O CONCEITO DE PAPEL NO PSICODRAMA (*) Carlos Rubini (**) SINOPSE O presente texto apresenta diferentes conceitos e significados do termo papel encontrados na obra de Moreno e de outros psicodramatistas. Destaca a origem dos papéis psicossomáticos, sociais e psicodramáticos na matriz de identidade, ressaltando a importância dos mesmos para o surgimento do eu e constituição do indivíduo no contexto da teoria e prática psicodramática. UNITERMOS Papel. Papel Social. Papel psicossomático. Papel psicodramático. Papel imaginário. ABSTRACT This paper presents different conceptions and meanings of the term role found in Moreno’s work and other Psychodramatists’. It emphazises the origin of the psychosomatic, social and psychodramatic roles. It also focuses on the importance of these roles to the emerge of the I and to the construction of the individual within the psychodramatic context. UNITERMS Role. Social role. Psychosomatic role. Psychodramatic role. Imaginary role. ______________________ (*) Texto publicado na Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 3; fascículo I – ano 1995; (pg. 45-62) (**) Mestre em Psicologia. Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense. Professor-supervisor pela FEBRAP. 1 INTRODUÇÃO A noção de papel não está ligada a um autor em particular, nem a um determinado ramo das ciências apenas. No âmbito das Ciências Sociais diversos autores trataram, não só do conceito de papel, como também de sua função e importância dentro do sistema social. Destacaram seu caráter psicossocial que influencia a formação da individualidade e coletividade, pelos padrões de conduta individual e coletiva representados pelos papéis. Não há dúvida que este conceito oferece inúmeras possibilidades de investigação sobre a relação indivíduo e sociedade, junto às disciplinas que tratam dos fenômenos pessoais e coletivos, tais como a psicologia, a sociologia, a antropologia e a filosofia. Para muitos autores as teorias de papel são consideradas o ponto de ligação entre elas. Assim, destaca-se aqui, a excelente obra de Rocheblave-Spenlé (1962) (22) que, ao apresentar um estudo histórico-crítico da noção de papel, analisa as contribuicões dos precurssores e primeiros teóricos do papel, com destaque para as contribuições de G. H. Mead, R. Linton, T. Parsons, T. M. Newcomb e J. L. Moreno, para citar apenas os mais conhecidos. Por outro lado, Ray Holland (1977) em seu livro "Eu e o Contexto Social" analisa as contribuições de autores que buscaram a interrelação do papel e da personalidade, destacando a "teoria do construto pessoal e papel" (G. Kelly, D. Bannister e F. Fransella), a "teoria estrutural do papel" (Park e Burgess, e Merton) e a "teoria do papel eu/outro" (Coser e Rosenberg). 2 Considerando-se diversos enfoques das Ciências Sociais e de autores que trataram do tema em questão, verifica-se que o papel social pode ser identificado não apenas com as normas, mas igualmente com o status, em seu aspecto dinâmico, definindo-se como um padrão determinado de comportamento que reflete e caracterisa uma posição especial do indivíduo dentro do grupo social a que pertence. A organização articulada de papéis confere unidade ao grupo, faculta ao indivíduo atingir seus objetivos como pessoa e como integrante de uma coletividade. O processo de assunção ou incorporação de um papel é extremamente complexo. Caracteriza a socialização do indivíduo através do esforço de ajustamento da personalidade ao duplo estímulo de expectativas de ações, induzidas por outrem ou reelaboradas por ele próprio. A finalidade do presente texto, no entanto, não é a de abordar todas as contribuições a respeito, restringindo-se ao conceito de papel no Psicodrama, destacando a contribuição de Moreno e de autores ligados ao movimento psicodramático brasileiro. SENTIDOS DO TERMO PAPEL E A ORIGEM NO TEATRO Etimològicamente, diversos termos dão origem à palavra papel com diferentes sentidos. O termo vem do latim medieval rotulus (derivado de rota = roda) que pode significar tanto "uma folha enrolada contendo um escrito", bem como "aquilo que deve recitar um ator numa peça de teatro". No sec. XI o termo era utilizado também no sentido de "função social", "profissão". O termo francês “rôle", o inglês "role", o castelhano "rol" e o italiano “ruolo” igualmente têm sua origem na mesma etimologia latina "rotulus". (3) 3 A palavra papel na lingua portuguêsa, etimològicamente, vem do grego pápyros, do latim papiro. Papiro designava um arbusto do Egito de cuja entrecasca se fazia o papel, obtendo-se o material para a escrita . O significado de rôle é o de uma folha contendo um escrito e o de papel o material utilizado na confecção da folha. Da mesma forma, a palavra portuguêsa papel significa, de modo geral, o material utilizado para a escrita. Constata-se que os significados originais de rotulus foram incorporados na lingua portuguêsa pela palavra papel. Isso porque, além de indicar o material utilizado na escrita (papiro), papel refere-se também à "personagem representada por um ator", ou à "parte que cada ator desempenha no teatro, no cinema, na televisão, etc." e, ainda, à "atribuição de natureza moral, jurídica, técnica, etc." (4), isto é, desempenho, função, como papel de pai, juiz, médico, por exemplo. Em relação ao teatro, todo papel necessita de um ator e todo ator tem um papel a desempenhar. Sabe-se que o teatro pode sobreviver sem um texto escrito, prescindir da cenografia (representação ao ar livre), e até dispensar a palavra (mímica). Pode existir (como durante séculos) sem o diretor. Mas o teatro jamais viverá sem o ator. Na Grécia Antiga, Téspis (560 a. C.) teria escrito e representado o primeiro papel na história do teatro. Além do coro e corifeu (já existentes nas festas religiosas - festas dionisíacas-), Téspis inova representando vários personagens através de mudanças de máscaras e roupas. As representações de tragédias incluiam o coro, corifeu e ator (este, geralmente, o próprio poeta). Com Ésquilo surge o segundo ator e Sófocles introduz o terceiro. Na tragédia grega nunca havia mais de três personagens em cena e os atores eram o protagonista, o antagonista e o tritagonista. Ao primeiro cabiam os papéis principais e os demais divididos entre os atores secundários. 