saber. Chega ao
cúmulo de invadir terras da
Vale para pressionar contra
a
privatização.
Instrumentaliza um bando
de coitados para criar fatos
políticos.
80
85
90
95
100
105
110
115
E faz tudo isso sob
o manto mítico da glória e
da ousadia revolucionária,
causando frisson em meia
dúzia
de
intelectuais
culpados e basbaques.
Gente que assiste esse
simulacro de maoísmo,
comendo
pipoca
na
almofada, como se fosse
filme de Bertolucci.
O resultado prático
é o crescente isolamento da
esquerda e o vácuo
oposicionista. A chance de
avançar
nas
políticas
sociais, pressionando um
governo que vacila nesse
terreno, mas que poderia
ser sensível a projetos
consistentes, vai sendo
perdida.
Como
vai
se
perdendo a possibilidade de
aproximação
com
os
setores sociais que, mesmo
integrados à nova ordem,
têm problemas com ela - do
abandono da saúde à
criminalidade,
passando
por educação, transporte
etc..
Mas isso é real
demais para interessar à
esquerda. Ela não resolve
problemas práticos, como
se sabe. Só as grandes
questões da humanidade.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 16/04/97.
II
Texto 8
“Só não citei Barros por dó”, diz autor da ação
IGOR GIELOW
da Reportagem Local
5
10
15
20
25
30
Para um dos autores da
principal ação contrária à privatização da
Companhia Vale do Rio doce, Luiz Carlos
Mendonça de Barros só não foi citado em seu
texto por “comiseração, dó mesmo”.
A afirmação é do advogado Celso
Antônio Bandeira de Mello. “Não tenho por
costume polemizar com pessoas de nível
muito baixo, que só têm notoriedade pelo
cargo que ocupam”.
“Existem pessoas que são maiores e
emprestam dignidade ao cargo que ocupam.
Em outros casos, pessoas menores surgem à
tona revestidas da dignidade do cargo”,
completou.
Segundo o advogado, a “dó” foi
expressada ao deixar o nome de Mendonça
de Barros fora da ação. “Não incluí seu nome
por bondade. Nesses casos, quando perde a
ação, o agente responde patrimonialmente.
Imagine o pavor desse pobre homem sabendo
que teria que pagar centenas de milhões de
reais”.
Mas Bandeira de Mello dá a deixa,
lembrando que o Ministério Público sempre
pode pedir a citação do presidente do
BNDES.
O advogado afirma que Mendonça de
Barros não tem noção do risco que corre.
“Para usar palavras de FHC, ele é um moço
tosco. Não tem consciência, é imprudente,
sem qualificação e indelicado”.
35
40
45
50
55
60
Em relação à referência à “idade
avançada” de autores da ação, feita pelo
presidente do BNDES, Bandeira de Mello
ironizou.
“A exceção do professor Goffredo
(da Silva Telles), acho que todos têm mais
ou menos a minha idade, O professor é um
dos maiores nomes do Brasil. Vivi o
suficiente para aprender a ter comiseração
pelas pessoas”, disse o advogado, que tem 60
anos. Mendonça de Barros tem 54.
O advogado responsabiliza FHC pelo
que chama de “escalada para a ditadura, bem
urdida (tramada)”.
“FHC é muito lúcido e competente,
porque mantém um manto de silêncio na
mídia. Ele está montando um modelo
ditatorial à moda do (presidente peruano
Alberto) Fujimori, do (presidente argentino
Carlos) Menem”.
Afirma também que o governo errou
ao achar que o Judiciário agiria como o
Legislativo - em sua opinião, FHC “está
acostumado a vergar os partidos”.
Do ponto de vista técnico, o
advogado diz não ser contrário às
privatizações. “Nem eu nem a maioria dos
autores da ação. mas o problema é que há
ilegalidades que até um bisonho estudante de
direito
percebe”,
afirmou.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 04/05/97.
Texto 9
COISAS DA POLÍTICA
Serventia da casa
DORA KRAMER
5
10
Soam extemporâneas e inúteis as reclamações dos ministros candidatos em 1998,
que resolveram explicitar publicamente o desejo de desfrutar das benesses dos cargos até a
undécima hora. repetem às escâncaras agora o que há tempos vinham dizendo nos
bastidores: se Antônio Kandir tem direito de ficar até abril, como já avisou o presidente,
eles acham que a prerrogativa deve ser ampla, geral e irrestrita.
Como sempre, o apego assumido e sem constrangimentos parte com mais força do
PMDB, partido cujas lideranças, à falta de projetos unitários e consistentes para o país,
dedicam-se com afinco à administração de suas conveniências individuais.
Nisso, perdem o pé da realidade. Agora, por exemplo, a ala governista diz que só sai
do Ministério depois que pela mesma porta passar o último tucano, enquanto o presidente
pemedebista vocifera que só reúne o partido depois que os ministros saírem do governo.
II
15
20
25
30
35
40
45
50
Esquecem-se de que não cabe a nenhum deles decidir até quando, ou mesmo se,
ficam num governo que não só não ajudaram a eleger - o candidato deles em 1994
chamava-se Orestes Quércia, lembram-se? - como hesitam em apoiar.
O presidente, até segunda ordem, ainda se chama Fernando Henrique Cardoso e não
Eliseu Padilha, o ministro (dos Transportes) que se tem confrontado mais diretamente com
a hipótese da saída dos candidatos até dezembro. Entrar o ano de Ministério quase novo serão seis as trocas - é não apenas uma decisão do governo, mas principalmente de
campanha. E não será o PMDB , que vai determinar os rumos das orientações estratégicas
do presidente em busca da reeleição.
Os reclames, que também existem com menos vigor do PFL, soam extemporâneos
porque há algum tempo no próprio governo chegou-se a cogitar de um recuo na reforma,
chegando a ser aventada a possibilidade de os ministros-candidatos saírem mesmo todos em
abril. Agora, no entanto, o quadro é diferente.
O Planalto mantém em segredo qual será a senha, mas por lá já se percebe
claramente que em dezembro a porta de saída será mesmo serventia da casa para quem
quiser concorrer às eleições. No primeiro dia do ano o presidente terá novos titulares nas
pastas da Previdência, dos Transportes, do Desenvolvimento Regional, do Meio Ambiente e
da Indústria e Comércio. Sairá também Luís Carlos Santos, da Coordenação Política, mas o
ministério será extinto.
Santos, aliás, só ficará até lá porque o líder do governo na Câmara Luís Eduardo
Magalhães, não aceitou acumular missões de varejo político que , em janeiro, o governo
espera que sejam apenas residuais. Devido ao recesso parlamentar, ao início da campanha
eleitoral dos estados e ao abandono temporário das votações das reformas constitucionais, à
exceção talvez da tributária.
A partir daí, inclusive, a tarefa de articulação congressual de Luís Eduardo fica
naturalmente esvaziada, o que implicará seu afastamento do cargo. A liderança será, então,
ocupada em sistema de rodízio por representantes dos partidos aliados.
Quanto à reforma ministerial propriamente dita, o presidente Fernando Henrique
avisa que não pretende formar uma equipe de secretários-executivos, possibilidade que
chegou a ser temida pelo PFL e defendida pelo ministro do Gabinete Civil, Clóvis
Carvalho. Nessa hipótese - chamada no Planalto de “o ministro Clóvis”-, o segundo escalão
simplesmente seria elevado à condição de primeiro, deixando as trocas para valer para
serem feitas no caso da obtenção de um segundo mandato.
O PFL ficou contra porque enxergou aí uma forma de o PSDB controlar o governo,
sob a ação direta de Clóvis Carvalho, já que há tucanagem grassa no segundo escalão. O
problema é que a idéia é considerada excessivamente burocrática não serviria para o projeto
de Fernando Henrique de governar no ano eleitoral com um equipe que passasse à opinião
pública a imagem de um governo de ação.
A princípio, os partidos que ocupam hoje os cargos poderão indicar substitutos,
desde que os nomes combinem com a concepção de dinamismo administrativo. Se
chegarem a um acordo, muito bem. A palavra usada no Planalto é “parabéns”. Se não, o
novo ministério sai de qualquer forma, o mais tardar na última semana de dezembro.
Fonte: Jornal do Brasil, 22/10/97.
Texto 10
LOGOSOFIA - A força da palavra
González Pecotche
U
5
10
m dos elementos que mais freqüentemente utiliza o homem, tanto para fazer-se
entender como para estabelecer uma relação harmônica com seus semelhantes, é a
palavra, condutora do pensamento individual e que contribui em muito para a
formação do próprio conceito.
A importância que ela reveste, ou melhor, assume na vida, evidencia-se em
múltiplas formas, e quanto mais respeitável é a posição do que fala, tanto mais confiança
inspira sua palavra, a qual, não sofrendo modificação alguma, se manterá como elemento de
juízo para prestigiar o conceito de quem a emite.
Quando a palavra é pronunciada para manifestar uma convicção, definir uma
atividade ou uma situação, ou expressar um sentimento, e leva em si o sadio propósito de
oferecer aos demais a oportunidade de conhecer o pensamento que a anima, tende sempre a
II
superar o conceito de quem a emite. Outra coisa acontece com aquela que é pronunciada
com a intenção de enganar ou que surge sem reflexão, num impulso fugaz, porquanto
costuma afetar ou ferir aos que a ouvem, ainda que nada tenham a ver com a mesma, pois
só o fato de escutá-la causa-lhes mal-estar, contribuindo, conseqüentemente, para que se
elabore um juízo adverso a respeito de quem a expressou. (...)
Quem pensa bem se esforça em falar melhor. Benéfico resultará, então, aprender a
sincronizar os movimentos da mente com a expressão oral, de modo que a palavra seja a
condutora fiel do pensamento. Isso fará com que a palavra se revista de interesse,
contrariamente ao que ocorre quando se fala sem pensar no que se diz, pois, neste caso, a
palavra costuma parecer vazia ou sem sentido.
Se se quisesse apresentar uma imagem que refletisse com mais convívio colorido o
mecanismo da palavra, haveria que imaginá-la como um vagão que, à medida que passa
pelo conduto vocal, é preenchido com o pensamento que formará seu conteúdo
Quando não se realizou previamente o trabalho mental que haverá de preencher essa
função, o vagão, ou seja, a palavra, sai vazia. Ao contrário, quando tal trabalho é realizado,
o pensamento é conduzido pela palavra que se emite, podendo, então, ser estendido os
trilhos, a fim de que o vagão, com seu correspondente conteúdo, cumpra sem
inconvenientes seu destino.
Tal acontece com aqueles que ensinam, com os que falam e estabelecem a afinidade
de pensamentos com os que os escutam e ainda com todos aqueles que, por sua elevada
posição de estadistas, homens de ciência, etc., dirige suas palavras à humanidade, quem
sabe está à espera delas. (...)
Em síntese: a palavra é um dos elementos com que o homem pode conquistar sua
felicidade ou causar seu infortúnio, segundo sejam as manifestações de seu próprio espírito.
15
20
25
30
35
Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97.
Texto 11
Pena de prisão
Hindemburgo Pereira Diniz*
H
5
10
15
20
25
á poucos dias, diante de comentário
meu a propósito da demora do
Congresso na revogação da lei de
imprensa imposta no regime militar,
fui surpreendido com manifestação indignada
de interlocutor amigo pelo fato de o projeto
em andamento na Câmara dos Deputados
excluir, em princípio, a pena de morte para
crimes contra a honra praticados por
jornalistas no exercício da profissão.
Não me refiro a você que é criterioso,
“sobretudo quando escreve”, mas é um
absurdo dar-se esse privilégio ao grupo mais
bem dotado de instrumento para atacar a
honra dos outros.
Falou em tom exaltado. Eu estava de
bom humor, mas senti necessidade de
esclarecer que já não sou mais jornalista.
Fato do passado. Só então, num diálogo que
se foi acomodando, abrindo espaço para
audiência recíproca, pude esclarecer meu
ponto de vista, afinal aceito.
Entendo que o ideal seria excluíremse da lei de imprensa, justificável para tratar
de outros ângulos dessa atividade essencial à
vida democrática, todos os preceitos
destinados a tipificar crimes contra a honra e
fixar penalidades. Tratam-se de matérias
próprias do Código Penal. Acontece que
30 existem dois aspectos perturbando o bom
35
40
45
50
55
critério, que não podem deixar de ser
considerados pelo analista brasileiro.
O primeiro é a lei vigente,
instrumento de arrocho, torneado pela
ditadura, contra a liberdade de imprensa, que
não é um direito do jornalista, como
erradamente se pensa, mas da própria
sociedade para a prática do autogoverno. Sem
informações de fontes independentes,
plurilateralizadas na maneira de ver, não teria
como se orientar. O segundo é a qualidade da
estrutura carcerária no Brasil. O país que não
tiver condições mínimas de manter a pena de
prisão
sob
orientação
pedagógica,
objetivando, além do castigo, a recuperação
do infrator, deve adotar outra opção - há
diversas - a fim de punir, sem agressão à
dignidade humana, aqueles que não
constituem ameaça à sociedade. Ora aqui no
Brasil, em todos os Estados, os presos
condenados são normalmente objeto de
sevícias que os embrutecem e distanciam
ainda mais, muitas vezes definitivamente, do
nível mínimo de comportamento aceitável
pela
ordem social operosa. Além de
perderem a liberdade, em conseqüência dos
II
60
65
70
75
erros que cometeram, são submetidos, no
convívio sem discriminação com o universo
da população prisional, a práticas infamantes
que os desqualificam na seleção dos
recuperáveis. Tudo sob o olhar indiferente
dos servidores públicos que os deveriam
proteger, mas que, pela intimidade
emperdenida com a desonra, sem aptidão
nem diretriz para orientar, não identificam os
decaimentos para as profundezas do
opróbrio. Por essas razões, sou contra a pena
de prisão para os infratores eventuais da lei e
para todos que embora autores de crimes
mais sérios, (mas não hediondos), sejam
recuperáveis, pelo menos enquanto não
dispusermos de condições de implantar e
dirigir competente e humanamente estruturas
carcerárias onde a transcendência que nos
distingue dos outros animais não seja
agredida. No meu juízo, a prescrição ou
sugestão de pena de cadeia, no Brasil atual,
anima-se na irreflexão ou no sentimento
sádico. Vem então a pergunta final. Por que
80 só os jornalistas estarão livres, nos crimes
contra a honra, dessa pena indigna? A
resposta é simples: o ordenamento específico
irá disciplinar apenas atos ilícitos praticados
por jornalistas. Veja-se também que os
85 profissionais de imprensa, pelo fato de
exercerem necessariamente a função de
fiscalização e crítica, são os mais expostos à
possibilidade de errar nesse campo. Não seria
justo, em um projeto que ainda se vota,
90 submetê-los a punição de natureza medieval,
pelo fato de o Código Penal brasileiro
continuar a adotá-la, insensível às razões que
a condenam.
95
*Consultor, presidente do Conselho Consultivo do Condomínio dos Diários e
Emissoras associados.
Fonte: ESTADO DE MINAS, 22/10/97.
Texto 12
Os grandes obstáculos
Q
5
10
15
20
25
30
uando esteve recentemente em Belo
horizonte, o ex-secretário de Estado
Henry Kissinger - o homem que
arquitetou a paz entre Washington e
Pequim - recomendou que o Brasil não devia
vetar a Alca. O que se tem hoje é a superação
dos Estados Nacionais, prevalecendo uma
política das empresas transnacionais que
controlam o mercado global. e repetiu o que
havia
dito em um artigo publicado
simultaneamente em 50 jornais de 30 países:
“O Brasil está pronto para exercer papel de
peso na ordem econômica do futuro”.
