O Conceito de Papel no Psicodrama Psicólogo Carlos Rubini

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O Conceito de Papel no Psicodrama
Psicólogo Carlos Rubini
SINOPSE
O presente texto apresenta diferentes conceitos e significados do termo papel
encontrados na obra de Moreno e de outros psicodramatistas. Destaca a origem dos
papéis psicossomáticos, sociais e psicodramáticos na matriz de identidade, ressaltando a
importância dos mesmos para o surgimento do eu e constituição do indivíduo no
contexto da teoria e prática psicodramática.
UNITERMOS
Papel. Papel Social. Papel psicossomático. Papel psicodramático. Papel imaginário.
ABSTRACT
This paper presents different conceptions and meanings of the term role found in
Moreno's work and other Psychodramatists'. It emphazises the origin of the
psychosomatic,social and psychodramatic roles. It also focuses on the importance of
these roles to the emerge of the I and to the construction of the individual within the
psychodramatic context.
UNITERMS
Role. Social role. Psychosomatic role. Psychodramatic role. Imaginary role.
INTRODUÇÃO
A noção de papel não está ligada a um autor em particular, nem a um determinado ramo
das ciências apenas. No âmbito das Ciências Sociais diversos autores trataram, não só
do conceito de papel, como também de sua função e importância dentro do sistema
social. Destacaram seu caráter psicossocial que influencia a formação da
individualidade e coletividade, pelos padrões de conduta individual e coletiva
representados pelos papéis.
Não há dúvida que este conceito oferece inúmeras possibilidades de investigação sobre
a relação indivíduo e sociedade, junto às disciplinas que tratam dos fenômenos pessoais
e coletivos, tais como a psicologia, a sociologia, a antropologia e a filosofia. Para
muitos autores as teorias de papel são consideradas o ponto de ligação entre elas.
Assim, destaca-se aqui, a excelente obra de Rocheblave-Spenlé (1962) (22) que, ao
apresentar um estudo histórico-crítico da noção de papel, analisa as contribuições dos
precursores e primeiros teóricos do papel, com destaque para as contribuições de G. H.
Mead, R. Linton, T. Parsons, T. M. Newcomb e J. L. Moreno, para citar apenas os mais
conhecidos.
Por outro lado, Ray Holland (1977) em seu livro "Eu e o Contexto Social" analisa as
contribuições de autores que buscaram a inter-relação do papel e da personalidade,
destacando a "teoria do construto pessoal e papel" (G. Kelly, D. Bannister e F.
Fransella), a "teoria estrutural do papel" (Park e Burgess, e Merton) e a "teoria do papel
eu/outro" (Coser e Rosenberg).
Considerando-se diversos enfoques das Ciências Sociais e de autores que trataram do
tema em questão, verifica-se que o papel social pode ser identificado não apenas com as
normas, mas igualmente com o status, em seu aspecto dinâmico, definindo-se como um
padrão determinado de comportamento que reflete e caracteriza uma posição especial
do indivíduo dentro do grupo social a que pertence. A organização articulada de papéis
confere unidade ao grupo, faculta ao indivíduo atingir seus objetivos como pessoa e
como integrante de uma coletividade. O processo de assunção ou incorporação de um
papel é extremamente complexo. Caracteriza a socialização do indivíduo através do
esforço de ajustamento da personalidade ao duplo estímulo de expectativas de ações,
induzidas
por
outrem
ou
reelaboradas
por
ele
próprio.
A finalidade do presente texto, no entanto, não é a de abordar todas as contribuições a
respeito, restringindo-se ao conceito de papel no Psicodrama, destacando a contribuição
de Moreno e de autores ligados ao movimento psicodramático brasileiro.
SENTIDOS DO TERMO PAPEL E A ORIGEM NO TEATRO
Etimologicamente diversos termos dão origem à palavra papel com diferentes sentidos.
O termo vem do latim medieval rotulus (derivado de rota = roda) que pode significar
tanto "uma folha enrolada contendo um escrito", bem como "aquilo que deve recitar um
ator numa peça de teatro". No sec. XI o termo era utilizado também no sentido de
"função social", "profissão". O termo francês "rôle", o inglês "role" e o castelhano "rol"
igualmente
têm
sua
origem
na
mesma
etimologia
latina
"rotulus".
(3)
A palavra papel na língua portuguesa, etimologicamente, vem do grego pápyros, do
latim papiro. Papiro designava um arbusto do Egito de cuja entrecasca se fazia o papel,
obtendo-se o material para a escrita.
O significado de role é o de uma folha contendo um escrito e o de papel o material
utilizado na confecção da folha. Da mesma forma, a palavra portuguesa papel significa,
de modo geral, o material utilizado para a escrita. Constata-se que os significados
originais de rotulus foram incorporados na língua portuguesa pela palavra papel. Isso
porque, além de indicar o material utilizado na escrita (papiro), papel refere-se também
à "personagem representada por um ator", ou à "parte que cada ator desempenha no
teatro, no cinema, na televisão, etc."e, ainda, à "atribuição de natureza moral, jurídica,
técnica, etc.” (4), isto é, desempenho, função, como papel de pai, juiz, médico, por
exemplo.
Em relação ao teatro, todo papel necessita de um ator e todo ator tem um papel a
desempenhar. Sabe-se que o teatro pode sobreviver sem um texto escrito, prescindir da
cenografia (representação ao ar livre), e até dispensar a palavra (mímica). Pode existir
(como durante séculos) sem o diretor. Mas o teatro jamais viverá sem o ator.
Na Grécia Antiga, Téspis (560 a.C.) teria escrito e representado o primeiro papel na
história do teatro. Além do coro e corifeu (já existentes nas festas religiosas – festas
dionisíacas-), Téspis inova representando vários personagens através de mudanças de
máscaras e roupas. As representações de tragédias incluiam o coro, corifeu e ator (este,
geralmente, o próprio poeta). Com Ésquilo surge o segundo ator e Sófocles introduz o
terceiro. Na tragédia grega nunca havia mais de três personagens em cena e os atores
eram o protagonista, o antagonista e o tritagonista. Ao primeiro cabiam os papéis
principais e os demais divididos entre os atores secundários.
