Art. 282 – Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica Art. 282 - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa. Objeto material: profissão de médico, dentista ou farmacêutico (rol taxativo). Exercício ainda que a título gratuito caracteriza o crime. Exige-se ainda habitualidade. Elemento normativo do tipo: “sem autorização legal”. Lei penal em branco homogênea (transposição dos limites da profissão – fixação em lei). Elemento subjetivo: dolo. Não admite modalidade culposa. Tentativa: não admite (habitualidade – doutrina dominante). Ação penal: pública incondicionada. Fundamento constitucional Como estatui o art. 5.º, inc. XIII, da Constituição Federal: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Trata-se de norma constitucional de eficácia contida. A regra é a liberdade de trabalho, ofício ou profissão, mas o próprio constituinte originário admitiu a imposição de exigências, pelo legislador ordinário, para o desempenho de tais atividades. Nesse contexto, há requisitos legais para o exercício da medicina, da odontologia e da atividade farmacêutica. E, levando em conta a relevância da saúde pública, o art. 282 do Código Penal acertadamente erigiu à categoria de crime a atuação ilegal relacionada a tais profissões. Objetividade jurídica - O bem jurídico penalmente tutelado é a saúde pública. Objeto material. É a profissão de médico, dentista ou farmacêutico. Como destaca Heleno Cláudio Fragoso: Os atos inerentes à profissão de médico são os que visam ao tratamento da pessoa humana, na cura ou prevenção de moléstias ou correção de defeitos físicos. A profissão de farmacêutico diz com o exercício da farmácia, que é a arte de preparar os medicamentos. A profissão de dentista tem por objeto o tratamento das moléstias dentárias. A discussão relativa a outras profissões e a taxatividade do art. 282 do Código Penal O rol do art. 282, caput, do Código Penal é taxativo, abarcando somente o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica, e nada mais. De fato, o exercício da profissão de médico veterinário, sem autorização legal, não autoriza a incidência do crime tipificado no art. 282 do Código Penal, pois é vedada a utilização da analogia in malam partem no âmbito criminal, em respeito ao princípio da reserva legal (CF, art. 5.º, inc. XXXIX, e CP, art. 1.º). 1 Com efeito, se o legislador desejasse tutelar a saúde pública também na esfera veterinária, deveria tê-lo feito expressamente. Como se sabe, a elementar “médico” não alcança o sujeito que desempenha atos inerentes à medicina veterinária. Igual raciocínio deve ser aplicado à atuação dos enfermeiros, dos massagistas e especialmente das parteiras, as quais, embora cada vez mais raras, ainda existem nos longínquos rincões brasileiros, em face da dificuldade de encontrar médicos ginecologistas e obstetras. Núcleo do tipo O núcleo do tipo é “exercer”, no sentido de praticar, desempenhar ou exercitar, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico. A redação típica deixa claro ser prescindível o fim de lucro para a caracterização do delito. No entanto, se este for o móvel do agente, deve ser aplicada cumulativamente a pena de multa, nos termos do art. 282, parágrafo único, do Código Penal. O verbo “exercer” é indicativo da habitualidade do delito. Destarte, não basta a realização de um único ato privativo do médico, dentista ou farmacêutico. Exige-se a reiteração de atos, reveladores do estilo de vida ilícito assumido pelo farsante. O crime pode ser praticado de duas formas: (a) quando o sujeito exerce, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal. É a famosa “falta de autorização legal”; ou (b) quando ele a exerce, ainda que a título gratuito, excedendo-lhe os limites. Trata-se da “transposição dos limites da profissão”. Vejamos cada uma delas. a) Falta de autorização legal O agente não possui autorização legal para exercer a profissão de médico, dentista ou farmacêutico. A expressão “sem autorização legal” representa um elemento normativo do tipo: o sujeito não está autorizado a desempenhar a profissão porque não possui o título que o habilite para tanto (falta de capacidade profissional), como no exemplo daquele que atende doentes em seu consultório, sem nunca ter frequentado a faculdade de medicina, ou então porque seu título, embora exista, não foi registrado perante o órgão competente (falta de capacidade legal), tal como se verifica na situação em que o graduado em ciências médicas não teve seu diploma registrado perante o Conselho Regional de Medicina respectivo. b) Transposição dos limites da profissão O agente possui autorização legal para exercer a medicina, arte dentária ou farmacêutica, mas extrapola os limites que a lei lhe impõe. Em outras palavras, o sujeito concluiu o curso superior de medicina, odontologia ou farmácia, e seu título encontra-se devidamente registrado perante o órgão competente, mas ele extravasa os limites da autorização para o exercício da profissão. É o que se verifica, a título ilustrativo, quando um médico ortopedista se aventura a realizar cirurgias cardíacas. 2 Cuida-se de lei penal em branco homogênea, pois é preciso analisar os limites de atuação conferidos a cada profissional pelas leis atinentes às áreas da medicina, da odontologia e da farmácia. Sujeito ativo No tocante à primeira conduta – “exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal” –, o art. 282 do Código Penal contempla um crime comum ou geral, uma vez que pode ser cometido por qualquer pessoa. Na prática, contudo, normalmente o agente possui conhecimentos da profissão, ainda que a título precário, pois somente assim reúne condições para ludibriar um número indeterminado de pessoas, proporcionando-lhes tratamento típico daqueles que se fazem com médico, dentista ou farmacêutico. Nesse caso, apresenta-se o exercício profissional sem qualquer título de habilitação ou sem registro deste na repartição competente (Conselho Regional de Medicina, de Odontologia ou de Farmácia). Não basta o diploma universitário: exige-se ainda seu registro na repartição competente. Por sua vez, na conduta de “exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, (…) excedendo-lhe os limites”, cuida-se de crime próprio ou especial, pois somente pode ser praticado pelo médico, dentista ou farmacêutico devidamente habilitado e registrado que extrapola os quadrantes da sua atuação. Nessa hipótese, incide o jargão popular “cada macaco no seu galho”, ou, mais tecnicamente, “a cada um o