conceito_papel

Propaganda
O CONCEITO DE PAPEL NO PSICODRAMA (*)
Carlos Rubini (**)
SINOPSE
O presente texto apresenta diferentes conceitos e significados do termo
papel encontrados na obra de Moreno e de outros psicodramatistas. Destaca a
origem dos papéis psicossomáticos, sociais e psicodramáticos na matriz de
identidade, ressaltando a importância dos mesmos para o surgimento do eu e
constituição do indivíduo no contexto da teoria e prática psicodramática.
UNITERMOS
Papel. Papel Social. Papel psicossomático. Papel psicodramático. Papel
imaginário.
ABSTRACT
This paper presents different conceptions and meanings of the term role
found in Moreno’s work and other Psychodramatists’. It emphazises the origin
of the psychosomatic, social and psychodramatic roles. It also focuses on the
importance of these roles to the emerge of the I and to the construction of the
individual within the psychodramatic context.
UNITERMS
Role. Social role. Psychosomatic role. Psychodramatic role. Imaginary role.
______________________
(*) Texto publicado na Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 3; fascículo I – ano 1995; (pg. 45-62)
(**) Mestre em Psicologia. Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense.
Professor-supervisor pela FEBRAP.
1
INTRODUÇÃO
A noção de papel não está ligada a um autor em particular, nem a um
determinado ramo das ciências apenas. No âmbito das Ciências Sociais
diversos autores trataram, não só do conceito de papel, como também de sua
função e importância dentro do sistema social. Destacaram seu caráter
psicossocial que influencia a formação da individualidade e coletividade, pelos
padrões de conduta individual e coletiva representados pelos papéis.
Não há dúvida que este conceito oferece inúmeras possibilidades de
investigação sobre a relação indivíduo e sociedade, junto às disciplinas que
tratam dos fenômenos pessoais e coletivos, tais como a psicologia, a
sociologia, a antropologia e a filosofia. Para muitos autores as teorias de papel
são consideradas o ponto de ligação entre elas.
Assim, destaca-se aqui, a excelente obra de Rocheblave-Spenlé (1962) (22)
que, ao apresentar um estudo histórico-crítico da noção de papel, analisa as
contribuicões dos precurssores e primeiros teóricos do papel, com destaque
para as contribuições de G. H. Mead, R. Linton, T. Parsons, T. M. Newcomb e
J. L. Moreno, para citar apenas os mais conhecidos.
Por outro lado, Ray Holland (1977) em seu livro "Eu e o Contexto Social"
analisa as contribuições de autores que buscaram a interrelação do papel e da
personalidade, destacando a "teoria do construto pessoal e papel" (G. Kelly, D.
Bannister e F. Fransella), a "teoria estrutural do papel" (Park e Burgess, e
Merton) e a "teoria do papel eu/outro" (Coser e Rosenberg).
2
Considerando-se diversos enfoques das Ciências Sociais e de autores que
trataram do tema em questão, verifica-se que o papel social pode ser
identificado não apenas com as normas, mas igualmente com o status, em seu
aspecto
dinâmico,
definindo-se
como
um
padrão
determinado
de
comportamento que reflete e caracterisa uma posição especial do indivíduo
dentro do grupo social a que pertence. A organização articulada de papéis
confere unidade ao grupo, faculta ao indivíduo atingir seus objetivos como
pessoa e como integrante de uma coletividade. O processo de assunção ou
incorporação de um papel é extremamente complexo. Caracteriza a
socialização do indivíduo através do esforço de ajustamento da personalidade
ao duplo estímulo de expectativas de ações, induzidas por outrem ou
reelaboradas por ele próprio.
A finalidade do presente texto, no entanto, não é a de abordar todas as
contribuições a respeito, restringindo-se ao conceito de papel no Psicodrama,
destacando a contribuição de Moreno e de autores ligados ao movimento
psicodramático brasileiro.
SENTIDOS DO TERMO PAPEL E A ORIGEM NO TEATRO
Etimològicamente, diversos termos dão origem à palavra papel com
diferentes sentidos. O termo vem do latim medieval rotulus (derivado de rota
= roda) que pode significar tanto "uma folha enrolada contendo um escrito",
bem como "aquilo que deve recitar um ator numa peça de teatro". No sec. XI
o termo era utilizado também no sentido de "função social", "profissão". O
termo francês “rôle", o inglês "role", o castelhano "rol" e o italiano “ruolo”
igualmente têm sua origem na mesma etimologia latina "rotulus". (3)
3
A palavra papel na lingua portuguêsa, etimològicamente, vem do grego
pápyros, do latim papiro. Papiro designava um arbusto do Egito de cuja
entrecasca se fazia o papel, obtendo-se o material para a escrita .
O significado de rôle é o de uma folha contendo um escrito e o de papel o
material utilizado na confecção da folha. Da mesma forma, a palavra
portuguêsa papel significa, de modo geral, o material utilizado para a escrita.
Constata-se que os significados originais de rotulus foram incorporados na
lingua portuguêsa pela palavra papel. Isso porque, além de indicar o material
utilizado na escrita (papiro), papel refere-se também à "personagem
representada por um ator", ou à "parte que cada ator desempenha no teatro, no
cinema, na televisão, etc." e, ainda, à "atribuição de natureza moral, jurídica,
técnica, etc." (4), isto é, desempenho, função, como papel de pai, juiz, médico,
por exemplo.
Em relação ao teatro, todo papel necessita de um ator e todo ator tem um
papel a desempenhar. Sabe-se que o teatro pode sobreviver sem um texto
escrito, prescindir da cenografia (representação ao ar livre), e até dispensar a
palavra (mímica). Pode existir (como durante séculos) sem o diretor. Mas o
teatro jamais viverá sem o ator.
Na Grécia Antiga, Téspis (560 a. C.) teria escrito e representado o primeiro
papel na história do teatro. Além do coro e corifeu (já existentes nas festas
religiosas - festas dionisíacas-), Téspis inova representando vários personagens
através de mudanças de máscaras e roupas. As representações de tragédias
incluiam o coro, corifeu e ator (este, geralmente, o próprio poeta). Com
Ésquilo surge o segundo ator e Sófocles introduz o terceiro. Na tragédia grega
nunca havia mais de três personagens em cena e os atores eram o protagonista,
o antagonista e o tritagonista. Ao primeiro cabiam os papéis principais e os
demais divididos entre os atores secundários.
4
Com o tempo, ainda na Grécia e Roma Antiga, as diversas partes da
representação teatral eram escritas em "rolos" e lidas pelos pontos aos atores
que procuravam decorar seus respectivos "papéis". Nos séculos XVI e XVII,
com o teatro moderno, as partes dos personagens teatrais eram lidas em "rolos"
ou fascículos de papel. Passou-se, assim, a designar cada parte cênica como
papel ou "role".