Com o tempo, ainda na Grécia e Roma Antiga, as diversas partes da representação
teatral eram escritas em "rolos" e lidas pelos pontos aos atores que procuravam decorar
seus respectivos "papéis". Nos séculos XVI e XVII, com o teatro moderno, as partes dos
personagens teatrais eram lidas em "rolos" ou fascículos de papel. Passou-se, assim, a
designar cada parte cênica como papel ou "role".
O CONCEITO DE PAPEL PARA MORENO
A fonte inspiradora da teoria dos papéis de Moreno foi o teatro. Por sua origem,
segundo ele, papel não é um conceito sociológico ou psiquiátrico. Veio da linguagem do
teatro e através dele entrou para o vocabulário científico. E como o teatro representou,
no início, a matriz e o locus do projeto moreniano, nada mais lógico, portanto, que o
conceito de papel tenha se constituido numas das pedras angulares da teoria moreniana
e da prática sócio-psicodramática.
É esquecido a miude, que a moderna teoria dos papeis teve sua origem no teatro, do
qual tomou suas perspectivas. Tem uma longa história e tradição no teatro europeu, a
partir do qual desenvolvi, gradualmente, a direção terapêutica e social de nosso tempo.
Introduzia nos Estados Unidos em meados da década de 20. Dos papéis e contrapapéis,
situações de papéis e conservas de papel, desenvolveram-se naturalmente suas
extensões modernas: o executante de papel, o desempenho de papéis, a expectativa de
papel, a passagem ao ato (acting out) e, finalmente, o psicodrama e o sociodrama. (18,
p.28)
A tarefa do Teatro Vienense da Espontaneidade, entre 1921 e 1923, foi a de produzir
uma revolução no teatro, procurando modificar por completo os eventos teatrais. Das
Stegreiftheater representou a fusão ator-autor e expectador no ato da criação e
representação do drama. Rompe a oposição entre ator e autor, entre pessoa e drama,
criando a vida sem necessidade de textos. Elimina a hierarquia entre os atores (o
protagonista não é fixo como na tragédia grega). Desaparece a separação entre platéia e
atores, pois cada membro da platéia pode tornar-se ator e vice-versa. Platéia e atores
são, assim, os únicos criadores. Tudo é improvisado: a peça, a ação, o motivo, as
palavras, o encontro e a resolução dos conflitos. O palco também desaparece, surgindo
em seu lugar o palco-espaço, o espaço aberto, o espaço da vida, a vida mesma.
Surge, assim, um novo tipo de teatro. Não um teatro repetitivo, de peça escrita pelo
dramaturgo,
decorada,
ensaiada
e
encenada
sucessivamente.
O
Teatro
da
Espontaneidade é sempre uma peça única, que flui e se consuma no aqui-agora do ato
vivencial dos atores-criadores. Um teatro vivo, teatro vida. "Minha visão do teatro foi
moldada segundo a idéia do self espontaneamente criativo", diz Moreno. (l5, p.17)
Através da nova forma de seu teatro, Moreno buscava tanto o desenvolvimento pessoal
quanto social do indivíduo. Para alcançar esses objetivos, acreditava que o homem
podia se transformar através da ação, experimentação e vivências, refletindo e
modificando sua conduta.
A teoria psicodramática dos papeis leva o conceito de papel a todas as dimensões da
existência humana, desde o nascimento e ao longo de toda a vida do indivíduo,
enquanto experiência pessoal e modalidade de participação social. Situa-se no conjunto
da teoria moreniana que sempre se refere ao homem em situação, imerso no social,
buscando transformá-lo através da ação. O conceito de papel, que pressupõe interrelação e ação, é central nesse conjunto articulado de teorias, imprescindível, sobretudo,
para a compreensão da teoria e prática do psicodrama.
O homem é um ser que, a partir do impulso da espontaneidade, poderá desenvolver a
"centelha divina criadora" que traz em si mesmo. "O homem é um gênio em potencial,
que lutando contra as conservas culturais, através da espontaneidade criadora, chegará a
assemelhar-se a Deus e encontrar sua liberdade". E se o homem não desenvolver essa
espontaneidade, ele adoece, segundo Moreno.
Tal concepção entende que o existir humano é um viver em coletividade. O indivíduo se
realiza pelo desempenho de papéis na sociedade. "Este enfoque se funda no princípio de
que o homem tem um papel a desempenhar, cada indivíduo se caracteriza por uma
variedade de papéis que regem seu comportamento e que cada cultura se caracteriza por
uma série de papéis que, com maior ou menor êxito, impõe a todos os membros da
sociedade." (l6, p.81)
Encontra-se, assim, na concepção moreniana de homem como gênio que se desenvolve
a partir da espontaneidade, a dimensão do indivíduo, e na concepção de homem como
membro de um grupo inserido numa coletividade, a sua dimensão social. O ponto de
união entre ambas, para Moreno, encontra-se no conceito de papel: "Todo papel é uma
fusão de elementos particulares e coletivos, é composto de duas partes: seus
denominadores coletivos e seus diferenciais individuais." (l6, p.68)
Dessa maneira, como síntese unificadora, o papel - conceito social - conecta com a
espontaneidade, de conteúdo individual. Papel e espontaneidade caminharam juntos
desde os primeiros trabalhos de Moreno com seu teatro de improviso: "O desempenho
de papéis foi a técnica fundamental do teatro espontâneo vienense. Dada a
predominância da espontaneidade e da criatividade no desempenho de papéis, este foi
chamado ‘desempenho espontâneo-criativo’". (17, p. 157)
Essas duas dimensões, a individual e a coletiva são encontradas nos diferentes sentidos
e concepções de papel apresentadas por Moreno ao longo de sua obra:
- O papel pode ser definido como a unidade de experiência sintética em que se fundiram
elementos privados, sociais e culturais. (18, p. 238) - O papel é a forma de
funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage à uma
situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. (18, p. 27) - O
papel é uma cristalização final de todas as situações em uma zona especial de operações
pelas quais o indivíduo passou (p.ex. o comedor, o pai , o piloto de avião). (18, p. 206) O papel pode ser definido como uma pessoa imaginária criado por um autor dramático,
p. ex. um Hamlet, um Otelo ou um Fausto; esse papel imaginário pode nunca ter
existido,
como
p.
ex.
um
Pinóquio
ou
um
Bambi.
(18,
p.