seu ofício”: o médico não pode atrever-se a manipular remédios, o farmacêutico não pode prescrever medicamentos, o dentista não pode meter-se a tratar câncer de boca etc. Anote-se que o excesso apontado pelo texto legal é somente o funcional, não abrangendo o de natureza territorial (ou espacial). Exemplificativamente, o médico registrado perante o Conselho Regional de Medicina de São Paulo não praticará o delito tipificado no art. 282 do Código Penal, mas somente um ilícito administrativo, se passar a exercer sua profissão no Estado do Ceará, sem efetuar seu registro no Conselho Regional de Medicina respectivo. Médico, dentista ou farmacêutico e suspensão das suas atividades Se o médico, dentista ou farmacêutico realizar atos inerentes às suas profissões, no período em que se encontrava suspenso das suas atividades, duas situações deverão ser diferenciadas: a) Em caso de suspensão judicial, estará caracterizado o crime de desobediência à decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito, definido no art. 359 do Código Penal: Art. 359. Exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial: Pena – detenção, de três meses a dois anos, ou multa. b) Tratando-se, porém, de suspensão administrativa, incidirá o crime de exercício de atividade com infração de decisão administrativa, tipificado no art. 205 do Código Penal: 3 Art. 205. Exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa: Pena – detenção, de três meses a dois anos, ou multa. A profissão de dentista exercida pelo protético Nos termos do art. 4.º, incisos I, II e III, da Lei 6.710/1979, aos técnicos em prótese dentária é vedado prestar, sob qualquer forma, assistência direta a clientes; manter, em sua oficina, equipamento e instrumental específico de consultório dentário, bem como fazer propaganda de seus serviços ao público em geral. Consequentemente, se o técnico em prótese dentária exercer de forma habitual a profissão de dentista, a ele será imputado o crime definido no art. 282 do Código Penal. Este efeito, a propósito, consta expressamente do art. 8.º da Lei 6.710/1979. Sujeito passivo É a coletividade (crime vago) e, mediatamente, as pessoas atendidas pelo falso profissional da medicina, arte dentária ou farmacêutica. Elemento subjetivo É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa. Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica e finalidade lucrativa Se o crime for praticado com fim de lucro, aplica-se também a pena de multa. É o que se extrai do art. 282, parágrafo único, do Código Penal. Exige-se o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica com o ânimo de obter vantagem ou benefício econômico, a exemplo do que se verifica nas atividades remuneradas. Pela redação do dispositivo legal, é fácil perceber ser bastante a finalidade lucrativa, pouco importando venha esta a ser alcançada ou não. Atos praticados em situações emergenciais ou na falta de profissionais habilitados (estado de necessidade) e pequenos auxílios no âmbito familiar (ausência de dolo) Não há crime, em razão da incidência da causa excludente da ilicitude atinente ao estado de necessidade (CP, arts. 23, inc. I, e 24), nas situações em que uma pessoa, sem estar devidamente habilitada para o exercício da profissão, desempenha atividade inerente aos médicos, dentistas ou farmacêuticos, quando ausentes tais profissionais, para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir. Visualiza-se um nítido conflito de interesses: de um lado, a tutela da saúde pública, pois não se permite o exercício da medicina, arte dentária ou farmacêutica por pessoas não habilitadas e legitimamente autorizadas para tais misteres; de outro lado, a proteção da vida ou da integridade física de indivíduos desamparados por profissionais da área de saúde. Para a solução desse entrave, deve prevalecer o bem jurídico de maior importância. E, sem dúvida 4 alguma, no cotejo de valores sobressai como mais relevante a vida ou a integridade física do ser humano. Pensemos em um exemplo: “A”, estudante de medicina em uma grande cidade e “mochileiro” no período de férias, sai em viagem pelos pontos mais isolados do Brasil. Ao chegar em uma comunidade situada no meio de uma floresta, depara-se com uma situação alarmante, na qual diversas crianças enfrentam graves crises de diarreia e vômitos, e descobre que não há sequer um profissional da medicina nas proximidades. Preocupado, “A” decide atender e medicar as crianças, promovendo a cura de todas elas, além de orientar seus pais a enfrentar tais problemas. Questiona-se: No exemplo narrado, “A” praticou o crime descrito no art. 282 do Código Penal? A resposta há de ser negativa, em face do reconhecimento do estado de necessidade. Com efeito, entre manter a situação de risco à vida de crianças indefesas e optar pela atuação de boa-fé de pessoa disposta a evitar maiores sofrimentos em terceiros, mesmo sem possuir autorização legal para o exercício da medicina, não há dúvida que esta última posição, além de mais humana, é também juridicamente a mais acertada. Também não há crime, agora por ausência de dolo, nos pequenos auxílios prestados a enfermos no âmbito do recinto familiar. É o que ocorre, exemplificativamente, com a mãe de família que habitualmente ministra aos seus filhos xaropes caseiros para cura de resfriados. Nessas situações, indiscutivelmente há crime do ponto de vista objetivo, pois encontram-se presentes as elementares do art. 282, caput, do Código Penal. Mas não se nega, sob o prisma subjetivo, a ausência de dolo, indispensável para a concretização da conduta criminosa. Acerca desse assunto, Nélson Hungria invoca uma marcante passagem histórica: Quando da elaboração da lei francesa repressiva do exercício ilegal da medicina, o senador Hervé de Saisy indagava: “Será que ireis também processar, atingir, no lar doméstico, a mãe de família que, na ausência de um médico, ou não dispondo do suficiente em sua bolsa para chamá-lo, ou se encontre em circunstâncias que lhe acarretam a impossibilidade de recorrer a ele, preenche o dever sagrado de tratar de seu marido, de seus filhos ou de seus velhos pais, ainda que habitualmente, pois tal dever é de todos os dias e de todos os instantes?”. O decano Brouardel, presente como comissário do Governo, deu resposta imediata: “Jamais de la vie, sous aucun pretexte!”