4 Com o tempo, ainda na Grécia e Roma Antiga, as diversas partes da representação teatral eram escritas em "rolos" e lidas pelos pontos aos atores que procuravam decorar seus respectivos "papéis". Nos séculos XVI e XVII, com o teatro moderno, as partes dos personagens teatrais eram lidas em "rolos" ou fascículos de papel. Passou-se, assim, a designar cada parte cênica como papel ou "role". O CONCEITO DE PAPEL PARA MORENO A fonte inspiradora da teoria dos papéis de Moreno foi o teatro. Por sua origem, segundo ele, papel não é um conceito sociológico ou psiquiátrico. Veio da linguagem do teatro e através dele entrou para o vocabulário científico. E como o teatro representou, no início, a matriz e o locus do projeto moreniano, nada mais lógico, portanto, que o conceito de papel tenha se constituido numa das pedras angulares da teoria moreniana e da prática sócio-psicodramática. “ É esquecido a miúde, que a moderna teoria dos papéis teve sua origem no teatro,do qual tomou suas perspectivas. Tem uma longa história e tradição no teatro europeu, a partir do qual desenvolvi, gradualmente, a direção terapêutica e social de nosso tempo. Introduzía nos Estados Unidos em meados da década de 20. Dos papéis e contra-papéis, situações de papéis e conservas de papel, desenvolveram-se naturalmente suas extensões modernas:o executante de papel, o desempenho de papéis,a expectativa de papel, a passagem ao ato (acting out) e, finalmente, o psicodrama e o sociodrama.”(18,p.28) A tarefa do Teatro Veienense da Espontaneidade, entre 1921 e 1923, foi a de produzir uma revolução no teatro, procurando modificar por completo os eventos teatrais. Das Stegreiftheater representou a fusão ator-autor e 5 expectador no ato da criação e representação do drama. Rompe a oposição entre ator e autor, entre pessoa e drama, criando a vida sem necessidade de textos. Elimina a hierarquia entre os atores (o protagonista não é fixo como na tragédia grega). Desaparece a separação entre platéia e atores, pois cada membro da platéia pode tornar-se ator e vice-versa. Platéia e atores são, assim, os únicos criadores. Tudo é improvisado: a peça, a ação, o motivo, as palavras, o encontro e a resolução dos conflitos. O palco também desaparece, surgindo em seu lugar o palco-espaço, o espaço aberto, o espaço da vida, a vida mesma. Surge, assim, um novo tipo de teatro. Não um teatro repetitivo, de peça escrita pelo dramaturgo, decorada, ensaiada e encenada sucessivamente. O Teatro da Espontaneidade é sempre uma peça única, que flui e se consuma no aqui-agora do ato vivencial dos atores-criadores. Um teatro vivo, teatro vida. "Minha visão do teatro foi moldada segundo a idéia do self espontaneamente criativo", diz Moreno. (l5, p.17) Através da nova forma de seu teatro, Moreno buscava tanto o desenvolvimento pessoal quanto social do indivíduo. Para alcançar esses objetivos, acreditava que o homem podia se transformar através da ação, experimentação e vivências, refletindo e modificando sua conduta. A teoria psicodramática dos papéis leva o conceito de papel a todas as dimensões da existência humana, desde o nascimento e ao longo de toda a vida do indivíduo, enquanto experiência pessoal e modalidade de participação social. Situa-se no conjunto da teoria moreniana que sempre se refere ao homem em situação, imerso no social, buscando transformá-lo através da ação. O conceito de papel, que pressupõe interrelação e ação, é central nesse conjunto articulado de teorias, imprescindível, sobretudo, para a compreensão da teoria e prática do psicodrama. 6 O homem é um ser que, a partir do impulso da espontaneidade, poderá desenvolver a "centelha divina criadora" que traz em si mesmo. "O homem é um gênio em potencial, que lutando contra as conservas culturais, através da espontaneidade criadora, chegará a assemelhar-se a Deus e encontrar sua liberdade". E se o homem não desenvolver essa espontaneidade, ele adoece, segundo Moreno. Tal concepção entende que o existir humano é um viver em coletividade. O indivíduo se realiza pelo desempenho de papéis na sociedade. "Este enfoque se funda no princípio de que o homem tem um papel a desempenhar, cada indivíduo se caracteriza por uma variedade de papéis que regem seu comportamento e que cada cultura se caracteriza por uma série de papéis que, com maior ou menor êxito, impõe a todos os membros da sociedade." (l6, p.81) Encontra-se, assim, na concepção moreniana de homem como gênio que se desenvolve a partir da espontaneidade, a dimensão do indivíduo, e na concepção de homem como membro de um grupo inserido numa coletividade, a sua dimensão social. O ponto de união entre ambas, para Moreno, encontrase no conceito de papel: "Todo papel é uma fusão de elementos particulares e coletivos, é composto de duas partes: seus denominadores coletivos e seus diferenciais individuais." (l6, p.68) Dessa maneira, como síntese unificadora, o papel - conceito social - conecta com a espontaneidade, de conteúdo individual. Papel e espontaneidade caminharam juntos desde os primeiros trabalhos de Moreno com seu teatro de improviso: "O desempenho de papéis foi a técnica fundamental do teatro espontâneo vienense. Dada a predominância da espontaneidade e da criatividade no desempenho de papéis, este foi chamado "desempenho espontâneo-criativo””. (17, p.157) Essas duas dimensões, a individual e a 7 coletiva são encontradas nos diferentes sentidos e concepções de papel apresentadas por Moreno ao longo de sua obra: -O papel pode ser definido como a unidade de experiência sin tética em que se fundiram elementos privados, sociais e culturais. (18, p. 238) -O papel é a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage à uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. (18, p. 27) -O papel é uma cristalização final de todas as situações em uma zona especial de operações pelas quais o indivíduo passou ( p. ex. o comedor, o pai, o piloto de avião). (18, p. 206) - O papel pode ser definido como uma pessoa imaginária criado por um autor dramático, p. ex. um Hamlet, um Otelo ou um Fausto; esse papel imaginário pode nunca ter existido, como, p. ex . um Pinóquio ou um Bambi. (18, p. 206) -O papel é a unidade da cultura: ego e papel estão em contínua interação.