206)
- O papel é a unidade da cultura: ego e papel estão em contínua interação. (18, p. 29) - O
papel pode ser um modelo para a existência, como Fausto, ou uma imitação dela como
Otelo... O papel também pode ser definido como uma parte ou um caráter assumido por
um ator... O papel ainda pode ser definido como uma personagem ou função assumida
na realidade social, p. ex. policial, médico, juiz... Finalmente o papel pode ser definido
como
as
formas
reais
e
tangíveis
que
o
eu
adota.
(18,
p.
206)
Nessas diferentes definições e concepções pode-se notar que os papéis possuem algo
comum: são fenômenos observáveis, aparecem nas ações, são atuados, representam
aspectos tangíveis do eu.
Moreno ora define o papel como função prescrita e assumida pelo indivíduo, ora como a
"forma real e tangível que o eu assume" passando do plano dramático ao social. Para
ele, o papel ora se refere à uma pessoa imaginária, ora a um modelo para a existência ou
a um personagem da realidade social, uma imitação da vida ou uma forma tangível do
eu. E, como observa Rocheblave-Spenlé, destaca-se o sentido de representação teatral e
ação, funções sociais desempenhadas pelos indivíduos na sociedade, representação da
individualidade das pessoas, modelo de experiência, "parte" de uma pessoa real
representada por um ator, caráter ou função assumidos numa realidade social e
cristalização final do modo de realizar ações especiais, como pai, mãe, etc.
A mesma autora observa, por outro lado, que enquanto a maioria dos autores que
trataram do tema (tais como G. H. Mead, R. Linton, Parsons...) enfocam os papéis como
facilitadores das relações sociais pela sua previsibilidade e por representarem padrões
de conduta aceitos, Moreno ilumina um aspecto novo e original do papel: a
possibilidade criativa do homem que o assemelha a Deus cujas ações são criadoras e
espontâneas.
Englobando sinteticamente os diferentes sentidos do termo papel propostos por Moreno,
Gonçalves, C., Wolf, J. R, e Almeida, W. C., definem papel como "a unidade de
condutas interrelacionais observáveis, resultante de elementos constitutivos da
singularidade do agente e de sua inserção na vida social." (11, p. 68)
ORIGEM DOS PAPÉIS E O SURGIMENTO DO EU
"O desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não emergem do
eu; é o eu quem, todavia, emerge dos papéis." (18, p. 25)
No processo de desenvolvimento do indivíduo, os papéis surgem no interior da matriz
de identidade que, para Moreno, constitui "a base psicológica para todos os
desempenhos de papéis" e lança os alicerces do primeiro processo de aprendizagem
emocional da criança. A matriz de identidade é o universo indiferenciado onde o bebê
vive antes e imediatamente após o nascimento. "Essa matriz é existencial e pode ser
considerada o locus donde surgem, em fases graduais, o eu e suas ramificações, os
papéis. Os papéis são os embriões, os precursores do eu, e esforçam-se por se agrupar e
unificar."(18, p. 25)
Moreno distingue três tipos de papéis: os fisiológicos ou psicossomáticos, os
psicológicos ou psicodramáticos e os sociais. Considera-os como "eus" parciais. Postula
que entre o papel sexual, o do indivíduo que dorme, o do que sonha e do que come,
desenvolvem-se "vínculos operacionais" que os conjugam e integram numa unidade,
considerada uma espécie de eu fisiológico, um "eu parcial", um conglomerado de papéis
fisiológicos.
Do mesmo modo, no decurso do desenvolvimento e história do indivíduo, os papéis
psicodramáticos vão se agrupando, formando uma espécie de "eu psicodramático". O
mesmo ocorre, finalmente, com os papéis sociais, constituindo um "eu social". O
fisiológico, o psicodramático e o social são apenas "eus parciais". Moreno afirma que o
eu inteiro, realmente integrado, de anos posteriores, ainda está longe de ter nascido. É
necessário que se desenvolvam, gradualmente, vínculos operacionais e de contato entre
os conglomerados de papéis sociais, psicológicos e fisiológicos para se identificar e
experimentar, após sua unificação, aquilo que é chamado de "eu".
No processo de desenvolvimento infantil os papéis psicossomáticos auxiliam a criança a
experimentar seu corpo (dimensão fisiológica / corporal). Por outro lado, os
psicodramáticos vão proporcionar as condições da criança experimentar e desenvolver
sua psique (dimensão psicológica do eu) e os sociais, por sua vez, contribuem para
produzir o que se denomina sociedade (dimensão da realidade social). Corpo, psiquê e
sociedade
são
as
partes
intermediárias
e
integrantes
do
eu
total.
Para Moreno, no momento do nascimento do bebê, a matriz de identidade é o seu
universo inteiro, onde não existe diferenciação entre interno e externo, entre objetos e
pessoas, psiquê e meio. A existência é una e total. São, portanto, os papéis e através
deles que a criança vai percebendo e descobrindo a si própria e o mundo que a rodeia.
O surgimento e desenvolvimento dos papéis é um processo que ocorre nas fases préverbais da existência do ser humano e não se inicia com a linguagem, pois é anterior à
ela. (Nesse ponto Moreno diverge de G. H. Mead que enfatiza a linguagem como
condição da comunicação entre os homens e do desenvolvimento da personalidade.) Tal
processo indicativo da gênese dos papéis ocorre em momentos e fases diversas da
matriz de identidade. Ao nascer, a criança entra em seu primeiro universo que se divide
em dois períodos: o primeiro é o da identidade total, onde a criança não diferencia
pessoas de objetos, nem fantasia de realidade. Pessoas e objetos, incluindo a própria
criança, são experimentados como um todo só, indivisível. Nessa fase a criança
necessita de um ego-auxiliar que faça para ela o que não consegue fazer por si própria.
O segundo período é o da identidade total diferenciada ou da realidade total
diferenciada, onde objetos, animais, pessoas e a própria criança passam a diferenciar-se.
Surgem, porém, dois movimentos que se mesclam: ora a criança concentra a atenção no
outro, esquecendo-se ou estranhando a si, ora o inverso, ignora o outro, concentrando-se
e ficando atenta em si mesma. É a fase do espelho, onde não existe ainda uma diferença
efetiva entre real e imaginado, entre animado e inanimado, entre aparência das coisas
(imagens de espelho) e as coisas como realmente são.