Que futuro? Já na chegada do ano
2000? Para isso, entretanto, necessita-se de
uma política para coordenar os setores mais
importantes da economia - uma política
agrícola para dobrar a produção atual e
assentar milhares de trabalhadores no meio
rural, parque manufatureiro competitivo e
grande avanço na área de ciência tecnologia e
informática.
Abstraindo os graves problemas
internos - média de rendimento mensal per
capita de apenas 400 reais, 38 milhões de
carentes, 25 milhões de assalariados que
recebem até 120 reais por mês (inclusive 11
milhões de aposentados do INSS), educação
deficiente, etc. - o quadro não parece
favorável. É que o Brasil não tem poder de
35
40
45
50
55
60
fogo para competir com os vinte maiores
exportadores. Para sair do patamar de vendas
externas de 5o bilhões de dólares, muito terá
que ser feito.
A
este
respeito,
dados
da
Confederação Nacional da Indústria - CNI mostram a penúria brasileira quanto ao
comércio exterior. Apenas seis setores de
nossa economia respondem por quase 54%
das exportações, e apenas 590 empresas, de
um conjunto de 13.220, abocanham 78%
delas. Atualmente o comércio externo está
mais equilibrado do que nos anos 60, quando
quase metade da pauta era exportada para os
Estados Unidos. Perfil dos parceiros do
Brasil hoje: a União Européia fica com
24,9% das exportações, Estados Unidos 20%
e os países da Associação Latino-Americana
para o Desenvolvimento Industrial (Aladi),
23%.
O secretário executivo do Ministério
da Indústria e Comércio, Paulo Jobim Filho,
afirma que essa concentração de vendas em
poucos setores não pode perdurar, pois não é
saudável, e o Brasil precisa ampliar cada vez
mais o mercado para seus produtos.
Problemas de Transportes, alto custo dos
portos, telecomunicações, juros altos e falta
de tecnologia são os grandes obstáculos à
exportação
brasileira.
Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97.
II
Texto 13
A força das PMEs
5
10
15
20
Uma pesquisa do Sebrae/MG
reafirma uma verdade conhecida de todos: as
empresas mineiras têm vida curta -quase 50%
das que foram constituídas nos últimos dois
anos fecharam as portas. Mais uma
constatação da vida empresarial no Brasil em
poucas chegam completar 25 anos. Os
empresários relacionam as principais causas
dessa realidade: falta de capital, daí aquele
antigo “quem não tem competência não se
estabelece” a ação dos concorrentes, a
excessiva e complicada sistemática tributária
e a inadimplência. Não se deve considerar
irrelevante o fato de cerca de 70% das
“empresas mortas” terem apenas dois
empregados e 10% mais de contratados. ë
que, se 500 mil empresas receberem
orientação e crédito seletivo, poderão em
pouco tempo abrir 1 milhão de novas vagas.
O estudo do Sebrae chega em boa
hora, pois o governador do Estado vem de
lançar o Programa de Fomento ao
Desenvolvimento da Micro e Empresas de
Pequeno Porte (Micro Geraes). Na verdade, é
25 mais uma entre tantas iniciativas visando a
dar vida legal a milhares de empresas
informais,
a
chamada
“economia
clandestina”.
Para os integrantes da Associação
30 Mineira de Microempresa (Amipeme), o
importante neste momento é a Assembléia
Legislativa trabalhar com vontade para que o
projeto seja aprovado até o fim do ano e
entrar em vigor no início de 1998. Como se
35 diz que há no Estado 350 mil firmas de
pequeno porte, pode-se concluir que,
aprovado o projeto, em breve prazo elas
poderão criar pelo menos 350 mil novos
empregos,
um
por
empresa.
Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97.
Texto 14
Estaca Zero
E
5
10
15
20
25
m qualquer acontecimento policial no
Rio, incluindo seqüestro, o mais
hediondo de todos eles, polícia
sempre está na estaca zero. A falta de
investigação, em decorrência da inexistência
de trabalho técnico no local do crime, já se
tornou proverbial.
O leitor da crônica policial nem se
recorda da última vez que a polícia
fluminense desvendou um crime a partir de
impressões digitais ou outras pistas colhidas
no local. Instrução de processo? Dois terços
dos processos criminais são descartados pela
justiça por falta de elementos, dos quais um
terço é devolvido para mais investigação e
outro terço arquivado por absoluta
inconsistência das provas.
Em geral a acusação contra o
suspeito é baseada na confissão, obtida sabese como. Basta negá-la diante do juiz, sob
orientação do advogado, para reverter o
quadro. Quanto menor a quantidade de
provas para incriminar suspeitos, maior a
burocracia que envolve a atividade policial,
caracterizada por inoperância generalizada.
30
35
40
45
50
Cada corporação policial apura o
crime de forma diversa. Se a polícia fosse
uma só, as providências seriam unificadas.
Hoje, quando o soldado da PM encontra na
esquina um suspeito, dirige-se ao sargento
que por sua vez se reporta ao oficial do dia,
que enviará ou não a viatura para levá-lo ao
quartel. Aí, será solto ou conduzido mais
tarde à delegacia. O delegado, único
competente para detê-lo, decidirá se a prisão
é legal. É possível avaliar o tempo perdido?
O suspeito deixou de ser suspeito em função
da burocracia e não da investigação.
A quantidade recorde de seqüestros
traduz o desaparelhamento da Divisão AntiSeqüestro (DAS) para enfrentar quadrilhas
cada vez mais sofisticadas.
Enquanto isto - enquanto a reforma
do aparelho policial não vem - as quadrilhas
se organizam com recrutas novos ou
remanescentes
de
outras
quadrilhas
eventualmente desarticuladas. E não há no
caso do DAS, sequer um banco de vozes e de
digitais para identificar o extenso exército
que se expande a olhos vistos.
Fonte:JORNAL DO BRASIL, 22/10/97
II
Texto 15
Inferno Kafkiano
A
5
10
15
20
25
30
emissão de certidões negativas via
internet, anunciada pela Secretaria
da Receita Federal, não deve ser
saudada como mero capricho do
Estado na modernidade tecnológica. Como
brincadeira digital na era do ciberespaço.
Precisa ser entendida, inclusive pelo próprio
Estado, como começo ( ou possibilidade) de
saudável revolução na burocracia oficial.
Início de nova forma de relacionamento com
o cidadão.
Só quem já viveu a experiência de
obter certidões negativas, ou qualquer outro
documento de órgão público, pode avaliar o
alcance da mediada. O universo kafkiano em
que transformaram o aparelho burocrático,
em todas as esferas de poder, é o mais cruel
instrumento de opressão contra a cidadania.
Obstrui o Judiciário entupindo os canais de
acesso à Justiça e pune o inocente nos
guichês do Executivo.
O inferno burocrático é, ao mesmo
tempo, causa e conseqüência da corrupção.
Foi montado pelas máfias incrustadas no
serviço público para criar dificuldades e
vender facilidades. ou para esconder os ralos
por onde escoa o dinheiro público. O dia em
que o cidadão puder obter qualquer
documento via modem, acessando de um
computador pessoal, o Estado poderá
dispensar a maior parte dos servidores
35
40
45
50
55
60
públicos. Eliminará centenas - talvez
milhares - de seções e repartições,
economizará
em
aluguéis,
material
burocrático, transporte, telefone e muitas
coisas mais. Uma decisão dessas só pode
incomodar os que lucram com a dificuldade
alheia.
Por que o contribuinte precisa ir ao
Detran, entrar em fila, dar entrada, receber
protocolo e outras exigências para conseguir
um “nada consta” de seu automóvel? Bastaria
que o órgão de trânsito mantivesse num
banco de dados com acesso público. É
providência tecnicamente simples. Não é
difícil entender por que a burocracia não
quer. O uso da Internet no serviço público
livrará o cidadão de filas, gorjetas, carimbos,
propinas, senhas, protocolos, vistos e
despachos. Desburocratizar e facilitar o
acesso do contribuinte à informação é fazer a
mais legítima democracia.
O que se tem tentado nesse caminho
esbarra no interesse das máfias. Porque é
possível fazer tudo o que a burocracia faz
com menos funcionários. O exemplo da
Secretaria da Receita Federal bem poderia ser
o começo de um Estado mais justo. Um bom
motivo de reflexão para o ministro da
Administração e Reforma do Estado, Bresser
Pereira.
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97
Texto 16
Pressão dos Juros
Q
uanto mais esquentar o clima político
que precede as eleições, mais atenta
deve ficar a opinião pública para
separar o que é retórica do que é
5 verdade. A questão dos juros já entrou
naquela faixa onde uns dirão que o Brasil
está pagando um preço escorchante pelo
dinheiro, e outros que as taxas estão caindo,
mas ainda há muito chão pela frente até os
10 juros aterrissarem em patamares civilizados.
Foi mais ou menos este o tom do
diálogo aberto entre o ministro da Fazenda,
Pedro Malan, e o novo presidente da
Abrasca, Alfried Plogher. A entidade reúne
15 as sociedades anônimas de capital aberto,
com um faturamento de 284 bilhões de
dólares, o que representa cerca de um terço
do PIB brasileiro.
Quem apoia o governo encontrou
20 mais um motivo nos rasgados elogios do Sr.
Plogher às reformas que permitiram, por
exemplo, um tratamento diferenciado aos
dividendos pagos aos acionistas, ou à
estabilidade que permite planejar a longo
25 prazo. Quem procurou munição para críticas
ficou com a parte do discurso que apontou as
altas taxas de juros reais, num contexto onde
só um pequeno número de sociedades
anônimas abertas consegue rentabilidade
30 anual média acima de 6%.
É preciso parar de procurar bruxas
onde elas não se encontram e ampliar o
tamanho dos fantasmas para usar como
munição demagógica. O ministro da Fazenda
35 encarregou-se, ele mesmo, de dizer onde está
o coração
do problema: no déficit
II
consolidado do setor público. Um estudo
recente do FGV mostra que “o déficit fiscal
da União, estados e municípios, no conceito
40 operacional, saiu de -1% do PIB (superávit)
para prováveis 3% entre 1994 e 1997.
“Essa é a tarefa”, disse o ministro da
Fazenda, referindo-se ao trabalho que ainda
há a fazer para cortar gastos, reduzir custos,
45 enxugar e modernizar a máquina pública, a
partir da aprovação da reforma administrativa
pelo
Congresso.
Procurar
encontrar
fantasmas onde eles não existem, ignorar ou
exagerar as expectativas que se formam nos
50 mercados significa desviar o foco da atenção.
Não é esse o caminho para amadurecer o
debate
político.
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97.
Texto 17
Além do Câmbio
O
5
10
15
20
25
30
acentuado descompasso entre o
lento crescimento das exportações
nos últimos três anos (média anual
de 5%) e a acelerada expansão das
importações não se deve às questões
cambiais, mas à diferença entre o baixo valor
agregado das exportações e o alto valor
tecnológico embutido nas importações feitas
pelo Brasil.
Chega a ser monótono e enganoso
atribuir ao atraso do câmbio, corrigido pelo
governo desde abril dentro das possibilidades
- à falta da aprovação pelo Congresso das
reformas fiscais -, os déficits da balança
comercial, Há muitos outros fatos que
impedem
melhor
desempenho
das
exportações.
A valorização do dólar na Europa e
no Sudeste asiático retraiu, é certo, as vendas
externas. Os altos custos portuários e da
navegação inibem as vendas em geral, tanto
que, em termos de blocos de comércio, as
exportações só aumentaram para os países da
Aladi, sobretudo os do Mercosul, onde
predominam as transações por via terrestre.
Enquanto o comércio mundial cresce
à média de 7% ao ano nesta década, as
exportações brasileiras andam a 4,5% ou 5%
ao ano. Desde que a abertura comercial
começou a tirar, no governo Collor, a elevada
rede de proteção à indústria e ao produtor
35
40
45
50
55
60
nacional, as importações multiplicaram-se
por três. Este ano, cresceram 25%.
Na lista dos 20
produtos que
apresentaram maior taxa de expansão no
comércio mundial de 1985 a 95, o Brasil
figura como concorrente internacional em
apenas quatro, e com participação modesta.
os microcircuitos eletrônicos e as unidades
digitais centrais de memória movimentam
US$ 150 bilhões em 95. O Brasil foi mero
importador.
O país precisa modernizar-se para
competir num mercado global e isso exige
mais
importações
de
máquinas
e
equipamentos num primeiro momento. Mas o
que está fazendo para sair da condição de
exportadores de manufaturados de baixo
valor agregado (salto dado nos anos 70,
quando tinha pauta de exportação
essencialmente agrícola e de minérios) para
participar do banquete da globalização?
O
BNDES
identificou
áreas
promissoras do comércio mundial. Em vez de
chorar a perda de mercado para o produto ,
de melhor qualidade e que chega ao país em
condições inigualáveis de financiamento,
cabe aos empresários e ao governo
arregaçarem as mangas para inserir
rapidamente o país na pauta de produtos que
irão liderar o comércio mundial. O Brasil não
pode perder o trem para o século 21.
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97.
Texto 18
Mídia e governabilidade
MÁRCIO PORTES *
As discussões sobre a nova Lei de
Imprensa chamam a atenção para aspectos
bastante importantes da atividade jornalística
no Brasil. Um dos mais relevantes se refere à
5 liberdade de que necessitam os meios de
comunicação para exercer o papel de críticos
do poder dos que o exercem em nome da
população. É esta liberdade que estará
II
ameaçada caso entre em vigor o texto da
75 aspecto da lei coloca espadas sobre a cabeça
10 nova lei já aprovado na Comissão e Justiça
dos jornalistas. Como denunciar sob ameaça
de ter de pagar adiante multas abusivas que
poderão quebrar a empresa? O risco pode não
ser tão grande para grupos maiores, mais
fortes, mais saudáveis. Mas e quanto a
jornais do interior, sujeitos a todo tipo de
pressão política e distantes do olhar geral? E
os jornalistas de municípios menores de
grotões esquecidos deste país? Como
investigar a fundo assuntos polêmicos e
assinar matérias que, em situações-limite,
poderão ameaçá-los a desembolsar uma
quantia que levariam toda a vida para
economizar?
É evidente que não se deve deixar de
lado questões da maior importância. Toda
empresa, seja ou não de comunicação, está
sujeita a cometer erros. Elas devem ser
cobradas e pagar por eles. Cabe à Justiça
decidir sobre a indenização, sempre de
acordo com critérios que não coloquem em
xeque a viabilidade e a sustentação financeira
de cada corporação. Se um fabricante de
eletrodomésticos produz um aparelho
defeituoso ele não terá sua sobrevivência
ameaçada por penalidade abusiva. O
raciocínio vale para todos os segmentos da
indústria e do comércio. O que é necessário,
no caso das empresas de comunicação (isto
sim é muito importante). é fixar regras claras
e bastante rígidas para o direito da resposta.
Ele é fundamental para evitar injustiças,
facilitar correções e evitar que qualquer
indivíduo seja eventualmente prejudicado por
uma informação incorreta ( o que sempre
pode acontecer) ou ( o que também pode
ocorrer) por perseguições de caráter pessoal
ou político.
É neste ponto que se deve comentar
um
papel
da
maior
importância
desempenhado pela imprensa no Brasil.
Trata-se de sua capacidade de atuar como
aglutinadora das expectativas e anseios de
milhões de cidadãos sem espaço para fazer
com que suas vozes sejam ouvidas. imprensa
tem sido a verdadeira ombusdman da
sociedade brasileira nos últimos anos. Foi ela
que ajudou a denunciar os abusos cometidos
nos tempos de repressão política, a viabilizar
a anistia, a resgatar a liberdade democrática
(com a volta das eleições diretas inclusive
para presidente), a levar a cabo o
impeachment de um presidente acusado de
corrupção, a denunciar a manipulação de
verbas do Orçamento Federal e a estimular a
investigação sobre a negociação irregular de
títulos públicos estaduais.