O CONCEITO DE PAPEL PARA MORENO
A fonte inspiradora da teoria dos papéis de Moreno foi o teatro. Por sua
origem, segundo ele, papel não é um conceito sociológico ou psiquiátrico. Veio
da linguagem do teatro e através dele entrou para o vocabulário científico. E
como o teatro representou, no início, a matriz e o locus do projeto moreniano,
nada mais lógico, portanto, que o conceito de papel tenha se constituido numa
das pedras angulares da teoria moreniana e da prática sócio-psicodramática.
“ É esquecido a miúde, que a moderna teoria dos papéis teve sua origem no teatro,do qual tomou suas perspectivas. Tem uma longa história e tradição no teatro europeu, a partir do qual desenvolvi, gradualmente, a direção terapêutica e social de nosso tempo. Introduzía nos Estados Unidos em meados da década de 20. Dos papéis e
contra-papéis, situações de papéis e conservas de papel, desenvolveram-se naturalmente suas extensões modernas:o executante de papel, o desempenho de papéis,a expectativa de papel, a passagem ao
ato (acting out) e, finalmente, o psicodrama e o sociodrama.”(18,p.28)
A tarefa do Teatro Veienense da Espontaneidade, entre 1921 e 1923,
foi a de produzir uma revolução no teatro, procurando modificar por completo
os eventos teatrais. Das Stegreiftheater representou a fusão ator-autor e
5
expectador no ato da criação e representação do drama. Rompe a oposição
entre ator e autor, entre pessoa e drama, criando a vida sem necessidade de
textos. Elimina a hierarquia entre os atores (o protagonista não é fixo como na
tragédia grega).
Desaparece a separação entre platéia e atores, pois cada
membro da platéia pode tornar-se ator e vice-versa. Platéia e atores são, assim,
os únicos criadores. Tudo é improvisado: a peça, a ação, o motivo, as palavras,
o encontro e a resolução dos conflitos. O palco também desaparece, surgindo
em seu lugar o palco-espaço, o espaço aberto, o espaço da vida, a vida mesma.
Surge, assim, um novo tipo de teatro. Não um teatro repetitivo, de peça
escrita pelo dramaturgo, decorada, ensaiada e encenada sucessivamente. O
Teatro da Espontaneidade é sempre uma peça única, que flui e se consuma no
aqui-agora do ato vivencial dos atores-criadores. Um teatro vivo, teatro vida.
"Minha visão do teatro foi moldada segundo a idéia do self espontaneamente
criativo", diz Moreno. (l5, p.17)
Através da nova forma de seu teatro, Moreno buscava tanto o
desenvolvimento pessoal quanto social do indivíduo. Para alcançar esses
objetivos, acreditava que o homem podia se transformar através da ação,
experimentação e vivências, refletindo e modificando sua conduta.
A teoria psicodramática dos papéis leva o conceito de papel a todas as
dimensões da existência humana, desde o nascimento e ao longo de toda a vida
do indivíduo, enquanto experiência pessoal e modalidade de participação
social. Situa-se no conjunto da teoria moreniana que sempre se refere ao
homem em situação, imerso no social, buscando transformá-lo através da ação.
O conceito de papel, que pressupõe interrelação e ação, é central nesse
conjunto articulado de teorias, imprescindível, sobretudo, para a compreensão
da teoria e prática do psicodrama.
6
O homem é um ser que, a partir do impulso da espontaneidade, poderá
desenvolver a "centelha divina criadora" que traz em si mesmo. "O homem é
um gênio em potencial, que lutando contra as conservas culturais, através da
espontaneidade criadora, chegará a assemelhar-se a Deus e encontrar sua
liberdade". E se o homem não desenvolver essa espontaneidade, ele adoece,
segundo Moreno.
Tal concepção entende que o existir humano é um viver em coletividade. O
indivíduo se realiza pelo desempenho de papéis na sociedade. "Este enfoque se
funda no princípio de que o homem tem um papel a desempenhar, cada
indivíduo se caracteriza por uma variedade de papéis que regem seu
comportamento e que cada cultura se caracteriza por uma série de papéis que,
com maior ou menor êxito, impõe a todos os membros da sociedade." (l6,
p.81)
Encontra-se, assim, na concepção moreniana de homem como gênio que se
desenvolve a partir da espontaneidade, a dimensão do indivíduo, e na
concepção de homem como membro de um grupo inserido numa coletividade,
a sua dimensão social. O ponto de união entre ambas, para Moreno, encontrase no conceito de papel: "Todo papel é uma fusão de elementos particulares e
coletivos, é composto de duas partes: seus denominadores coletivos e seus
diferenciais individuais." (l6, p.68)
Dessa maneira, como síntese unificadora, o papel - conceito social - conecta
com a espontaneidade, de conteúdo individual. Papel e espontaneidade
caminharam juntos desde os primeiros trabalhos de Moreno com seu teatro de
improviso: "O desempenho de papéis foi a técnica fundamental do teatro
espontâneo vienense. Dada a predominância da espontaneidade e da
criatividade no desempenho de papéis, este foi chamado "desempenho
espontâneo-criativo””. (17, p.157) Essas duas dimensões, a individual e a
7
coletiva são encontradas nos diferentes sentidos e concepções de papel
apresentadas por Moreno ao longo de sua obra:
-O papel pode ser definido como a unidade de experiência sin tética em
que se fundiram elementos privados, sociais e culturais. (18, p. 238)
-O papel é a forma de funcionamento que o indivíduo assume no
momento específico em que reage à uma situação específica, na qual
outras
pessoas
ou
objetos
estão
envolvidos.
(18,
p.
27)
-O papel é uma cristalização final de todas as situações em uma zona
especial de operações pelas quais o indivíduo passou ( p. ex. o
comedor, o pai, o piloto de avião). (18, p. 206)
-
O papel pode ser definido como uma pessoa imaginária criado por um
autor dramático, p. ex. um Hamlet, um Otelo ou um Fausto; esse papel
imaginário pode nunca ter existido, como, p. ex . um Pinóquio ou um
Bambi. (18, p. 206)
-O papel é a unidade da cultura: ego e papel estão em contínua
interação.(18,p.29)
-
O papel pode ser um modelo para a existência,como Fausto,ou uma
imitação dela como Otelo... O papel também pode ser defi-nido como
uma parte ou um caráter assumido por um ator... O papel ainda pode
ser definido como uma personagem ou função assumidana realidade
social, p. ex. policial, médico, juiz... Finalmen-te o papel pode ser
definido como as formas reais e tangíveis que o eu adota. (18, p. 206)
Nessas diferentes definições e concepções pode-se notar que os papéis
possuem algo comum: são fenômenos observáveis, aparecem nas ações, são
atuados, representam aspectos tangíveis do eu.