Na primeira fase da matriz de identidade (a da identidade total indiferenciada) os papéis
que primeiro aparecem, ligados às necessidades e funções vitais, são os
psicossomáticos, tais como o de ingeridor, defecador, dormidor, etc. O conceito de
papel psicossomático, para Moreno, encontra-se vinculado ao de zona, foco, iniciador,
aquecimento, conjunto de determinantes e/ou condições que ocorrem, por exemplo, no
ato de mamar, na relação mãe-filho." Toda zona é o ponto focal de um dispositivo físico
de arranque no processo de aquecimento preparatório de um estado espontâneo de
realidade, sendo tal estado ou estados componentes na configuração de um papel." (18,
p. 108)
Os papéis psicossomáticos são os primeiros desempenhados pelo ser humano. Definem
as marcas gravadas pela ordem vital e constituem os primeiros papéis a exigir do
homem uma colocação frente à sua própria existência. Representam padrões de conduta
ou funcionamento na satisfação das necessidades fisiológicas, incluindo aí o modus
operandi, o clima afetivo-emocional com que os egos-auxiliares interatuam com a
criança no atendimento dessas suas necessidades. De certa forma, já existe relação nas
respostas que as necessidades ou funções fisiológicas recebem dos egos-auxiliares. A
partir, portanto, da forma como foram experienciados os papéis psicossomáticos, a
criança continua o processo de assimilação de novos aglomerados ou "cachos" de
papéis, pois a partir da formação dos primeiros ocorre como se cada novo papel surgido
tendesse a se aglutinar com os outros por influência ou "transferência do fator E".
Moreno entende o papel como a primeira unidade ordenadora e estruturante do eu.
Já na segunda fase da matriz (a da identidade total diferenciada), embora não tenha
surgido ainda a diferenciação entre objetos de realidade e imaginários, a criança começa
a "imitar" parte daquilo que observa. Moreno denomina tal processo como "adoção
infantil de papéis" que consiste em duas funções: dar papéis (doador) e receber papéis
(recebedor). Exemplifica com a situação de alimentar: a concessão de papéis é realizada
pelo ego-auxiliar (mãe) e o recebimento de papéis é feito pelo filho ao receber o
alimento. A mãe ao dar o alimento aquece-se em relação ao filho para execução de atos
de certa coerência interna. E o bebê, ao receber o alimento, aquece-se também para a
execução de uma cadeia de atos que igualmente desenvolvem certo grau de coerência
interna. Como resultado de tal interação vai se estabelecendo, gradualmente, uma certa
e recíproca expectativa de papéis nos parceiros do processo. Expectativa esta que cria as
bases para todo o intercâmbio futuro de papéis entre a criança e os egos-auxiliares.
O primeiro universo termina quando a experiência infantil de um mundo em que tudo é
real começa se decompondo entre fantasia e realidade. Desenvolve-se a construção de
imagens e começa a tomar forma a diferenciação entre coisas reais e coisas imaginadas.
É o início do segundo universo infantil, marcado pelo surgimento do que Moreno
denominou "brecha entre fantasia e realidade", (constituindo a terceira fase da matriz de
identidade). Surgem, então, dois processos de aquecimento: um de atos de realidade e
outro de atos de fantasia. Dessa divisão do universo em fenômenos reais e fictícios,
surgem, gradualmente, um mundo social e um mundo de fantasia, separados do mundo
psicossomático na matriz de identidade. Emergem, agora, formas de representar papéis
que põem a criança em relação com pessoas, coisas e metas, no ambiente real,
exteriores à ela (papéis sociais) e com pessoas, coisas e metas que ela imagina lhe serem
exteriores (papéis psicodramáticos).
A partir da ruptura entre realidade e fantasia surge a diferenciação dos papéis sociais e
psicodramáticos, até então misturados. Os papéis de mãe, filho, professor, etc. são
denominados sociais, separados dos psicodramáticos que são personificações de coisas
imaginadas, tanto reais como irreais. Num diagrama de papéis (l8, p. 129) Moreno
representa a divisão entre ambos como tênue, mas atribui maior espaço e predominância
aos psicodramáticos.
Com o desenvolvimento desses novos conjuntos de papéis (os sociais relacionados com
o mundo real, os psicodramáticos com o mundo da fantasia), completa-se a terceira fase
da matriz de identidade, denominada a da inversão de papéis onde, primeiro existe a
tomada de papel do outro para, em seguida, ocorrer a inversão concomitante de papéis,
o que acarreta uma transformação total na sociodinâmica do universo infantil.
Os papéis psicodramáticos e sociais completam as condições para o surgimento do eu.
Os três papéis definidos por Moreno, desdobrando-se em aglomerados ou "cachos"
correspondem aos papéis precursores do ego, constituindo os "eus parciais"
psicossomático, psicodramático e social.
Nos sociais opera, fundamentalmente, a função da realidade mediante interpolações de
resistências, não produzidas pela criança, mas que lhe são impostas pelos outros, suas
relações, coisas, atos e distâncias no espaço, no tempo. Dessa maneira, através dos
papéis sociais, o indivíduo vai incorporando ou é inserido no mundo da realidade da
cultura, dos padrões de conduta, valores, deveres, etc. É o mundo instituído da conserva
cultural.
A dimensão psicodramática constitui a contrapartida da realidade, já que nos papéis
psicodramáticos opera, fundamentalmente, a função da fantasia. Moreno entendia como
papéis psicodramáticos tanto os desempenhados no cenário durante uma dramatização,
quanto os oriundos da fantasia, da imaginação como produções imaginárias do
indivíduo. "Os papéis psicodramáticos são personificações de coisas imaginadas, tanto
reais quanto irreais". Correspondem, portanto, à dimensão mais individual da vida
psíquica, à "dimensão psicológica do eu", livre das resistências extrapessoais, a não ser
as criadas por ele mesmo.
Com a brecha entre a fantasia e a realidade o indivíduo adquire a capacidade de iniciar
processos de aquecimento diferenciados, tanto para o desempenho de um ou de outro
tipo de papel. E o fator que vai garantir essa passagem do mundo da fantasia para o da
realidade e vice-versa é a espontaneidade como princípio da adequação da ação do
indivíduo a seus próprios papéis.
