A Memória como Elemento de Construção de uma Identidade Cultural Bertone de Oliveira Sousa Segundo Peter Burke (2000, p. 69), a “explicação tradicional da relação entre a memória e a história escrita, na qual a memória reflete o que aconteceu na verdade e a história reflete a memória”, é algo já em grande parte superado pela historiografia. Outrora, a história era vista como relato dos grandes feitos de reis, generais e personagens importantes do passado. Cabia ao historiador a descrição objetiva dos fatos e seu ofício era uma forma de a posteridade aprender com os exemplos do que relatava. Koselleck dissertou sobre esse aspecto da história que vigorou da Antiguidade aos tempos modernos. Ao falar da historia magistra vitae comenta acerca do caráter pedagógico desse mister, com o qual se podia repetir os sucessos do passado ou os seus erros. O Cristianismo, por sua vez, manteve-se associado a essa definição uma vez que seu espaço de experiência era pautado em um horizonte de expectativas escatológico, na espera do advento do messias e da instauração do milênio. Isso implicava sempre relembrar os feitos passados de patriarcas, profetas, apóstolos e outros personagens bíblicos, ou seja, o passado era meio de instrução para manter a fé no presente enquanto se esperava o reino de Deus. A partir da Revolução Francesa ocorre uma mudança substancial na forma de encarar a história: com o ideal de progresso, não se busca mais os conselhos do passado, mas a transformação do mundo. Kosseleck ressalta que é a partir de então que o espaço de experiência deixou de estar limitado pelo horizonte de expectativas, pois a marcha do progresso se projeta para o futuro, e a revolução colocava a si mesma como perspectiva histórica, conduzindo um futuro incerto. Com isso, a espera pelo Juízo Final “transformou-se, a partir da segunda metade do século XVIII em um conceito histórico relacionado à esperança”. (KOSELLECK, Reinhart. 2006, p. 58) Pelas transformações ocorridas no século XIX oriundas da crença no progresso e na industrialização, o surgimento das nações e do sentimento de nacionalidade, Pierre Nora o considerou como o século da memória porque “as transformações sociais, culturais e simbólicas exigiam que os indivíduos, as famílias, as novas associações assentes no contrato, as classes e os novos Estados-Nação procurassem, no passado – democratizando uma atitude típica da antiga aristocracia –, a sua legitimação”. (CATROGA, Fernando. 2001, p.52) Já no século XX, a virada historiográfica promovida pelos Annales nos mostrou que a história é uma montagem de seleções e interpretações elaboradas pelo historiador, bem como de condicionamentos sócio-culturais nos quais ele está inserido. O estudo da memória também passou por modificações conceituais a partir da década de 1920. Ao mostrar que a memória é uma construção social, Halbwachs também apontou que os indivíduos recordam daquilo que consideram importante para seu grupo. Para ele, as lembranças são sempre coletivas, pois, mesmo que em determinadas circunstâncias se esteja materialmente só, o indivíduo recorda tendo como referenciais estruturas simbólicas e culturais de um grupo social. Ele faz ainda uma clara distinção entre memória histórica e história escrita. A primeira está diretamente relacionada à história vivida, pois esta se baseia em experiências vivenciadas pelo grupo, que busca conservar a imagem do seu passado. Para ele, a história escrita começa onde termina a memória social, pois enquanto esta continuar ativa, não há necessidade de registrá-la por escrito, mas quando ela se distancia no tempo apagando-se na memória dos homens é que entra o historiador relacionando e classificando os fatos “segundo necessidades ou regras que não se impunham ao círculo de homens que por muito tempo foram seu repositório” (HALBWACHS, Maurice. 2006, p. 100). Porém, estudos realizados posteriormente apontaram que, assim como a memória, a história também é produto dos grupos sociais, pois reconstroem o passado a partir de categorias de sua própria cultura. É preciso aqui distinguir entre dois tipos de memória, o primeiro, mneme, que é a lembrança involuntária, evocada por circunstâncias, objetos, pessoas ou lugares, em cuja experiência passada faça brotar a recordação; o segundo é anamnese, é o trabalho consciente e sistemático de recuperação das lembranças; é o processo de rememoração do que ocorreu no passado. Nesse caso, pode haver reelaboração, reflexão, julgamento e ressignificação das experiências vividas. Por isso, a memória é seletiva, nem tudo fica gravado na lembrança. Daí o fato de que a história, ao tentar resgatar a memória coletiva e transformá-la em narrativa, constrói um relato aproximado do que ocorreu, dado o fato de o historiador encontrar-se em outro tempo e não ter vivido diretamente o fato sobre o qual escreve. Isso nos remete também às questões postas por Paul Ricoeur acerca do tempo e narrativa histórica, da construção do texto histórico, do processo de ficcionalização da narrativa do passado. Ele ressalta que a narrativa é uma forma de reconfigurarmos nossa experiências temporal. O historiador enxerga o passado a partir do vestígio, por isso não parte do real, mas de representações construídas pelos sujeitos sociais. Ao ter contato com elas, o historiador as