8
Moreno ora define o papel como função prescrita e assumida pelo
indivíduo, ora como a “forma real e tangível que o eu assume” passando do
plano dramático ao social. Para ele, o papel ora se refere à uma pessoa
imaginária, ora a um modelo para a existência ou a um personagem da
realidade social, uma imitação da vida ou uma forma tangível do eu. E, como
observa Rocheblave-Spenlé, destaca-se o sentido de representação teatral e
ação, funções sociais desempenhadas pelos indivíduos na sociedade,
representação da individualidade das pessoas, modelo de experiência,
“parte” de uma pessoa real representada por um ator, caráter ou função
assumidos numa realidade social e cristalização final do modo de realizar
ações especiais, como pai, mãe, etc.
A mesma autora observa, por outro lado, que enquanto a maioria dos
autores que trataram do tema (tais como G. H Mead, R. Linton, Parsons...)
enfocam os papéis como facilitadores das relações sociais pela sua
previsibilidade e por representarem padrões de conduta aceitos, Moreno
ilumina um aspecto novo e original do papel: a possibilidade criativa do
homem que o assemelha a Deus cujas ações são criadoras e espontâneas.
Englobando sintèticamente os diferentes sentidos do termo papel propostos
por Moreno, Gonçalves, C., Wolf, J. R, e Almeida, W.C., definem papel como
“a unidade de condutas interrelacionais observáveis, resultante de elementos
constitutivos da singularidade do agente e de sua inserção na vida social.”
(11, p. 68)
9
ORIGEM DOS PAPÉIS E O SURGIMENTO DO EU
“O desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os
papéis não emergem do eu; é o eu que, todavia, emerge dos
papéis.” (18, p. 25)
No processo de desenvolvimento do indivíduo, os papéis surgem no
interior da matriz de identidade que, para Moreno, constitui “a base psicológica
para todos os desempenhos de papéis” e lança os alicerces do primeiro
processo de aprendizagem emocional da criança. A matriz de identidade é o
universo indiferenciado onde o bebê vive antes e imediatamente após o
nascimento. “Essa matriz é existencial e pode ser considerada o locus donde
surgem, em fases graduais, o eu e suas ramificações, os papéis. Os papéis são
os embriões, os precurssores do eu, e esforçam-se por se agrupar e unificar.”
(18, p.25)
Moreno distingue três tipos de papéis: os fisiológicos ou psicossomáticos,
os psicológicos ou psicodramáticos e os sociais. Considera-os como “eus”
parciais. Postula que entre o papel sexual, o do indivíduo que dorme, o do que
sonha e do que come, desenvolvem-se “vínculos operacionais” que os
conjugam e integram numa unidade, considerada uma espécie de eu
fisiológico, um “eu parcial”, um conglomerado de papéis fisiológicos.
Do mesmo modo, no decurso do desenvolvimento e história do indivíduo,
os papéis psicodramáticos vão se agrupando, formando uma espécie de “eu
psicodramático”. O mesmo ocorre, finalmente, com os papéis sociais,
constituindo um “eu social”. O fisiológico, o psicodramático e o social são
apenas “eus parciais”. Moreno afirma que o eu inteiro, realmente integrado, de
anos posteriores, ainda está longe de ter nascido. É necessário que se
10
desenvolvam, gradualmente, vínculos operacionais e de contato entre os
conglomerados de papéis sociais, psicológicos e fisiológicos para se identificar
e experimentar, após sua unificação, aquilo que é chamado de “eu”.
No processo de desenvolvimento infantil os papéis psicossomáticos
auxiliam a criança a experimentar seu corpo (dimensão fisiológica/ corporal).
Por outro lado, os psicodramáticos vão proporcionar as condições da criança
experimentar e desenvolver sua psique (dimensão psicológica do eu) e os
sociais, por sua vez, contribuem para produzir o que se denomina sociedade
(dimensão da realidade social). Corpo, siquê e sociedade são as partes
intermediárias e integrantes do eu total.
Para Moreno, no momento do nascimento do bebê, a matriz de identidade é
o seu universo inteiro, onde não existe diferenciação entre interno e externo,
entre objetos e pessoas, psiquê e meio. A existência é una e total. São,
portanto, os papéis e através deles que a criança vai percebendo e descobrindo
a si própria e o mundo que a rodeia.
O surgimento e desenvolvimento dos papéis é um processo que ocorre nas
fases pré-verbais da existência do ser humano e não se inicia com a linguagem,
pois é anterior à ela. (Nesse ponto Moreno diverge de G.H.Mead que enfatiza a
linguagem como condição da comunicação entre os homens e do
desenvolvimento da personalidade). Tal processo indicativo da gênese dos
papéis ocorre em momentos e fases diversas da matriz de identidade. Ao
nascer, a criança entra em seu primeiro universo que se divide em dois
períodos: o primeiro é o da identidade total, onde a criança não diferencia
pessoas de objetos, nem fantasia de realidade. Pessoas e objetos, incluindo a
própria criança, são experimentados como um todo só, indivisível. Nessa fase a
11
criança necessita de um ego-auxiliar que faça para ela o que não consegue
fazer por si própria. O segundo período é o da identidade total diferenciada
ou da realidade total diferenciada, onde objetos, animais, pessoas e a própria
criança passam a diferenciar-se. Surgem, porém, dois movimentos que se
mesclam: ora a criança concentra a atenção no outro, esquecendo-se ou
estranhando a si, ora o inverso, ignora o outro, concentrando-se e ficando
atenta em si mesma. É a fase do espelho, onde não existe ainda uma diferença
efetiva entre real e imaginado, entre animado e inanimado, entre aparência das
coisas (imagens de espelho) e as coisas como realmente são.
Na primeira fase da matriz de identidade (a da identidade total
indiferenciada) os papéis que primeiro aparecem, ligados às necessidades e
funções vitais, são os psicossomáticos, tais como o de ingeridor, defecador,
dormidor, etc. O conceito de papel psicossomático, para Moreno, encontra-se
vinculado ao de zona, foco, iniciador, aquecimento, conjunto de determinantes
e/ou condições que ocorrem, por exemplo, no ato de mamar, na relação mãefilho. “Toda zona é o ponto focal de um dispositivo físico de arranque no
processo de aquecimento preparatório de um estado espontâneo de realidade,
sendo tal estado ou estados componentes na configuração de um papel.” (18,
p.108)
Os papéis psicossomáticos são os primeiros desempenhados pelo ser
humano. Definem as marcas gravadas pela ordem vital e constituem os
primeiros papéis a exigir do homem uma colocação frente à sua propria
existência. Representam padrões de conduta ou funcionamento na satisfação
das necessidades fisiológicas, incluindo aí o modus operandi, o clima afetivoemocional com que os egos-auxiliares interatuam com a criança no
atendimento dessas suas necessidades. De certa forma, já existe relação nas
12
respostas que as necessidades ou funções fisiológicas recebem dos egosauxiliares. A partir, portanto, da forma como foram experienciados os papéis
psicossomáticos, a criança continua o processo de assimilação de novos
aglomerados ou “cachos” de papéis, pois a partir da formação dos primeiros
ocorre como se cada novo papel surgido tendesse a se aglutinar com os outros
por influência ou “transferência do fator E”. Moreno entende o papel como a
primeira unidade ordenadora e estruturante do eu.