Ou seja, a mídia tem sido uma
espécie de quarto poder que colabora com
cada um dos outros três, ainda que
denunciando irregularidades a que cada um
está sujeito. Este poder não é dos
proprietários dos meios de comunicação ( o
que às vezes imagina, erradamente). Ele é da
sociedade, que é o juiz mais adequado dos
15
20
25
30
35
40
45
50
55
60
65
70
da Câmara dos Deputados. A Lei de
Imprensa que agora se propõe, apesar de bem
intencionada e por maior que tenha sido o
empenho de sua relatoria, promove
distorções inaceitáveis e estimula o
cerceamento à livre expressão. É isso,
justamente, o que se precisa impedir.
Gostaria de me incluir entre os que
acham desnecessária a própria existência de
uma Lei de Imprensa. Como já disse o
presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho,
“toda lei de imprensa é nefasta”. No caso
específico da que agora se propõe, há muitas
distorções a corrigir. Em primeiro lugar, não
há razão para tratar distintamente a calúnia, a
injúria ou a difamação praticada por um
jornalista e a cometida por qualquer outro
profissional. Por que um médico, advogado
ou engenheiro deve estar sujeito a um Código
Penal e um jornalista a uma lei criada
especialmente para ele? Os rigores da lei têm
de ser os mesmos para todo cidadão. Isso é
justiça. Não há por que tratar diferentemente
em jornalista. Se ele comete um delito, deve
responder pelo ato como responderia
qualquer indivíduo. Assim domo não se pode
conceber qualquer cerceamento à liberdade
de imprensa, é inimaginável que um
jornalista disponha de tratamento especial
caso incorra em delito previsto pelo Código
Penal. É injusto, por princípio, que haja
tratamentos diferenciados.
A intenção de contemplar com
legislação específica delitos cometidos por
jornalistas é, na verdade, a de restringir a
liberdade destes profissionais. É fácil atender
porque o tratamento diferenciado é sinônimo,
neste caso, de coerção e de restrição à livre
expressão. Historicamente, é significativo o
fato de que leis de imprensa costumam
guardar estreita afinidade com regimes de
exceção. Isso aconteceu em 1937, em pleno
Estado Novo, em 1965, com a promulgação
do AI-2, e em 1967, quando o Congresso
aprovou a legislação ainda em vigor. Agora,
num momento em que o Brasil vive sob
liberdade democrática, o que se devia fazer
era rasgar a Lei de Imprensa em vigor,
resquício de um passado de autoritarismo e
censura, e deixar que a sociedade se
encarregue de julgar os veículos de
comunicação. Como aceitar que ainda se
conceba a apreensão de jornais e revistas? Ou
que jornalistas possam ser multados até R$
100 mil quando todos sabem que seus
salários estão distantes destas cifras? Ou
permitir que paire sobre estes profissionais a
ameaça de prisão em caso de não
cumprimento da prestação de serviços à
comunidade?
É igualmente inaceitável a proposta
do estabelecimento de multas para os meios
de comunicação sem fixação de um teto ou
limite. É mais do que evidente que este
80
85
90
95
100
105
110
115
120
125
130
135
140
II
meios de comunicação. O presidente
Fernando Henrique Cardoso comentou, numa
de suas viagens internacionais, que a “mídia
não é o governo, é a governabilidade”. Nada
145 mais
correto. É em nome desta
governabilidade que se devia evitar a
promulgação de uma nova Lei de Imprensa
que terá como resultado o cerceamento à
prática da atividade jornalística. A liberdade
150 é
uma conquista recente da sociedade
brasileira. É dever de todos desta mesma
sociedade, do Congresso, lutar para preservála incondicionalmente.
155 *
Secretário de Indústria, Comércio e
Turismo do Estado do Rio de Janeiro e
deputado
federal
pelo
PSDB-RJ.
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97.
Texto 19
O ensino superior deve ser gratuito
RUBEM MAURO MACHADO*
5
10
15
20
25
30
35
40
45
É todo dia: a gente abre o jornal e lá
está
alguém,
até
mesmo
pessoas
progressistas, com preocupações sociais, ao
lado dos conservadores de sempre, repisando
o argumento de que o ensino superior deve
ser pago “por quem pode”. isso não é
novidade. Nos meus 55 anos de vida, me
habituei a ver surgirem e ressurgirem, com a
periodicidade de um fenômeno da natureza,
campanhas contra a gratuidade do ensino
superior. Agora afirma-se que até o ministro
da Educação é a favor de que se cobrem
anuidades nas universidades públicas.
O argumento principal é sempre o
mesmo: não é justo que alguém que pode
pagar estude de graça, financiado pelo
conjunto da sociedade. Aparentemente uma
afirmação irretorquível. O problema todo está
na palavra pode. Ao que se sabe, os ricos e
milionários não chegam a 5% da população
brasileira. Ou seja, o grosso do contingente é
formado pela classe média e o proletariado. E
será que os integrantes desses extratos podem
pagar uma faculdade? Considerando-se a
média dos salários no Brasil, a resposta é
altamente duvidosa. Quanto precisaria ganhar
um chefe de família para que fosse
considerado apto para pagar o estudo
superior para si e/ou seus filhos (isso
imaginando-se que a lei estabeleceria que
“quem não pode” pagar continuaria a merecer
ensino gratuito)? Quantos dependentes
precisaria ter para merecer a isenção? Como
seria possível estabelecer uma equação entre
renda familiar e despesa familiar (e se, por
exemplo, um dos parentes sofrer de doença
cujo tratamento acarreta altos gastos)?
A conseqüência inevitável seria um
emaranhado de casuísmos legais e de
intromissão do Estado na vida dos cidadãos,
de um lado; e um convite à fraude, de outro.
Sem falar na humilhação de honrados
cidadãos submetidos à corrida por algum tipo
de atestado de pobreza. E que órgão ou
burocrata seria o juiz desses casos? A
questão de “poder pagar” é altamente
50
55
60
65
70
75
80
85
90
subjetiva. pode até ser que algum mágico da
classe média consiga hoje pagar a faculdade
de, digamos, dois filhos; mas a custa de que
sacrfícios? De modo que, na prática, salvo
uma ou outra exceção, a lei acabaria de fato
com a gratuidade. A conseqüência seria o
desestímulo dos que procuram seu
aprimoramento pessoal e profissional, além
de um aumento da evasão nos cursos - e isso
num momento em que quase todos os
governos do mundo estão conscientes de que
o maior capital de uma nação, a chave do
futuro, é a capacitação tecnológica e cultural
de seu povo.
E o pior: os especialistas reconhecem
que o aporte de recursos que a cobrança de
anuidades traria é ínfimo e não resolveria de
jeito nenhum a problemática do ensino
superior, que continuaria a depender do
mesmo modo das verbas federais. Resumo da
ópera: o fim do ensino gratuito nas
universidades públicas só beneficiaria as
faculdades particulares, que, com menos
concorrência, ganhariam mais clientela. Não,
o interesse público diz que o caminho a
percorrer é o inverso. O governo tem de parar
de subvencionar os estabelecimentos
particulares
(muitos deles verdadeiros
balcões de negócio) através de bolsas de
estudos (e aqui é bom nem mencionara
questão das fraudes) e investir esse dinheiro
(e muito mais) na melhoria do ensino público
gratuito. Educação não é despesa, é
investimento. A cultura e o conhecimento são
uma construção coletiva e todos devem ter
livre e fácil acesso a esses bens. Escolas
particulares têm todo o direito de existir: mas
que sobrevivam por seus meios, não com o
dinheiro do povo.
Em tempo: Cobrança de anuidade
escolar não é instrumento de redistribuição
de renda. Aos preocupados com as injustiças
sociais, recomenda-se que se empenhem
pelas reformas tributárias e fiscais (neste país
em que montadoras de automóveis não
pagam imposto de renda) e vociferem em
III
favor do projeto de taxação das grandes
heranças
e
fortunas.
95
* Jornalista e escritor, autor de Lobos
(Record)
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97
Texto 20
VERÍSSIMO
O outro caminho
5
10
15
20
25
PARIS - Devemos torcer para que
esta aposta francesa numa alternativa para a
receita americana dê certo, porque se ela
falhar o mundo pode não ter outra chance tão
cedo. Jospin precisa convencer os franceses,
depois o resto da Europa - principalmente a
Alemanha, que no ano que vem também
escolhe a sua alternativa - e depois o resto do
mundo de que seu capitalismo com cara de
gente é viável, e que a lógica americana não é
uma fatalidade nem aqui nem em qualquer
outro lugar, leia-se o Brasil. A França é o
país certo para mostrar esse outro caminho,
não só pela sua história de independência e
criatividade política, mas porque não
representa uma opção muito radical. Na
verdade,
embora
muitas
vezes
se
identifiquem como opostos irreconciliáveis a França, o símbolo máximo das frescuras
européias que os americanos tanto
abominam, e os Estados Unidos, a terra do
primarismo político e cultural que
escandaliza os franceses -, os dois se amam, e
se parecem. Nada na Europa é tão
“americano” quanto a França, com sua
adoração ao entrepeneur e sua fascinação
pelo gadge. O “socialismo” de Jospin merece
mais aspas até do que o de Miterrand, e sua
alternativa não representa um retrocesso a
30 nenhum tipo de ortodoxia, mesmo porque o
empresariado americanizado a boicotaria. O
que Jospin propõe é um rearranjo de
prioridades, uma lógica humana com sucesso
medido pelo social. Mas o sucesso precisa
35 aparecer logo, Jospin tem pouco tempo para
ser um bom exemplo. Senão, aprés lui, le
sabe-se lá o que.
Exemplo da esquizofrenia francesa com
40 relação aos Estados Unidos é a mitificação
que eles fizeram de tudo que caracteriza o
deserto cultural americano, ou tido que, nos
Estados Unidos, é menos francês: os
westerns, por exemplo, que a crítica de
45 cinema daqui tratava como os iluministas
tratavam os clássicos, reiventando-os por
uma razão diferente, e os policiais de
segunda linha, quanto mais B mais
significativos, E escolhendo heróis culturais
50 improváveis como Jerry Lewis, cujo
endeusamento pelos franceses até hoje intriga
e diverte os americanos. Foi a maneira que os
franceses encontraram de ser americanos sem
perder a pretensão intelectual jamais.
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97.
Texto 21
TEMA EM DISCUSSÃO: Ressarcimento do ICMS da exportação
Aperto nos estados
O
s estados e municípios tiveram em
seu conjunto enorme ganho de
receita a partir da estabilização da
moeda. O ganho mais expressivo
5 ocorreu no item de receitas próprias, através
do ICMS. Se paralelamente a esse ganho,
governadores e prefeitos tivessem conseguido
conter os gastos públicos, estados e
municípios estariam agora em situação bem
10 confortável,
promovendo investimentos
sociais indispensáveis para a população.
II
15
20
25
30
35
40
45
Não foi o que aconteceu: as despesas
correntes se elevaram de tal maneira nos
primeiros meses do Plano Real que a maioria
dos estados passou a apresentar déficit
primário. Como não amortizaram um centavo
da dívida e nem sequer conseguiram pagar
parte dos juros, o endividamento cresceu em
forma de bola de neve. para fazer
investimentos, governadores e prefeitos têm
dependido de repasses da União, créditos da
Caixa Econômica Federal, ou financiamentos
de órgãos internacionais. Recentemente
passaram a contar com receitas de
privatização.
De modo a obrigar os governadores a
equilibrarem suas contas correntes, o
Governo Federal tem feito acordos para
assumir dívidas estaduais, renegociando-as
para pagamento em prazos de 30 a 36 anos.
Ainda assim, o próprio Ministro da Fazenda
já admite rever algumas das exigências,
concordando que vários estados não terão
condições de cumpri-las. Ao menos a
privatização de companhias estaduais os
governadores estão sendo obrigados a
executar (embora os recursos da venda de
estatais estejam sendo usados em boa parte
para financiar obras).
A insolvência crônica está levando os
secretários estaduais de fazenda a exigirem
mais ressarcimento do Tesouro Nacional em
função de terem perdido uma suposta receita,
decorrente de impostos inadequados que
antes incidiam sobre exportações e bens de
capital.
O Governo Federal teve de assumir
esse ônus, pois sem eliminação do ICMS tais
exportações
desapareceriam
e
os
50 investimentos diminuiriam, agravando a crise
55
60
65
70
75
80
econômica nos estados, pela perda de renda e
empregos.
Na verdade, os estados ganharam
duplamente com essa mudança, pois além das
exportações e dos investimentos terem sido
mantidos, foram ressarcidos pela União de
uma suposta perda de receita (ou seja, estão
sendo indenizados por uma arrecadação que
dificilmente iria existir).
Existem situações peculiares que de
fato precisam ser analisadas com cuidado, o
que, aliás, está previsto no convênio
formalizado com o Governo Federal.
O ajuste fiscal não é uma tarefa fácil
e tranqüila politicamente falando. É por isso
que poucos governadores se dispõem a levála a cabo durante seus mandatos de quatro
anos, preferindo empurrar o problema com a
barriga até onde for possível. Quando a
situação financeira fica insustentável, tentam
fazer o ajuste pelo lado da receita, criando ou
aumentando impostos. Ou ainda esperando o
socorro de Brasília.
Uma revisão nos cálculos não pode
ser descartada no caso do ressarcimento do
ICMS para se corrigir eventuais injustiças.
Mas isso não pode se transformar em
pretexto para que os estados afrouxem as
rédeas do ajuste fiscal pelo lado das
despesas. Ainda há uma enorme lista de
desperdícios para ser atacada. E a
privatização tem de ser acelerada, em áreas
como saneamento básico, por exemplo.
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97.
Texto 22
Ética da desoneração
ANTÔNIO BRITO
A
discussão sobre a chamada Lei
Kandir deve começar repondo uma
verdade: nenhum governador de
estado, em nenhum momento, no
5 passado ou hoje, deixou de apoiar a
desoneração das exportações.
Todos temos a clara consciência da
necessidade de ampliar a participação
brasileira no mercado internacional e da
10 óbvia justiça em retirar impostos que
prejudicavam o nosso esforço de venda de
produtos nacionais, ainda mais quando a
competição chega aos centavos.
De forma isolada ou nas reuniões que
15 realizamos, nunca houve qualquer palavra em
sentido contrário.
Melhor, portanto, discutir a questão
verdadeira: temos, como vem lembrando com
firmeza o governador Mário Covas, um
20 compromisso do presidente da República de
que os estados não pagarão a conta imediata
do apoio à exportação.
Concordamos que no médio prazo
sejam todos vencedores - os exportadores, o
25 nível de empregos no setor e a economia dos
estados.
II
A curto prazo, tínhamos, todos, a
consciência da necessidade de um período de
transição. Tanto que se criou um fundo de
30 ressarcimento.
Hoje, no entanto, de forma injusta, os
cálculos não correspondem aos prejuízos.
E a solidariedade ética - sem a qual a
Federação não existe de forma cooperativa 35 está sendo quebrada pela teimosia dos
assessores do presidente da República. Para
nós, esse é o ponto em discussão: o Governo
Federal, de forma injusta, está dividindo a
desoneração das exportações em ganhadores
40 e perdedores.
Escalou-se para vencer. e nos impõe
a derrota de, em pleno e sério processo de
ajuste do setor público estadual, ficarmos
sem recursos essenciais ao equilíbrio fiscal e
45 social do país.