analisa, interpreta, manipula, recorta e articula, a partir disso, um texto de história. Cada época fabrica seu universo de símbolos e significados, produz a sua representação do tempo histórico. Por isso, para Ricoeur, a narrativa introduz a inteligibilidade do tempo histórico, pois ao partir da rememoração, ela ressignifica o tempo passado através da escrita. Ele também demonstra que, ao atuar sobre a memória arquivada, a historiografia promove um deslocamento espacial dos protagonistas da narrativa e o tempo em que os acontecimentos se desenrolam. Jacques Le Goff (2003, p. 467) argumenta como a História Nova tem se relacionado com a memória coletiva a partir dos “níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo (lingüística, demografia, economia, biologia, cultura)” e também do estudo dos “lugares da memória coletiva (...): Lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações” (idem). Que relação, então, pode ser estabelecida entre a memória e a construção de uma identidade cultural? Nas últimas décadas, o estudo das identidades tornou-se lugar-comum no campo das ciências sociais, sobretudo a partir dos anos 90. As mudanças históricas ocorridas nesse período conduziram à emergência do estudo das identidades como um referencial de compreensão e explicação das mudanças sociais, marcada por sociedades cada vez mais heterogêneas, culturas híbridas e grupos complexamente diversificados. Percebe-se, assim, uma fragmentação das coesões sociais, outrora escamoteadas sob unidades territoriais, políticas e sócio-culturais, cedendo lugar a uma multiplicidade de identidades que reivindicam lugar e visibilidade ante o modelo de globalização econômica, política e cultural e a homogeneização dela advinda. É justamente esse processo, composto de constantes empréstimos que põe em evidência as formações identitárias no interior dos grupos sociais e que se manifestam como reações deles aos projetos unificadores. Nesse contexto, o Estado perde a centralidade sobre as relações sociais, o que resulta em maior intercâmbio entre indivíduos e grupos. Assim, os significados e as identidades são produzidos por esses grupos a partir de relações que estabelecem entre si. Portanto, essa temática se relaciona com a memória na medida em que as identidades se constituem como uma herança de significados, ligados à constituição de uma memória e de um discurso que legitime a idéia de pertencimento. Desse modo, a memória é importante no processo de formação identitária dos grupos, o que os leva a buscar fazer-se conhecer e reconhecer como um processo histórico no interior de um processo histórico mais amplo. Burke (2000) sublinha que os historiadores se interessam pela memória por dois motivos: por ela ser uma fonte histórica e por ser um fenômeno histórico. Ela se relaciona com a identidade na medida em que a alteridade é a essência da constituição de ambas: “recordar é em si mesmo um ato de alteridade. Ninguém se recorda exclusivamente de si mesmo, e a exigência de fidelidade, que é inerente à recordação, incita ao testemunho do outro”. (CATROGA, Fernando. 2001, p. 45) Para Castells, a identidade é “a fonte de significado e experiência de um povo. (...) Toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece”. (CASTELLS, Manuel. 2000, p.22-23). Ora, sabemos que a identidade possui um caráter relacional, ou seja, ela se define em relação à alteridade, “depende, para existir, de algo fora dela: a saber (...), de uma identidade que ela não é (...), mas que, entretanto, fornece as condições para que ela exista (...). A identidade é, assim, marcada pela diferença”. (WOODWARD, Kathryn. 2000, p. 09) Por isso importa saber a partir de quais referenciais ela é construída, como afirmar Castells na citação acima. Por isso também ela está intimamente ligada ao conceito de representação social, pois, se a identidade é marcada pela diferença, significa que pode estar em constante competição ao que lhe é exterior. Para Roger Chartier, as representações aspiram a um caráter universalista e são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as produzem. Por esse motivo, nunca são discursos neutros, colocando-se sempre em situações de competição e engendram sempre discursos e práticas sociais diferenciadas. Ao parafrasear Marcel Mauss, Chartier afirma que “mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm uma existência, isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam actos – que têm por objetivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a sua”. (CHARTIER, Roger. 2002, p. 18) Enquanto discurso e prática, as representações são esboçadas por indivíduos que “descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse”. (Idem, p. 19) A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. (...) Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. (WOODWARD, Kathryn. 