A fase da inversão de papéis que ocorre no segundo universo infantil (precedida pela do
duplo e a do espelho) representa a culminância do processo de desenvolvimento do eu e
constitui a base psicológica para todos os processos de desempenho de papéis e para
fenômenos como imitação, identificação, projeção e transferência. Inverter e
desempenhar o papel do outro, não surge de súbito nem ocorre nos primeiros meses de
vida. Somente com a integração dos papéis precursores, em torno do terceiro ano, a
criança dispõe de uma identidade que lhe permitirá relacionar-se com outras pessoas.
Poderá, assim, inverter o quadro, assumindo o papel de quem, um dia, a alimentou,
carregou no colo ou com ela passeou. Dessa maneira, a experiência da realidade irá
permitir que, a partir da adoção de papéis, iniciada com os psicossomáticos, surjam
várias possibilidades de interação dos sociais e psicodramáticos.
Pela análise da gênese e desenvolvimento na história do indivíduo fica claro que "o
papel é uma experiência interpessoal", na qual vários atores encontram-se implicados,
constituindo-se, ao mesmo tempo, numa interação de estímulos e respostas. Interação
que tanto sinaliza fatores previsíveis da resposta em função dos papéis sociais e da
percepção dos mesmos, quanto elementos imprevisíveis resultantes da espontaneidade
dos atores/participantes da interação. Necessário se faz, portanto, analisar um outro
aspecto, o conceito de complementaridade, o contra-papel.
O
papel,
originariamente,
nasceu
da
interação
mãe-filho
e
baseado
na
complementaridade dos dois. Somente existe em função de seu complementar: o contrapapel. A inter-relação de ambos, polarizada em papel e contra-papel, constitui os
vínculos. A forma do indivíduo atuar e interagir é através dos papéis. Estes
correspondem ao conjunto de respostas que ele dá a situações onde outros indivíduos
interagem desempenhando papéis complementares. Esse aprendizado implica em
conseguir viver os vários pólos de uma cadeia interativa, podendo jogar tanto o seu
papel quanto o complementar. Papel e contra-papel são constitutivos um do outro. Não
há pai sem filho... O modo de ser de uma pessoa decorre dos papéis que ela vai
complementando ao longo de sua existência, com as respostas obtidas na interação
social, por outros papéis que complementam os seus. Morfologicamente, a noção de
papel aparece veiculando uma complementaridade: o contra-papel, existindo entre
ambos uma relação estrutural e de inter-determinação recíproca.
O PAPEL NA PRÁTICA PSICODRAMÁTICA
Os interesses de Moreno - terapeuta e pedagogo - estão voltados mais para os
indivíduos e suas relações do que para a cultura, os valores e normas sociais. Visam,
preferencialmente, a espontaneidade e criatividade para que estes possam agir e intervir
no meio social. Cria e desenvolve técnicas e procedimentos operativos como recursos
para que o indivíduo possa atingir tais objetivos. As primeiras técnicas históricas são
representadas pelo teatro de improviso e o jornal dramatizado (jornal vivo), as técnicas
relacionadas às fases do desenvolvimento: duplo, espelho e inversão de papéis,
consideradas básicas por servirem de base e fundamento para as demais.1
Como para Moreno o eu "é revelado pelo desempenho de papéis", ele vai privilegiar,
sobremaneira a técnica do role-playing com todo seu desdobramento pedagógico
(aprendizagem e treinamento de papéis) e terapêutico. A finalidade do role-playing
como jogo psicodramático de papéis "é proporcionar ao ator uma visão do ponto de
vista de outras pessoas, ao atuar no papel dos outros, seja em cena, seja na vida real".
O desenvolvimento de um novo papel passa por três fases distintas: a) a tomada do
papel (role-taking) ou adoção do papel já pronto e inteiramente estabelecido, podendo o
indivíduo apenas imitá-lo a partir dos modelos disponíveis. Não permite variação e
nenhum grau de liberdade. Cabe apenas aceitá-lo, desempenhando-o da maneira já
convencionada. Para Moreno, constitui-se produto acabado, conserva de papéis; b) o
jogo
de
papéis
(role-playing)
representação
ou
desempenho
que
permite certo grau de liberdade. Consiste em jogar o papel explorando simbolicamente
suas possibilidades de representação. Para Moreno, o jogo de papéis é ato, brincadeira
espontânea; e c) a criação de papéis (role creating) permite alto grau de liberdade,
deixando margem à iniciativa pessoal, como no caso do ator espontâneo. Criar o papel é
o desempenho de forma espontânea e criativa. E como todo papel necessita de ator, em
cada fase do processo de seu desenvolvimento encontram-se os atores correspondentes:
o "receptor", o "intérprete" e o "criador de papéis".
Não há como pensar o Psicodrama, seus instrumentos, a estrutura de uma sessão,
desvinculado de papéis e atores que os vivenciam. Toda dramatização, jogo ou qualquer
técnica psicodramática somente pode acontecer quando papéis são colocados em ação e,
através destes, personagens interatuam se vinculando como interlocutores.
No Psicodrama, encontrando-se com seu eu em papéis imaginários ou correspondentes
a funções assumidas dentro da realidade social, o indivíduo recupera a capacidade de
realizar transformações autênticas em sua vida, nas suas relações e no meio onde vive.
A realização da verdadeira ação espontânea equivale à criação e desempenho de papéis
que correspondem a modelos próprios de existência. A dimensão do homem
criativo/espontâneo se contrapõe continuamente com a conserva da estrutura social,
com os papéis que o aprisionam a modelos e padrões, normas, status, rótulos pré1
Ver livro de Monteiro, R et alii "Técnicas Fundamentais do Psicodrama". São Paulo. Editora Brasiliense,1993.
determinados. O Psicodrama possibilita ao indivíduo utilizar seu potencial
imaginativo/criativo para transformar a realidade, retomar papéis sociais instituídos,
cristalizados e conservados, para recriá-los modificando-os e invertê-los, reinventandoos na vivência das relações em que se encontra envolvido e implicado. Uma vez que a
proposta psicodramática é resgatar o homem espontâneo-criativo preso nas amarras da
conserva cultural, pode-se dizer que a criatividade é aquilo que o indivíduo faz para
recriar o seu eu com espontaneidade através do conjunto de papéis que desempenha no
jogo da vida.