Já na segunda fase da matriz (a da identidade total diferenciada), embora
não tenha surgido ainda a diferenciação entre objetos de realidade e
imaginários, a criança começa a “imitar” parte daquilo que observa. Moreno
denomina tal processo como “adoção infantil de papéis” que consiste em duas
funções: dar papéis (dador) e receber papéis (recebedor). Exemplifica com a
situação de alimentar: a concessão de papéis é realizada pelo ego-auxiliar
(mãe) e o recebimento de papéis é feito pelo filho ao receber o alimento. A
mãe, ao dar o alimento, aquece-se em relação ao filho para execução de atos de
certa coerência interna. E o bebê, ao receber o alimento, aquece-se também
para a execução de uma cadeia de atos que igualmente desenvolvem certo grau
de coerência interna. Como resultado de tal interação vai se estabelecendo,
gradualmente, uma certa e recíproca expectativa de papéis
nos parceiros do
processo. Expectativa esta que cria as bases para todo o intercâmbio futuro de
papéis entre a criança e os egos-auxiliares.
O primeiro universo termina quando a experiência infantil de um mundo
em que tudo é real começa se decompondo entre fantasia e realidade.
Desenvolve-se a construção de imagens e começa a tomar forma a
diferenciação entre coisas reais e coisas imaginadas. É o início do segundo
universo infantil, marcado pelo surgimento do que Moreno denominou
13
“brecha entre fantasia e realidade”, (constituindo a terceira fase da matriz de
identidade). Surgem, então, dois processos de aquecimento: um de atos de
realidade e outro de atos de fantasia. Dessa divisão do universo em fenômenos
reais e fictícios, surgem, gra-dualmente, m mundo social e um mundo de
fantasia, separados do mundo psicossomático na matriz de identidade.
Emergem, agora, formas de representar papéis que põem a criança em relação
com pessoas, coisas e metas, no ambiente real, exteriores à ela (papéis sociais)
e com pessoas, coisas e metas que ela imagina lhe serem exteriores (papéis
psicodramáticos).
A partir da ruptura entre realidade e fantasia surge a diferenciação dos
papéis sociais e psicodramáticos, até então misturados. Os papéis de mãe,
filho, professor, etc. são denominados sociais, separados dos psicodra-máticos
que são personificações de coisas imaginadas, tanto reais como irreais. Num
diagrama de papéis (l8, p.129) Moreno representa a divisão entre ambos como
tênue, mas atribui maior espaço e predominância aos psicodramáticos.
Com o desenvolvimento desses novos conjuntos de papéis (os sociais
relacionados com o mundo real, os psicodramáticos com o mundo da fantasia),
completa-se a terceira fase da matriz de identidade, denominada a da inversão
de papéis onde, primeiro existe a tomada de papel do outro para, em seguida,
ocorrer a inversão concomitante de papéis, o que acarreta uma transformação
total na sociodinâmica do universo infantil.
Os papéis psicodramáticos e sociais completam as condições para o
surgimento do eu. Os três papéis definidos por Moreno, desdobrando-se em
aglomerados ou “cachos” correspondem aos papéis precursores do ego,
constituindo os “eus parciais” psicossomático, psicodramático e social.
14
Nos sociais opera, fundamentalmente, a função da realidade mediante
interpolações de resistências, não produzidas pela criança, mas que lhe são
impostas pelos outros, suas relações, coisas, atos e distâncias no espaço, no
tempo. Dessa maneira, através dos papéis sociais, o indivíduo vai incorporando
ou é inserido no mundo da realidade da cultura, dos padrões de conduta,
valôres, deveres, etc. É o mundo instituído da conserva cultural.
A dimensão psicodramática constitui a contrapartida da realidade, já que
nos papéis psicodramáticos opera, fundamentalmente, a função da fantasia.
Moreno entendia como papéis psicodramáticos tanto os desempenhados no
cenário
durante uma dramatização, quanto os oriundos da fantasia, da
imaginação como produções imaginárias do indivíduo. “Os papéis
psicodramáticos são personificações de coisas imaginadas, tanto reais quanto
irreais”. Correspondem, portanto, à dimensão mais individual da vida
psíquica, à “dimensão psicológica do eu”, livre das resistências extrapessoais, a
não ser as criadas por ele mesmo.
Com a brecha entre a fantasia e a realidade o indivíduo adquire a
capacidade de iniciar processos de aquecimento diferenciados, tanto para o
desempenho de um ou de outro tipo de papel. E o fator que vai garantir essa
passagem do mundo da fantasia para o da realidade e vice-versa é a
espontaneidade como princípio da adequação da ação do indivíduo a seus
próprios papéis.
A fase da inversão de papéis que ocorre no segundo universo infantil
(precedida pela do duplo e a do espelho) representa a culminância do processo
de desenvolvimento do eu e constitui a base psicológica para todos os
processos de desempenho de papéis e para fenômenos como imitação,
15
identificação, projeção e transferência. Inverter e desempenhar o papel do
outro, não surge de súbito nem ocorre nos primeiros meses de vida. Somente
com a integração dos papéis precursores, em torno do terceiro ano, a criança
dispõe de uma identidade que lhe permitirá relacionar-se com outras pessoas.
Poderá, assim, inverter o quadro, assumindo o papel de quem, um dia, a
alimentou, carregou no colo ou com ela passeou. Dessa maneira, a experiência
da realidade irá permitir que, a partir da adoção de papéis, iniciada com os
psicossomáticos, surjam
várias possibilidades de interação dos sociais e
psicodramáticos.
Pela análise da gênese e desenvolvimento na história do indivíduo fica claro
que “o papel é uma experiência interpessoal”, na qual vários atores encontramse implicados, constituindo-se, ao mesmo tempo, numa interação de estímulos
e respostas. Interação que tanto sinalisa fatores previsíveis da resposta em
função dos papéis sociais e da percepção dos mesmos, quanto elementos
imprevisíveis resultantes da espontaneidade dos atores/participantes da
interação. Necessário se faz, portanto, analisar um outro aspecto, o conceito de
complementariedade, o contra-papel.
O papel, originàriamente, nasceu da interação mãe-filho e baseado na
complementariedade
dos
dois.
