O Poder Popular como afirmação do Estado Democrático

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TGE - UNIDADE 10 (segundo)
TEXTO PARA LEITURA: O poder popular como afirmação do Estado
democrático.
Extraído da internet em:
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3399
Vinício C. Martinez
- doutor em Educação pela USP, professor da Faculdade de Direito da Fundação de
Ensino Eurípides Soares da Rocha em Marília (SP)
O objetivo do texto é analisar o que chamaremos de substância democrática –
conceito que pode ser visto com maior acuidade utilizando-se conceitos e referenciais
de apoio, a exemplo da liberdade e da igualdade.
Os dois temas (liberdade e igualdade), por sua vez, estão atrelados ao conceito
de poder constituinte e, interligando-se com o poder (de forma mais ampla), remetem
novamente para as práticas sociais que permeiam a democracia política. O primeiro
ponto, portanto, é definir de que forma o poder constituinte (como poder popular) está
atrelado à democracia, pois é essa uma análise teórica que oferece condições para se
definir soberania popular, participação democrática, passado e futuro das práticas
sociais e políticas. Como diz Negri (2002):
Falar de poder constituinte é falar de democracia. O poder constituinte está ligado à
idéia de democracia, concebida como poder absoluto. Portanto, o conceito de poder
constituinte, compreendido como força que irrompe e se faz expansiva, é um conceito
ligado à pré-constituição da totalidade democrática. Pré-formadora e imaginária, esta
dimensão entra em choque com o constitucionalismo (1) de maneira direta, forte e
duradoura. Neste caso, nem a história alivia as contradições do presente: ao contrário,
esta luta mortal entre democracia e constitucionalismo, entre o poder constituinte e as
teorias e práticas dos limites da democracia, torna-se cada vez mais presente à medida
em que a história amadurece seu curso. No conceito de poder constituinte está a idéia
de que o passado não explica mais o presente, e que somente o futuro poderá fazê-lo
(2) (...) O constitucionalismo é uma doutrina jurídica que conhece somente o passado, é
2
uma referência contínua ao tempo transcorrido, às potências consolidadas e à sua
inércia, ao espírito que se dobra sobre si mesmo – ao passo que o poder constituinte,
ao contrário, é sempre tempo forte e futuro (...) Em outros termos, o poder constituinte
representa um momento essencial na secularização do poder e na laicização da
política. O poder torna-se uma dimensão imanente à história, um horizonte temporal em
sentido próprio (grifos nossos, p. 07, 21-22).
Sua força está na renovação, na pulsão política que seja capaz de revigorar não
apenas o ordenamento jurídico, mas sim a história, e se reconfigurar tal ordenamento é,
no fundo, para adequá-lo aos novos tempos.
E ainda que o conceito de poder constituinte já esteja conectado ao conceito de
democracia, ei-lo agora apresentado como motor ou expressão principal da revolução
democrática. E nós o vemos viver a sístole e a diástole, às vezes violentíssimas, que
pulsam na revolução democrática, do uno ao múltiplo, do poder à multidão, num tempo
que atinge sempre concentrações fortíssimas, freqüentemente espasmos (2002, p. 22).
Ou seja, se é possível outra referência, pode-se dizer que se trata da própria
força democrática imanente à condição popular, da força democrática capaz de
revolucionar o status quo. E com isso equiparamos o poder constituinte ao poder
popular.
A fim de melhorar a articulação dessa forma de ação popular (cultura política e
popular) - investigando se se trata aqui de ação livre ou direcionada e, acaso seja
direcionada, em função de que diretivas e para qual direção - faremos breve retrospecto
entre liberdade e igualdade principalmente quando dispostas diante da coisa pública (e
a sua negação mais tradicional, que é o privilégio e a discriminação). Entretanto, para
facilitar a leitura, o restante do texto será dividido em três partes.