O CONCEITO DE PAPEL E OS PSICODRAMATISTAS
Inúmeros são os psicodramatistas que têm atendido e estão respondendo ao apelo de
Moreno de não tomar sua obra como pronta e acabada. Publicações têm se sucedido
numa demonstração viva do esforço estudioso de profissionais da área, principalmente
no cenário psicodramático brasileiro. O conceito de papel tem recebido diversas
contribuições de bom número desses autores.
J. G. ROJAS BERMUDEZ (l966), em seu livro "Que es el Sicodrama?", desenvolve
uma teoria neurofisiológica de desenvolvimento, personalidade e psicopatologia - "a
teoria do Núcleo do Eu". Denomina Núcleo do Eu à estrutura resultante da confluência
dos papéis psicossomáticos de ingeridor, urinador e defecador com as áreas mente,
corpo e ambiente.
Bermudez considera o ser humano uma condensação dos fatores ambiente, corpo e
mente com destaque para os papéis psicossomáticos de ingeridor, defecador e urinador
oriundos das funções fisiológicas correspondentes. A importância fundamental da
estruturação dos papéis psicossomáticos é a progressiva delimitação de áreas que eles
vão produzindo. Assim, o papel de ingeridor delimita as áreas corpo-ambiente, o de
defecador as de ambiente-mente e o de urinador mente-corpo. Evolutivamente, para
Bermudez, o papel de ingeridor estrutura-se nos primeiros dias de vida, o de defecador
entre o terceiro e oitavo mês e o de urinador entre o oitavo e vigésimo quarto. O
"Núcleo do Eu" é a estrutura resultante da integração das três áreas com os três papéis
psicossomáticos a partir da "estrutura genética programada interna" e da "externa".
Como um dos pioneiros na história do movimento psicodramático brasileiro, Bermudez
tem feito escola e sua teoria do Núcleo do Eu possui inúmeros seguidores.
DALMIRO BUSTOS (l979), figura de destaque no cenário psicodramático, entre suas
inumeráveis contribuições ao Psicodrama, apresenta os conceitos de suplementariedade,
de papel complementar interno patológico, de dinâmica dos papéis (vínculos) e papel
gerador de identidade.
Para Bustos, os papéis estruturam o ego em suas trocas com o meio ambiente. A zona
de interação entre o ego e o mundo exterior está estruturada em forma de papéis. Cada
papel se relaciona com complementares de outras pessoas através de vínculos. Pela falta
de diferenciação entre o eu e os outros, entre mundo interno e externo, o universo das
relações fica povoado de confusões, sem limite entre o eu e não eu. Não há consciência
dos vínculos. O eu e o outro significativo ficariam unidos em suplementariedade, onde
um é parte do outro, sem possibilidade de vínculo. A fantasia da inexistência do vínculo
caracteriza a suplementariedade onde cada um dos termos de uma relação se comporta
como se fosse parte de um todo, sem solução de continuidade. Passa-se de um estar com
o outro à fantasia de ser parte do outro. É o funcionamento unitário, base das relações
simbióticas.
O mesmo autor explica, ainda, que todo conflito é incorporado através de um papel,
geralmente o de filho com seu complementar: mãe ou pai. A situação de conflito faz
com que este papel fique fixado em seu modus operandi ao papel complementar
primário, denominado complementar interno patológico. Quanto mais forte o conflito,
mais incapacitante o resultado e maior número de papéis são afetados. Isso porque, todo
estímulo externo que desencadeie esta dinâmica originará condutas que correspondem à
relação com este complementar interno patológico. Como, por exemplo, um filho
hipersensível diante de um pai supercrítico poderá apresentar condutas afins em suas
relações com outras figuras de autoridade. Isso ocorre, porque, para se desprender dos
complementares primários, a criança necessita de apoio indispensável para superar a
angústia da separação e retomar a espontaneidade. Na falta desse apoio, ela tenderá reter
o que é garantido ou conhecido, aferrando-se ao complementar primário, parcial ou
totalmente, configurando-se, assim, o papel complementar interno patológico. Este irá
bloquear ou afetar em diferentes graus as relações com os outros, revelando-se parte
constitutiva permanente dos vínculos, provocando respostas ou atitudes de acordo com
as experiências primitivas do indivíduo, e não com os estímulos externos e atuais.
Diminui a capacidade de reações espontâneas, aumentando a ansiedade. Constitui a base
das relações transferenciais. (5, p. 18-23) (6, p. 24).
Segundo Bustos, os papéis se agrupam conforme sua dinâmica, configurando clusters
ou agrupamentos. (7, p. 76). O primeiro depende do complementar materno,
responsável por funções de dependência e incorporação. O segundo do complementar
paterno, gerando a matriz dos papéis ativos. Ambos possuem um primeiro
complementar único: mãe e pai ou os adultos que desempenham esses papéis. Estes dois
papéis primários são assimétricos por natureza. A simetria aparece mais tarde, quando a
paridade se apresenta na forma de irmãos ou companheiros de brincadeira. Esta
interação diferenciada das outras duas determina o surgimento de um terceiro cluster,
que representa as relações de paridade. Configura-se, assim, o esquema básico de
papéis: passivo, ativo e interativo. O primeiro esquema, de funções passivas,
incorporativas, dependentes, está vinculado ao papel gerador de mãe e a aspectos
femininos. O segundo, gerador de capacidade ativa, penetrante, autônoma, liga-se ao
papel de pai e a aspectos masculinos. E o terceiro vínculo gerador é o papel de irmão,
substituível pelo de amigos, responsável pelas experiências de intercâmbio no mesmo
nível, de competição, rivalidade, etc.. Essas três dinâmicas constituem possibilidades
alternativas de todos os papéis.
Outro conceito desenvolvido por Bustos é o de papel gerador de identidade, (5, p. 22)(7,
p. 77-78), caracterizado como aquele que, dentro de um repertório de papéis de um
adulto, predomina como um ponteiro positivo indicador do indivíduo. Afirma que todas
as pessoas têm um papel central e predominante que impregna os demais, auxilia a
cimentar a identidade, construindo auto-confiança, especialmente se tal papel for
passível de mudanças em diferentes momentos de suas vidas. Constitui-se em eixo
predominante que funciona como defensivo nas situações de conflito, bem como possui
função ordenadora (ordenamento interno).