Somente
existe
em
função
de
seu
complementar: o contra-papel. A interrelação de ambos, polarizada em papel e
contra-papel, constitui os vínculos. A forma do indivíduo atuar e interagir é
através dos papéis. Estes correspondem ao conjunto de respostas que ele dá a
situações
onde
outros
indivíduos
interagem
desempenhando
papéis
complementares. Esse aprendizado implica em conseguir viver os vários
pólos de uma cadeia interativa, podendo jogar tanto o seu papel quanto o
complementar. Papel e contra-papel são cons-titutivos um do outro. Não há pai
16
sem filho... O modo de ser de uma pes-soa decorre dos papéis que ela vai
complementando ao longo de sua existência, com as respostas obtidas na
interação social, por outros papéis que complementam os seus.
Morfològicamente, a noção de papel aparece veiculando uma complementariedade: o contra-papel, existindo entre ambos uma relação estru-tural e
de inter-determinação recíproca.
O PAPEL NA PRÁTICA PSICODRAMÁTICA
Os interesses de Moreno - terapeuta e pedagogo - estão voltados mais
para os indivíduos e suas relações do que para a cultura, os valores e normas
sociais. Visam, preferencialmente, a espontaneidade e criatividade para que
estes possam agir e intervir no meio social. Cria e desenvolve técnicas e
procedimentos operativos como recursos para que o indivíduo possa atingir
tais objetivos. As primeiras técnicas históricas são representadas pelo teatro de
improviso e o jornal dramatizado (jornal vivo), as técnicas relacionadas às
fases do desenvolvimento: duplo, espelho e inversão de papéis, consideradas
básicas por servirem de base e fundamento para as demais.*
Como para Moreno o eu “é revelado pelo desempenho de papéis”, ele
vai previligiar, sobremaneira a técnica do role-playing com todo seu
desdobramento pedagógico (aprendizagem e treinamento de papéis) e
terapêutico. A finalidade do role-playing como jogo psicodramático de papéis
“é proporcionar ao ator uma visão do ponto de vista de outras pessoas, ao atuar
no papel dos outros, seja em cena, seja na vida real”.
____________________________
* Ver livro de Monteiro, R et alii “Técnicas Fundamentais do Psicodrama”. São Paulo. Editora Brasiliense, 1993.
17
O desenvolvimento de um novo papel passa por três fases distintas: a) a
tomada do papel (role-taking) ou adoção do papel já pronto e inteiramente
estabelecido, podendo o indivíduo apenas imitá-lo a partir dos modelos
disponíveis. Não permite variação e nenhum grau de liberdade. Cabe apenas
aceitá-lo, desempenhando-o da maneira já convencionada. Para Moreno,
constitui-se produto acabado, conserva de papéis; b) o jogo de papéis (roleplaying) representação ou desempenho que permite certo grau de liberdade.
Consiste em jogar o papel explorando simbòlicamente suas possibilidades de
representação. Para Moreno, o jogo de papéis é ato, brincadeira espontânea; e
c) a criação de papéis (role creating) permite alto grau de liberdade, deixando
margem à iniciativa pessoal, como no caso do ator espontâneo. Criar o papel é
o desempenho de forma espontânea e criativa. E como todo papel necessita de
ator, em cada fase do processo de seu desenvolvimento encontram-se os
atores correspondentes: o “receptor”, o “intérprete” e o “criador de papéis”.
Não há como pensar o Psicodrama, seus instrumentos, a estrutura de uma
sessão, desvinculado de papéis e atores que os vivenciam. Toda dramatização,
jogo ou qualquer técnica psicodramática somente pode acontecer quando
papéis são colocados em ação e, através destes, personagens interatuam se
vinculando como interlocutores.
No Psicodrama, encontrando-se com seu eu em papéis imaginários ou
correspondentes a funções assumidas dentro da realidade social, o indivíduo
recupera a capacidade de realizar transformações autênticas em sua vida, nas
suas relações e no meio onde vive.
A realização da verdadeira ação espontânea equivale à criação e
desempenho de papéis que correspondem a modelos próprios de existência. A
dimensão do homem criativo/espontâneo se contrapõe contìnuamente com a
conserva da estrutura social, com os papéis que o aprisionam a modelos e
18
padrões, normas, status, rótulos pré-determinados. O Psicodrama possibilita ao
indivíduo utilizar seu potencial imaginativo/criativo para transformar a
realidade, retomar papéis sociais instituídos, cristalizados e conservados, para
recriá-los modificando-os e invertê-los, reinventando-os na vivência das
relações em que se encontra envolvido e implicado. Uma vez que a proposta
psicodramática é resgatar o homem espontâneo-criativo preso nas amarras da
conserva cultural, pode-se dizer que a criatividade é aquilo que o indivíduo faz
para recriar o seu eu com espontaneidade através do conjunto de papéis que
desempenha no jogo da vida.
O CONCEITO DE PAPEL E OS PSICODRAMATISTAS
Inúmeros são os psicodramatistas que têm atendido e estão respondendo ao
apelo de Moreno de não tomar sua obra como pronta e acabada. Publicações
têm se sucedido numa demonstração viva do esforço estudioso de profissionais
da área, principalmente no cenário psicodramático brasileiro. O conceito de
papel tem recebido diversas contribuições de bom número desses autores.
J.G.ROJAS BERMUDEZ (l966), em seu livro “Que es el Sicodrama?”,
desenvolve uma teoria neurofisiológica de desenvolvimento, personalidade e
psicopatologia - “a teoria do Núcleo do Eu”. Denomina Núcleo do Eu a
estrutura resultante da confluência dos papéis psicossomáticos de ingeridor,
urinador e defecador com as áreas mente, corpo e ambiente.
Bermudez considera o ser humano uma condensação dos fatores ambiente,
corpo e mente com destaque para os papéis psicossomáticos de ingeridor,
defecador e urinador oriundos das funções fisiológicas correspondentes. A
importância fundamental da estruturação dos papéis psicossomáticos é a
progressiva delimitação de áreas que eles vão produzindo. Assim, o papel de
19
ingeridor delimita as áreas corpo-ambiente, o de defecador as de ambientemente e o de urinador mente-corpo. Evolutivamente, para Bermudez, o papel
de ingeridor estrutura-se nos primeiros dias de vida, o de defecador entre o
terceiro e oitavo mês e o de urinador entre o oitavo e vigésimo quarto. O
“Núcleo do Eu” é a estrutura resultante da integração das três áreas com os três
papéis psicossomáticos a partir da “estrutura genética programada interna” e
da “externa”.
Como um dos pioneiros na história do movimento psicodramático brasileiro,
Bermudez tem feito escola e sua teoria do Núleo do Eu possui inúmeros
seguidores.