(18,p.29) - O papel pode ser um modelo para a existência,como Fausto,ou uma imitação dela como Otelo... O papel também pode ser defi-nido como uma parte ou um caráter assumido por um ator... O papel ainda pode ser definido como uma personagem ou função assumidana realidade social, p. ex. policial, médico, juiz... Finalmen-te o papel pode ser definido como as formas reais e tangíveis que o eu adota. (18, p. 206) Nessas diferentes definições e concepções pode-se notar que os papéis possuem algo comum: são fenômenos observáveis, aparecem nas ações, são atuados, representam aspectos tangíveis do eu. 8 Moreno ora define o papel como função prescrita e assumida pelo indivíduo, ora como a “forma real e tangível que o eu assume” passando do plano dramático ao social. Para ele, o papel ora se refere à uma pessoa imaginária, ora a um modelo para a existência ou a um personagem da realidade social, uma imitação da vida ou uma forma tangível do eu. E, como observa Rocheblave-Spenlé, destaca-se o sentido de representação teatral e ação, funções sociais desempenhadas pelos indivíduos na sociedade, representação da individualidade das pessoas, modelo de experiência, “parte” de uma pessoa real representada por um ator, caráter ou função assumidos numa realidade social e cristalização final do modo de realizar ações especiais, como pai, mãe, etc. A mesma autora observa, por outro lado, que enquanto a maioria dos autores que trataram do tema (tais como G. H Mead, R. Linton, Parsons...) enfocam os papéis como facilitadores das relações sociais pela sua previsibilidade e por representarem padrões de conduta aceitos, Moreno ilumina um aspecto novo e original do papel: a possibilidade criativa do homem que o assemelha a Deus cujas ações são criadoras e espontâneas. Englobando sintèticamente os diferentes sentidos do termo papel propostos por Moreno, Gonçalves, C., Wolf, J. R, e Almeida, W.C., definem papel como “a unidade de condutas interrelacionais observáveis, resultante de elementos constitutivos da singularidade do agente e de sua inserção na vida social.” (11, p. 68) 9 ORIGEM DOS PAPÉIS E O SURGIMENTO DO EU “O desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não emergem do eu; é o eu que, todavia, emerge dos papéis.” (18, p. 25) No processo de desenvolvimento do indivíduo, os papéis surgem no interior da matriz de identidade que, para Moreno, constitui “a base psicológica para todos os desempenhos de papéis” e lança os alicerces do primeiro processo de aprendizagem emocional da criança. A matriz de identidade é o universo indiferenciado onde o bebê vive antes e imediatamente após o nascimento. “Essa matriz é existencial e pode ser considerada o locus donde surgem, em fases graduais, o eu e suas ramificações, os papéis. Os papéis são os embriões, os precurssores do eu, e esforçam-se por se agrupar e unificar.” (18, p.25) Moreno distingue três tipos de papéis: os fisiológicos ou psicossomáticos, os psicológicos ou psicodramáticos e os sociais. Considera-os como “eus” parciais. Postula que entre o papel sexual, o do indivíduo que dorme, o do que sonha e do que come, desenvolvem-se “vínculos operacionais” que os conjugam e integram numa unidade, considerada uma espécie de eu fisiológico, um “eu parcial”, um conglomerado de papéis fisiológicos. Do mesmo modo, no decurso do desenvolvimento e história do indivíduo, os papéis psicodramáticos vão se agrupando, formando uma espécie de “eu psicodramático”. O mesmo ocorre, finalmente, com os papéis sociais, constituindo um “eu social”. O fisiológico, o psicodramático e o social são apenas “eus parciais”. Moreno afirma que o eu inteiro, realmente integrado, de anos posteriores, ainda está longe de ter nascido. É necessário que se 10 desenvolvam, gradualmente, vínculos operacionais e de contato entre os conglomerados de papéis sociais, psicológicos e fisiológicos para se identificar e experimentar, após sua unificação, aquilo que é chamado de “eu”. No processo de desenvolvimento infantil os papéis psicossomáticos auxiliam a criança a experimentar seu corpo (dimensão fisiológica/ corporal). Por outro lado, os psicodramáticos vão proporcionar as condições da criança experimentar e desenvolver sua psique (dimensão psicológica do eu) e os sociais, por sua vez, contribuem para produzir o que se denomina sociedade (dimensão da realidade social). Corpo, siquê e sociedade são as partes intermediárias e integrantes do eu total. Para Moreno, no momento do nascimento do bebê, a matriz de identidade é o seu universo inteiro, onde não existe diferenciação entre interno e externo, entre objetos e pessoas, psiquê e meio. A existência é una e total. São, portanto, os papéis e através deles que a criança vai percebendo e descobrindo a si própria e o mundo que a rodeia. O surgimento e desenvolvimento dos papéis é um processo que ocorre nas fases pré-verbais da existência do ser humano e não se inicia com a linguagem, pois é anterior à ela. (Nesse ponto Moreno diverge de G.H.Mead que enfatiza a linguagem como condição da comunicação entre os homens e do desenvolvimento da personalidade). Tal processo indicativo da gênese dos papéis ocorre em momentos e fases diversas da matriz de identidade. Ao nascer, a criança entra em seu primeiro universo que se divide em dois períodos: o primeiro é o da identidade total, onde a criança não diferencia pessoas de objetos, nem fantasia de realidade. Pessoas e objetos, incluindo a própria criança, são experimentados como um todo só, indivisível. Nessa fase a 11 criança necessita de um ego-auxiliar que faça para ela o que não consegue fazer por si própria. O segundo período é o da identidade total diferenciada ou da realidade total diferenciada, onde objetos, animais, pessoas e a própria criança passam a diferenciar-se. Surgem, porém, dois movimentos que se mesclam: ora a criança concentra a atenção no outro, esquecendo-se ou estranhando a si, ora o inverso, ignora o outro, concentrando-se e ficando atenta em si mesma. É a fase do espelho, onde não existe ainda uma diferença efetiva entre real e imaginado, entre animado e inanimado, entre aparência das coisas (imagens de espelho) e as coisas como realmente são. Na primeira fase da matriz de identidade (a da identidade total indiferenciada) os papéis que primeiro aparecem, ligados às necessidades e funções vitais, são os psicossomáticos, tais como o de ingeridor, defecador, dormidor, etc. O conceito de papel psicossomático, para Moreno, encontra-se vinculado ao de zona, foco, iniciador, aquecimento, conjunto de determinantes e/ou condições que ocorrem, por exemplo, no ato de mamar, na relação mãefilho. “Toda zona é o ponto focal de um dispositivo físico de arranque no processo de aquecimento preparatório de um estado espontâneo de realidade, sendo tal estado