1. Liberdade: Minha liberdade começa onde termina a do outro e vice-versa.
A primeira questão é desmantelar o equívoco de que nossa liberdade começa
onde termina a do outro e vice-versa (a liberdade do outro começa onde termina a
minha). Em acepção teórica, sem dúvida, temos aqui a perfeita noção da liberdade
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negativa ou vigiada, restrita (nossa) ou restritiva (aos demais). Pois bem, a essa noção
iremos antepor duas outras concepções que permitem tirar o conceito da amarra
jurídica reducionista (pode-se fazer tudo o que não seja proibido ou se é obrigado a
fazer tudo que seja prescrito em lei) e assim entendê-lo mais claramente. E então
diremos: Minha liberdade começa onde começa a do outro/ Minha liberdade termina
onde termina a do outro.
Essa dupla alegação, por sua vez, pauta-se na análise ou demonstração
histórica de que a liberdade negativa (restritiva) dá-se por íntima necessidade de se
proteger a propriedade, isto é, somos livres em nossas propriedades e no interior
destas é que vigora nosso direito e expressão de liberdade. E esta minha liberdade vai
até onde começa a propriedade do outro e vice-versa, ocorrendo com os outros o
mesmo, sendo livres em suas propriedades e tendo este seu direito restrito quando
diante da minha propriedade. Em suma, podemos antecipar, portanto, que expandir a
noção de liberdade passa necessariamente pela redução da propriedade e de seu
alcance social (de certa forma, é este o espírito do preceito constitucional que regula a
função social da propriedade).
Vejamos de forma mais analítica que:
1) a liberdade mediada pela propriedade ou pelo direito à propriedade é limitada
em alcance e significado;
2) A liberdade está limitada pela demarcação da propriedade de cada um e só
se é livre dentro de seus limites territoriais;
3) Assim, expandir a noção de propriedade (ao alcance de todos, sem
apropriação) é expandir a liberdade de cada um;
4) Um direito (propriedade) não pode servir do obstáculo a outro (liberdade);
5) Um direito (liberdade) pode expandir outro (função social da propriedade);
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6) O direito natural à liberdade não depende do Estado, mas justamente da
relação que se mantenha com a propriedade privada e com a perspectiva de
apropriação (social ou individual).
Com relação a essa última questão, bastaria indagar se o Estado, ao regular a
liberdade e a igualdade, age sempre com boa fé. Pois, se age assim, de boa fé, por que
há uma divisão tão evidente entre proprietários e não-proprietários? A liberdade, então,
pressupõe que haja restrição à propriedade (quanto maior essa restrição, maior a
liberdade de ação, pois há espaço livre onde havia limitação, fronteira entre dois
direitos: liberdade condicionada à propriedade), e assim que haja igualdade, uma
igualdade que remova as contradições e os antagonismos entre proprietários e nãoproprietários,
uma
igualdade
entre
não-proprietários,
uma
igualdade
sem
a
exclusividade imposta pela propriedade:
Ora, para que reine a harmonia no universo ou na civitas, é necessário: a) que cada
uma das partes tenha seu lugar atribuído segundo o que lhe cabe, o que é a aplicação
do princípio suum cuique tribuere, máxima expressão da justiça como igualdade b) que,
uma vez que a cada parte foi atribuído seu lugar próprio, o equilíbrio alcançado seja
mantido por normas universalmente respeitadas. Assim, a instauração de uma certa
igualdade entre as partes e o respeito à legalidade são as duas condições para a
instituição e conservação da ordem ou da harmonia do todo, que é – para quem se
coloca do ponto de vista da totalidade e não das partes – o sumo bem (2000, p. 15).
Bobbio diz que são três as principais fontes da desigualdade: étnica, sexual e
social. Ao que poderíamos acrescentar a imposta pela segregação e limitação da
própria liberdade, através da concessão e apropriação constantes por mais
propriedades: "Toda superação dessa ou daquela discriminação é interpretada como
uma etapa do progresso da civilização. Jamais como em nossa época foram postas em
discussão as três fontes principais de desigualdade entre os homens: a raça (ou, de
modo mais geral, a participação num grupo étnico ou nacional), o sexo e a classe
social" (2000, p. 43). É de se ressaltar o fator civilizatório desencadeado pela busca de
maior igualdade entre as pessoas, e ainda mais quando presente em um pensador
sabidamente liberal, como é o caso de Bobbio.