DALMIRO BUSTOS (l979), figura de destaque no cenário psicodramático,
entre suas inumeráveis contribuições ao Psicodrama, apresenta os conceitos de
suplementariedade, de papel complementar interno patológico, de dinâmica
dos papéis (vínculos) e papel gerador de identidade.
Para Bustos, os papéis estruturam o ego em suas trocas com o meio
ambiente. A zona de interação entre o ego e o mundo exterior está estruturada
em forma de papéis. Cada papel se relaciona com complementares de outras
pessoas através de vínculos. Pela falta de diferenciação entre o eu e os outros,
entre mundo interno e externo, o universo das relações fica povoado de
confusões, sem limite entre o eu e não eu. Não há consciência dos vínculos. O
eu e o outro significativo ficariam unidos em suplementariedade, onde um é
parte do outro, sem possibilidade de vínculo. A fantasia da inexistência do
vínculo caracteriza a suplementariedade onde cada um dos termos de uma
relação se comporta como se fosse parte de um todo, sem solução de
continuidade. Passa-se de um estar com o outro à fantasia de ser parte do
outro. É o funcionamento unitário, base das relações simbióticas.
20
O mesmo autor explica, ainda, que todo conflito é incorporado através de
um papel, geralmente o de filho com seu complementar: mãe ou pai. A
situação de conflito faz com que este papel fique fixado em seu modus
operandi ao papel complementar primário, denominado complementar interno
patológico. Quanto mais forte o conflito, mais incapacitante o resultado e
maior número de papéis são afetados. Isso porque, todo estímulo externo que
desencadeie esta dinâmica originará condutas que correspondem à relação com
este complementar interno patológico. Como, por exemplo, um filho
hipersensível diante de um pai supercrítico poderá apresentar condutas afins
em suas relações com outras figuras de autoridade. Isso ocorre, porque, para se
despreender dos complementares primários, a criança necessita de apoio
indispensavel para superar a angústia da separação e retomar a espontaneidade.
Na falta desse apoio, ela tenderá reter o que é garantido ou conhecido,
aferrando-se ao complementar primário, parcial ou totalmente, configurandose, assim, o papel complementar interno patológico. Este irá bloquear ou afetar
em diferentes graus as relações com os outros, revelando-se parte constituitva
permanente dos vínculos, provocando respostas ou atitudes de acordo com as
experiências primitivas do indivíduo, e não com os estímulos externos e atuais.
Diminui a capacidade de reações espontâneas, aumentando a ansiedade.
Constitui a base das relações transferenciais. (5, p.18-23) (6, p.24).
Segundo Bustos, os papéis se agrupam conforme sua dinâmica,
configurando clusters ou agrupamentos. (7, p.76). O primeiro depende do
complementar materno, responsável por funções de dependência e
incorporação. O segundo do complementar paterno, gerando a matriz dos
papéis ativos. Ambos possuem um primeiro complementar único: mãe e pai ou
os adultos que desempenham esses papéis. Estes dois papéis primários são
assimétricos por natureza. A simetria aparece mais tarde, quando a paridade se
21
apresenta na forma de irmãos ou companheiros de brincadeira. Esta interação
diferenciada das outras duas determina o surgimento de um terceiro cluster,
que representa as relações de paridade. Configura-se, assim, o esquema básico
de papéis: passivo, ativo e interativo. O primeiro esquema, de funções
passivas, incorporativas, dependentes, está vinculado ao papel gerador de mãe
e a aspectos femininos. O segundo, gerador de capacidade ativa, penetrante,
autônoma, liga-se ao papel de pai e a aspectos masculinos. E o terceiro vínculo
gerador é o papel de irmão, substituível pelo de amigos, responsável pelas
experiências de intercâmbio no mesmo nível, de competição, rivalidade, etc.
Essas três dinâmicas constituem possibilidades alternativas de todos os papéis.
Outro conceito desenvolvido por Bustos é o de papel gerador de
identidade, (5, p,.22) (7, p.77-78), caracterizado como aquele que, dentro de
um repertório de papéis de um adulto, predomina como um ponteiro positivo
indicador do indivíduo. Afirma que todas as pessoas têm um papel central e
predominante que impregna os demais,
auxilia a cimentar a identidade,
construindo auto-confiança, especialmente se tal papel fôr passível de
mudanças em diferentes momentos de suas vidas. Constitui-se em eixo
predominante que funciona como defensivo nas situações de conflito, bem
como possui função ordenadora (ordenamento interno).
ALFREDO NAFFAH NETO (1979), em seu livro “Psicodrama descolonizando o imaginário”, ao rever a teoria de papéis de Moreno,
distingue papel dramático, psicodramático, imaginário e histórico. Para ele, o
papel dramático é o vivido pelo ator do teatro. É pré-determinado pelo script,
conservado, estratificado e perpetuador de um drama deslocado do ator,
exterior a ele. Por outro lado, distingue papel psicodramático de papel
imaginário. Para Moreno, os papéis psicodramáticos ora definem a emergência
22
do potencial criativo, ora designam o mundo da fantasia e da imaginação em
oposição aos papéis sociais, que definem o mundo real e das relações sociais.
Naffah, entretanto, caracterisa o papel psicodramático como o que, de
imaginário
concretiza-se
espontaneamente
em
ação
real,
criado
e
desempenhado pelo ator/autor no cenário psicodramático, contendo em si
elementos do papel dramático e do papel pessoal. (Termo utilizado por
Rocheblave-Spenlé pelo qual o indivíduo determina ele mesmo sua posição
pela relação com os outros e age conforme um modelo de conduta que
constitui como norma das relações inter-subjetivas). (22, p.172). Afirma que o
papel psicodramático “retoma e focaliza num mesmo eixo o ator e o drama
como duas partes implicadas entre si, possibilitando a emergência da
espontaneidade e criatividade e a retomada pelo ator de seu verdadeiro sentido:
o de agente”. (19, p.180).
O papel psicodramático designa a emergência de uma nova síntese entre
imaginação e ação, entre espírito e corpo. Dissolve-se a clivagem entre papel
social e a pessoa privada surgindo o sujeito como existência una. Na cisão
entre pessoa privada e papel social, a imaginação permanece deslocada da ação
real e fechada em si mesma. Nessa clivagem a pessoa fantasia-se e imagina-se
em determinados tipos de relação (devaneio, sonho) que não são transformados
em ação efetiva. Com a emergência do segundo universo infantil (quando o
imaginário diferencia-se do real) o desempenho dos papéis sociais procura se
sobrepor ao mundo imaginário, tendendo
restringir e isolar a atividade
imaginativa. Para Naffah, o papel psicodramático representa o momento em
que a imaginação rompe seu espaço solipsista para encarnar-se e fazer-se
verdade, representando uma nova síntese entre imaginação e ação. É o esforço
de superação desta clivagem que define a espontaneidade criativa e a
emergência dos papéis psicodramáticos.