. Consumação O exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica é crime habitual. O núcleo do tipo – “exercer” – autoriza a conclusão no sentido de que o delito somente se consuma com a prática reiterada e uniforme da conduta legalmente descrita, de modo a revelar o estilo de vida ilícito adotado pelo agente. Destarte, um ato isoladamente considerado é penalmente irrelevante, como no exemplo do estudante de medicina que realiza uma única consulta em seu pai, inclusive ministrando-lhe medicamentos. Se assim não fosse, cada ato isoladamente considerado representaria um crime autônomo, e a totalidade deles poderia caracterizar a continuidade delitiva, nos moldes do art. 71, caput, do Código Penal. Mas, como corolário da nota da habitualidade, a reiteração de atos importa na configuração de um único crime. No entanto, ao contrário do que uma análise precipitada pode revelar, a habitualidade não se condiciona à pluralidade de “pacientes”: os repetidos atos de tratamento de um doente, um só que seja, são aptos a concretizá-la. Vislumbra-se o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou 5 farmacêutica, portanto, tanto quando o sujeito atende diversas pessoas, ainda que no mesmo dia, ou então um único indivíduo, continuadamente. Cuida-se também de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a prática reiterada da conduta prevista no art. 282, caput, do Código Penal, prescindindo-se da superveniência do resultado naturalístico, ou seja, da provocação de mal a quem quer que seja. A propósito, o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica igualmente desponta como crime de perigo comum e abstrato, pois a lei presume, de forma absoluta, o risco à saúde de pessoas indeterminadas como desdobramento da conduta criminosa. Logo, ainda que o atendimento prestado seja de alto nível e proporcione resultado eficaz, o crime estará consumado. Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça: O tipo penal previsto no art. 282 do Código Penal (exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica) pune a conduta daquele que sem autorização legal, é dizer, sem qualquer título de habilitação ou sem registro deste na repartição competente (Nelson Hungria in “Comentários ao Código Penal – Volume IX”, Ed. Forense, 2.ª edição, 1959, página 145), ou ainda, exorbitando os limites desta, exerce, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico. Trata-se de crime de perigo abstrato, habitual, que procura tutelar a saúde pública do dano que pode resultar do exercício ilegal e abusivo da medicina, bem como da arte dentária ou farmacêutica (Heleno Cláudio Fragoso in “Lições de Direito Penal – Parte Especial – Volume II”, Ed. Forense, 1.ª edição, 1989, página 275). Tentativa A doutrina amplamente majoritária sustenta a inadmissibilidade do conatus, com um argumento bastante simples: o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica é crime habitual, e delitos desta estirpe são incompatíveis com a tentativa. Com o devido respeito, acreditamos que esse raciocínio, generalizado e extremamente simplista, deva ser rechaçado. Em nossa opinião, os crimes habituais são, em regra, contrários à figura da tentativa. Todavia, o caso concreto pode, excepcionalmente, revelar o cabimento do conatus, especialmente no terreno do crime previsto no art. 282 do Código Penal. Pensemos em um exemplo. Um professor de determinado curso preparatório para concursos públicos é procurado por um aluno inquieto às vésperas da prova. Com o propósito de ajudá-lo, o docente prescreve ao candidato um medicamento que utilizou durante seu período de estudos, destinado a acalmá-lo e permitir seu descanso noturno. O método funciona, o aluno obtém êxito no exame e rapidamente a fama do professor se espalha nos corredores da instituição de ensino. O mestre, seduzido pela possibilidade de ganhar muito dinheiro, começa a anunciar aos quatros ventos que, além de bacharel em Direito, é também formado em Medicina. Como passa a ser cada vez mais procurado pelos desesperados alunos, o professor decide instalar, em frente ao curso em que leciona, uma clínica médica, com atuação exclusiva na cura de problemas que acometem os concursandos em geral: ansiedade, insônia, sensação de impotência, falhas na memória etc. Antes da inauguração do consultório “médico”, o farsante veicula inúmeros comerciais dos seus trabalhos, em jornais, revistas, rádio e televisão. Consequentemente, centenas de consultas são agendadas e pagas com antecedência. No primeiro dia de funcionamento da clínica, 6 diversas pessoas aguardam ansiosas o atendimento na sala de espera. Quando o golpista está examinando o primeiro paciente, a polícia invade o local e efetua sua prisão em flagrante. Nesse exemplo, é indiscutível a finalidade de exercer, com habitualidade, o exercício ilegal da medicina. Houve somente um ato privativo de médico, sem reiteração. O sujeito iniciou a execução do delito, e somente não o consumou por circunstâncias alheias à sua vontade. Fica nítida, portanto, a tentativa do crime tipificado no art. 282 do Código Penal. Ação penal A ação penal é pública incondicionada. Lei 9.099/1995 Em face do máximo da pena privativa de liberdade cominada (dois anos), o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica constitui-se em infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal e compatível com a transação penal e o rito sumaríssimo, em consonância com as regras estatuídas pela Lei 9.099/1995. Classificação doutrinária O exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica é crime comum (na conduta de exercer a profissão sem autorização legal) ou próprio (na modalidade de exercer a profissão excedendo-lhe os limites); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta criminosa, prescindindo-se da superveniência do resultado naturalístico); habitual (reclama a reiteração de atos indicativos do estilo de vida ilícito do agente); de perigo comum e abstrato (a lei presume a situação de perigo à saúde pública); de forma livre (admite qualquer meio de execução); vago (tem como sujeito passivo um ente destituído de personalidade jurídica, qual seja, a coletividade); instantâneo (consumase em um momento determinado, sem continuidade no tempo); em regracomissivo; unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser praticado por uma só pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos). Formas qualificadas pelo resultado: art. 285 do Código Penal O art. 285 do Código Penal determina a incidência das regras contidas em seu art. 258 ao crime de exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica. Nada obstante o legislador tenha empregado a expressão “formas qualificadas pelo resultado”, cuidam-se decausas de aumento da pena. Destarte, se do fato doloso resultar lesão corporal de natureza grave (ou gravíssima), aumentar-se-á pela metade a pena privativa de liberdade; se resultar morte, aplicar-se-á a pena em dobro. São hipóteses de crimes preterdolosos, pois o resultado agravador (lesão corporal grave ou morte) há de ser produzido a título de culpa. 