Acertamos e acertaríamos de novo
desonerar as exportações. Mas não
participamos de nenhum entendimento para
desonerar nossas relações da ética e da
50 solidariedade devidas entre entes da
Federação e, em especial, correspondentes ao
clima até então fraterno e mutuamente
comprometido com o esforço nacional de
recuperação das contas públicas.
55
Prejudicar as exportações, ninguém
quer, prejudicar a ética e a fraternidade entre
os estados e a União, ninguém deveria
querer.
60 Antônio Brito é governador do Estado do
Rio
Grande
do
Sul.
Fonte: JORNAL DO BRASIL, 22/10/97.
Texto 23
A velocidade de globalização: o desafio brasileiro
LUIZ FERRANDO DA SILVA PINTO
5
10
15
20
25
30
35
O fenômeno da globalização mundial
(onde o amanhã se faz hoje) traz consigo a
necessidade de se produzir altas velocidades
de mudança (modernização) dentro das
instituições públicas e privadas, na busca de
um futuro adequado, ao evoluir através de um
oceano de imensos riscos e grandes
incertezas. Estratégia pode ser entendida
como um termo coletivo que abrange os
instrumentos orientadores dessa busca do
futuro. Assim denominaremos também essas
velocidades de globalização de “velocidades
estratégicas”.
O seu manejo articulado e harmônico
vem acompanhado de fortes alterações
conjunturais, que no quadro atual terão que
ser processadas, quase sempre, em tempo
muito curto. essa contração do tempo
disponível, para a concretização de inúmeras
ações, vem rompendo com paradigmas e
configurações
clássicas
de
gestão
institucional e empresarial, gerando-se
“desenhos” não conhecidos até um passado
muito recente. Nesse novo tecido de
encurtamento do arco do tempo, posiciona-se
por exemplo a política de fast track
objetivada pelo Governo Clinton, para
nortear medidas de comércio intencional dos
EUA, ora em discussão e - aliás - sob
cuidadosa observação e preocupação de
muitas nações - inclusive o Brasil. Da mesma
forma reuna-se a esse mesmo tecido todo um
conjunto privado de rearranjos corporativos,
tais como fusões, cisões, incorporações,
participações em privatizações etc., além de
novas configurações estratégicas - colorindo
40
45
50
55
60
65
70
o cenário internacional com traços muito
específicos também no plano empresarial.
Portanto, todos esses eventos
ajustam-se ao traçado de um futuro onde o
fator tempo encolhe-se e encurta-se
demandando medidas superágeis baseadas
em altíssimas velocidades estratégicas ao ter
que percorrer todo esse novo cenário da
globalização. A grande indagação é como
possibilitar de modo correto que países em
desenvolvimento, corporações e instituições
possam produzir essas altíssimas velocidades
sem desequilibrar “o todo já existente”. Os
recursos a serem adotados serão inéditos?
Desconhecidos da História? Ao nosso ver,
não. “Assim, czar Pedro, O Grande, da
Rússia (1672-1725) quando há 300 anos
desenvolveu um projeto extremamente denso,
competente, rápido e consistente de avanço
global, já materializava uma solução
notavelmente adequada para a produção de
“velocidades estratégicas”. Tratava-se da
implantação de uma ínsula urbana, uma “ilha
virtual de desenvolvimento” (com a
construção de São Petersburgo), área
integrada e muito bem definida na qual se
reuniriam:
o
compromisso
com
a
modernização e o avanço
técnicotecnológico do momento, facilidades de
transportes, densidade educacional, atividade
industrial muito intensa, ativação cultural e
artística, preparo de elites para o comando,
treinamento especializado de grandes
contingentes
de
recursos
humanos,
organização flexível e abertura da economia convergindo todos esses programas para a
II
75
80
85
90
95
100
105
110
115
120
125
130
produção e sustentação de um leque de
projetos e centros de excelência. O resultado
prático é que Pedro, O Grande iria resgatar
150 anos de atraso relativos às lideranças
européias daquela época, num prazo central
de apenas s15 anos de trabalho em sua
“ínsula estratégica”, viabilizada pelo seu
extraordinário conjunto de projetos especiais
utilizados em São Petersburgo.
A proposta de Pedro, O Grande, hoje,
é reproduzida e multiplicada no mundo atual,
com as “presenças insulares do próprio
Japão, de Hong Kong, Taiwan, Cingapura,
Macau e, mais recentemente, o surpreendente
e incrível sucesso das Zonas Especiais de
Desenvolvimento da China (Shenzhen,
Guangzhou, Foshan, etc...) que estão
reconfigurando esse país e transbordando
resultado e exemplos positivos pela nação
chinesa, mobilizando forças modernizadoras
cada vez mais intensas! Nesse contexto a
estrutura insular se posiciona, de fato, como
núcleo central desses sucessos incontestes,
estendendo-se desde a Rússia Petrina até a
China de Deng Xiaoping e de seus atuais
sucessores. As “ínsulas” como que deslizam
sobre
sistemas
tradicionais
de
desenvolvimento econômico, agilizando o
processo de crescimento de modo flexível e
acelerado.
Ao nosso ver a resposta insular é
direta, linear e inequívoca, ao se processar a
alavancagem
de
atributos
especiais,
reunindo-se nessas regiões específicas
aqueles fatores já citados: compromisso com
a modernização, adensamento empresarial expansão cultural, centros de excelência,
recursos humanos supertreinados - gerandose gradativamente fluxos econômicos autosustentados em ambiente não-inflacionário,
capazes de transbordar resultados para os
seus
“continentes
envolventes”.
A
combinação integrada desses atributos,
amalgamados
em
área
compacta,
corresponderá a uma provocante “química de
desenvolvimento”, multiplicadora de seus
impactos de renda e bem-estar social.
Essa “excelenciação” catalisa e
produz resultados concretos em curto prazo,
provocando-se o futuro e resgatando-se
lacunas do passado! Em paralelo, é curioso
assinalar que as grandes corporações
privadas também estão se dirigindo para
“modelos efetivamente insulares”, quando
operam com arquipélagos de centros de
negócios auto-suficientes, verdadeiras “ilhas
supercompetitivas” de gestão empresarial! A
General Electric, de Jack Welch, ajusta-se
como uma luva
135
140
145
150
155
160
165
170
175
180
185
a esse modelo de auto-sustentação econômica
de desenvolvimento acelerado. Velocidades
corporativas muito expressivas, a exemplo de
experiências das regiões assinaladas, estarão
ligadas, com certeza, a “estruturas insulares”
(virtuais ou efetivas) de gestão corporativa.
Ao Brasil, em face do seu imenso
desafio de velocidades estratégicas (de
globalização), caberá refletir - país,
instituições e corporações - sobre a
conveniência de se investir e de se implantar
um próprio conjunto muito expressivo de
“ínsulas de desenvolvimento” no sentido de
se objetivar e resgatar rapidamente lentidões
do passado e provocar o futuro econômico e
social da melhor (e mais veloz) forma
possível. Essas “ínsulas”, sem dúvida,
poderão colaborar de modo extraordinário
com o encurtamento de nossos tempos
econômicos e social, nos planos nacional,
regional, institucional e corporativo. A nossa
criatividade,
combinada
com
uma
extraordinária capacidade de alavancagem
comunitária, será, com certeza, responsável
pelo
desenho
de
“ínsulas
de
desenvolvimento”
absolutamente
competitivas no panorama internacional e
“produtoras”
de
transbordamentos
inteligentes ao longo de todo o nosso
território.
Obter
altas
velocidades
de
globalização é um dos maiores desafios para
o nosso país e para suas elites. Quanto mais
cedo avaliá-lo e enfrentá-lo, mais cedo
encontraremos atalhos extraordinários para o
nosso
processo
de
desenvolvimento
econômico e social, ao se obter “velocidades
estratégicas”
supereficientes!
Como
conseqüência, centenas de milhares de
pessoas serão retiradas da pobreza e do
sofrimento social, através das ações de
“estruturas insulares de desenvolvimento”
cada vez mais densas e presentes em áreaschave do panorama mundial. Essa é a lição
de Pedro, O Grande e Deng Xiaoping. Resta
a nós meditar e agir sobre tais propostas e, se
possível, implantá-las o mais rapidamente!
Poderão existir outros caminhos para o
desenvolvimento nacional e empresarial?
Claro que sim. Mas bem poucos terão uma
resposta tão rápida e eficiente quanto as
“ínsulas estratégicas” de Pedro, O Grande e
as da China atual, dentre outros. O mistério
dessas estruturas ao correr da História parece
ser bem simples: as suas viagens no túnel do
tempo são sempre para ganhar, jamais para
perder.
Fonte: O GLOBO, 22/10/97.
II
Texto 24
Ciro Gomes está se suicidando
Elio Gaspari_
A
5
10
15
20
25
30
35
40
45
candidatura do ex-ministro Ciro
Gomes à Presidência da República
está fazendo água. Ou muda de curso
ou naufraga em poucos meses,
devolvendo-o ao confortável remanso da
política cearense. Dois meses depois do seu
telúrico reaparecimento, o ex-ministro
continua enredado numa costura de alianças
que, além de serem incompreensíveis para o
eleitor, chocam-se com a própria virulência
verbal com que ataca a “barganha
politiqueira” dos outros.
Admitindo-se que Ciro Gomes tenha
algo a ver com o PPS (o que já é um favor),
salta aos olhos que nada tem a ver com o PT,
muito menos com o brizolismo. Apesar disso,
aceitou que sua candidatura fosse confundida
com um projeto de união das esquerdas. É
pelo menos divertido ver a esquerda, em
nome da unidade, conversando em torno da
hipótese de se lançar como candidato à
Presidência um político que informa: “Não
tenho tradição de esquerda e nem pretendo
ser líder de esquerda.”
Ciro Gomes reapareceu, e poderá se
manter à tona, enquanto representar um
projeto apenas alternativo ao de FFHH. Em
algumas coisas poderá ser alternativo à
direita, em outras à esquerda. É na alternativa
que está o segredo do cofre, não numa
suposta diferença ideológica, até porque se a
conversa cair na teoria, FFHH já demonstrou
que depois de construir a social-democracia
do PFL pode construir o que bem entender.
Com dois meses de movimentação,
Ciro Gomes não produziu uma só opinião
alternativa para temas banais da vida real.
Fala-se em planos de saúde e ele vai
conversar com Miguel Arraes. Os grandes
centros urbanos estão conflagrados pela
revolta dos motoristas do sistema de
transporte alternativo e ele vai procurar o PT.
Educação? Propõe uma “presença ampliada e
efetiva do Estado, com participação da
cidadania”.
À parte o fato de ser sustentado por
forças que julgam desnecessária a
apresentação de um plano de governo, um
resumo de suas idéias informa que ele
50 defende o “desenvolvimento sustentado nos
55
60
65
70
75
80
85
90
95
princípios da democracia, da eqüidade social,
da eficiência econômica, do equilíbrio
ambiental e da diversidade cultural”.
Alguém conhece uma pessoa que seja
contra essa sopa de chavões? Que tal
defender a democracia sustentada nos
princípios da eqüidade, do equilíbrio cultural
e da diversidade ambiental? Se fossem
apenas chavões, até que dava para empurrar
com a barriga, mas são chavões
incompreensíveis,
deliberadamente
incompreensíveis.
Assim como os trabalhistas ingleses
só chegam ao poder quando convenceram o
eleitorado de que tinham um programa de
governo alternativo - e eficaz - a oposição a
FFHH só terá espaço quando se fizer
entender na discussão dos temas terrenos.
Ciro Gomes acusa FFHH de estar
panfletando uma “conversa fiada para
véspera de eleição”. Não é de todo verdade,
mas a parolagem do ex-ministro também está
próxima disso. Com uma diferença: enquanto
por trás do palavrório de FFHH está a
estabilidade da moeda, seus adversários nem
isso oferecem. A conseqüência é simples:
uma pessoa pode resolver votar em Ciro
Gomes, ou no Enéas, porque não gosta de
FFHH, mas até hoje não lhe foi dada a
oportunidade de oferecer um único
argumento em favor do nome que escolhe.
Está certo que Ciro Gomes não
queira expor às tribos oposicionistas o fato
óbvio de que o PT está a um passo de
desarticulação. Pode-se entender também que
não queira comprar uma briga com Brizola
(coisa de resto inevitável) dizendo que seu
apoio, numa eleição federal, é pouco mais
que uma irrelevância. São astúcias políticas
(ele diria “politiqueiras”) perfeitamente
compreensíveis.
Daí a supor que pode construir uma
candidatura silenciosa, vai uma distância
muito grande. Acreditar que um blablablá
possa substituir um programa é apenas
suicídio.
ELIO GASPARI é colunista do GLOBO.
Fonte: O GLOBO, 22/10/97.
Texto 25
A Petrobras e a petroquímica
LUIZ PINGUELLI ROSA
II
5
10
15
20
25
30
35
40
45
O contrato da Petrobras com a
Odebrecht tem sido objeto de críticas tanto
pela oposição como por empresários
próximos ao Governo. A empresa estatal, por
ser de propriedade pública, deve sempre dar
as satisfações exigidas pela sociedade, como
lhe é agora demandado.
Segundo os críticos, uma cláusula do
contrato da Companhia Nacional de Produtos
Petroquímicos, associação entre a Petrobras e
o Grupo Odebrecht, coloca este último em
vantagem não só no empreendimento paulista
mas em qualquer outro projeto da Petrobras
na área petroquímica. Ou seja, há um
consenso que a abrangência é muito grande
no escopo e no tempo, em favor da
Odebrecht.
A Petrobras é a fornecedora da
matéria-prima e deverá ser ainda por muito
tempo a grande refinadora de petróleo no
país, apesar da perda do seu monopólio
constitucional. Colocada agora no mercado
em competição com concorrentes, nacionais e
multinacionais ou estrangeiros, não tem outro
caminho se não atuar como empresa
agressivamente. Isto implica em tomar
decisões, associando-se, fazendo parcerias,
conforme oportunidades que se apresentem a
cada momento, e escolhendo parceiros,
conforme as vantagens que puder tirar para
desenvolver-se dentro de uma estratégia
empresarial. O problema é: por que a
Odebrecht e quais as vantagens que Petrobras
irá auferir da associação.
Portanto, o problema, não são as
parcerias em geral, por princípio, mas sim
discutir este tipo particular de associação. A
questão em jogo é o interesse do país, pois os
cidadãos brasileiros são os donos da
Petrobras como empresa do Estado, além dos
acionistas individualmente. A questão grave
não é o interesse dos competidores, como a
Dow Chemical, por exemplo, que reclamou.
A Dow comprou o pólo petroquímico de Baía
Blanca, na Argentina, que se tornou forte
50
55
60
65
70
75
80
85
concorrente do Brasil na petroquímica do
Mercosul.
Os liberais se esqueceram que a
petroquímica exigiria uma escala técnicoeconômica e que ocorre a verticalização
freqüentemente. Isto é, as grandes refinadoras
de petróleo em geral participam da
petroquímica. Entretanto, não houve uma
estratégia inteligente ao se tirar a Petrobras
da petroquímica nas privatizações. E deu no
que se está assistindo: os grupos que
compraram a petroquímica agora tentam se
associar à Petrobras para enfrentar a
concorrência internacional. A petroquímica
brasileira sucumbirá por falta de escala e pela
desverticalização feita artificialmente na
privatização sem um plano estratégico.
Enfim, terá de haver associações da
Petrobras com empresas na área petroquímica
e em vários outros campos. A questão é saber
se esta associação com a Odebrecht atende
aos interesses mais gerais. Há outras
empresas no país que podem também
participar da associação.