ou estados componentes na configuração de um papel.” (18, p.108) Os papéis psicossomáticos são os primeiros desempenhados pelo ser humano. Definem as marcas gravadas pela ordem vital e constituem os primeiros papéis a exigir do homem uma colocação frente à sua propria existência. Representam padrões de conduta ou funcionamento na satisfação das necessidades fisiológicas, incluindo aí o modus operandi, o clima afetivoemocional com que os egos-auxiliares interatuam com a criança no atendimento dessas suas necessidades. De certa forma, já existe relação nas 12 respostas que as necessidades ou funções fisiológicas recebem dos egosauxiliares. A partir, portanto, da forma como foram experienciados os papéis psicossomáticos, a criança continua o processo de assimilação de novos aglomerados ou “cachos” de papéis, pois a partir da formação dos primeiros ocorre como se cada novo papel surgido tendesse a se aglutinar com os outros por influência ou “transferência do fator E”. Moreno entende o papel como a primeira unidade ordenadora e estruturante do eu. Já na segunda fase da matriz (a da identidade total diferenciada), embora não tenha surgido ainda a diferenciação entre objetos de realidade e imaginários, a criança começa a “imitar” parte daquilo que observa. Moreno denomina tal processo como “adoção infantil de papéis” que consiste em duas funções: dar papéis (dador) e receber papéis (recebedor). Exemplifica com a situação de alimentar: a concessão de papéis é realizada pelo ego-auxiliar (mãe) e o recebimento de papéis é feito pelo filho ao receber o alimento. A mãe, ao dar o alimento, aquece-se em relação ao filho para execução de atos de certa coerência interna. E o bebê, ao receber o alimento, aquece-se também para a execução de uma cadeia de atos que igualmente desenvolvem certo grau de coerência interna. Como resultado de tal interação vai se estabelecendo, gradualmente, uma certa e recíproca expectativa de papéis nos parceiros do processo. Expectativa esta que cria as bases para todo o intercâmbio futuro de papéis entre a criança e os egos-auxiliares. O primeiro universo termina quando a experiência infantil de um mundo em que tudo é real começa se decompondo entre fantasia e realidade. Desenvolve-se a construção de imagens e começa a tomar forma a diferenciação entre coisas reais e coisas imaginadas. É o início do segundo universo infantil, marcado pelo surgimento do que Moreno denominou 13 “brecha entre fantasia e realidade”, (constituindo a terceira fase da matriz de identidade). Surgem, então, dois processos de aquecimento: um de atos de realidade e outro de atos de fantasia. Dessa divisão do universo em fenômenos reais e fictícios, surgem, gra-dualmente, m mundo social e um mundo de fantasia, separados do mundo psicossomático na matriz de identidade. Emergem, agora, formas de representar papéis que põem a criança em relação com pessoas, coisas e metas, no ambiente real, exteriores à ela (papéis sociais) e com pessoas, coisas e metas que ela imagina lhe serem exteriores (papéis psicodramáticos). A partir da ruptura entre realidade e fantasia surge a diferenciação dos papéis sociais e psicodramáticos, até então misturados. Os papéis de mãe, filho, professor, etc. são denominados sociais, separados dos psicodra-máticos que são personificações de coisas imaginadas, tanto reais como irreais. Num diagrama de papéis (l8, p.129) Moreno representa a divisão entre ambos como tênue, mas atribui maior espaço e predominância aos psicodramáticos. Com o desenvolvimento desses novos conjuntos de papéis (os sociais relacionados com o mundo real, os psicodramáticos com o mundo da fantasia), completa-se a terceira fase da matriz de identidade, denominada a da inversão de papéis onde, primeiro existe a tomada de papel do outro para, em seguida, ocorrer a inversão concomitante de papéis, o que acarreta uma transformação total na sociodinâmica do universo infantil. Os papéis psicodramáticos e sociais completam as condições para o surgimento do eu. Os três papéis definidos por Moreno, desdobrando-se em aglomerados ou “cachos” correspondem aos papéis precursores do ego, constituindo os “eus parciais” psicossomático, psicodramático e social. 14 Nos sociais opera, fundamentalmente, a função da realidade mediante interpolações de resistências, não produzidas pela criança, mas que lhe são impostas pelos outros, suas relações, coisas, atos e distâncias no espaço, no tempo. Dessa maneira, através dos papéis sociais, o indivíduo vai incorporando ou é inserido no mundo da realidade da cultura, dos padrões de conduta, valôres, deveres, etc. É o mundo instituído da conserva cultural. A dimensão psicodramática constitui a contrapartida da realidade, já que nos papéis psicodramáticos opera, fundamentalmente, a função da fantasia. Moreno entendia como papéis psicodramáticos tanto os desempenhados no cenário durante uma dramatização, quanto os oriundos da fantasia, da imaginação como produções imaginárias do indivíduo. “Os papéis psicodramáticos são personificações de coisas imaginadas, tanto reais quanto irreais”. Correspondem, portanto, à dimensão mais individual da vida psíquica, à “dimensão psicológica do eu”, livre das resistências extrapessoais, a não ser as criadas por ele mesmo. Com a brecha entre a fantasia e a realidade o indivíduo adquire a capacidade de iniciar processos de aquecimento diferenciados, tanto para o desempenho de um ou de outro tipo de papel. E o fator que vai garantir essa passagem do mundo da fantasia para o da realidade e vice-versa é a espontaneidade como princípio da adequação da ação do indivíduo a seus próprios papéis. A fase da inversão de papéis que ocorre no segundo universo infantil (precedida pela do duplo e a do espelho) representa a culminância do processo de desenvolvimento do eu e constitui a base psicológica para todos os processos de desempenho de papéis e para fenômenos como imitação, 15 identificação, projeção e transferência. Inverter e desempenhar o papel do outro, não surge de súbito nem ocorre nos primeiros meses de vida. Somente com a integração dos papéis precursores, em torno do terceiro ano, a criança dispõe de uma identidade que lhe permitirá relacionar-se com outras pessoas. Poderá, assim, inverter o quadro, assumindo o papel de quem, um dia, a alimentou, carregou no colo ou com ela passeou. Dessa maneira, a experiência da realidade irá permitir que, a partir da adoção de