7 A questão relativa à falsificação do diploma universitário para o exercício ilegal da profissão A falsificação do diploma universitário, visando o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica, é absorvida pelo crime previsto no art. 282 do Código Penal, pois funciona como meio de execução para a prática do crime contra a saúde pública. O conflito aparente de leis penais é solucionado pelo princípio da consunção. Em sintonia com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Falsificação de documento público. Exercício ilegal da medicina. (…) Consunção do falso pelo crime previsto no art. 282 do Código Penal. Ocorrência. (…) A falsificação de documentos públicos (diploma de conclusão do curso superior de medicina) visando ao exercício ilegal da profissão de médico, consubstanciado no requerimento de exames clínicos, prescrição de medicamentos e realização de plantões médicos em hospital, constitui crime-meio, que deve ser absorvido pelo crime-fim, pois a falsificação em questão se exauriu no exercício ilegal da medicina, sem mais potencialidade lesiva. Concurso de crimes entre exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica e curandeirismo É possível falar em concurso de crimes na hipótese em que o agente exerce o curandeirismo e também pratica atos inerentes aos profissionais da medicina ou da arte dentária ou farmacêutica, sem possuir habilitação para tanto? Há duas posições sobre o assunto. Para o Supremo Tribunal Federal, é vedado o reconhecimento do concurso de crimes, pois o curandeirismo e o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica são delitos logicamente incompatíveis entre si: (…) assentou-se a contradição lógico-jurídica intrínseca às condenações impostas aos pacientes, porquanto os delitos imputados excluem-se mutuamente, já que, no crime previsto no art. 282 do CP, exige-se que o agente apresente aptidões ou conhecimentos médicos, ainda que sem a devida autorização legal para exercer o respectivo ofício, enquanto, para se configurar o do art. 284, é necessário que o sujeito ativo seja pessoa inculta ou ignorante. Com entendimento diverso, o Superior Tribunal de Justiça admite o concurso de crimes, afastando inclusive o bis in idem e o princípio da consunção, pois não há falar em conflito aparente de leis penais: Embora o curandeirismo seja prática delituosa típica de pessoa rude, sem qualquer conhecimento técnico-profissional da medicina e que se dedica a prescrever substâncias ou procedimentos com o fim de curar doenças, não se pode descartar a possibilidade de existência do concurso entre tal crime e o de exercício ilegal de arte farmacêutica, se o agente também não tem habilitação profissional específica para exercer tal atividade. Reconhecida a prática de duas condutas distintas e independentes, não há como se proclamar ilegal a condenação por cada uma delas, não se mostrando, in casu, ter havido bis in idem ou indevida atribuição de concurso de crimes, não cabendo, ainda, aplicação da consunção entre os delitos. 8 Concurso de crimes entre exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica e tráfico de drogas: possibilidade Para a prática do crime tipificado no art. 282 do Código Penal, é suficiente o exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica. Não é preciso seja prescrita ou ministrada alguma droga para o tratamento de moléstia da qual o enfermo seja portador. Mas, se isso ocorrer, o sujeito deverá responder pelo crime contra a saúde pública e pelo tráfico de drogas (Lei 11.343/2006, art. 33, caput), em concurso formal, pois tais delitos são perfeitamente compatíveis entre si. Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: Não existe a vinculação necessária, que se pretende estabelecer, da prática do crime previsto no art. 282 do Código Penal com o crime de tráfico de drogas. De fato, não se exige para a configuração do crime de exercício ilegal da medicina que o agente prescreva substância tida pela legislação como droga para os fins da Lei n.º 11.343/2006. O vulgar exercício da medicina por parte daquele que não possui autorização legal para tanto é suficiente para a delimitação do tipo em destaque. Se o agente ao exercer irregularmente a medicina ainda prescreve droga, resta configurado, em tese, conforme já reconhecido por esta Corte em outra oportunidade, o concurso formal entre o art. 282 do Código Penal e o art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/2006. Art. 282 do Código Penal e art. 47 da Lei das Contravenções Penais: distinção O art. 47 do Decreto-lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais possui a seguinte redação: Art. 47. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa. No art. 282 do Código Penal o bem jurídico protegido é a saúde pública, pois o comportamento ilícito atinge a profissão de médico, dentista ou farmacêutico. Por seu turno, o art. 47 do Decreto-lei 3.688/1941 está inserido no capítulo relativo às contravenções relativas à organização do trabalho. Destarte, incide a mencionada contravenção penal ao profissional – com exceção do médico, dentista ou farmacêutico – que desempenha exerce suas atividades, ou anuncia exercê-las, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício. É o que se dá com o bacharel em Direito que advoga sem estar regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Art. 283 – Charlatanismo Art. 283 - Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Objeto material: anúncio da cura por meio secreto ou infalível. Elemento subjetivo: dolo. Não admite modalidade culposa. Tentativa: admite (crime plurissubsistente). Ação penal: pública incondicionada. 9 Objetividade jurídica O bem jurídico penalmente tutelado é a saúde pública. O anúncio da falsa cura muitas vezes acarreta a decisão de pessoas ingênuas no sentido de ser desnecessário o auxílio médico para proceder ao tratamento convencional da doença, resultando em riscos para a saúde ou mesmo para a vida. Objeto material É o anúncio da cura por meio secreto ou infalível. Cura secreta é o tratamento de doença de maneira oculta, mediante a utilização de procedimentos ignorados pelas ciências médicas. Cura infalível, por sua vez, é o tratamento plenamente eficaz, apto a restabelecer, inevitavelmente, a saúde do paciente. Núcleos do tipo O tipo penal contém dois núcleos: “inculcar” e “anunciar”. Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, pois o tipo penal contém dois núcleos, e a prática de ambos, no tocante ao mesmo objeto material e no mesmo contexto fático, configura um único delito. Inculcar é aconselhar, apregoar, sugerir; anunciar é noticiar, divulgar pelos mais variados meios (panfletos, cartazes, rádio, televisão etc.). Com efeito, incide no art. 283 do Código Penal aquele que apregoa ou divulga tratamento de doença mediante cura secreta ou infalível. Para Flamínio Fávero, o termo charlatanismo: (…) parece vir do italiano ciarlare que quer dizer taramelar, parlar, falar muito, tagalerar, conversar. De início, parece que só isso satisfazia os charladores. Enchiam o seu tempo e dos ouvintes, mais ou menos agradavelmente, conversando apenas. É como quem diz “conversando fiado” ou “dando ponto sem nós”. Depois, esses charladores julgaram de bom aviso unir o útil ao agradável e, então, vendiam drogas, apregoando-as com exagero: são os pontos com nós… Mas a concorrência na luta pela vida é cada vez mais intensa. Daí, para a vitória, não bastou mais o exagero dos preconícios, envolvidos ainda de certa licitude e moralidade. Achou-se razoável prometer mais do que seria possível, oferecer coisas inexistentes, usar a embusteirice e a impostura (…). Cabe-lhe curar algumas vezes, aliviar muitas e consolar sempre. Mas isto, que satisfaria a medicina, não acalma os anseios da maioria dos homens. Então surge a medicina desonesta. Os homens querem, mais do que o alívio e o consolo, a cura, e por qualquer preço. E assim confiam em tudo que sejam promessas. E estimulam mesmo essas promessas, embora saibam que, às vezes, oferecem apenas embusteirice e impostura… É o terreno propício para os charlatães que medram como os cogumelos no terreno úmido e sombrio. Destarte, a ilicitude do comportamento reside no segredo e na infalibilidade da cura de determinada doença, pois às ciências médicas não é dado prometê-la por meios secretos, tampouco anunciar procedimento que inevitavelmente irá alcançá-la. É sabido, a propósito, que a medicina, em sua grande parte, é considerada atividade-meio, e não atividade-fim. 10 Sujeito ativo O crime é comum ou geral, podendo ser cometido por qualquer pessoa, inclusive pelos profissionais da área da saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, dentistas, farmacêuticos etc.). Sujeito passivo - É a coletividade (crime vago). Elemento subjetivo É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. O sujeito deve possuir ciência da falsidade do meio secreto ou infalível por ele inculcado ou anunciado, pois nesse ponto repousa sua fraude. Mas não se exige a finalidade de obtenção de vantagem econômica, malgrado esta seja normalmente a meta buscada pelo charlatão. Com entendimento diverso, assim se manifesta Guilherme de Souza Nucci: Não vemos necessidade de se exigir do agente que saiba que seu método não é infalível ou ineficaz. Ainda que seja um crédulo no que faz, o fato é que não deve assim proceder, por colocar em risco a saúde pública, podendo levar pessoas a não se tratarem em outros locais para se aventurarem em seara desconhecida e perigosa. A vontade, pois, deve voltar-se a divulgar cura por método infalível, creia nisso ou não. Não se admite a modalidade culposa. Charlatanismo e exercício ilegal da medicina: distinção Os crimes de charlatanismo e de exercício ilegal da medicina (CP, art. 282) não se confundem. Aquele é de natureza instantânea e pode ser cometido inclusive pelo médico; este é habitual e, via de regra, não pode ter o profissional da medicina como sujeito ativo. Mas não para por aí. O ponto fundamental que os diferencia repousa no elemento subjetivo, e foi assim explicado por Nélson Hungria: Entre aquele que exerce ilegalmente a medicina e o “charlatão” a diferença é a seguinte: o primeiro acredita na eficácia do tratamento que aconselha ou aplica (indicado, aliás, ou não desaprovado pela ciência oficial, desde que prescrito por médico), ao passo que o segundo é um insincero, sabendo que nenhum efeito curativo pode ter o tratamento que inculca ou anuncia (as mais das vezes consistente em alguma panaceia não oficializada ou sem as virtudes atribuídas). Ainda mais: o agente do charlatanismo pode ser, e frequentemente o é, até mesmo um médico profissional e legalmente habilitado, que se torna, assim, um infrator consciente do código de ética da classe médica. Charlatanismo e estelionato: diferença e concurso de crimes O charlatanismo, cuja nota característica é a fraude, guarda muita afinidade com o estelionato. Cuida-se de autêntico “estelionato contra a saúde pública”. Como leciona Magalhães Noronha: “A expressão vem do latim ciarlare, que significa falar muito, tagarelar, parlar etc. É o crime do 11 ‘conversa-fiada’, do que, com lábia, ilude os incautos, fazendo-os crer em curas maravilhosas, em processos infalíveis etc.”. De qualquer modo, o legislador decidiu inserir o charlatanismo de forma autônoma no rol dos crimes contra a saúde pública, e não entre os delitos patrimoniais, por duas razões: (a) embora seja a regra geral, nem sempre o sujeito é movido pela intenção de obter vantagem ilícita em prejuízo alheio; e (b) sua prática implica perigo à saúde pública, pois diversas pessoas deixam de receber tratamento médico adequado pelo fato de acreditarem na “conversa-fiada” do charlatão. Entretanto, se o falsário, além de inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível, também obtiver vantagem ilícita em prejuízo alheio, a ele serão imputados os crimes de charlatanismo e estelionato, em concurso material, pois há ofensa a bens jurídicos diversos, quais sejam, a saúde pública e o patrimônio. É o que se verifica, a título ilustrativo, quando um golpista anuncia a cura da Aids ou do câncer mediante o consumo de um chá especial, que vem a ser vendido aos interessados por elevado preço. Consumação O charlatanismo é crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com o ato de inculcar ou anunciar a cura por meio secreto ou infalível, pouco importando se a pessoa enferma venha ou não a ser efetivamente “tratada” pelo charlatão. É também crime de perigo comum e abstrato, pois a lei presume, de forma absoluta, a situação de risco