A Odebrecht tem forte ligação com o
Governo Federal. Aí está o nó: tudo indica,
como a solenidade em São Paulo com o
governador e o presidente da República, que
houve uma decisão de governo para colocar a
Odebrecht como a responsável pela
restruturação da petroquímica nacional. As
declarações do ministro de Minas e Energia
mostram isto, sem nenhuma dúvida.
Portanto, o erro não é a Petrobras
estar fazendo parcerias com várias empresas.
Esta é a única resposta que ela pode dar
empresarialmente às exigências do sistema
competitivo a que foi submetida com a perda
do monopólio. Imobilizá-la é decretar a morte
da Petrobras, pois seus competidores farão o
que ela está fazendo. Tocam tango querem
que ela dance samba. O erro vem da
ostensiva ligação da Odebrecht com o
Governo.
LUIZ PINGUELLI ROSA é diretor da Coppe/UFRJ.
Fonte: O GLOBO, 22/10/97.
Texto 26
Desemprego em São Paulo
A economia brasileira não está em
recessão. Praticamente a cada semana novos
investimentos são anunciados. O governo
promove projetos que estariam assegurando
5 empregos. Entretanto, ao menos na Grande
São Paulo, a taxa de desemprego está em
nível recorde.
Segundo pesquisas realizadas em
conjunto pela Fundação Seade e pelo Dieese,
10 de agosto para setembro o exército de
desempregados nessa região metropolitana
engrossou em cerca de 38 mil vítimas.
Não há, portanto, como negar que a
trajetória de crescimento moderado admitida
15 pela atual política econômica, mesmo não
sendo recessiva, cobra um alto preço do
ponto de vista social. Aliás, a piora no
indicador do desemprego pode até mesmo
I
obrigar a uma reavaliação do cenário de
20 crescimento moderado. Afinal, o dinamismo
da atividade econômica torna-se cada vez
menos vigoroso, Ou moderado demais.
Fala-se muito nas alternativas de
criação de empregos nos setores de serviços.
25 Seria uma resposta à “desindustrialização” da
economia paulista. Mas as demissões na
indústria, na construção civil e no emprego
doméstico hoje ultrapassam a criação de
vagas nos serviços e no comércio, setores
30 econômicos que também começam a perder
força.
Não é nada fácil encontrar uma
resposta ou apontar um futuro para quase 1,5
milhão de desempregados na Grande São
35 Paulo, em especial quando se pensa em
termos políticos. E nada sugere que a sina
dos desempregados seja muito diferente em
outras regiões do país, apesar dos sinais de
desconcentração regional na economia
40 brasileira.
Para se alcançar a gravidade da
situação é preciso lembrar ainda que
aumentos no desemprego são atípicos nesta
época do ano. Normalmente, o mês de
45 setembro registra queda de desemprego, pois
a indústria se prepara para a temporada de
aquecimento de fim de ano.
A rigor, somados a indicadores como
o da inadimplência, os dados do desemprego
50 colocam cada vez mais preocupações no
horizonte.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97
Texto 27
Carlito e “Cardoço”
CLÓVIS ROSSI
5
10
15
20
Buenos Aires - As eleições
legislativas de domingo na Argentina são um
desafio à teoria que diz que o bolso é a parte
mais sensível do corpo humano. Há dois
anos, o bolso dos argentinos em geral andava
vazio. O país estava mergulhado na recessão
provocada pelas seqüelas da crise mexicana.
A economia argentina retrocederia, em 95,
4,6%, um baque e para ninguém botar
defeito. O desemprego era recorde, nas
alturas de 18,4%.
Graças, no entanto, à inflação baixa,
o presidente Carlos Menem reelegeu-se
comodamente, já no primeiro turno, com 20
pontos percentuais de vantagem sobre o
segundo colocado.
Hoje, a economia avança a um ritmo
asiático (8% de crescimento no primeiro
semestre) e o desemprego, embora ainda
brutalmente elevado (16,1%), é dois pontos
inferior a 95.
Não obstante, o partido de Menem ou
perderá as eleições ou, na melhor das
hipóteses, ganhará com margem mínima.
25
30
35
40
45
50
Claro que sempre se poderá dizer que
a eleição de domingo não põe em jogo o
principal (a Presidência), o que permite ao
eleitor brincar de voto de castigo ao governo,
sem o risco de mudanças fundamentais no
jogo.
Ainda assim, parece pouco para
explicar tão formidável reviravolta no humor
dos argentinos em dois anos.
A verdade é que aplica-se à
Argentina de 1997 o que o general Médici
dizia do Brasil, um quarto de século atrás: o
país vai bem, o povo vai mal.
Ou, pelo menos, acha que vai mal.
Tanto que 74,6% dos argentinos expressaram
tal sentimento, em pesquisa publicada
semana passada.
Carlito, como o presidente Ménem é
chamado pelos íntimos, vai acabar pagando o
pato por essa “malaise” difusa. Há nisso, uma
lição para “Cardoço”, como os argentinos
pronunciam o nome do presidente brasileiro.
Mesmo que ganhe em 98, como hoje
parece o mais provável, pode perder o brilho
no segundo período, como Carlito está
perdendo
velozmente.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 28
A ciranda dos juros
A estabilidade da moeda brasileira
foi conquistada graças à abertura às
importações e à ancora cambial que, logo no
início, fez o real valer mais que o dólar, o
5 ritmo da abertura à s importações tem sido
revisado. Quanto à política cambial, mudou a
II
10
15
20
25
forma, não o conteúdo. Primeiro houve a
valorização com relação ao dólar. Depois,
houve atraso na correção do câmbio
comparada à inflação. na fase mais recente, a
opção do governo é reduzir, ou mesmo
eliminar, a longo prazo, a defasagem cambial.
Explica-se. A mesma taxa de câmbio
que barateia as importações e ajuda a segurar
os preços produziu um déficit comercial
crescente. Mas todas essas medidas
dependem de um único instrumento: a
manutenção de taxas de juros elevadas.
O déficit comercial, mais as despesas
com remessas de lucros e dividendos e o
serviço da dívida externa, chegam aos US$
60 bilhões por ano.
Para atrair recursos suficientes para
cobrir esse déficit, o governo precisa manter
os juros elevados, além de apostar na rapidez
e no sucesso da privatização e dos
investimentos diretos. Além disso, os bancos
no Brasil ampliaram suas redes de captação
de recursos externos. Como no passado,
30 paga-se a dívida para ao mesmo tempo
contrair novas dívidas.
Se reduzisse juros, o governo correria
o risco de interromper a ciranda. Isto é, a
âncora cambial - a preservação das reservas
35 internacionais - e a capacidade de manter a
economia aberta às importações dependem
dos juros altos. O problema é que o peso dos
juros também se faz sentir sobre as contas
públicas e é um grande obstáculo ao aumento
40 de gastos em áreas sociais. Mais ainda, o juro
alto debilita a economia como um todo,
sacrifica a classe média endividada e inibe o
investimento produtivo.
Sem os juros, a âncora se rompe.
45 Com tais juros, o barco navega mal.
Este é o dilema que mina por dentro a
estabilidade econômica tão duramente
mantida até agora.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 29
Maluf engole o PFL
FERNANDO RODRIGUES
5
10
15
20
25
Brasília - Paulo Maluf causou um
estrago no PFL. Sua reunião sigilosa com
Antônio Carlos Magalhães, sábado passado,
deixou de cabelos em pé vários pefelistas.
Ontem, no começo da noite, Agripino
Lima, ex-prefeito de presidente Prudente,
estava na porta do gabinete de ACM para
tirar satisfações com o cacique pefelista.
Agripino é um dos quatro précandidatos do PFL ao governo paulista. Os
outros são o presidente do partido em São
Paulo, Cláudio Lembo, o ministro de
Assuntos Políticos, Luiz Carlos Santos, e o
senador Romeu Tuma.
Maluf já acertou com a cúpula do
PFL que aceita qualquer um dos quatro como
candidato a vice em sua chapa. E ainda dá a
vaga de candidato ao Senado para o PFL.
A cúpula pefelista adorou. Ninguém
fala isso em público. Mas já está tudo
acertado. o anúncio fica para o início do ano
que vem.
“O seu pai dá traço em todas as
pesquisas”, disse outro dia, irritado, o
deputado Luiz Eduardo Magalhães (PFL BA) para o deputado Paulo Lima (PFL - SP),
filho de Agripino Lima.
30
35
40
45
50
Romeu Tuma é outro que está
irritado com o assédio de Maluf. Senador
com mais cinco anos de mandato, quer ser
candidato ao governo para se tornar mais
conhecido do público.
Hoje, a cúpula do PFL deve tentar
enquadrar Agripino Lima durante uma
almoço em Brasília. O resultado é uma
incógnita, a julgar pela declaração do exprefeito ontem: “Nada me fará desistir de ser
candidato”.
Com todo esse mal-estar criado,
Maluf pode acabar tendo problemas mais à
frente, quando julga que o PFL estará
disponível para apoiá-lo na campanha pelo
governo paulista.
∗
Sob o argumento de que deve se
manter isento, o presidente da Câmara,
Michel Temer, não dá sinais públicos sobre
quando colocará em votação os seis casos de
cassação de deputados hoje arquivados em
sua gaveta.
É uma decisão curiosa. Afinal,
também não é isento quem segura processos
prontos para serem votados.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
II
Texto 30
Camelôs, perueiros e crise
5
10
15
20
25
São Paulo está sendo palco de dois
grandes conflitos sem vínculos aparentes
entre si. Um deles, envolvendo a prefeitura e
os camelôs; o outro, a Câmara Municipal e os
perueiros (motoristas de lotação). Verificamse em ambos os sintomas de um problema
comum: a degradação da qualidade de vida
na cidade.
O crescimento do número de camelôs
está ligado à crise do emprego; os perueiros,
por sua vez, ganham os clientes insatisfeitos
com um sistema de transporte público
desconfortável e ineficiente.
Não há, evidentemente, soluções
fáceis para uma ou outra dessas pendências.
A tolerância do poder público com o trabalho
informal - os dos camelôs, no caso _ pode
acentuar ainda mais a deterioração da vida
urbana, mas a simples repressão tende a
acabar com o meio de vida de milhares de
pessoas, além de ser uma medida que pode
gerar violência e ter eficácia pouco
duradoura.
Algo, no entanto, precisa ser feito.
No caso dos perueiros, que constituem
30
35
40
45
alternativa de transporte coletivo porque a
qualidade do serviço existente é inaceitável,
seria um equívoco simplesmente extingui-los.
A solução que pretende liberar para o
trabalho os que se credenciarem parece ser a
mais sensata. Ademais, a maioria dos
paulistanos aprova o serviço, como mostrou o
Datafolha.
O drama dos camelôs é, à primeira
vista, mais insolúvel. A idéia de construir
camelódromos na cidade soa até simpática,
mas seria no mínimo ingenuidade acreditar
na sua eficácia. Os camelôs tendem a
degradar a paisagem urbana e competem com
vantagens com o comércio formal, uma vez
que não pagam os impostos que oneram este
último.
Se, no caso dos perueiros, a raiz do
problema está na degeneração do transporte
público, no caso dos camelôs o trabalho
escasso e a miséria da maioria da população
concorrem para agravar um problema de
solução
cada
vez
mais
difícil.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 31
Vieira e Tiririca
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Editorial da Folha,
no último domingo, fez considerações sobre a
dificuldade das novas gerações em consumir
os clássicos de nossa literatura.
5
Apoiado em pesquisas junto a dez
escolas, o editorial constatou que “aumentam
as dificuldades dos alunos em ler autores dos
séculos passados que vão se tornando
incompreensíveis”.
10
Isso explica por que, num desses
últimos vestibulares, o texto escolhido foi
uma obra de Tiririca, por sinal acusada de ser
racista. Para a análise em nível escolar, tanto
faz a sintaxe de Tiririca ou de Vieira. A
15 explicação para a escolha é simples: os
alunos jovens compreendem o que Tiririca
propõe. E nenhum deles teria condições de
penetrar no sermão da septuagésima.
Não se trata de uma questão de gosto,
20 mas de penetração. Por isso mesmo Charles
Lamb pegou as peças teatrais de Shakespeare
e as reduziu a contos - que com o tempo
também se tornam clássicos. Monteiro
Lobato fez o mesmo com o “Dom Quixote” e
25 o “Gulliver”.
A editora Scipione, de São Paulo,
está encomendando a autores de hoje a
adaptação de alguns romances famosos. Eça
de Queiroz, Manuel Antônio de Almeida,
30 Raul Pompéia, Aluísio Azevedo, por
exemplo, serão lançados em textos com
linguagem atual, em versões reduzidas que
II
eliminarão digressões e ângulos mortos.
Sobrarão apenas os personagens e a história
35 em si.
Com isso, pretende-se chamar a
atenção dos jovens para os textos originais.
Mais ou menos o que algumas orquestras
fazem com partituras clássicas, gravando
40 adaptações ou seqüências que quebrem o
gelo entre a versão dos autores e o ouvido
ainda não educado.
São muitos os que condenam essa
liberdade. Consideram sacrílegas essas
45 versões. pessoalmente, sou a favor. Li Swift
pela primeira vez por meio de Monteiro
Lobato. Já fiz diversas adaptações de
clássicos para a Ediouro e agora estou
fazendo para a Scipione. Mas não pretendo
50 concorrer
com
o
Tiririca.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 32
Nossa Caixa faz Florspanca mudar de prumo
BARBARA GANCIA
Colunista da Folha
5
10
15
20
25
30
A Caixa Econômica Federal andou
oferecendo uma espécie de promoção por
tempo limitado: durante uns poucos meses,
quem se dispusesse a pagar de uma só tacada
o financiamento da casa própria, ganharia
desconto de até 60%.
Minha amiga politicamente correta
Florspanca Esbelta resolveu aproveitar a
oportunidade. Vendeu o carro e tirou um
dinheirinho da poupança. Juntou a quantia
necessária e pagou os cinco anos de
prestações que ainda lhe restavam.
Esperava que Esbelta estivesse
radiante por ter realizado o sonho tapuia.
Qual nada.
Para festejar a nova propriedade do
châteou, um dois cômodos na Vila
Mandioquinha, convidei minha engajada
amiga para tomar um copo de vinho
(nacional, claro, a fim de evitar algum
discurso inflamado sobre a relação entre o
beaujolais e a opressão dos “campesinos” do
Cone Sul).
Durante a celebração, me dei conta
de que a alegria de Florspanca nada tem a ver
com a posse do imóvel. “Minha maior
satisfação não é ter quitado a dívida. É ter me
livrado do contato mensal com aquela corja
da Nossa Caixa.”
Não é que, por uma vez, o raciocínio
de Florspanca comunga com o meu? Diz ela
35
40
45
50
55
60
que, durante os anos em que pagou as
prestações, nunca recebeu o extrato mensal
no prazo certo. “Todos os meses era obrigada
a ir pessoalmente a uma agência da Caixa
fazer o levantamento do número do contrato
para efetuar o pagamento”, resmungou. “E
percebi que a má vontade dos funcionários
acaba gerando filas de deixar o Bradesco
parecido com um pacato banco do Canadá.”
Partindo de uma defensora dos paradigmas
dos partidos dos trabalhadores da vida, a
constatação quase me manda para o Incor.
Disse-me ainda Florspanca que o
cheque encerrando a dívida já saiu de sua
conta. mas o documento de quitação só deve
chegar às suas mãos dentro de dois ou três
meses.