ALFREDO NAFFAH NETO (1979), em seu livro "Psicodrama - descolonizando o
imaginário", ao rever a teoria de papéis de Moreno, distingue papel dramático,
psicodramático, imaginário e histórico. Para ele, o papel dramático é o vivido pelo ator
do teatro. É pré-determinado pelo script, conservado, estratificado e perpetuador de um
drama deslocado do ator, exterior a ele. Por outro lado, distingue papel psicodramático
de papel imaginário. Para Moreno os papéis psicodramáticos ora definem a emergência
do potencial criativo, ora designam o mundo da fantasia e da imaginação em oposição
aos papéis sociais, que definem o mundo real e das relações sociais. Naffah, entretanto,
caracteriza o papel psicodramático como o que, de imaginário concretiza-se
espontaneamente em ação real, criado e desempenhado pelo ator/autor no cenário
psicodramático, contendo em si elementos do papel dramático e do papel pessoal.
(Termo utilizado por Rocheblave-Spenlé pelo qual o indivíduo determina ele mesmo
sua posição pela relação com os outros e age conforme um modelo de conduta que
constitui como norma das relações inter-subjetivas.) (22, p.172). Afirma que o papel
psicodramático "retoma e focaliza num mesmo eixo o ator e o drama como duas partes
implicadas entre si, possibilitando a emergência da espontaneidade e criatividade e a
retomada pelo ator de seu verdadeiro sentido: o de agente". (19, p.180)
O papel psicodramático designa a emergência de uma nova síntese entre imaginação e
ação, entre espírito e corpo. Dissolve-se a clivagem entre papel social e a pessoa privada
surgindo o sujeito como existência una. Na cisão entre pessoa privada e papel social, a
imaginação permanece deslocada da ação real e fechada em si mesma. Nessa clivagem a
pessoa fantasia-se e imagina-se em determinados tipos de relação (devaneio, sonho) que
não são transformados em ação efetiva. Com a emergência do segundo universo infantil
(quando o imaginário diferencia-se do real) o desempenho dos papéis sociais procura se
sobrepor ao mundo imaginário, tendendo restringir e isolar a atividade imaginativa. Para
Naffah, o papel psicodramático representa o momento em que a imaginação rompe seu
espaço solipsista para encarnar-se e fazer-se verdade, representando uma nova síntese
entre imaginação e ação. É o esforço de superação desta clivagem que define a
espontaneidade criativa e a emergência dos papéis psicodramáticos.
Já os papéis imaginários são os resultantes da fantasia e imaginação do indivíduo
(sonho, fantasia) mas não transformados em ação efetiva, não atuados e
desempenhados. E para Naffah, o papel psicodramático ao ser vivido e desempenhado
no palco resgata os papéis imaginários não-atuados, concretizando-os na ação
espontânea do ator-autor-criador.
Por outro lado, ao discutir o conceito de papel social chega ao caráter histórico do
mesmo ou, conforme o denomina, a um tipo de papel: o histórico que, enquanto
modelo, circunscreve e delimita os papéis sociais. Moreno não o descreve, segundo
Naffah, por não considerar a função estruturante da história. Entretanto, concorda com
Moreno quando este afirma que os "os papéis são os fatos mais significativos dentro de
qualquer cultura específica", mas desde que não se esqueça que estas formas relacionais
estão circunscritas a um processo histórico e à uma estrutura social, política e
econômica, de que são manifestações necessárias, consolidação do instituído. Conclui
que os papéis sociais, sua estrutura e dinâmica próprias, nada mais fazem que repetir e
concretizar num âmbito micro-sociológico, a estrutura de contradição e oposição
básicas que se realiza entre papéis históricos, constituida pela relação dominadordominado, uma vez que o conceito de papel social pressupõe o de classe social e viceversa.
Em "Psicodrama da Loucura" JOSÉ FONSECA FILHO (1980) apresenta um esquema
de desenvolvimento humano, expõe uma visão da loucura e saúde, esboçando uma
teoria da personalidade baseada nas fases da matriz de identidade. Fiel ao postulado
moreniano de que o eu se forma a partir do desenvolvimento de papéis, enfoca sua
análise na capacidade do indivíduo tomar, jogar e invertê-los. "Papel é uma experiência
interpessoal e necessita de dois ou mais indivíduos para ser posta em ação. Todo papel é
uma resposta a outro (de outra pessoa). Não existe papel sem contra-papel". (8, p.20)
Fonseca propõe, pela técnica de inversão de papéis, uma espécie de medida da
capacidade de "inverter ou experienciar o outro", avaliando-se, assim, o grau de saúde
ou doença que atinge as pessoas. Um desempenho e inversão de papéis perfeitos
significa ausência total de "elementos psicóticos". Afirma que a técnica de inversão de
papéis "pode realmente, guardadas as devidas ressalvas, constituir-se um dispositivo
para "medir"o grau de "saúde-doença"de uma pessoa". (8, p.102).
A partir de sua formação psiquiátrica e toda sua experiência clínica, Fonseca apresenta
um enfoque de papel bastante operativo, oferecendo uma instrumentalização prática
para o trabalho do psicoterapeuta.
Com o propósito de inovação, procurando novos modelos de atuação terapêutica,
Fonseca tem desenvolvido um método de psicoterapia individual, a "Psicoterapia da
Relação"(10),
técnica
psicoterápica
derivada
do
psicodrama,
fundamentada
principalmente no jogo de papéis (além de outros recursos técnicos) entre terapeuta e
paciente, onde o primeiro toma e joga papéis dos personagens do mundo interno e
relacional do paciente, interagindo e sendo interlocutor deste. O terapeuta da relação
assume o papel internalizado do paciente, previamente desempenhado por ele ou
diretamente, de acordo com a interação.
Fonseca considera que o jogo e inversão de papéis facilitam a comunicação coinconsciente e é revigorante para os participantes. Jogar o papel de outra pessoa,
abrindo mão, parcialmente, da identidade para receber a do outro, retornando em
seguida à sua própria, produz sutis alterações de estados de consciência e liberação de
energia, provocando bem-estar e euforia.
É importante assinalar ainda, dentro das técnicas da Psicoterapia da Relação, outra
criação da prática clínica de Fonseca, o "Psicodrama Interno" caracterizado como um
"jogo interno" de papéis. (9).
ANIBAL MEZHER (1980) (14) questiona a validade do conceito de papel
psicossomático a partir do próprio sistema teórico de Moreno. Assinalando e
sintetizando elementos das conceituações de diferentes autores, define papel como "um
específico conjunto de atos, segundo o modelo prescrito por uma determinada
sociedade, na interação entre seres humanos". Destaca três elementos básicos: interação
entre humanos, conjunto de atos e subordinação a modelo prescrito pela sociedade.