a pessoas indeterminadas como consequência da prática da conduta ilícita. Trata-se de crime instantâneo, e não de crime habitual. Portanto, é dispensável a reiteração do comportamento para a configuração do charlatanismo. Basta um único anúncio fraudulento de cura para o aperfeiçoamento do delito. Tentativa É possível, em face do caráter plurissubsistente do delito, permitindo o fracionamento do iter criminis. Ação penal - A ação penal é pública incondicionada. Lei 9.099/1995 - O charlatanismo é infração penal de menor potencial ofensivo. A pena privativa de liberdade cominada em seu patamar máximo (um ano) autoriza a transação penal e o rito sumaríssimo, incluindo o delito na competência do Juizado Especial Criminal. Classificação doutrinária O charlatanismo é crime comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta criminosa, prescindindo-se da superveniência do resultado naturalístico); de perigo comum e abstrato (a lei presume a situação de perigo à saúde pública); de forma livre (admite 12 qualquer meio de execução); vago (tem como sujeito passivo um ente destituído de personalidade jurídica, qual seja, a coletividade); instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); em regra comissivo; unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser praticado por uma só pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos). Formas qualificadas pelo resultado: art. 285 do Código Penal O art. 285 do Código Penal determina a incidência das regras contidas em seu art. 258 ao crime de charlatanismo. Embora o legislador tenha empregado a expressão “formas qualificadas pelo resultado”, cuidam-se de causas de aumento da pena. Portanto, se do fato doloso resultar lesão corporal de natureza grave (ou gravíssima), aumentar-se-á pela metade a pena privativa de liberdade; se resultar morte, aplicar-se-á a pena em dobro. São hipóteses de crimes preterdolosos, pois o resultado agravador (lesão corporal grave ou morte) há de ser produzido a título de culpa. Art. 284 – Curandeirismo Art. 284 - Exercer o curandeirismo: I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III - fazendo diagnósticos: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa. Forma qualificada Art. 285 - Aplica-se o disposto no art. 258 aos crimes previstos neste Capítulo, salvo quanto ao definido no art. 267 (epidemia). Objeto material: substância prescrita, ministrada ou aplicada, o gesto, a palavra ou qualquer outro meio, bem como o diagnóstico efetuado. Elemento subjetivo: dolo. Não admite modalidade culposa. Tentativa: admite (crime plurissubsistente – divergência doutrinária). Ação penal: pública incondicionada. Objetividade jurídica O bem jurídico penalmente tutelado é a saúde pública. 13 Objeto material É a substância prescrita (matéria receitada, determinada ou indicada), ministrada (prestada, fornecida ou servida) ou aplicada (empregada, administrada), o gesto (movimento corporal, especialmente dos membros superiores e da cabeça, que pode servir para manifestar ideias ou sentimentos), a palavra ou qualquer outro meio (fórmula residual), bem como o diagnóstico efetuado (avaliação do problema ostentado por alguém). Núcleo do tipo O núcleo do tipo é “exercer”, no sentido de desempenhar ou praticar determinado comportamento com habitualidade. Com efeito, o verbo “exercer” é indicativo da reiteração de atos, razão pela qual a realização isolada da conduta legalmente descrita não constitui o delito. Curandeirismo, por seu turno, é a prática consistente no ato de restabelecer a saúde alheia por pessoa a quem não é atribuída função, capacidade ou poder para tal fim. Em regra, é realizada por indivíduo sem qualquer título ou idoneidade técnica ou profissional para alcançar a cura. A atividade do curandeiro não precisa ser completamente inovadora e totalmente falha, de modo a permitir que somente as pessoas menos esclarecidas possam cair no golpe. Cuida-se de crime de forma vinculada, pois o tipo penal arrola expressamente seus meios de execução. Vejamos. Inciso I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância Prescrever é receitar ou recomendar; ministrar equivale a entregar para consumir ou inocular; e aplicar tem o sentido de empregar ou utilizar. As ações ligam-se a “qualquer substância”, de origem vegetal, animal ou mineral (exemplos: pomadas, líquidos, tripas de animais, penas de aves etc.), seja ou não nociva à saúde humana pois, nada obstante sua inocuidade, ela impede ou retarda o tratamento correto do enfermo pelo profissional da área de saúde. O dispositivo legal enfatiza a necessidade de qualquer dos comportamentos ser realizado de forma habitual. Cumpre destacar, contudo, ser esta condição intrínseca a todas as modalidades do crime de curandeirismo, pois o tipo penal utiliza no caput o verbo “exercer”. Inciso II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio Gestos consistem no emprego de movimentos corporais, especialmente dos membros superiores e da cabeça, que podem servir para manifestar ideias ou sentimentos, a exemplo dos passes, atitudes e posturas. Palavras são os meios utilizados para facilitar a comunicação interpessoal, mediante linguagem escrita ou falada, tais como as rezas, benzeduras, encomendações e esconjuros. Além disso, o legislador socorreu-se mais uma vez da interpretação analógica (ou intra legem), empregando a expressão “ou qualquer outro meio” para abarcar atos análogos aos gestos e às palavras, criados pela imaginação humana e impossíveis de serem esgotados no plano abstrato (exemplo: telepatia). No inciso II do art. 284 do Código Penal, impera a superstição das pessoas, independentemente da sua classe social, raça, origem ou nacionalidade. A força e a autoridade do curandeiro não existiriam sem os supersticiosos. A propósito, é raro encontrar alguém que 14 não tenha sua superstição: sexta-feira 13, gato preto em noite de lua cheia, passar por baixa de escada, descer da cama ao acordar e pisar com o pé direito, e assim por diante. Nessa linha de raciocínio, Magalhães Noronha apresenta técnicas corriqueiras dos curandeiros: Para a facilitação do parto, deve a mulher calçar os sapatos do marido e pôr seu chapéu. Picada de cobra é curada com água benta pelo curandeiro com um ramo de alecrim. Tosse rebelde (coqueluche) com chá de fezes secas de cachorro. A febre é extinta abrindo-se ao meio uma pomba e calçando-a no pé da criança. O sangue é estancado com a aplicação de teia de aranha. E assim outras práticas imbecis. Inciso III – fazendo diagnósticos Nessa hipótese, o comportamento ilícito reduz-se a fazer diagnósticos, ato privativo do médico, mediante a constatação de uma doença ou enfermidade pelos seus sintomas ou sinais característicos. Assim agindo, o curandeiro retarda a cura ou o tratamento de uma doença, comprometendo a saúde e até mesmo a vida do enfermo. É o caso daquele que identifica um câncer no crânio como uma simples dor de cabeça, impedindo a terapia eficaz e, no mais das vezes, a preservação da vida humana. Sujeito ativo O curandeirismo é crime comum ou geral. Pode ser cometido por qualquer pessoa desprovida de conhecimentos médicos. Sujeito passivo - É a coletividade (crime vago). Elemento subjetivo É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Prescinde-se da cupidez, ou seja, da intenção de alcançar vantagem indevida em consequência da conduta ilícita. De fato, o proceder gratuito do curandeiro não desnatura o crime, pois o bem jurídico protegido é a saúde pública, pouco importando eventual lucro do agente. Não se admite a modalidade culposa. Atuação remunerada e aplicação cumulativa da pena de multa: art. 284, parágrafo único Se o curandeirismo for praticado mediante remuneração, e é isto o que normalmente acontece, incidirá também a pena de multa. A lei fere no bolso o sujeito ganancioso. É o que se extrai da leitura do art. 284, parágrafo único, do Código Penal. Consumação O curandeirismo é crime habitual. Sua consumação reclama a prática reiterada de qualquer dos atos descritos no art. 284 do Código Penal, demonstrando um estilo de vida ilícito por parte do agente. A propósito, confira-se o exemplo fornecido pelo Superior Tribunal de Justiça: “O curandeirismo ficou comprovado com a habitualidade com que o réu ministrava os ‘passes’ e obrigava, adultos e menores, a ingerirem sangue de animais e bebida alcoólica, colocando em perigo a saúde e levando os adolescentes à dependência do álcool”. 15 Com efeito, um único ato, ou mesmo poucos atos isoladamente considerados, não caracterizam o delito. Exemplificativamente, é atípica a conduta daquele que, com a intenção de ajudar um amigo enfermo, prescreve-lhe uma só vez uma erva supostamente dotada de propriedades medicinais. Se cada ato isolado acarretasse a configuração do delito, o curandeirismo não seria crime habitual. Na verdade, existiriam diversos crimes de curandeirismo, em continuidade delitiva, nos termos do art. 71, caput, do Código Penal. Anote-se, entretanto, que a habitualidade não exige o exercício dos comportamentos legalmente descritos durante longo período, ou mesmo em dias sucessivos. Uma reiteração de atos (exemplos: aplicações de substâncias, passes etc.), em um mesmo dia e para diversas pessoas, é prova inequívoca do exercício efetivo do curandeirismo. Além disso, para comprovação da habitualidade prescinde-se, de parte do sujeito ativo, do desempenho exclusivo do curandeirismo. Pode ele entregar-se a outras atividades, e nem por isso deixará de ser curandeiro, quando realizar reiteradamente as ações delineadas no art. 284 do Código Penal. O curandeirismo, além de reclamar a habitualidade, é também crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com a prática repetida de qualquer dos comportamentos descritos pelo tipo penal, pouco importando se sobrevém dano ou prejuízo a alguém. Cuida-se ainda de crime de perigo abstrato, pois o legislador presume, de forma absoluta, o risco à saúde pública em decorrência da prática das condutas legalmente previstas. Em outras palavras, a finalidade da lei é proteger a sociedade daqueles que se aventuram a tratar pessoas sem possuir conhecimento científico e especializado para tanto. Tentativa Embora a doutrina majoritária sustente a inadmissibilidade do conatus no âmbito do curandeirismo, em face da sua natureza habitual, ousamos discordar. Em nosso entendimento, o delito é compatível com a figura da tentativa, como corolário do seu caráter plurissubsistente, permitindo o fracionamento do iter criminis. Vejamos um exemplo: “A” instala uma barraca em praça pública, com a finalidade de prescrever a inúmeras pessoas uma erva dotada de fantásticos poderes curativos no tocante à impotência sexual. Após anunciar seu cobiçado produto com o auxílio de um megafone, formase uma fila com diversos interessados. Entretanto, depois de “A” atender somente um homem, surgem policiais que o conduzem ao Distrito Policial. É indiscutível que, nesse caso, o sujeito iniciou a execução do delito de curandeirismo (CP, art. 284, inc. I), somente não o consumando por circunstâncias alheias à sua vontade. Ação penal - A ação penal é pública incondicionada. Lei 9.099/1995 A pena máxima cominada ao delito de curandeirismo é de dois anos. Trata-se, portanto, de infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal e compatível com a transação penal e com o rito sumaríssimo, em consonância com as regras estatuídas pela Lei 9.099/1995. 16 Classificação doutrinária O curandeirismo é crime comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta criminosa, prescindindo-se da superveniência do resultado naturalístico); de perigo comum e abstrato (a lei presume a situação de perigo à saúde pública); de forma vinculada (somente pode ser praticado pelos meios de execução indicados no tipo penal); vago (tem como sujeito passivo um ente destituído de personalidade jurídica, qual seja, a coletividade); habitual (a consumação reclama a reiteração de atos indicativos do estilo de vida ilícito do agente); em regra comissivo; unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser praticado por uma só pessoa, mas admite o concurso); e normalmenteplurissubsistente (a conduta criminosa pode ser fracionada em diversos atos). Formas qualificadas pelo resultado: art. 285 do Código Penal O art. 285 do Código Penal determina a incidência das regras contidas em seu art. 258 ao crime de curandeirismo. Nada obstante o legislador tenha utilizado a expressão “formas qualificadas pelo resultado”, estamos diante de causas de aumento da pena. Destarte, se do fato doloso resultar lesão corporal de natureza grave (ou gravíssima), aumentar-se-á pela metade a pena privativa de liberdade; se resultar morte, aplicar-se-á a pena em dobro. São hipóteses de crimes preterdolosos, pois o resultado agravador (lesão corporal grave ou morte) há de ser produzido a título de culpa. Curandeirismo e rituais religiosos: limites constitucionais e distinção O Brasil é um Estado laico, ou seja, não adota oficialmente nenhuma religião. Como dispõe o art. 19, inc. I, da Constituição Federal: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Se não bastasse, o art. 5.