Contou-me também que, outro dia, na
fila da Caixa, uma funcionária corpo mole
mandou uma pobre cliente tirar “xerox
autenticado”: Ä coitada não tinha idéia do
que estava sendo dito. Se, para gente
escolarizada,
essas
burocracias
são
complicadas, imagine para quem mal sabe
ler”.
Wim Wenders e aprendendo. para
transformar em capitalista um militante de
esquerda, basta passar alguma coisa em seu
nome. nem que seja um apê na Vila
Mandioquinha.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 33
Estresse afeta altura
GILBERTO DIMENSTEIN
II
5
10
15
20
Excesso de conflitos familiares
provoca tamanha carga de estresse que chega
a comprometer o crescimento físico de uma
criança.
Pesquisadores patrocinados pelo
governo britânico acompanharam desde 1958
até agora 6,574 pessoas, todas nascidas na
mesma semana.
Coordenados por cientistas da
Faculdade de Medicina de Londres, os
pesquisadores detectaram que crianças de
famílias em crise, marcadas por divórcios e
ambientes tensos, tendiam a ter menos altura,
comparadas com a média.
Eles levantam a tese de que o fluxo
normal de hormônios responsáveis pelo
crescimento. Apenas o sono conturbado,
segundo eles, já afetaria esse fluxo, o que
seria verificável em animais nos laboratórios.
Não é o pior.
*
Segundo o estudo, o pior é que a
química do estresse afetaria regiões do
25 cérebro ligadas à memória e ao aprendizado.
Portanto,
haveria
danos
no
desempenho escolar. Logo, no emprego. Esse
efeito o estudo inglês detectou naquele
grupo, agora adulto.
30
Munidos de máquinas capazes de
fotografar
como
nunca
o cérebro,
neurologistas americanos conseguem ver por
meio das fotos as áreas danificadas.
As
manchas
nas
fotos
35 computadorizadas
produziram
tamanho
impacto que fizeram políticos e educadores
nos EUA colocar como prioridade
conscientizar os adultos.
Ou seja, educar os pais sobre a
40 importância de determinados cuidados. Entre
eles, conversar com os bebês, num processo
contínuo de estímulo.
E, especialmente, evitar os mais
variados tipos de conflito e violência
45 doméstica. A começar pela autoviolência.
Bebidas, cigarro e drogas durante a gravidez,
por exemplo.
50
55
60
65
70
75
*
Daí dependeria, em parte, a
performance na escola. Por tabela, a criação
de trabalhadores produtivos.
Não por acaso empresas gigantes,
como a rede de televisão ABC ou a AT&T,
estão
patrocinando
campanhas
de
esclarecimento, envolvendo os novos
conhecimentos de neurologia. O que parece
utopia no Brasil, aqui virou tema emergente.
*
PS - Domingo passado essa coluna
mostrou como as novas descobertas
científicas defendiam a relação entre prazer e
saúde, desfazendo uma série de mitos.
Estudos divulgados ontem sobre um
ingrediente chamado licopene, encontrável,
por exemplo, no tomate, deram um novo
status à macarronada al sugo ou à pizza. São
apontados agora como um bom antídoto
contra o câncer e ataques cardíacos. Mais: o
licopene está também, imaginem só, na
lagosta. Melhor ainda, se acompanhado por
dois copos de vinho. As mães italianas, como
se vê, chegaram na frente dos cientistas. Para
quem quiser mais detalhes, coloquei um
resumo do estudo sobre o licopene em
português
no
seguinte
endereço:
www.aprendiz.com/
Gilberto Dimenstein escreve às quarta-feiras e aos domingos.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 34
Palavras devolvidas
A fortíssima pressão da presidência
da República e de alguns ministros para
aprovação, por uma comissão mista de
Senado e Câmara, das contas do governo
5 relativas a 96 não poderá apagar, seja qual
for o seu êxito, as constatações já presentes
na análise do Tribunal de Contas da União,
negadas
pelo
governo,
mas
agora
confirmadas pelo senador-relator, Jefferson
10 Peres, do PSDB ( porém altivo).
A pesada redução de fastos em saúde
e educação, embora a existência de recursos
disponíveis no Orçamento, foi tão
injustificada que leva o senador pesssedebista
15 (porém não serviçal) a registrar que se mostra
“ainda mais grave quando se considera que a
priorização dessas áreas foi objeto da
campanha eleitoral do senador Fernando
Henrique Cardoso”.
20
Todas as estocadas de Fernando
Henrique Cardoso contra os que apontaram
redução de gastos sociais, por ele chamados
mentirosos, entre outras coisas, voltam-se em
definitivo contra o autor - o primeiro dos
25 presidentes, pelo menos desde 30, a aplicar
tal corte nas verbas de saúde e educação.
II
Sócios bons são sócios em todas as
circunstâncias. Sérgio Motta leva também o
seu recorde e o desmentido correspondente.
30 O estouro de gastos na área da Comunicações
foi uma orgia financeira. Nada menos de
nove empresas controladas por Sérgio Motta
esbanjaram muito além do permitido e
cabível.
35
De quebra, o senador peessedebista
(porém erecto) corrobora as indicações de
desrespeitos à Constituição por Fernando
Henrique Cardoso, citando a desobediência
sitemática aos artigos 60 e 212.
40
Nem em casa
Um dos integrantes do grupo de
Sérgio Motta por ele indicados para a
Agência Nacional de Telecomunicações,
45 Renato Guerreiro, deixou escapulir um
desmentido a Sérgio Motta mais preciso,
porque numérico, do que o publicado aqui
ontem.
Como justificativa dos tantos
50 negócios que gastam muito e em nada
melhoram as telecomunicações, Sérgio Motta
inventou que o “setor ficou 40 anos sem
investimentos”, quando, de fato, foi o mais
beneficiado pela ditadura militar.
Ainda no seu espasmo bajulatório,
55
pela indicação para a Anatel, Guerreiro
lembrou “a revolução há 20 anos passou de 2
milhões para 17 milhões o número de
telefones”.
60
Nem quando dá presente Sérgio
Motta é levado a sério.
Além do mais
A pretensão do governo de montar
65 uma TV do Executivo, para funcionar na rede
como as TVs do Senado e da Câmara, é
absurda por muitos aspectos.
O governo já tem e usa as TVs da
Fundação Roquette Pinto (as Educativas mas
70 não tanto) e da Radiobrás. Já por aí não
precisaria de outra. Além disso, TVs
convencionais, como as suas, alcançam os
associados a redes de cabo e os outros muito
milhões que não têm TV a cabo.
75
Se a idéia não envolvesse negócios
altos e ainda interesses políticos não menos
desprezíveis, poderia ser vista como
obtusidade
apenas.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 35
‘É só o Quarentinha’
ALBERTO HELENA JR.
da Equipe de Articulistas
5
10
15
20
25
Fosse um tempo de escracho, e a
manchete desta página esportiva seria:
Rebaixado encontra “Um-Zero-Zero”, num
cantinho da rua Bariri. Um pouco menos, e
teríamos: Flu e Timão, o jogo da vergonha.
Envergonhados,
menos
pelas
punições que deixaram de sofrer do que pela
ridícula campanha que cumprem no
campeonato, Fluminense e Corinthians,
quase à socapa, enfrentam-se às desoras desta
quarta-feira cinzenta, no estádio de Olaria,
num jogo clandestino porque a TV vai
revelar as mazelas dos dois para todo o país.
Mas é um episódio para ser esquecido por
ambos.
Que reste a lembrança épica daquele
Flu e Corinthians que, há mais de 20 anos,
comoveu São Paulo e abalou o Rio, com a
deslocação para lá de cerca 70 mil fiéis num
final de semana inesquecível. Tão fiéis e tão
fanáticos que tentaram espetar uma bandeira
do Corinthians na mão direita do Cristo
Redentor, como um gesto de conquista e
conversão.
Para quem não sabe, o Flu, então,
ainda era a Máquina do doutor Horta, com
seus Rivellinos e Cajus. Já o Corinthians era
30
35
40
45
50
um bom time, nada excepcional, mas
guerreiro, dirigido pela semântica empolada
de Duque e de seus orixás.
Pois aqui quero, neste instante
apropriar-me da parcela de participação nessa
epopéia, a mim devida por direito do acaso.
Resumindo: por dever de ofício,
chegara dias antes ao Rio. Fiquei no Hotel
Nacional, onde pousaria a delegação
alvinegra no fim-de-semana. e logo fui às
Laranjeiras assistir ao treino coletivo do Flu.
na manhã de domingo, horas antes do
início da partida, Duque resolveu me dar uma
entrevista exclusiva. e, no seu quarto
enfumaçado de incenso, foi direto ao assunto:
ele ;e que queria me entrevistar sobre o treino
do adversário. Saí fora, mas plantei uma
semente, observação que já havia publicado
na minha coluna do “JT”: se ele metesse uma
marcação forte no hábil meio-campo tricolor
e, vez por outra, soltasse Russo, que batia
bem de fora da área, às costas de Carlos
Alberto Pintinho, que avançava muito e
voltava pouco, esse seria o mapa da mina.
Revejam o VT desse jogo memorável, please.
De nada, de nada, que é isso?
*
II
Vira-e-mexe, os psicólogos de
plantão voltam ao campo. Sobretudo, quando
os grandes clubes andam deprimidos, como
agora. É o Corinthians, é o São Paulo, é o
Palmeiras, todos falam em recorrer aos
60 sortilégios desses decifradores modernos da
alma humana. E, sempre que isso ocorre,
lembra-se de Garrincha e Carvalhaes, na copa
de 58.
Não sei se fato ou invenção do
65 saudoso Sangro Moreira, mas es o craque
desenhando um enorme triângulo sustentado
55
pôr um mirrado traço de onde escapam dois
braços e duas pernas.
Na busca de esotéricos significados,
70 o psicotécnico questiona Garrincha, que
arremata com a simplicidade de um de seus
dribles pela direita: “Não quer dizer nada,
não, doutor. É só o Quarentinha”.
Ps para os mais jovens: Quarentinha
75 era um hábil centroavante do Botafogo de
Garrincha, magro e cabeçudo, como um
desenho
de
criança.
Alberto Helena Jr. escreve às quarta-feiras, domingos e segundas.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 36
A qualidade do INSS
LUÍS NASSIF
5
10
15
20
25
30
35
O que a gerência de seguro social do
INSS de Novo Hamburgo (RS) tem de
diferente da de Ribeirão Preto (SP)?
Exatamente 38 dias, no prazo médio de
concessão de benefícios. Enquanto os
segurados de Novo Hamburgo recebem o
benefício 7 dias após a entrada do pedido, os
de Ribeirão esperam 45 dias.
Já foi pior. Em 1995, o tempo médio
em Ribeirão era de 93 dias. E seus
assegurados ainda eram mais felizes do que
os da Vila Mariana (Cidade de São Paulo),
que aguardavam 224 dias pela concessão.
Hoje, na Vila Marrana o tempo
médio de concessão é de 34 dias - belo
avanço, se confrontado com o passado; um
escárnio, se confrontado com os 7 dias de
Novo Hamburgo, ou os 11 dias de Santa
Maria (RS) e Itapetininga (SP).
O que há de diferente no pedaço foi
que após quatro gestões que cuidaram de
manter a continuidade - sucessivamente
Reinhold Stephanes, Antônio Brito, Sérgio
Cutollo e, novamente, Stephanes o INSS não
é nenhum brinco de eficiência, mas está há
anos-luz do velho INSS dos anos 80.
Não se precisou aguardar as reformas
constitucionais - tremendo álibi para não se
fazer nada -, nem mudança nos planos de
cargos e salários. Bastou um programa de
qualidade centrado em resultados.
O INSS criou “Indicadores de
Excelência”, que definem os padrões de
excelência e permitem o acompanhamento do
trabalho realizado pelas gerências.
Os dois principais indicadores são o
Tempo Médio de Atendimento (TMA)
(período entre o requerimento e o
deferimento do benefício) e a Idade Média do
40 Acervo (IMA) (período com requerimento
em atraso). A partir daí, estabeleceram-se
indicadores globais de qualidade que
permitem classificar as diversas gerências, de
acordo com seu desempenho.
45
O processo teve início em 1992 comprovando mais uma vez que o período
90/92 foi riquíssimo em novas experiências e se consolidou com a continuidade
administrativa do órgão, mesmo atravessando
50 sucessivos governos.
Letra morta
Até então, a lei que determina que o
55 TMA de um benefício previdenciário não
poderia supera 45 dias era letra morta. Em
janeiro de 1995, 83 gerências do INSS
superavam esse limite. No mês de agosto
passado, esse índice caiu para 7 gerências.
60
O INSS estipulou como padrão de
excelência a ser perseguido o prazo médio
máximo de 15 dias. No momento, apenas
Novo Hamburgo, Santa Maria e Itapetininga
alcançaram essa meta.
65
Tivessem sido possíveis demissões a
bem do serviço público, e premiações por
desempenho, os indicadores seriam mais
satisfatórios, e os bravos funcionários de
Novo Hamburgo estariam ganhando mais do
70 que
os
de
Ribeirão
Preto.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
II
Texto 37
O emprego e os mercadores de ilusões
MARCIO POCHMANN
5
10
15
20
25
30
35
40
Impressiona
o
grau
de
desconhecimento do real funcionamento do
mercado de trabalho no Brasil por aqueles
que, em vez de informar, pretendem
denunciar os elementos de rigidez impostos
pela Consolidação das leis do Trabalho
(CLT) num ambiente de grande escassez de
empregos. Em contraste com a realidade
nacional, a experiência norte-americana de
mercado flexível de trabalho tem sido
defendida como exemplo a ser seguido.
Mas esses novos místicos que adotam
a liturgia liberal esquecem, talvez por
ignorância ou má-fé, de informar, por
exemplo, que nos Estados Unidos há várias
taxas de desemprego, que variam de 5% a
13% da População Economicamente Ativa
(PEA),
dependendo
dos
critérios
metodológicos adotados.
Em relação à taxa mais baixa de
desemprego deve-se destacar que o trabalho
de apenas um a hora por semana é
considerado como emprego. A ausência de
procura de trabalho por um desempregado
durante a semana de realização da pesquisa,
por sua vez, define uma situação de
inatividade - ou seja, ele deixa de pertencer à
PEA.
Com esses restritos parâmetros
metodológicos, não se estranha a presença de
baixas taxa de desemprego nos EUA.
Acrescente-se que quase 20% dos
trabalhadores empregados recebem abaixo do
valor monetário que define a linha de pobreza
naquele país.
Por outro lado, os mercadores de
ilusões parecem fechar os olhos para o fato
de o mercado de trabalho apresentar sinais de
flexibilidade superior aos dos Estados
Unidos.
Além
de
menor
taxa
de
assalariamento, o Brasil possui cerca da
metade dos empregados assalariados sem
nenhum contrato trabalhista (ausência de
45 carteira assinada) e, daqueles protegidos pela
50
55
60
65
70
75
80
85
CLT, cerca de 40% são demitidos a cada ano.
A presença no Brasil de uma das
maiores taxas internacionais de rotatividade
transforma ao país em um paradigma da
flexibilidade no mercado de trabalho e uma
referência de subordinação do padrão de uso
e remuneração da força de trabalho às
necessidades empresariais. Isso é o que se
pode rapidamente concluir das análises
realizadas a partir dos dados apresentados
pelo gráfico, que reúne três das principais
variáveis referentes ao padrão de uso e
remuneração do trabalho assalariado na
indústria paulista (nível de emprego, salário
médio real e participação dos empregados
com jornada de trabalho acima da legal).
Apesar de se concentrar no núcleo de
maior organização da classe operária
nacional, as empresas industriais paulistas
não encontram dificuldades para, no curto
prazo, reduzir os níveis do salário médio real
e do emprego e aumentar a jornada de
trabalho de parte crescente dos empregados.