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De forma complementar, ainda cabe assinalar que a luta social pela igualdade
tem reflexos imediatos na segurança jurídica dessa propriedade, na própria concepção
de legalidade, pois: "a alteração da igualdade é um desafio à legalidade constituída,
assim como a não-observância das leis estabelecidas é uma ruptura do princípio de
igualdade no qual a lei se inspira" (2000, p. 15). Portanto, esse poder constituinte, poder
de constituir novas bases sociais, altera a relação entre legalidade e igualdade - no que,
por sua vez, resulta em amplo alcance em termos de justiça social: a justiça capaz de
redistribuir a propriedade. No plano direitos humanos, essa distribuição da propriedade
equivale à chamada segunda geração: a dos direitos sociais. Em Bobbio:
Da crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção e a prática liberal do
Estado é que nasceram as exigências de direitos sociais, que transformaram
profundamente o sistema de relações entre o indivíduo e o Estado e a própria
organização do Estado, até mesmo nos regimes que se consideram continuadores,
sem alterações bruscas, da tradição liberal do século XX (2000, p. 42).
Ou, talvez, ainda pudéssemos designar simplesmente de direito à busca e à
máxima realização social da igualdade. Uma igualdade que se constrói pelo todo, a
partir do todo, da submissão do indivíduo à República — para quem se coloca do ponto
de vista da totalidade e não das partes, é o sumo bem, é o bem comum condicionado à
ação republicana e democrática. Com o que a legalidade também seria completa,
porque aí não haveria mais interesse pela desigualdade ou ilegalidade – todos seriam
iguais perante a lei e as oportunidades.
De forma geral, no entanto, sempre se falará de liberdade em face de algo (tal
qual a tolerância, que será vista mais adiante), isto é, em face da lei, da relação social
ou familiar entre as pessoas, com relação à natureza ou simplesmente o mo(vi)mento
histórico a que as sociedades e culturas se subordinam. Também devemos ressaltar
que a noção de liberdade negativa, em sua expressão clássica, é de natureza jurídica
ou é condicionada à lei, ao princípio da legalidade, como vemos em Bobbio (2000):
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Por liberdade negativa, na linguagem política, entende-se a situação na qual um
sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado,
por outros sujeitos (...) Dado que os limites às nossas ações em sociedade são
geralmente postos por normas (sejam consuetudinárias ou legislativas, sejam sociais,
jurídicas ou morais), pode-se também dizer, como foi dito por uma longa e autorizada
tradição, que a liberdade nesse sentido – ou seja, a liberdade que um uso cada vez
mais difundido e freqüente chama de liberdade negativa – consiste em fazer (ou não
fazer) tudo o que as leis, entendidas em sentido lato e não só em sentido técnicojurídico, permitem ou não proíbem (e, enquanto tal, permitem não fazer) (p. 48-9).
Na nossa Constituição, o princípio é estabelecido pelo artigo 5º, II: "ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". (E que,
em outro arranjo, difere do inciso XXXIX, que é o da reserva legal ou segurança legal:
"não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal").
Ambos assegurados pela essência da própria segurança jurídica, como se tem no
inciso XXXVI do referido artigo 5º: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada". Ou seja, nenhuma alegação libertária, a fim de se
manter constitucional, poderá rever tais deliberações e direitos – e a não ser que se
tenha aí o princípio fundante do poder constituinte, como procedimento revolucionário
que venha obstruir a concessão de privilégios.
De forma suplementar, podemos dizer que se trata da liberdade política
condicionada, configurada pela liberdade jurídica ou pela dimensão jurídica, pelos
limites da lei – o que, é evidente, remete para sua própria garantia e afirmação legal.
Contraditoriamente, o que limita a liberdade política é o que lhe assegura a própria
existência: a lei, a segurança jurídica.
2. Igualdade: de quem e no quê?
Na mitologia, a igualdade é relacionada ao Deus Saturno, havendo uma espécie
de licenciosidade para que as diferenças entre as classes sociais desapareçam:
"Saturno teria sido rei de Roma, e seu reinado foi tido como a Idade de Ouro.