2000, p. 17) Nota-se, portanto, que há estreita relação entre os conceitos de identidade, memória e representação. Esses conceitos estão imbricados no cotidiano e nas práticas sociais dos mais diversos grupos. Então, de que modo e memória contribui para a construção de uma identidade cultural? Michael Pollak nos responde começando por enumerar três características da identidade, que são: os limites de pertencimento a um grupo, a continuidade temporal e o sentimento de coerência, ou seja, de que os elementos que compõem um indivíduo ou um grupo estão de fato unificados e que a quebra desse sentimento (de unidade e continuidade) podem acarretar fenômenos patológicos (no plano individual) ou a desagregação (na esfera coletiva), e arremata: Podemos portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (...) A memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais. (POLLAK, Michael, 1992, p. 200-212 [grifos do autor]) Podemos encontrar diversos exemplos de como a memória e a identidade são elementos disputados no campo social, em conflitos étnicos, religiosos, familiares, grupos que reivindicam a posse da verdade ou da ancestralidade como forma de legitimar a posse de um território, de um bem, ou conjunto de bens; em certos lugares – como nos Bálcans após a dissolução da União Soviética – podemos ver a reivindicação de nacionalidades, com base na memória da constituição de um grupo, uma etnia; em outros lugares, a disputa está relacionada com reivindicações de espaço político-social, anseio de grupos minoritários de manifestar-se, como é o caso dos movimentos que lutam pelos direitos dos negros, homossexuais, mulheres, etc., que são grupos que possuem elementos constitutivos comuns à sua vida, ou seja, possuem uma memória, formam uma identidade e buscam espaço para expressar suas diferenças. No caso da península balcânica e de outros países do leste europeu, a luta pela formação de novos territórios têm sido uma constante desde o início dos anos 90. No continente africano pós-colonização, em determinados países, conflitos étnicos têm marcado guerras civis pungentes, como é o caso, mais recentemente, de Ruanda, Somália, Zaire, Angola, entre outros. Há uma multidão de motivos, uma multidão de memórias e lembranças que tomam difícil a valorização em relação à sociedade em geral e que podem ser a origem de conflitos entre pessoas que vivenciaram os mesmos acontecimentos e que, a priori, por terem elementos constitutivos comuns em suas vidas, deveriam sentir-se pertencentes ao mesmo grupo de destino, à mesma memória. (Idem). Stuart Hall avalia esse processo de fragmentação identitária como resultado processo de fragmentação do sujeito pós-moderno, composto de várias identidades, amiúde contraditórias. Como conseqüência do colapso dos referenciais “objetivos” de cultura, que no passado norteava a vivência dos grupos, esse sujeito torna-se, assim, problemático, instável, provisório. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. (...) à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis. (HALL, Stuart. 2006, p. 12-13) Por isso se faz necessário investigar os elementos que constituem a memória dos grupos, seus ritos de recordação, seus referenciais de sentido, seus símbolos de tradução da experiência vivida, numa palavra, as partes componentes da identidade deles. De acordo com Diehl (2002, p. 111-112), o estudo da memória e da identidade constitui a chave de compreensão das perspectivas historiográficas que marcam os modos de pensar e reconstituir o passado na atualidade. Para ele, a memória não deve ser entendida apenas como uma busca de informações acerca do passado, mas “como um processo dinâmico da própria rememorização”. Isso tem conduzido os estudos históricos a um redimensionamento das noções de tempo, espaço e movimento. Vive-se uma crise da visão iluminista e de suas herdeiras no século XIX de redenção do homem no futuro; esse aspecto da pósmodernidade é o que Stuart Hall chamou de descentramento do sujeito, levando-o a assumir uma identidade móvel, híbrida. Desse modo, a forma como a memória atua na reorientação da vivência cotidiana dos grupos sociais é importante para analisar a formação e mudança das identidades culturais nas sociedades contemporâneas. “Para a história, não são as memórias e identidades os pontos centrais, mas as suas respectivas representações nas experiências e expectativas de vida” (Idem, p. 113). É importante destacar também que o processo contínuo de (re)formulação das identidades faz com que os significados culturais sejam ressubjetivados “para grupos sociais e jamais para a sociedade como tal. Caso contrário, a identidade passa a ser ideologia, facilmente vinculada à concepção de cultura nacional”. (ibidem, p. 115) Portanto, memória e identidade são fatores que, em conjunto, objetivam gerar unidade, organização, sentido histórico. Para isso, atuam, não raramente, no sentido de regularem o comportamento social dos indivíduos a fim de evitar a fragmentação do grupo e manter a coesão em torno de referenciais simbólicos comuns. Estudar as sociedades conceitos é importante na contemporâneas medida em que à luz nos desses auxiliam a compreender como os agentes históricos se constituem e como constituem relações entre si em qualquer sociedade. Estudar as identidades compartilhadas pelos indivíduos é esquadrinhar o universo de significados que norteiam sua existência enquanto grupo social, instituição, comunidade, etnia, enfim, enquanto agentes da memória. REFERÊNCIAS BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: EDUSP, 1987. BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000. CATROGA, Fernando. Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Fronteiras do Milênio. 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