º, inc. VI, da Lei Suprema assegura a liberdade de consciência e de crença, bem como o livre exercício dos cultos religiosos: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Portanto, os atos inerentes aos rituais religiosos – a exemplo dos passes efetuados no espiritismo e das benzeduras dos padres católicos – constituem-se em autênticas manifestações da fé, e não se encaixam no tipo penal do curandeirismo, pois são incapazes de oferecer perigo à saúde pública. No entanto, a atuação fundada na crença religiosa, fomentada e protegida pelo ordenamento jurídico, há de ser diferenciada das atividades desempenhadas por indivíduos rudes e despreparados e sem amparo em qualquer religião ou doutrina, ainda que acreditem serem dotados de poderes curativos e até mesmo milagrosos, pois nessas situações estará caracterizado o crime tipificado no art. 284 do Código Penal, em face da criação de perigo ao bem jurídico penalmente tutelado. 17 A problemática relacionada aos abusos da atividade religiosa Existem indivíduos que, sob o manto da proteção constitucional da liberdade de consciência e de crença, e do livre exercício dos cultos religiosos, extrapolam os limites consagrados à atividade religiosa, provocando danos à saúde e até mesmo à vida de pessoas simples e incautas que depositam a esperança da cura de suas enfermidades nos poderes a eles supostamente atribuídos pelos deuses. É o que se dá nas “cirurgias” de amputações de membros do corpo humano ou de retirada de órgãos, ou ainda nas perfurações efetuadas para operações das mais variadas espécies. Mesmo nesses casos extremos, não se pode reconhecer o crime de curandeirismo, porque está em jogo a crença religiosa da pessoa submetida ao tratamento sobrenatural. Contudo, o Direito Penal não pode se omitir. Sua atuação fica restrita à esfera de disponibilidade do paciente. Destarte, quando a vítima suportar ferimentos graves ou vier a falecer, ou seja, quando for atingida em bens jurídicos indisponíveis, o sujeito deverá ser responsabilizado pela lesão corporal grave (ou gravíssima), ou então pelo crime de homicídio. Exercício ilegal da medicina, charlatanismo e curandeirismo No exercício ilegal da medicina (CP, art. 282), o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum ou geral), inclusive aquela dotada de conhecimentos médicos, desde que não esteja devidamente habilitada para o exercício da profissão. Destarte, o crime se subsume à conduta de quem desempenha a atividade médica sem autorização legal (qualquer pessoa), ou excedendo-lhe os limites (profissional que extrapola seu campo de atuação). De igual modo, o charlatanismo (CP, art. 283) é crime comum, podendo ser cometido inclusive pelo médico. Entretanto, o charlatão funciona como autêntico estelionatário da medicina, pois anuncia a cura de determinada enfermidade por meio secreto ou infalível, ciente de que seu procedimento não é idôneo para tanto. Finalmente, o curandeirismo (CP, art. 284) também pode ser praticado por qualquer pessoa. Todavia, aqui o sujeito ativo não se passa por médico, dentista ou farmacêutico. Sua conduta consiste em promover habitualmente a cura, por meio de métodos vulgares, sem qualquer base técnico-científica. No entanto, ao contrário do charlatão, o curandeiro acredita ser capaz de curar seu paciente mediante a utilização de fórmulas mágicas ou sobrenaturais. Como destaca Nélson Hungria: Segundo o conceito tradicional ou vulgar, curandeiro é o indivíduo inculto, ou sem qualquer habilitação técnico-profissional, que se mete a curar, com o mais grosseiro empirismo. Enquanto o exercente ilegal da medicina tem conhecimentos médicos, embora não esteja devidamente habilitado para praticar a arte de curar, e o charlatão pode ser o próprio médico que abastarda a sua profissão com falsas promessas de cura, o curandeiro (carimbamba, mezinheiro, raizeiro) é o ignorante chapado, sem elementares conhecimentos de medicina, que se arvora em debelador dos males corpóreos. Curandeirismo e estelionato O curandeiro é a pessoa que acredita ser capaz de curar doenças e males do corpo humano mediante o emprego de fórmulas mágicas e completamente em descompasso com os postulados da medicina. Por seu turno, o estelionatário é o sujeito de má-fé que se aproveita da 18 simplicidade da vítima para, valendo-se da fraude, induzi-la ou mantê-la erro, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio. Nesse contexto, se o agente atuar travestido de curandeiro, prometendo solucionar moléstias de modo sobrenatural, mas com o propósito deliberado de obter vantagem ilícita, de ordem econômica, em prejuízo de alguém, a ele será imputado o crime de estelionato (CP, art. 171, caput), e não o de curandeirismo. De fato, a simulação da condição de curandeiro funciona efetivamente como fraude, meio de execução do delito contra o patrimônio. Vejamos um exemplo: “A” vende a “B” um pote contendo em seu interior substância que diz possuir características milagrosas, destinada ao tratamento da Aids, pois teria sido extraída de uma ave raríssima e conhecida unicamente por pessoas “abençoadas” e “especiais”. Na verdade, o produto era constituído de água e corantes, e fabricado por “A” no fundo de sua residência. Trata-se de estelionato, e não de curandeirismo. Curandeirismo, violação sexual mediante fraude e estupro de vulnerável Se o sujeito, a pretexto de curar determinada pessoa de males que acometem seu corpo ou sua mente, com ela mantém conjunção carnal ou outro ato libidinoso, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte sua livre manifestação de vontade, deverá ser responsabilizado pelo crime de violação sexual mediante fraude (CP, art. 215), restando absorvido o curandeirismo, o qual desponta como meio de execução para a prática do fato principal. É o caso daquele que alega possuir poderes sobrenaturais e diz a uma mulher que, para debelar os espíritos negativos alojados em seu corpo, precisa com ela manter conjunção carnal, no que vem a ser atendido. E se a vítima for pessoa menor de 14 anos de idade, ou então portadora de doença ou enfermidade mental, e consequentemente não possuir discernimento para a prática do ato sexual, ou finalmente não puder, por qualquer outra causa, oferecer resistência, estará caracterizado o crime de estupro de vulnerável, de natureza hedionda, definido no art. 217-A do Código Penal. 19