Celebravam-se durante três dias em dezembro as Saturnalia, festas licenciosas durante
as quais desapareciam as diferenças entre as classes sociais (para relembrar a Idade
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de Ouro), e os escravos mandavam em seus senhores" (Kury, 2001, p. 353). Mais tarde
também seria identificado com o Deus Cronos, dos Gregos:
Na tradição órfica a reconciliação de Cronos, longe de seus grilhões e vivendo na
Ilha dos Bem-Aventurados, com seu filho Zeus, assinala o início da chamada Idade de
Ouro. Nessa idade Cronos aparece em seu trono, ora em Olímpia, ora na Itália (onde foi
desde épocas remotas identificado com Saturno), ou então na Sicília, ou na África. Na
Idade de Bronze (ou na Idade de Ferro segundo outra versão da lenda), quando os
homens revelaram a sua maldade irremediável, Cronos voltou ao céu (Kury, 2001, p.
96).
Em Bobbio (2000), é essa a origem mitológica da igualdade comunista, a que
procura tornar comum a todos o alcance da liberdade e da igualdade. É um retorno às
origens: "ao estado de natureza dos jusnaturalistas, ou, ainda mais remotamente, à
idade de ouro, ao reino de Saturno, rei tão justo que, sob seu reinado, não havia nem
escravos nem propriedade privada, mas todas as coisas pertenciam a todos sem
divisões, como se todos os homens tivessem um só patrimônio (p. 44). A igualdade é
onde reina soberano o povo de Saturno.
De outra forma, no entanto, é de se ressaltar que tratamos da igualdade dos
atos e dos fatos de notória razão pública, uma vez que se observa aqui a ação de
cunho
democrático
e
republicano.
Portanto,
devemos
retomar
a
relação
liberdade/igualdade em função da necessidade e da coisa pública – o que exclui todo e
qualquer escrutínio de exclusividade, que seja discriminatório ou que se atenha a
privilégios.
Privilégio, como se sabe, é lei privada. É lei que atende apenas a interesses
particulares, privados, de grupos, de poucos ou de alguns, em detrimento dos
interesses dos muitos, da maioria, do coletivo, dos grupos sociais amplos, diversos e
diversificados – contrários, portanto, ao público, ao interesse público, à República. Tais
privilégios, portanto, impõem ou se impõem a partir de leis injustas, sendo, obviamente,
uma forma arbitrária de manter ou se manter no poder – agora sob certa aura de
legalidade e legitimidade, mas que nada mais fazem do que maquiar a verdadeira
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estrutura de domínio e servidão que se impõe à maioria. Desse modo, as formas
arbitrárias e abusivas de exercer ou conquistar o poder têm algo em comum: a
imposição de leis injustas. Assim:
Por exemplo: a lei é injusta quando discrimina um grupo minoritário, embora
possa até ter sido votada pela maioria (...) A lei é injusta quando se impõe a pessoas
sem direito a voto (...) A lei é injusta quando uma minoria a torna obrigatória para a
maioria, que não foi consultada, nem lhe deu pelo voto autorização para existir (...) A lei
é injusta quando votada por falsa maioria, que só aparenta representar a maior parte
dos indivíduos, devido a jogadas feitas durante as eleições. A lei é injusta quando
submete uma infinidade de pessoas a viverem miseravelmente. A lei é injusta quando
permite que um país pressione de qualquer modo ou ataque militarmente, ou apenas
ocupe outro país, outra região, sem consentimento de seus próprios habitantes (Vieira,
1984, p. 21-22).
Se fosse possível resumir o estado de injustiça em uma única expressão, diria
que a lei é injusta quando não tem legitimidade. Em outro exemplo, quando há
legislação de acordo com a própria causa. No caso brasileiro também há o caso das
leis iníquas, aquelas que não pegam justamente porque não inspiram anuência e
confiança no povo. Fato que não constitui um problema exclusivamente brasileiro, pois
quando não há legitimidade,
Quando os hábitos de submissão da população declinam ou desaparecem, as
leis podem tornar-se inaplicáveis. Estas tornam-se, geralmente, de difícil execução
quando menos de 90% da população lhes obedece voluntariamente. Foi o que
aconteceu com a proibição. Um pouco mais de 50% do eleitorado americano tentou
proscrever a sede de bebidas alcoólicas de um pouco menos dos outros 50%, mas a
generalizada insubmissão às leis correspondentes impossibilitou o seu cumprimento.