Em outras palavras, os tabalhadores
empregados nas indústrias paulistas estão
atualmente em menor número, recebem
menos e enfrentam uma jornada de trabalho
maior do que no final dos anos 80.
Por fim, cabe destacar que a ausência
do pleno emprego, da organização por local
de trabalho e de um sistema democrático de
relações
de
trabalho
concede
aos
trabalhadores uma estrutura de representação
de interesses com poder desigual diante dos
empregadores.
Em vez de propor acabar com as
poucas oportunidades de fortalecimento dos
interesses dos trabalhadores, os mercadores
de ilusão talvez devessem refletir mais e
melhor sobre as realidades do mercado de
trabalho
no
Brasil.
Márcio Pochmann, 35, economista, é professor do Instituto de Economia (IE), pesquisador e diretor
executivo do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de
Campinas.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
Texto 38
Registro sanitário e patentes
DENIS BORGES BARBOSA
II
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
55
Com o novo Código de propriedade
Industrial que entrou em vigor em maio
último, está surgindo um grande problema com ações judiciais pipocando - quanto às
relações entre patentes e registro sanitário.
Até agora, inexistindo patente de produto, a
questão não se colocava com tanta
premência,
De um lado estão os novos donos de
patentes; de outro, principalmente os
fabricantes dos chamados “genéricos”, ou
seja, produtos não protegidos por patentes.
Empresas
estabelecidas,
regulares,
funcionando
publicamente,
membros
respeitados da comunidade empresarial de
seus respectivos países.
Como se sabe, nem todos os produtos
são protegidos por uma patente. Em muitos
casos, a invenção já é antiga. Em outros, o
inventor não a patenteou no Brasil. Em
muitos outros casos, o produto jamais foi
patenteado em nenhum outro lugar do mundo
- os produtos são genéricos, no sentido de
não ser vinculados a uma marca específica.
Os genéricos são uma parcela
importantíssima da economia de todos os
países, em especial os industrializados do
Primeiro Mundo. Reconhecidos, respeitados,
protegidos pela lei, os produtores de
genéricos
desempenham
papel
importantíssimo na divulgação dos produtos
e principalmente na redução dos preços ao
consumidor. A vida é mais barata nos países
industrializados, em boa parte, pela eficiência
e pela proteção legal que é dedicada aos
genéricos.
Como se lê na lei nº 9.279/96, o
recente Código da Propriedade Industrial, é
patenteável a invenção que atenda a os
requisitos de novidade, atividade inventiva
aplicação industrial. O código ainda esclarece
que a patente confere ao seu titular o direito
de
impedir
terceiro,
sem o
seu
consentimento, de produzir, usar, colocar à
venda, vender ou importar o produto objeto
de patente, ou o resultado obtido diretamente
por processo patenteado.
Assim, não há patente senão para um
invento novo, dotado de atividade inventiva e
de aplicação industrial. São esses seus
requisitos. Uma vez concedida, a patente
exclui terceiros do uso da tecnologia
patenteada.
Já se lê na Lei de Registro de
Agrotóxicos (lei nº 7.802, de 11/02/1989)
60
65
70
75
80
85
90
95
100
105
110
que os agrotóxicos só poderão ser
produzidos,
exportados,
importados,
comercializados e utilizados se previamente
registrados, de acordo com as diretrizes e
exigências dos órgãos federais responsáveis
pelos setores da saúde, do meio ambiente e
da agricultura. A lei ainda diz que o registro
para novo produto agrotóxico, seus
componentes e afins será concedida se a sua
ação tóxica sobre o ser humano e o meio
ambiente for comprovadamente igual ou
menor que a daqueles já registrados par o
mesmo fim.
Com efeito, os exames conducentes
ao registro dizem respeito à novicidade do
produto diante dos requisitos de saúde e de
meio ambiente. Para constatá-lo, basta ver os
elementos a serem considerados no pedido de
registro, que estão no decreto nº 98.816, de
11/01/1990, que regulamenta a lei.
Assim, no pedido de registro se
examina a toxicidade comparativa para
admitir um produto no mercado. Nada se
questiona quanto à novidade da tecnologia,
quanto
à
atividade
inventiva.
As
considerações são diversas, os efeitos são
diversos.
Mesmo com a patente, o titular de um
produto mais nocivo pode não ser admitido
ao registro. De outro lado, mesmo sem
patente, alguém pode ter um registro. A lei
não exige para o registro nem a existência
nem a inexistência da patente.
Além disso, independente dos
poderes da patente. Muitas são as razões
pelas quais, mesmo na existência de patentes,
será facultado o uso:
1) se a patente é de processo e o produto
registrado é feito por outro processo, distinto
do reivindicado;
2) se a patente é de produto ativo, o produto
ativo pode ser diferente do reivindicado;
3) se a patente é de formulação (ingrediente
ativo mais inertes), a formulação pode ser
outra:
4) a patente é limitada no tempo e sujeita a
licença compulsória e à caducidade;
5) o código prevê muitos casos - por
exemplo, o de pesquisa e desenvolvimento contra as quais a patente não vale nada.
Acontece que, sem que o produtor de
genéricos possa conseguir o registro, mesmo
com a patente, todas as economias e
eficiências trazidas pela competição são
perdidas - e quem paga a conta é o público.
Denis Borges Barbosa, 49, advogado, é assessor jurídico da Associação Brasileira das Indústrias de Química
Fina (Abifina).
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 22/10/97.
I
Texto 39
“... NUM PAÍS POPULOSO
como o Brasil, o bolo a ser
repartido é muito grande ...”
DIRCEU WAGNER C. DE SOUZA *
5
10
15
20
25
30
35
40
Quanto custa um Plano de Saúde
abrangente, com ampla cobertura, sem
eliminar doenças prévias e com boa hotelaria,
incluindo enfermaria, apartamento e CTI sem
limitações?
Por vida (per capita), R$ 25,00 em
BH e R$ 38,)) em SP, ao mês, incluídos 10%
de margem de lucro líquida. Estão sendo
considerados hospitais do nível do Biocor
(BH) e Beneficência Portuguesa (SP).
Implícitos também estão excelentes e
rigorosa administração do plano, auditoria
permanente e honorários dignos pagos no
prazo contratual. Cooperativas e outros
intermediários entre as partes contratadas,
nem pensar ...
A base de cálculo acima não é uma
estimativa. É a fatura real paga pelos Plano
de Autogestão das Empresas privadas de BH
e SP.
Tais planos partem prioritariamente
para os Fluxos Preferenciais, em que
parceria e concentração de demanda da
clientela são os principais fatores de controle
de custos e de qualidade total. Nesta equação,
em breve, constará com prioridade o
Internamento Domiciliar.
A curto prazo, os valores per capita
cairão ainda mais, algo entre 8 e 10% dos
custos atuais.
Como na autogestão não se visa
lucro, o custo final per capita será em torno
de R$ 22,00 (BH) e R$ 32,00 (SP). A
empresa gastará com cada grupo familiar
menos do que se paga, hoje, por pessoa
inscrita em planos muito inferiores
disponíveis no mercado.
Ora, num país populoso como o
Brasil, o bolo a ser repartido é muito grande,
com mais de 160 milhões de vidas. Há espaço
e porções muito fartas para distribuição.
O lobby em cima dos congressistas,
em Brasília, não precisava ser tão intenso e
massacrante. A Regulamentação dos Planos
45 de Saúde pode e deve preservar um mínimo
50
55
60
65
70
75
80
85
90
de decência, ética e realismo.
A começar pela fatia da qual o
governo
não
pode
se
desfazer
constitucionalmente. Ele deve assumir o seu
papel, responsabilizar-se por cerca de 40
milhões de brasileiros. Ele não pode
privatizar a Saúde.
No entanto, ao governo é permitido
“privatizar” os gestores. Busque-os entre os
especialistas responsáveis pelos Planos de
Autogestão das empresas privadas.
Com a fantástica rede pública
disponível em todo o território, um Plano de
Saúde de bom nível não custará à Federação
mais do que R$ 12,00 a R$ 14,00 por vida, ao
mês. Com a quantia inferior à que o governo
bancou o Econômico, dará excelente
assistência médica a 40 milhões de
brasileiros, por ano. Este é o ônus mínimo
socializável.
Que se estimulem de alguma forma
as empresas privadas; quem sabe, retornando
3,0% dos imensos tributos e encargos pagos
religiosamente por elas? Empregados e
dependentes teriam, com certeza, a melhor
assistência médico-odontológica-social de
que se possa ter notícia.
Na essência deste raciocínio, tão
simplório quanto lógico, as empresas
profissionais existentes ou não no mercado
irão disputar mais de 80 milhões de vidas, a
quem venderão seus planos.
Que elas ofereçam saúde através de
condições claras e transparentes. Que os
contratos sejam feitos com letras legíveis por
todos os clientes, inclusive os que tenham
mais de 55 anos, diabéticos, hipertensos ou
sadios.
Cá pra nós: que estes planos
comerciais sejam vendidos a não mais de R$
38,00 por mês, mas sem espertezas e
arapucas. A fatura será de R$ 27,5 bilhões
por ano. É de bom tamanho ...
Que é possível, lá isto é, e assino em
baixo.
* Médico, chefe do Pano de Saúde (Autogestão) da fundação Mannesmann.
Fonte: ESTADO DE MINAS, 19/10/97.
Texto 40
Regência e outros assuntos
II
“...Prefiro ser cabeça de pulga
a ser rabo de elefante ...”
DUARTE PACHECO *
5
10
15
20
25
30
35
40
É perdoável errar o capítulo mais
difícil da sintaxe da língua portuguesa - a
regência. Mas errar a regência do verbo
preferir! Não creio que um Hélio Costa (em
quem votei e fiz muitos votarem) tivesse dito
a frase como a publicou certo jornal: “Prefiro
ser cabeça de pulga do que ser rabo de
elefante”. A propósito do erro grosso, tenho
que responsabilizar o jornal. O verbo é
transitivo direto e indireto, a frase correta é:
“Prefiro ser cabeça de pulga s ser rabo de
elefante”.
Lembro ( a memória de 88 marços
ainda não me traiu) que o professor de
Português, José Schiavo, foi acerrimamente
criticado, lá pelos idos de 30, quando se
estudava e aprendia, pelo escritor Carlos
Imbassahy por haver escrito no “Jornal do
Povo”, da querida e velha Ponte Nova:
“Responsabilizo as asneiras do Pires”.
Achava que o verbo não pode reger coisa. No
entanto, o clássico da língua, Rui Barbosa, de
quem era secretário particular: “...
responsabilizou o decreto de 17 de janeiro
como a causa dos males do país”.
Os caríssimos Ricardo Parreira e
Paulo Bastos que , todo domingo, das 8 às
10h, regozijam-nos com o seu adorado “Anos
Dourados”, perguntam se está correto: “Pé de
limoeiro ... e voltei novamente”. De limoeiro
é uma locução adjetiva que não qualifica nem
indica: posse, origem, matéria e agente:
especifica. Na especificação, o que mais se
usa é o nome da fruta: pé de limão, pé de
lima, pé de manga, pé de abiu, pé de mariapreta. Tomam, porém, o nome de árvore
frutífera pelo do fruto. É metonímia, figura
de palavras, sobejamente usada na linguagem
literária. Quanto ao voltei novamente, o
verbo voltar significa ir e vir pela segunda
vez. É, pois, correto o emprego de novamente
ou de novo. “Dali a um ano, quando de novo
voltei ao colégio, ainda abracei a mãe
Maria”. (Coelho Neto, Conto pátrios, 28).
45
50
55
60
65
70
75
80
85
Que acha o senhor das frases de
brasileiros de nome? - pergunta-se a sobrinha
Margareth (que, fazendo-me inveja, vai gozar
as na fazenda “Barrinha”, hoje de um seu tio
materno, onde viveu boa parte da meninice
sofrida o célebre conterrâneo Ari Barroso).
Dignificam-lhes a cidade, e o Estado, e a
pátria. O ubaense Raul Soares, repondendo
ao presidente Epitácio Pessoa: “com
Epitácio, sem Eiptácio, contra Epitácio, Artur
Bernardes vai para o Catete”. Rui Barbosa, à
beira do túmulo de Machado de Assis: “Não
é o clássico da língua, não é o maestro da
frase; não é o árbitro das letras; não é filósofo
do romance; não é o mágico do conto; não é
joalheiro do verso; o exemplar, sem rival
entre os contemporâneos, da elegância, do
aticismo, e da singeleza no conceber e dizer;
é o que soube viver intensamente da arte sem
deixar de ser bom”.
Pedem-me a opinião sobre a lista dos
melhores do esporte. Mesmo deixando de
fora um Gerson Sabino, a enciclopédia do
futebol, um Carlos Alberto Silva, meu exaluno, contém só nomes dignos de
agraciados. Entre eles, Mário de Castro,
Paulo Cury, Dario, Guará, Reinaldo Lima e
Jackson. Dr. Mário de Castro, passante dos
90, é um dos maiores amigos que tenho neste
renascer de novo. O cronista e escritor
Roberto Drumond (conheci a sogra de Hilda
Furacão) vem-no louvando muito. Mas,
esquecendo-se da passagem mais fulgurante
do maior jogador do Atlético de todos os
tempos. Aquela em que Dr. Hugo Werneck
viu o espírito do filho junto ao ídolo ... Paulo
Cury vem se tornando o mais presidente dos
presidentes. Jackson (meu ex-aluno), em
futsal, um dos maiores do mundo. Reinaldo
(tenho um sobrinho com este prenome em sua
homenagem) veio, menino, da Sociedade
Esportiva Primeiro de Maio, cuja diretoria
compartilhei durante 7 anos, para o Atlético e
ser o seu segundo maior jogador de sempre.
* Professor de Português, membro da Academia Varginhense de Letras
Fonte: ESTADO DE MINAS, 25/10/97.
Texto 41
Cirurgia Plástica e milagres
“ ... MÉDICO FAZENDO
cirurgia plástica e não um
taumaturgo fazendo
I
milagres estéticos ...”
EVALDO A. D’ASSUNÇÃO *
5
10
15
20
25
30
35
Volta e meia vemos em revistas
multicoloridas, nas bancas de jornais,
manchetes sobre novas conquistas da cirurgia
plástica.
Mas,
curiosa
e
muito
sintomaticamente, essas mesmas informações
nunca são encontradas nas revistas
científicas, em bibliotecas médicas.
O nada discreto charme da burguesia
impregnou
irremediavelmente
essa
especialidade médico-cirúrgica que dos
sisudos consultórios de antanho, saltou para
os salões iluminados da sociedade. Dos
fechados recintos de congressos científicos,
extrapolou para as telinhas da TV e para as
revistas femininas.
Confesso que não me recordo de já
ter visto um cirurgião de tórax mostrando
orgulhoso, no programa do apresentador X, o
pulmão canceroso que acabara de extirpar de
seu paciente, artista da TV. Nem um
cirurgião do aparelho digestivo, todo pimpão
com um belíssimo espécime de estômago
ulcerado que removera da socialite famosa.
Mas, dom uma freqüência as nauseam, estão
alguns cirurgiões plásticos(?) - felizmente
poucos, porém demasiadamente ruidosos demonstrando
suas
habilidades
de
esgrimistas com a cânula de lipoaspiração, ou
com seus produtos químicos maravilhosos,
substituindo a pele facial enrugada por outra
no viço de seus 15 aninhos. E, outros mais,
injetando substância mágicas que eliminam
rugas, seja por preenchimento, seja por
paralisação muscular, sem dor nem cirurgia,
apagando num toque de mágica os vincos que
o tempo deixou. E melhor ainda: afirmam
que sem qualquer risco ou complicação!