papéis, iniciada com os psicossomáticos, surjam várias possibilidades de interação dos sociais e psicodramáticos. Pela análise da gênese e desenvolvimento na história do indivíduo fica claro que “o papel é uma experiência interpessoal”, na qual vários atores encontramse implicados, constituindo-se, ao mesmo tempo, numa interação de estímulos e respostas. Interação que tanto sinalisa fatores previsíveis da resposta em função dos papéis sociais e da percepção dos mesmos, quanto elementos imprevisíveis resultantes da espontaneidade dos atores/participantes da interação. Necessário se faz, portanto, analisar um outro aspecto, o conceito de complementariedade, o contra-papel. O papel, originàriamente, nasceu da interação mãe-filho e baseado na complementariedade dos dois. Somente existe em função de seu complementar: o contra-papel. A interrelação de ambos, polarizada em papel e contra-papel, constitui os vínculos. A forma do indivíduo atuar e interagir é através dos papéis. Estes correspondem ao conjunto de respostas que ele dá a situações onde outros indivíduos interagem desempenhando papéis complementares. Esse aprendizado implica em conseguir viver os vários pólos de uma cadeia interativa, podendo jogar tanto o seu papel quanto o complementar. Papel e contra-papel são cons-titutivos um do outro. Não há pai 16 sem filho... O modo de ser de uma pes-soa decorre dos papéis que ela vai complementando ao longo de sua existência, com as respostas obtidas na interação social, por outros papéis que complementam os seus. Morfològicamente, a noção de papel aparece veiculando uma complementariedade: o contra-papel, existindo entre ambos uma relação estru-tural e de inter-determinação recíproca. O PAPEL NA PRÁTICA PSICODRAMÁTICA Os interesses de Moreno - terapeuta e pedagogo - estão voltados mais para os indivíduos e suas relações do que para a cultura, os valores e normas sociais. Visam, preferencialmente, a espontaneidade e criatividade para que estes possam agir e intervir no meio social. Cria e desenvolve técnicas e procedimentos operativos como recursos para que o indivíduo possa atingir tais objetivos. As primeiras técnicas históricas são representadas pelo teatro de improviso e o jornal dramatizado (jornal vivo), as técnicas relacionadas às fases do desenvolvimento: duplo, espelho e inversão de papéis, consideradas básicas por servirem de base e fundamento para as demais.* Como para Moreno o eu “é revelado pelo desempenho de papéis”, ele vai previligiar, sobremaneira a técnica do role-playing com todo seu desdobramento pedagógico (aprendizagem e treinamento de papéis) e terapêutico. A finalidade do role-playing como jogo psicodramático de papéis “é proporcionar ao ator uma visão do ponto de vista de outras pessoas, ao atuar no papel dos outros, seja em cena, seja na vida real”. ____________________________ * Ver livro de Monteiro, R et alii “Técnicas Fundamentais do Psicodrama”. São Paulo. Editora Brasiliense, 1993. 17 O desenvolvimento de um novo papel passa por três fases distintas: a) a tomada do papel (role-taking) ou adoção do papel já pronto e inteiramente estabelecido, podendo o indivíduo apenas imitá-lo a partir dos modelos disponíveis. Não permite variação e nenhum grau de liberdade. Cabe apenas aceitá-lo, desempenhando-o da maneira já convencionada. Para Moreno, constitui-se produto acabado, conserva de papéis; b) o jogo de papéis (roleplaying) representação ou desempenho que permite certo grau de liberdade. Consiste em jogar o papel explorando simbòlicamente suas possibilidades de representação. Para Moreno, o jogo de papéis é ato, brincadeira espontânea; e c) a criação de papéis (role creating) permite alto grau de liberdade, deixando margem à iniciativa pessoal, como no caso do ator espontâneo. Criar o papel é o desempenho de forma espontânea e criativa. E como todo papel necessita de ator, em cada fase do processo de seu desenvolvimento encontram-se os atores correspondentes: o “receptor”, o “intérprete” e o “criador de papéis”. Não há como pensar o Psicodrama, seus instrumentos, a estrutura de uma sessão, desvinculado de papéis e atores que os vivenciam. Toda dramatização, jogo ou qualquer técnica psicodramática somente pode acontecer quando papéis são colocados em ação e, através destes, personagens interatuam se vinculando como interlocutores. No Psicodrama, encontrando-se com seu eu em papéis imaginários ou correspondentes a funções assumidas dentro da realidade social, o indivíduo recupera a capacidade de realizar transformações autênticas em sua vida, nas suas relações e no meio onde vive. A realização da verdadeira ação espontânea equivale à criação e desempenho de papéis que correspondem a modelos próprios de existência. A dimensão do homem criativo/espontâneo se contrapõe contìnuamente com a conserva da estrutura social, com os papéis que o aprisionam a modelos e 18 padrões, normas, status, rótulos pré-determinados. O Psicodrama possibilita ao indivíduo utilizar seu potencial imaginativo/criativo para transformar a realidade, retomar papéis sociais instituídos, cristalizados e conservados, para recriá-los modificando-os e invertê-los, reinventando-os na vivência das relações em que se encontra envolvido e implicado. Uma vez que a proposta psicodramática é resgatar o homem espontâneo-criativo preso nas amarras da conserva cultural, pode-se dizer que a criatividade é aquilo que o indivíduo faz para recriar o seu eu com espontaneidade através do conjunto de papéis que desempenha no jogo da vida. O CONCEITO DE PAPEL E OS PSICODRAMATISTAS Inúmeros são os psicodramatistas que têm atendido e estão respondendo ao apelo de Moreno de não tomar sua obra como pronta e acabada. Publicações têm se sucedido numa demonstração viva do esforço estudioso de profissionais da área, principalmente no cenário psicodramático brasileiro. O conceito de papel tem recebido diversas contribuições de bom número desses autores. J.G.ROJAS BERMUDEZ (l966), em seu livro “Que es el Sicodrama?”, desenvolve uma teoria neurofisiológica de desenvolvimento, personalidade e psicopatologia - “a teoria do Núcleo do Eu”. Denomina Núcleo do Eu a estrutura resultante da confluência dos papéis psicossomáticos de ingeridor, urinador e defecador com as áreas mente, corpo e ambiente. Bermudez considera o ser humano uma condensação dos fatores ambiente, corpo e mente com destaque para os papéis psicossomáticos de ingeridor, defecador e