Isto, por sua vez, encorajou ainda outras desobediências à lei (...) Usamos leis para
controlar o comportamento humano porque não custa muito fazê-las aprovar e, desde
que a maioria das pessoas lhes obedeça voluntariamente, também não custa muito pôlas em vigor (Deutsch, 1979, p. 39).
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Dessa forma, ainda podemos rever a discriminação ou relação discriminatória
como forma ou maneira de anulação (discriminação preconceituosa) ou reposição
(discriminação positiva) do próprio equilíbrio da relação liberdade/igualdade. A primeira
discrimação, de anulação, é sabida e reconhecida em lei como crime, pois que se
impõe ou procura impor alguma desigualdade – racismo, por exemplo. A segunda,
também reconhecida como compensatória, procura justamente a reparação de alguma
forma de discriminação anterior (histórica, social, sexual, racial, por exemplo). E é
quanto a esta que iremos nos deter, pois a primeira já é mais do que reconhecida e
presente na formação histórica brasileira. Mas ainda assim dividida em duas partes
para melhor compreensão.
1ª NOÇÃO: trata-se de meios corretivos e de equiparação instrumental, no
ponto de partida da vida, na origem e nos momentos de maior necessidade de
afirmação da vida do sujeito. Por isso, diz-se, é social ou familiar, como no caso de se
buscar a inserção do sujeito nos meios de cultura generalizados, como forma de
alavancagem e reparação de sua formação inicial – favorecendo, em suma, a
exposição em ambientes, meios e processos culturais e educacionais. E este também é
o exemplo das cotas, também designadas de ação afirmativa ou discriminação positiva
– e estão voltadas às minorias sociais. A tática, no caso, é ganhar terreno, enquanto se
luta, e a estratégia busca a inversão do processo de discriminação e não constitui,
portanto, mero paliativo. Sua lógica operacional é simples: "Desse modo, uma
desigualdade torna-se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige
uma desigualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da equiparação de duas
desigualdades" (Bobbio, 2000, p. 32). Mas também há outra perspectiva.
2ª NOÇÃO: são meios econômicos postados em virtude da igualdade de fato,
diante do oferecimento da igualdade de oportunidades – das condições materiais da
vida, das condições concretas que dão suporte à vida. O exemplo típico é o do princípio
da justiça social que se opera por meio da distribuição de renda. Teoricamente:
Em outras palavras, os bens a serem distribuídos serão distribuídos segundo a
fórmula a cada um em partes iguais, ou segundo a fórmula a cada um na proporção
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de... , ou seja, mediante uma fórmula que permita uma distribuição diversa segundo o
diverso grau com que cada indivíduo possui o requisito exigido? (Bobbio, 2000, p. 34).
Na estratégia de oferecimento dessas condições, entretanto, é que nos
deparamos com a maior diversidade e adversidades, pois em que e para quem será
feita essa distribuição material?
Limitando-se o critério de especificação à relação entre o todo e a parte, as
respostas possíveis são quatro: a) igualdade entre todos em tudo; b) igualdade entre
todos em algo; c) igualdade entre alguns em tudo; d) igualdade entre alguns em algo
(Bobbio, 2000, p. 36).
A primeira fórmula é o objetivo máximo, o ideal-limite, a utopia, o inalcançável se
buscamos a sua forma plena. As duas últimas consagram-se como negação da
igualdade, pois apenas alguns serão tidos e tratados como iguais – não importando se
em tudo ou apenas em algo. De tal forma, então, é fácil visualizar que a igualdade
exeqüível (a igualdade possível) recai sobre a alternativa alçada pela letra b, pois nem
mesmo em condições extremamente propícias, ideais, imaginárias em sonhos
(comunismo ou de solidariedade mecânica, por exemplo) todos terão os mesmos dotes
pessoais (intelectuais, físicos, morais, estéticos, valorativos).
O objetivo principal almejado das duas formas de tratamento da igualdade (se
de fato ou de condições), no entanto, é Efetivar o Princípio da Justiça Social. Dito de
outra forma, tratamos de buscar uma espécie de inversão térmica da sociedade, por
meio da qual os pobres - o meio social frio (ou pólo negativo, na análise pejorativa) transformam-se em nova positividade social, em meio quente, quando se invertem os
pólos e as fontes de energia.