Como os deuses os invejam em suas clínicas
do futuro! E as máquinas? Ah, as máquinas!
40
45
50
55
60
65
70
75
Retrógrados e desatualizados são os
cirurgiões que não utilizam os laseres e seus
derivados, raios infalíveis que curam até dor
de cotovelo, espinhela caída e nó nas tripas!
A mim muitos questionam: “Doutor,
o senhor opera com laser”? E eu, avesso à
mentira, mas buscando a modernidade
exigida respondo: “Óbvio que sim! Todas as
minhas cirurgias, sem exceção, são feitas
com laser!” E completo, não sem um olhar
galhofeiro e uma risadinha sutil: “Adoro
música e música erudita. Assim, só opero ao
dom da boa música de meu toca-discos laser,
que funciona todo o tempo de minhas
cirurgias”.
ironias à parte, não sou contra a
evolução da medicina. Ridículo seria se o
fosse! Mas, daí até aceitar tantas baboseiras,
tais como “- fios de ouro” que encolhem a
pele relaxada pelos anos, líquidos, máquinas
cuja luz e cujos raios dispensam o
reposicionamento da pele e, sobretudo, da
musculatura tornada flácida pela senectude,
plásticas sem cicatrizes, e outras cositas mas,
isso não!
Acredito sim, naquilo que é
cientificamente
testado
e
seriamente
apresentado nos locais e ocasiões apropriadas
para tal. E, só incorporo ao meu arsenal de
condutas, aquilo que, corretamente testado,
traz verdadeiros benefícios, sem riscos
desnecessários para o paciente. E que, nas
mãos de qualquer bom especialista, está
sujeito às naturais complicações de qualquer
procedimento terapêutico, para as quais todo
paciente deve ser alertado. Afinal, sou um
médico fazendo cirurgias e não um
taumaturgo fazendo milagres estéticos!
* Cirurgião plástico, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
Fonte: ESTADO DE MINAS, 25/10/97.
Texto 42
O breviário da Justiça
MÁRCIO GARCIA VILELA *
A
usente do país, só agora me dou
conta, pelos bons ofícios de um
amigo, do artigo do ministro Antônio
de Pádua Ribeiro, do STJ. Trata-se
5 de matéria tão relevante que, enquanto estiver
em debate, sempre merecerá observações. O
magistrado, em seu arrazoado, afirma
verdades indiscutíveis, ao mesmo tempo em
que, infelizmente, deixa de fazer reflexão
10 mais profunda para, com o peso de seu
múnus, provocar a autocrítica do judiciário,
abrindo alamedas mais amplas para o
reconhecimento de sua dignidade e do papel
insubstituível que lhe confia o estado
15 democrático e de direito. Queixa-se o nobre
juiz de que “continua o processo de
estrangulamento e destruição do judiciário,
no contexto de uma opinião pública
vulnerável pela ação da mídia, de tal ordem
20 que sua noção de justiça se transforma
rapidamente em versão de justiceiro”, com
todas as negativas ao “due process of law”,
II
5
10
15
20
25
30
35
preceito natural entre os povos civilizados.
Tem razão? É provável que sim. Porém, é
conveniente indagar das raízes dessa
indesejável fragilidade. Claro que as causas
são complexas, se bem que uma delas aflora
com certa facilidade. Sabe-se que a prestação
jurisdicional é um direito subjetivo público,
alçado à dignidade de pacto constitucional do
Estado para com os jurisdicionados. Daí
proclamar a Lei Maior a independência do
judiciário, consagrado como um dos poderes
estatais, da qual decorrem as prerrogativas nunca privilégios - assegurados a seus
membros. Como tem sido a satisfação desse
direito fundamental? Qual tem sido a parcela
de responsabilidade do próprio judiciário, no
justo e zeloso atendimento dessa regra básica
da organização da sociedade política
brasileira? Que os juizes, encarregados de dar
vida e vigor à instituição a que pertencem,
não timbram em cumprir os deveres
constitucionais, não há como negar, a
despeito do argumento de que nem todas as
culpas pelo mau funcionamento da justiça
lhes possam ser atribuíveis. O fato é que,
entre nós, o acesso a ela é restrito a muitos
poucos, a custos muito elevados, sob a
dependência de decisões lerdas e não raro a
destempo. Em outras palavras: no Brasil, o
judiciário é elitista, distribui mal e com
avareza esse bem de todos, que é o direito de
cada um. e, quando o faz, costuma privilegiar
os que podem mais. De certo, sem querer,
torna-se instância não democrática, porque
não disponível para os mais desprotegidos e
mais necessitados de sua intervenção. Em
conseqüência, o judiciário é pouco
40
45
50
55
60
65
70
conhecido, menos compreendido ainda e,
assim, não é amado pelo povo, que não lhe
rende as homenagens da afeição, como
fazem, por exemplo, os americanos. É muito
o que seus integrantes têm a fazer para
melhorar-lhe o funcionamento e a imagem,
mesmo que os demais outros poderes não
queiram colaborar. Através de inflexível
comportamento
de
fidelidade
ao
jurisdicionado, é - lhes possível mobilizar a
coletividade a seu favor como ferramenta
para a realização de seus compromissos com
o povo. Não adianta ficar a dizer, no meio da
estrada, que os instrumentos de combate lhes
são negados. Antes, para conquistá-lo, é
preciso mostrar disposição de luta, que
resulta da serena vontade de cumprir o
prometido, ao ensejo da investidura de seus
integrantes. Vale lembrar a iniciativa, aqui
em Minas, dos mutirões criados por esse
apóstolo do servir, que é o desembargador
Fernandes Filho, e dos quais não se teve mais
notícia. Acaso não foram extraordinária
bandeira de convocação e oferecimento?
Penso possuir alguma autoridade precária que seja - para tecer estes
comentários. Pois um bocado de anos atrás,
o meu inesquecível desembargador Edésio
Fernandes, então presidente do Tribunal de
Justiça, me julgou, com rara generosidade,
capaz de ser juiz daquela corte. Ponderei-lhe,
após obsequiosa insistência, que me sentia
inapto para pleitear a vaga, porque, dentre
outras, me faltava uma qualidade essencial: a
vocação para ler diariamente e refletir sobre
o
breviário
da
Justiça.
Fonte: ESTADO DE MINAS, 25/10/97.
Texto 43
Arlequim e seus amos
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Cada vez mais freqüentes,
os desabafos presidenciais revelam a crise de
um arlequim que aceitou trabalhar para dois
senhores. Um deles está cobrando, com
5 progressivo entusiasmo, as promessas de
saúde, educação, segurança - nem lembro
mais os cinco dedos que foram exibidos na
mais dispendiosa e sofisticada campanha
eleitoral de nossa história.
10
Como o arlequim da peça famosa, ele
também prometeu servir a outro senhor, o
qual pode ser esquematicamente representado
pelas elites dominantes na sociedade
brasileira desde 1500, substituindo-se o
15 português pela globalização.
Confiante em sua habilidade, vaidoso
de sua retórica, o presidente achava que
podia ir levando, empurrando de barriga os
problemas indefinidamente ou, na pior das
20 hipóteses, até a reeleição. Não estava em seus
cálculos o espetáculo da semana passada,
quando Brasília recebeu quase 3.000
empresários que exigiam uma coisa que ele
também prometera e ainda não deu.
25
Pior: FHC usou da tribuna, fez apelos
e queixas. Como qualquer ditadorzinho, está
demonizando a imprensa e o Congresso,
II
culpando jornalistas e deputados pelas
dificuldades em conciliar o inconciliável.
30 Antes de existir a figura e a função de
arlequim, já o evangelho advertia que não se
pode servir a dois senhores.
Com sua leviandade, arlequim
acredita que pode dar a volta por cima. Mas
35 está
cada vez mais difícil servir
prioritariamente a empresários, banqueiros
falidos e especuladores internacionais ao
mesmo tempo em que pede à dona Ruth que
cuide de cestas solidárias para os famintos.
40
Ainda está longe o momento de
verdade. Os recentes desabafos do presidente
mostram que ele começa a sentir que o Brasil
não é tão fácil de governar como pensava. O
arlequim esfuziante está se transformando
45 num
pierrô
banhado
de
lágrimas.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 25/05/96.
Texto 44
O fim que não acaba
CARLOS HEITOR CONY
5
10
15
20
25
30
35
40
45
Rio de Janeiro - FHC anunciou o fim da Era
Vargas. Em 1945, decretaram o fim de
Vargas quando ele partiu para o exílio em
São Borja. nove anos depois, entre 4h e 8h30
da manhã de 24 de agosto de 1954,
novamente festejaram o seu fim. Um
radialista que entrara no Catete chegou a ver
Getúlio de bombachas, arrumando as malas
para novo exílio.
Mas o que o Brasil viu foi o mesmo
Vargas, num pijama listrado, com uma única
diferença dos outros pijamas: um furo de bala
à altura do peito. Dez anos mais tarde, em
1964, foi novamente proclamado o fim de sua
era. Durante os 21 anos seguintes era
proibido mencionar seu nome.
Cid impertinente, mesmo depois de
morto continuou aborrecendo as elites que
sonham em ter o Brasil no Primeiro Mundo à
custa de um povo que vive e sofre o último
dos mundos.
Não vem ao caso o nome ou a pessoa
de Vargas. Importa é que ele encarnou como
nenhum outro vulto de nossa história, a
preocupação social que será o referencial
definitivo para o século que acaba.
Certo que algumas experiências, e
muitos dos métodos adotados, naufragaram
na demagogia e na violência. Mas a quimera
que produziu os códigos morais da
humanidade, nela se incluindo o cristianismo,
a Reforma e o socialismo, o sonho impossível
de todos os homens da Mancha que lutaram
contra moinhos de vento, a utopia pela qual
tantos morreram em todas as partes do
mundo e em todos os tempos da história, essa
quimera, esse sonho, essa utopia não
acabarão.
Como não acabaram quando Vargas
foi deposto duas vezes, nem quando a bala
atravessou o seu peito.
Vargas foi temerário ao escolher uma
estrada solitária, Nem à esquerda nem à
direita. Tentou o mais difícil: a revolução
pelo centro. O erro lhe custou caro.
Independente de Vargas, que errou e
morreu, a idéia continua. A idéia e a luta,
embora sob disfarces às vezes repugnantes,
como o corporativismo, e, em alguns casos, o
A arena aguarda nos
gladiadores. Mais cedo ou mais tarde eles
brotarão da terra e do sonho: o duelo não
terminou. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO,
50 nacionalismo.
31’03/95.
II
Texto 45
O
preço
da
honra
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Antigamente, a honra era
lavada com sangue. Hoje, lava-se a honra
na base dos salários mínimos que a vítima
ganha: se a afronta é venial, 20, se o agravo
é mortal, 200 salários mínimos pagos pelo
ofensor. Virgílio explica a sutileza dessa
operação moral com o seu famoso
“tempora mutantur”- os tempos mudam.
Evidente que não sugiro a regressão
aos heróicos tempos dos duelos, nem
mesmo aos mais suaves, àqueles que eram
decididos “ao primeiro sangue”, ou seja, ao
primeiro arranhão da espada ou do tiro.
Findo o que, os dois contendores
apertavam-se a mão e tudo ficava
esquecido.
Stendhal narra um caso espantoso.
um sujeito está numa taverna bebendo em
paz, entra um brutamontes que vai logo
ofendendo uma mulher com um simples
olhar de cupidez. A mulher nem era a dele,
mas o sujeito levanta-se e convida o
brutamontes ao duelo. Na manhã seguinte
está estirado no chão, numa poça de
sangue. E a moça ultrajada passa aquela
noite com o brutamontes, nos braços dele
desmaia de prazer e orgulho.
Sérgio Motta e Paulo Maluf
demandaram na Justiça questões relativas à
honra. Em primeira instância, o ministro
terá de pagar ao ex-prefeito não sei quantos
salários do próprio. Aqui no Rio, o poeta
Afonso Santana chamou o romancista
Márcio de Souza de canalha. Aguarda-se a
sentença, sou admirador e amigo dos dois,
lamento o entrevero, torço para que tudo
termine bem, que um apresente e o outro
aceite as desculpas. Seria a solução mais
civilizada e digna de ambos.
A Lei de Imprensa que está em
discussão no Congresso pretende oficializar
o preço da honra alheia. Fui processado por
um promotor e condenado a pagar-lhe 200
salários de sua função, quase 200 mil.
Depois de ter perdido nas instâncias
estaduais, ganhei no STJ e nada lhe paguei.
De forma que, para correr risco, agora só
comprarei briga com quem ganhar menos
de dois salários mínimos.
Fonte: FOLHA SÃO PAULO, 26/10/97.
Texto 46
FUGA
Luís Fernando Verííssimo
- Edgar, vê lá, hein?
O Edgar era famoso pelas suas
gafes. Embora as negasse.
- O que é isso? Pode deixar.
A mulher ficava em pânico. Depois,
contando para os outros ela, ria. “O
Edgar fez outra das dele.” Mas na hora
ficava em pânico.
- Edgar, por amor de Deus...
- Mas que bobagem!
- O Flores e a Noca acabaram de se
reconciliar. Ela teve um romance com
um violoncelista alemão, fugiu de casa,
viveu um ano e meio com o alemão em
Munique, mas voltou e agora eles estão
juntos de novo. Não fala nem alemão,
nem em violoncelo. Por amor de Deus,
Edgar!
- Pode deixar.
Na chegada quando o Flores abriu a
porta, o Edgar exclamou:
- O Flores! Cê sempre teve cabelo
dessa cor?
- Não. Entrem, entrem. Como vão?
A caminho da sala, a mulher ainda
conseguiu dar um beliscão na manga do
casaco do Edgar e dizer, entre dente:
- É pe-ru-ca.
- Que peru?
- Pe-ru-ca, Edgar!
- Ah.
Durante o jantar, tudo bem. A mulher
sentiu um frio na barriga quando viu o
Edgar examinando o rótulo do vinho
alemão.Mas o Edgar só sorriu para a
anfitriã, a Noca, e comentou, sem
qualquer maldade:
- Coisa muito boa, hein?
“Agora ele vai perguntar se a Noca
trouxe da Alemanha, na volta”, pensou
a mulher, mas o Edgar ficou firme. A
mulher respirou, aliviada.
Aconteceu depois do jantar, quando
o Flores quis exibir seu novo “laser” e
colocou um disco. Bach. Cordas. Se
fosse um concerto de violoncelo, diria a
mulher, depois, no carro, para o Edgar,
ainda vá. Mas mal se ouvia o
violoncelo. E no entanto o Edgar
dissera:
- Eu me amarro num violoncelo.
Dissera mais:
- Sou tarado por violoncelo.
E mais:
- O que esse alemão safado faz com
um violon...
- Edgar!
A mulher tinha se levantado da
poltrona. O Edgar levou um susto.
- Que foi?
- Me lembrei! Eu deixei o forno
aceso! Temos que voltar para casa!
- Mas...
- Agora mesmo!
No carro, ela não quis ouvir
desculpas. O Edgar ainda tentou.
- Ela fugiu com o Bach? Não fugiu.
Mas a mulher não queria conversa. O
Edgar ainda a matava.
Luís
Fernando
Veríssimo.
COMÉDIA DA VIDA PRIVADA. Pp
38-40.
ABSTRACT
Considering an Discursive approach, based on the view of language as activity, this
research intends to identify, classify and analyze the “ways of saying”, that are
embedded with the construction of instances of enunciation in the written pattern of
Brazilian Portuguese.
Download