urinador oriundos das funções fisiológicas correspondentes. A importância fundamental da estruturação dos papéis psicossomáticos é a progressiva delimitação de áreas que eles vão produzindo. Assim, o papel de 19 ingeridor delimita as áreas corpo-ambiente, o de defecador as de ambientemente e o de urinador mente-corpo. Evolutivamente, para Bermudez, o papel de ingeridor estrutura-se nos primeiros dias de vida, o de defecador entre o terceiro e oitavo mês e o de urinador entre o oitavo e vigésimo quarto. O “Núcleo do Eu” é a estrutura resultante da integração das três áreas com os três papéis psicossomáticos a partir da “estrutura genética programada interna” e da “externa”. Como um dos pioneiros na história do movimento psicodramático brasileiro, Bermudez tem feito escola e sua teoria do Núleo do Eu possui inúmeros seguidores. DALMIRO BUSTOS (l979), figura de destaque no cenário psicodramático, entre suas inumeráveis contribuições ao Psicodrama, apresenta os conceitos de suplementariedade, de papel complementar interno patológico, de dinâmica dos papéis (vínculos) e papel gerador de identidade. Para Bustos, os papéis estruturam o ego em suas trocas com o meio ambiente. A zona de interação entre o ego e o mundo exterior está estruturada em forma de papéis. Cada papel se relaciona com complementares de outras pessoas através de vínculos. Pela falta de diferenciação entre o eu e os outros, entre mundo interno e externo, o universo das relações fica povoado de confusões, sem limite entre o eu e não eu. Não há consciência dos vínculos. O eu e o outro significativo ficariam unidos em suplementariedade, onde um é parte do outro, sem possibilidade de vínculo. A fantasia da inexistência do vínculo caracteriza a suplementariedade onde cada um dos termos de uma relação se comporta como se fosse parte de um todo, sem solução de continuidade. Passa-se de um estar com o outro à fantasia de ser parte do outro. É o funcionamento unitário, base das relações simbióticas. 20 O mesmo autor explica, ainda, que todo conflito é incorporado através de um papel, geralmente o de filho com seu complementar: mãe ou pai. A situação de conflito faz com que este papel fique fixado em seu modus operandi ao papel complementar primário, denominado complementar interno patológico. Quanto mais forte o conflito, mais incapacitante o resultado e maior número de papéis são afetados. Isso porque, todo estímulo externo que desencadeie esta dinâmica originará condutas que correspondem à relação com este complementar interno patológico. Como, por exemplo, um filho hipersensível diante de um pai supercrítico poderá apresentar condutas afins em suas relações com outras figuras de autoridade. Isso ocorre, porque, para se despreender dos complementares primários, a criança necessita de apoio indispensavel para superar a angústia da separação e retomar a espontaneidade. Na falta desse apoio, ela tenderá reter o que é garantido ou conhecido, aferrando-se ao complementar primário, parcial ou totalmente, configurandose, assim, o papel complementar interno patológico. Este irá bloquear ou afetar em diferentes graus as relações com os outros, revelando-se parte constituitva permanente dos vínculos, provocando respostas ou atitudes de acordo com as experiências primitivas do indivíduo, e não com os estímulos externos e atuais. Diminui a capacidade de reações espontâneas, aumentando a ansiedade. Constitui a base das relações transferenciais. (5, p.18-23) (6, p.24). Segundo Bustos, os papéis se agrupam conforme sua dinâmica, configurando clusters ou agrupamentos. (7, p.76). O primeiro depende do complementar materno, responsável por funções de dependência e incorporação. O segundo do complementar paterno, gerando a matriz dos papéis ativos. Ambos possuem um primeiro complementar único: mãe e pai ou os adultos que desempenham esses papéis. Estes dois papéis primários são assimétricos por natureza. A simetria aparece mais tarde, quando a paridade se 21 apresenta na forma de irmãos ou companheiros de brincadeira. Esta interação diferenciada das outras duas determina o surgimento de um terceiro cluster, que representa as relações de paridade. Configura-se, assim, o esquema básico de papéis: passivo, ativo e interativo. O primeiro esquema, de funções passivas, incorporativas, dependentes, está vinculado ao papel gerador de mãe e a aspectos femininos. O segundo, gerador de capacidade ativa, penetrante, autônoma, liga-se ao papel de pai e a aspectos masculinos. E o terceiro vínculo gerador é o papel de irmão, substituível pelo de amigos, responsável pelas experiências de intercâmbio no mesmo nível, de competição, rivalidade, etc. Essas três dinâmicas constituem possibilidades alternativas de todos os papéis. Outro conceito desenvolvido por Bustos é o de papel gerador de identidade, (5, p,.22) (7, p.77-78), caracterizado como aquele que, dentro de um repertório de papéis de um adulto, predomina como um ponteiro positivo indicador do indivíduo. Afirma que todas as pessoas têm um papel central e predominante que impregna os demais, auxilia a cimentar a identidade, construindo auto-confiança, especialmente se tal papel fôr passível de mudanças em diferentes momentos de suas vidas. Constitui-se em eixo predominante que funciona como defensivo nas situações de conflito, bem como possui função ordenadora (ordenamento interno). ALFREDO NAFFAH NETO (1979), em seu livro “Psicodrama descolonizando o imaginário”, ao rever a teoria de papéis de Moreno, distingue papel dramático, psicodramático, imaginário e histórico. Para ele, o papel dramático é o vivido pelo ator do teatro. É pré-determinado pelo script, conservado, estratificado e perpetuador de um drama deslocado do ator, exterior a ele. Por outro lado, distingue papel psicodramático de papel imaginário. Para Moreno, os papéis psicodramáticos ora definem a emergência 22 do potencial criativo, ora designam o mundo da fantasia e da imaginação em oposição aos papéis sociais, que definem o mundo real e das relações sociais. Naffah, entretanto, caracterisa o papel psicodramático como o que, de imaginário concretiza-se espontaneamente em ação real, criado e desempenhado pelo ator/autor no cenário psicodramático, contendo em si elementos do papel dramático e do papel pessoal. (Termo utilizado por Rocheblave-Spenlé pelo qual o indivíduo determina ele mesmo sua posição pela relação com os outros e age conforme um modelo de conduta