23
Já os papéis imaginários são os resultantes da fantasia e imaginação do
indivíduo (sonho, fantasia) mas não transformados
em ação efetiva, não
atuados e desempenhados. E para Naffah, o papel psicodramático ao ser vivido
e desempenhado no palco resgata os papéis imaginários não-atuados,
concretizando-os na ação espontânea do ator-autor-criador.
Por outro lado, ao discutir o conceito de papel social chega ao caráter
histórico do mesmo ou, conforme o denomina, a um tipo de papel: o histórico
que, enquanto modelo, circunscreve e delimita os papéis sociais. Moreno não o
descreve, segundo Naffah, por não considerar a função estruturante da história.
Entretanto, concorda com Moreno quando este afirma que os “os papéis são os
fatos mais significativos dentro de qualquer cultura específica”, mas desde que
não se esqueça que estas formas relacionais estão circunscritas a um processo
histórico e à uma estrutura social, política e econômica, de que são
manifestações necessárias, consolidação do instiuído. Conclui que os papéis
sociais, sua estrutura e dinâmica próprias, nada mais fazem que repetir e
concretizar num âmbito micro-sociológico, a estrutura de contradição e
oposição básicas que se realiza entre papéis históricos, constituida pela relação
dominador-dominado, uma vez que o conceito de papel social pressupõe o de
classe social e vice-versa.
Em “Psicodrama da Loucura”, JOSÉ FONSECA FILHO (1980)
apresenta um esquema de desenvolvimento humano, expõe uma visão da
loucura e saúde, esboçando uma teoria da personalidade baseada nas fases da
matriz de identidade. Fiel ao postulado moreniano de que o eu se forma a partir
do desenvolvimento de papéis, enfoca sua análise na capacidade do indivíduo
tomar, jogar e invertê-los. “Papel é uma experiência interpessoal e necessita de
24
dois ou mais indivíduos para ser posta em ação. Todo papel é uma resposta a
outro (de outra pessoa). Não existe papel sem contra-papel”. (8, p.20)
Fonseca propõe, pela técnica de inversão de papéis, uma espécie de
medida da capacidade de “inverter ou experienciar o outro”, avaliando-se,
assim, o grau de saúde ou doença que atinge as pessoas. Um desempenho e
inversão de papéis perfeitos significa ausência total de “elementos psicóticos”.
Afirma que a técnica de inversão de papéis “pode realmente, guardadas as
devidas ressalvas, constituir-se um dispositivo para “medir” o grau de “saúdedoença” de uma pessoa”. (8, p.102).
A partir de sua formação psiquiátrica e toda sua experiência clínica,
Fonseca apresenta um enfoque de papel bastante operativo, oferecendo uma
instrumentalização prática para o trabalho do psicoterapeuta.
Com o propósito de inovação, procurando novos modelos de atuação
terapêutica, Fonseca tem desenvolvido um método de psicoterapia individual, a
“Psicoterapia da Relação” (10), técnica psicoterápica derivada do psicodrama,
fundamentada principalmente no jogo de papéis (além de outros recursos
técnicos) entre terapeuta e paciente, onde o primeiro toma e joga papéis dos
personagens do mundo interno e relacional do paciente, interagindo e sendo
interlocutor deste. O terapeuta da relação assume o papel internalizado do
paciente, prèviamente desempenhado por ele ou diretamente, de acordo com a
interação.
Fonseca considera que o jogo e inversão de papéis facilitam a
comunicação co-inconsciente e é revigorante para os participantes. Jogar o
papel de outra pessoa, abrindo mão, parcialmente, da identidade para receber a
do outro, retornando em seguida à sua própria, produz sutís alterações de
estados de consciência e liberação de energia, provocando bem-estar e euforia.
25
É importante assinalar ainda, dentro das técnicas da Psicoterapia da
Relação, outra criação da prática clínica de Fonseca, o “Psicodrama Interno”
caracterizado como um “jogo interno” de papéis. (9).
ANIBAL MEZHER (1980) (14) questiona a validade do conceito de papel
psicossomático a partir do próprio sistema teórico de Moreno. Assinalando e
sintetizando elementos das conceituações de diferentes autores, define papel
como “um específico conjunto de atos, segundo o modelo prescrito por uma
determinada sociedade, na interação entre seres humanos”. Destaca três
elementos básicos: interação entre humanos, conjunto de atos e subordinação a
modelo prescrito pela sociedade.
Baseia sua análise na noção de vínculo humano, o ser-em-relação e da
complementariedade vista como interação entre pessoas através de papéis e
contra-papéis correspondentes. Figurino este no qual não cabem, segundo
Mezher, os “papéis psicossomáticos” pela inexistência de contra-papéis.
Questiona a propriedade da noção de papel psicossomático de Moreno a
partir dos conceitos de zona corporal e papéis familiares. Propõe a substituição
parcial do conceito de papel psicossomático pelo de “zona corporal em ação”.
E, para não entrar em choque com o postulado moreniano de que os papéis são
os aspectos tangíveis do eu, que se desenvolve a partir deles, completa: “as
zonas corpóreas como áreas corporais funcionando em relação ao mundo, num
crescente processo vivencial de um corpo em relação ao mundo e de suas
partes entre si, processo concomitante e integrado com sua experiência social,
são fatores na consolidação da identidade corporal, substrato suficiente para as
fundações do “ego”. (14, p.223)
Ressalta, assim, que os papéis psicossomáticos podem ser vistos
como zonas corporais em ação, incluidas na relação mãe-filho e em outros
papéis familiares, sem prejuízo da identidade corporal da criança.
26
MOYSÉS AGUIAR (l990) (1), a partir do conceito de papel, apresenta
um estudo da sociometria dos vínculos. Como os vínculos acontecem através
de papéis, toda a complexidade destes aplica-se também aos vínculos. Em sua
análise diferencia três tipos de vinculos: a) vínculos atuais são os que se
verificam nas relações concretas e onde os parceiros das mesmas caracterizamse pela sua concretude (em contraposição à fantasia). Nesse sentido, os papéis
são definidos como “sistemas pluri-unívocos de expectativas... em função de
um objetivo comum.” (1, p.51). b) Vínculos residuais são aqueles que no
passado foram vínculos atuais e que se encontram desativados. São decorrentes
de mortes, ruptura de relações ou afastamento entre parceiros. Esses vínculos
têm uma história de realidade, mas sua existência atual está no plano da
fantasia, como memória. c) Vinculos virtuais são os do âmbito da fantasia e
não são encontrados nas relações concretas, tais como os estabelecidos com
objetos/personagens imaginários ou míticos, ou muito distantes da realidade
concreta do indivíduo, embora reais.