Baseia sua análise na noção de vínculo humano, do ser-em-relação e da
complementaridade vista como interação entre pessoas através de papéis e contra-papéis
correspondentes. Figurino este no qual não cabem, segundo Mezher, os "papéis
psicossomáticos" pela inexistência de contra-papéis.
Questiona a propriedade da noção de papel psicossomático de Moreno a partir dos
conceitos de zona corporal e papéis familiares. Propõe a substituição parcial do conceito
de papel psicossomático pelo de "zona corporal em ação". E, para não entrar em choque
com o postulado moreniano de que os papéis são os aspectos tangíveis do eu, que se
desenvolve a partir deles, completa: "as zonas corpóreas como áreas corporais
funcionando em relação ao mundo, num crescente processo vivencial de um corpo em
relação ao mundo e de suas partes entre si, processo concomitante e integrado com sua
experiência social, são fatores na consolidação da identidade corporal, substrato
suficiente para as fundações do "ego"". (14, p.223)
Ressalta, assim, que os papéis psicossomáticos podem ser vistos como zonas corporais
em ação, incluidas na relação mãe-filho e em outros papéis familiares, sem prejuízo da
identidade corporal da criança.
MOYSÉS AGUIAR (l990) (1), a partir do conceito de papel, apresenta um estudo da
sociometria dos vínculos. Como os vínculos acontecem através de papéis, toda a
complexidade destes aplica-se também aos vínculos. Em sua análise diferencia três tipos
de vínculos: a) vínculos atuais são os que se verificam nas relações concretas e onde os
parceiros das mesmas caracterizam-se pela sua concretude (em contraposição à
fantasia). Nesse sentido, os papéis são definidos como "sistemas pluri-uni-vocos de
expectativas... em função de um objetivo comum." (1, p.51). b) Vínculos residuais são
aqueles que no passado foram vínculos atuais e que se encontram desativados. São
decorrentes de mortes, ruptura de relações ou afastamento entre parceiros. Esses
vínculos têm uma história de realidade, mas sua existência atual está no plano da
fantasia, como memória. c) Vínculos virtuais são os do âmbito da fantasia e não são
encontrados nas relações concretas, tais como os estabelecidos com objetos/personagens
imaginários ou míticos, ou muito distantes da realidade concreta do indivíduo, embora
reais.
A configuração sociométrica dos vínculos virtuais é mais estável que a dos residuais (e
estes, muito mais que os atuais) já que não estão sujeitos à confrontação com a
realidade, quer presente ou passada.
Moysés Aguiar acredita que a diferenciação desses três tipos de vínculos poderá
fertilizar a prática e teoria psicodramática, se utilizada como instrumento para análise
dos papéis.
Por outro lado, examinando a dinâmica dos papéis e a questão do contra-papel, não a
entende como uma estrutura bi-polar simples. Para ele, a complexidade das relações
indica ocorrência frequente de complementaridades múltiplas, como triangulação e
circularização de papéis. Nesse sentido, destaca duas vertentes que tornam o
desempenho de papéis mais e mais complexo: a primeira é a composição do papel, cujas
inúmeras funções podem ser consideradas, de per si, como "sub-papéis". Exemplifica
com o papel de mãe que inclui missões tão díspares como amamentar, limpar o
bumbum do bebê, aconselhar filha adolescente, etc.. Tarefas estas que envolvem
projetos distintos e operações peculiares, especialmente quanto à complementaridade
que implicam. Surgem os sub-papéis de amamentador-amamentado, limpador-limpado,
conselheiro-aconselhado, etc., compondo o conjunto maior que é o papel mãe-filho. A
segunda vertente é a que se refere a papéis paralelos. Estes surgem quando, numa
determinada relação, a consecução do projeto comum permite ou mesmo exige o uso de
modelos relacionais próprios de outras relações. Apresenta, como exemplo, a
complementaridade professor-aluno incluindo práticas "paternais" que caracterizam
outro papel do mesmo cacho, a relação pai-filho. Ou, ainda, o papel homem-mulher
revelando conteúdo "paternal", próprio do papel pai-filho. Esclarece que os
comportamentos que ocorrem entre os parceiros, cuja natureza tem a ver mais com o
segundo papel do que com o primeiro, constituem o papel paralelo. Funciona como
"condimentos" do papel principal.
SÉRGIO PERAZZO (1994), em "Ainda e Sempre Psicodrama", discute a conceituação
de papel imaginário. Levanta a questão da existência de "papel imaginário
transferencial"
e
"papel
imaginário
não-transferencial",
diferenciando
papéis
imaginários (Naffah) e papéis de fantasia. Para ele, o caráter de não-atuação do papel
imaginário abre uma brecha para explicar a facilidade com que muitos papéis, nunca
jogados anteriormente, podem ser desempenhados através de jogos dramáticos no
cenário do psicodrama. Denomina-os de papéis de fantasia, que são facilmente atuados
a partir de um pequeno esforço espontâneo e criativo. Isso porque, segundo Perazzo, o
papel psicodramático tendo seu locus exclusivo no cenário psicodramático, possui uma
delimitação clara de contexto, deixando um espaço vago de definição em que transita a
imaginação criativa. Nesse espaço é que a imaginação pode ser atuada com mais
facilidade, sem intermediação de papéis psicodramáticos. Os papéis de fantasia,
portanto, poderiam ser jogados fora do cenário do psicodrama, onde cumpririam uma
"função psicodramática" espontânea e não intermediada pela técnica.
PALAVRAS FINAIS
O presente texto não pretendeu esgotar o tema papel, nem apresentar uma visão crítica
de diferentes autores. Procurou, apenas, aglutinar e condensar, nesse espaço privilegiado
da Revista Brasileira de Psicodrama, as conceituações de Moreno e contribuições de
outros autores sobre esse inesgotável filão de possibilidades para a teoria e prática do
psicodrama: o conceito de papel.
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Brasileira de Psicodrama
Volume 3, fascículo I, ano 1995.
Psicólogo Carlos Rubini
Psicodramatista Mestre em Psicologia
Editor Responsável do Caderno de Psicodrama do Jornal Existencial On Line
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