que constitui como norma das relações inter-subjetivas). (22, p.172). Afirma que o papel psicodramático “retoma e focaliza num mesmo eixo o ator e o drama como duas partes implicadas entre si, possibilitando a emergência da espontaneidade e criatividade e a retomada pelo ator de seu verdadeiro sentido: o de agente”. (19, p.180). O papel psicodramático designa a emergência de uma nova síntese entre imaginação e ação, entre espírito e corpo. Dissolve-se a clivagem entre papel social e a pessoa privada surgindo o sujeito como existência una. Na cisão entre pessoa privada e papel social, a imaginação permanece deslocada da ação real e fechada em si mesma. Nessa clivagem a pessoa fantasia-se e imagina-se em determinados tipos de relação (devaneio, sonho) que não são transformados em ação efetiva. Com a emergência do segundo universo infantil (quando o imaginário diferencia-se do real) o desempenho dos papéis sociais procura se sobrepor ao mundo imaginário, tendendo restringir e isolar a atividade imaginativa. Para Naffah, o papel psicodramático representa o momento em que a imaginação rompe seu espaço solipsista para encarnar-se e fazer-se verdade, representando uma nova síntese entre imaginação e ação. É o esforço de superação desta clivagem que define a espontaneidade criativa e a emergência dos papéis psicodramáticos. 23 Já os papéis imaginários são os resultantes da fantasia e imaginação do indivíduo (sonho, fantasia) mas não transformados em ação efetiva, não atuados e desempenhados. E para Naffah, o papel psicodramático ao ser vivido e desempenhado no palco resgata os papéis imaginários não-atuados, concretizando-os na ação espontânea do ator-autor-criador. Por outro lado, ao discutir o conceito de papel social chega ao caráter histórico do mesmo ou, conforme o denomina, a um tipo de papel: o histórico que, enquanto modelo, circunscreve e delimita os papéis sociais. Moreno não o descreve, segundo Naffah, por não considerar a função estruturante da história. Entretanto, concorda com Moreno quando este afirma que os “os papéis são os fatos mais significativos dentro de qualquer cultura específica”, mas desde que não se esqueça que estas formas relacionais estão circunscritas a um processo histórico e à uma estrutura social, política e econômica, de que são manifestações necessárias, consolidação do instiuído. Conclui que os papéis sociais, sua estrutura e dinâmica próprias, nada mais fazem que repetir e concretizar num âmbito micro-sociológico, a estrutura de contradição e oposição básicas que se realiza entre papéis históricos, constituida pela relação dominador-dominado, uma vez que o conceito de papel social pressupõe o de classe social e vice-versa. Em “Psicodrama da Loucura”, JOSÉ FONSECA FILHO (1980) apresenta um esquema de desenvolvimento humano, expõe uma visão da loucura e saúde, esboçando uma teoria da personalidade baseada nas fases da matriz de identidade. Fiel ao postulado moreniano de que o eu se forma a partir do desenvolvimento de papéis, enfoca sua análise na capacidade do indivíduo tomar, jogar e invertê-los. “Papel é uma experiência interpessoal e necessita de 24 dois ou mais indivíduos para ser posta em ação. Todo papel é uma resposta a outro (de outra pessoa). Não existe papel sem contra-papel”. (8, p.20) Fonseca propõe, pela técnica de inversão de papéis, uma espécie de medida da capacidade de “inverter ou experienciar o outro”, avaliando-se, assim, o grau de saúde ou doença que atinge as pessoas. Um desempenho e inversão de papéis perfeitos significa ausência total de “elementos psicóticos”. Afirma que a técnica de inversão de papéis “pode realmente, guardadas as devidas ressalvas, constituir-se um dispositivo para “medir” o grau de “saúdedoença” de uma pessoa”. (8, p.102). A partir de sua formação psiquiátrica e toda sua experiência clínica, Fonseca apresenta um enfoque de papel bastante operativo, oferecendo uma instrumentalização prática para o trabalho do psicoterapeuta. Com o propósito de inovação, procurando novos modelos de atuação terapêutica, Fonseca tem desenvolvido um método de psicoterapia individual, a “Psicoterapia da Relação” (10), técnica psicoterápica derivada do psicodrama, fundamentada principalmente no jogo de papéis (além de outros recursos técnicos) entre terapeuta e paciente, onde o primeiro toma e joga papéis dos personagens do mundo interno e relacional do paciente, interagindo e sendo interlocutor deste. O terapeuta da relação assume o papel internalizado do paciente, prèviamente desempenhado por ele ou diretamente, de acordo com a interação. Fonseca considera que o jogo e inversão de papéis facilitam a comunicação co-inconsciente e é revigorante para os participantes. Jogar o papel de outra pessoa, abrindo mão, parcialmente, da identidade para receber a do outro, retornando em seguida à sua própria, produz sutís alterações de estados de consciência e liberação de energia, provocando bem-estar e euforia. 25 É importante assinalar ainda, dentro das técnicas da Psicoterapia da Relação, outra criação da prática clínica de Fonseca, o “Psicodrama Interno” caracterizado como um “jogo interno” de papéis. (9). ANIBAL MEZHER (1980) (14) questiona a validade do conceito de papel psicossomático a partir do próprio sistema teórico de Moreno. Assinalando e sintetizando elementos das conceituações de diferentes autores, define papel como “um específico conjunto de atos, segundo o modelo prescrito por uma determinada sociedade, na interação entre seres humanos”. Destaca três elementos básicos: interação entre humanos, conjunto de atos e subordinação a modelo prescrito pela sociedade. Baseia sua análise na noção de vínculo humano, o ser-em-relação e da complementariedade vista como interação entre pessoas através de papéis e contra-papéis correspondentes. Figurino este no qual não cabem, segundo Mezher, os “papéis psicossomáticos” pela inexistência de contra-papéis. Questiona a propriedade da noção de papel psicossomático de Moreno a partir dos conceitos de zona corporal e papéis familiares. Propõe a substituição parcial do conceito de papel psicossomático pelo de “zona corporal em ação”. E, para não entrar em choque com o postulado moreniano de que os papéis são os aspectos tangíveis do eu, que se desenvolve a partir deles, completa: “as zonas corpóreas como áreas corporais funcionando em relação ao mundo, num crescente processo vivencial de um corpo em relação ao mundo e de suas partes entre si, processo concomitante e integrado com sua experiência social, são fatores na consolidação da identidade corporal, substrato suficiente para as fundações do “ego”. (14, p.223) Ressalta, assim, que os papéis psicossomáticos podem ser vistos como zonas corporais em ação, incluidas na relação mãe-filho e em outros papéis familiares, sem prejuízo da identidade corporal da criança. 