A configuração sociométrica dos vínculos virtuais é mais estável que a
dos residuais (e estes, muito mais que os atuais) já que não estão sujeitos à
confrontação com a realidade, quer presente ou passada.
Moysés Aguiar acredita que a diferenciação desses três tipos de vínculos
poderá fertilizar a prática e teoria psicodramática, se utilizada como
instrumento para análise dos papéis.
Por outro lado, examinando a dinâmica dos papéis e a questão do contrapapel, não a entende como uma estrutura bi-polar simples. Para ele, a
complexidade
das
relações
indica
ocorrência
frequente
de
complementariedades múltiplas, como triangulação e circularização de papéis.
Nesse sentido, destaca duas vertentes que tornam o desempenho de papéis
mais e mais complexo: a primeira é a composição do papel, cujas inúmeras
27
funções podem ser consideradas, de per si, como “sub-papéis”. Exemplifica
com o papel de mãe que inclui missões tão díspares como amamentar, limpar o
bum-bum do bebê, aconselhar filha adolescente, etc. Tarefas estas que
envolvem projetos distintos e operações peculiares, especialmente quanto à
complementariedade que implicam. Surgem os sub-papéis de amamentadoramamentado, limpador-limpado, conselheiro-aconselhado, etc., compondo o
conjunto maior que é o papel mãe-filho. A segunda vertente é a que se refere a
papéis paralelos. Estes surgem quando, numa determinada relação, a
consecução do projeto comum permite ou mesmo exige o uso de modelos
relacionais próprios de outras relações. Apresenta, como exemplo, a
complementariedade professor-aluno incluindo práticas “paternais” que
caracterizam outro papel do mesmo cacho, a relação pai-filho. Ou, ainda, o
papel homem-mulher revelando conteúdo “paternal”, próprio do papel paifilho. Esclarece que os comportamentos que ocorrem entre os parceiros, cuja
natureza tem a ver mais com o segundo papel do que com o primeiro,
constituem o papel paralelo. Funciona como “condimentos” do papel
principal.
SÉRGIO PERAZZO (1994), em “Ainda e Sempre Psicodrama”, discute a
conceituação de papel imaginário. Levanta a questão da existência de “papel
imaginário
transferencial”
e
“papel
imaginário
não-transferencial”,
diferenciando papéis imaginários (Naffah) e papéis de fantasia. Para ele, o
caráter de não-atuação do papel imaginário abre uma brecha para explicar a
facilidade com que muitos papéis, nunca jogados anteriormente, podem ser
desempenhados através de jogos dramáticos no cenário do psicodrama.
Denomina-os de papéis de fantasia, que são facilmente atuados a partir de um
pequeno esforço espontâneo e criativo. Isso porque, segundo Perazzo, o papel
psicodramático tendo seu locus exclusivo no cenário psicodramático, possui
28
uma delimitação clara de contexto, deixando um espaço vago de definição em
que transita a imaginação criativa. Nesse espaço é que a imaginação pode ser
atuada com mais facilidade, sem intermediação de papéis psicodramáticos. Os
papéis de fantasia, portanto, poderiam ser jogados fora do cenário do
psicodrama, onde cumpririam uma “função psicodramática” espontânea e não
intermediada pela técnica.
PALAVRAS FINAIS
O presente texto não pretendeu esgotar o tema papel, nem apresentar uma
visão crítica de diferentes autores. Procurou, apenas, aglutinar e condensar,
nesse espaço priviligiado da Revista Brasileira de Psicodrama, as
conceituações de Moreno e contribuições de outros autores sobre esse
inesgotável filão de possibilidades para a teoria e prática do psicodrama: o
conceito de papel.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - AGUIAR, M. O Teatro Terapêutico. Campinas. Papirus Editora, l990.
2 - BERMUDEZ, J. G. R. Que es el Sicodrama? (l966). 4a. ed. Buenos
Editorial Celcius, 1984.
29
Aires.
3 - BLOCH, O.; WATBURG, W.V. Dictionaire Etymologique de la Langue
Française. Paris. PUF, 1932.
4 - BUARQUE de Holanda, A. Novo Dicionário da Lingua Portuguêsa. Rio
de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 1975.
5 - BUSTOS, D. M. O Teste Sociométrico. São Paulo. Editora Brasiliense, 1979.
6- ___________ O Psicodrama. São Paulo. Summus Editorial, 1982.
7- ___________ Perigo ... Amor à Vista! São Paulo. Editora Aleph,1990.
8 - FONSECA Fo., J. S. Psicodrama da Loucura. São Paulo. Editora Âgora, 1980.
9 - ________________ Psicodrama Interno. Trabalho apresentado no
II Congresso Brasileiro de Psicodrama. Canela, 1980.
10- _______________ Psicoterapia da Relação. Revista Temas. V. 21,
n. 40/41, p113-121,1991.
11- GONÇALVES, C.S.; ALMEIDA ,W.C.; WOLFF, J.R. Lições de Psicodrama. São Paulo. Editora Ágora, 1988.
12-HOLLAND, R. Eu e o Contexto Social. Rio de Janeiro. Zahar Editores.1979.
13-MARTIN, E.G. J. L. Moreno: Psicologia do Encontro. São Paulo. Livraria
Duas Cidades, 1978.
14-MEZHER, A. Um Questionamento a cerca da Validade do Conceito de
Papel Psicossomático. Revista da FEBRAP, ano 3, n.1, p.221-223,1980.
15-MORENO, J.L. O Teatro da Espontaneidade. (1923) . São Paulo.
Summus Editorial, 1984.
16-____________ Fundamentos de la Sociometria. Buenos Aires. Editorial
Paidos, 1972.
17- ___________ Fundamentos do Psicodrama. São Paulo. Summus Editorial, 1983.
18- __________ O Psicodrama. São Paulo. Editora Cultrix, 1975.
30
19-NAFFAH NETO, A. O Psicodrama - Descolonizando o Imaginário. São
Paulo. Editora Brasiliense, 1979.
20-PERAZZO,S. Descansem em Paz os Mortos dentro de mim. Rio de Janeiro. Francisco Alves Editora, 1986.
21- __________ Ainda e Sempre PSICODRAMA. São Paulo . Editora
Ágora, l994.
22- ROCHEBLAVE-SPENLÉ, A.M. La Notion de Role en Psychologie
Sociale. (1962). Paris. PUF, 1969.
...................................................////////////////.............................................
Endereço
CARLOS JOSÉ RUBINI
R. Leite Leal, n. 135, Bl.01/ap. 505
Laranjeiras - Rio de Janeiro - RJ.
CEP 22240-100
Fone: (021) 2205-4000 (res.) (021) 2539-5748 (cons.)
e-mail: [email protected]
31
Download