26 MOYSÉS AGUIAR (l990) (1), a partir do conceito de papel, apresenta um estudo da sociometria dos vínculos. Como os vínculos acontecem através de papéis, toda a complexidade destes aplica-se também aos vínculos. Em sua análise diferencia três tipos de vinculos: a) vínculos atuais são os que se verificam nas relações concretas e onde os parceiros das mesmas caracterizamse pela sua concretude (em contraposição à fantasia). Nesse sentido, os papéis são definidos como “sistemas pluri-unívocos de expectativas... em função de um objetivo comum.” (1, p.51). b) Vínculos residuais são aqueles que no passado foram vínculos atuais e que se encontram desativados. São decorrentes de mortes, ruptura de relações ou afastamento entre parceiros. Esses vínculos têm uma história de realidade, mas sua existência atual está no plano da fantasia, como memória. c) Vinculos virtuais são os do âmbito da fantasia e não são encontrados nas relações concretas, tais como os estabelecidos com objetos/personagens imaginários ou míticos, ou muito distantes da realidade concreta do indivíduo, embora reais. A configuração sociométrica dos vínculos virtuais é mais estável que a dos residuais (e estes, muito mais que os atuais) já que não estão sujeitos à confrontação com a realidade, quer presente ou passada. Moysés Aguiar acredita que a diferenciação desses três tipos de vínculos poderá fertilizar a prática e teoria psicodramática, se utilizada como instrumento para análise dos papéis. Por outro lado, examinando a dinâmica dos papéis e a questão do contrapapel, não a entende como uma estrutura bi-polar simples. Para ele, a complexidade das relações indica ocorrência frequente de complementariedades múltiplas, como triangulação e circularização de papéis. Nesse sentido, destaca duas vertentes que tornam o desempenho de papéis mais e mais complexo: a primeira é a composição do papel, cujas inúmeras 27 funções podem ser consideradas, de per si, como “sub-papéis”. Exemplifica com o papel de mãe que inclui missões tão díspares como amamentar, limpar o bum-bum do bebê, aconselhar filha adolescente, etc. Tarefas estas que envolvem projetos distintos e operações peculiares, especialmente quanto à complementariedade que implicam. Surgem os sub-papéis de amamentadoramamentado, limpador-limpado, conselheiro-aconselhado, etc., compondo o conjunto maior que é o papel mãe-filho. A segunda vertente é a que se refere a papéis paralelos. Estes surgem quando, numa determinada relação, a consecução do projeto comum permite ou mesmo exige o uso de modelos relacionais próprios de outras relações. Apresenta, como exemplo, a complementariedade professor-aluno incluindo práticas “paternais” que caracterizam outro papel do mesmo cacho, a relação pai-filho. Ou, ainda, o papel homem-mulher revelando conteúdo “paternal”, próprio do papel paifilho. Esclarece que os comportamentos que ocorrem entre os parceiros, cuja natureza tem a ver mais com o segundo papel do que com o primeiro, constituem o papel paralelo. Funciona como “condimentos” do papel principal. SÉRGIO PERAZZO (1994), em “Ainda e Sempre Psicodrama”, discute a conceituação de papel imaginário. Levanta a questão da existência de “papel imaginário transferencial” e “papel imaginário não-transferencial”, diferenciando papéis imaginários (Naffah) e papéis de fantasia. Para ele, o caráter de não-atuação do papel imaginário abre uma brecha para explicar a facilidade com que muitos papéis, nunca jogados anteriormente, podem ser desempenhados através de jogos dramáticos no cenário do psicodrama. Denomina-os de papéis de fantasia, que são facilmente atuados a partir de um pequeno esforço espontâneo e criativo. Isso porque, segundo Perazzo, o papel psicodramático tendo seu locus exclusivo no cenário psicodramático, possui 28 uma delimitação clara de contexto, deixando um espaço vago de definição em que transita a imaginação criativa. Nesse espaço é que a imaginação pode ser atuada com mais facilidade, sem intermediação de papéis psicodramáticos. Os papéis de fantasia, portanto, poderiam ser jogados fora do cenário do psicodrama, onde cumpririam uma “função psicodramática” espontânea e não intermediada pela técnica. PALAVRAS FINAIS O presente texto não pretendeu esgotar o tema papel, nem apresentar uma visão crítica de diferentes autores. Procurou, apenas, aglutinar e condensar, nesse espaço priviligiado da Revista Brasileira de Psicodrama, as conceituações de Moreno e contribuições de outros autores sobre esse inesgotável filão de possibilidades para a teoria e prática do psicodrama: o conceito de papel. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 - AGUIAR, M. O Teatro Terapêutico. Campinas. Papirus Editora, l990. 2 - BERMUDEZ, J. G. R. Que es el Sicodrama? (l966). 4a. ed. Buenos Editorial Celcius, 1984. 29 Aires. 3 - BLOCH, O.; WATBURG, W.V. Dictionaire Etymologique de la Langue Française. Paris. PUF, 1932. 4 - BUARQUE de Holanda, A. Novo Dicionário da Lingua Portuguêsa. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 1975. 5 - BUSTOS, D. M. O Teste Sociométrico. São Paulo. Editora Brasiliense, 1979. 6- ___________ O Psicodrama. São Paulo. Summus Editorial, 1982. 7- ___________ Perigo ... Amor à Vista! São Paulo. Editora Aleph,1990. 8 - FONSECA Fo., J. S. Psicodrama da Loucura. São Paulo. 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O Psicodrama - Descolonizando o Imaginário. São Paulo. Editora Brasiliense, 1979. 20-PERAZZO,S. Descansem em Paz os Mortos dentro de mim. Rio de Janeiro. Francisco Alves Editora, 1986. 21- __________ Ainda e Sempre PSICODRAMA. São Paulo . Editora Ágora, l994. 22- ROCHEBLAVE-SPENLÉ, A.M. La Notion de Role en Psychologie Sociale. (1962). Paris. PUF, 1969. ...................................................////////////////............................................. Endereço CARLOS JOSÉ RUBINI R. Leite Leal, n. 135, Bl.01/ap. 505 Laranjeiras - Rio de Janeiro - RJ. CEP 22240-100 Fone: (021) 2205-4000 (res.) (021) 2539-5748 (cons.) e-mail: [email protected] 31