3.A constituição da liberdade
Enfim, como vimos, nossa alegação se baseou no suposto de que a liberdade é
constituída a partir da igualdade – ou do advento da maior margem de igualdade
possível. Primeiro porque não há liberdade se um é escravo; não há liberdade se uns
poucos são livres e libertos de quase toda responsabilidade social e muitos outros são
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servos dessa mesma condição/imposição social e histórica; não há liberdade se alguns
são havidos em tão elevada superioridade (simplesmente, são tão melhores) que, aos
demais, restam somente condições de extrema desigualdade. Segundo, porque a
desigualdade é crime, e seja ela tratada do ponto de vista individual (racismo), seja
social: o desvio de verbas públicas acarreta miséria social. Por isso, mesmo que o
objetivo seja debater a liberdade, temos de ter como referência histórica e teórica que
só se alcançará com a plena realização da igualdade.
Como exemplo histórico e curioso, se confrontado à análise generalista que
viemos tecendo, é o da liberdade norte-americana, provinda da história da Revolução,
da Independência e da própria Constituição Americana, pois será uma liberdade
expansiva, que agregou e se agregou a novos valores, direitos e práticas sociais. É
uma liberdade expansiva porque cresceu tanto quanto seu próprio território permitiu
(bem como conjugado ao de seus vizinhos, no caso do México e da seção do Estado
do Texas). Essa liberdade expansiva, no entanto, não será paradoxal ao princípio
liberal (indicado como liberdade negativa), uma vez que território para a fase da
colonização do oeste americano significa apego, agregação e expansão da propriedade
como um todo – novos territórios, novas propriedades, novos direitos, nova liberdade.
Uma emancipação, portanto, advinda da propriedade ou, melhor dizendo, a
emancipação política que se completa pela anexação: quanto maior a propriedade,
maior a emancipação política. Em Negri (2002):
O espaço é o lugar das massas americanas, elas próprias renovadas por uma
liberdade garantida pela propriedade, pela apropriação e pelo direito novo (...) O espaço
é o horizonte constitutivo da liberdade americana, da liberdade dos proprietários (...) Os
sujeitos da política são agora as massas de livres apropriadores. O problema não será
então organizar suas relações com os expropriados, mas as relações entre os
apropriadores (...) Uma república será então expansiva se souber deslocar os conflitos
em direção à fronteira, uma fronteira sempre aberta à apropriação (p. 215).
Nessa experiência, ou nessa sociedade, em que se conjugam fortemente
liberdade e propriedade, também a constituição da nova sociedade civil seguirá um
caminho diferenciado, onde não se oponham sociedade e Estado (na verdade, Estado
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independente e sociedade civil organizam-se ao mesmo tempo, ao tempo da
independência e da colonização), nem sociedade (regramento) e indivíduo, ou ainda
entre sociabilidade e emancipação individual de cada sujeito. Vejamos em Negri (2002):
Assim, o conceito de emancipação política e o de sociedade política se
constituem conjuntamente. É a sociedade política que emancipa os indivíduos, fazendo
deles cidadãos que se apropriam de um espaço indefinido (...) Trata-se de uma
hipótese operativa: na fronteira tártara da liberdade americana, será possível constituir
uma nova e rica socialidade. É uma hipótese real, é a inovação do poder constituinte
americano: algo que percorre a revolução política e aponta, na borda do espaço
nacional, o lugar do possível alargamento do poder e das liberdades sociais (grifos
nossos, p. 226-7).
Em suma, se cabe uma súmula dessa liberdade irrefreável que se expande aos
limites do imaginário - e depois reflui para enfim se constituir em emancipação política,
porque delega ao sujeito histórico toda tarefa de sua constituição -, seguindo Negri
(2002), ainda poderíamos dizer que:
As relações americanas consistem nisto, e nisto consiste a vigorosa inovação que
elas imprimem à história do homem. A emancipação política compreende em si as
relações sociais e desenvolve o tema da liberação no quadro destas relações: lá onde a
liberdade tem sempre uma fronteira a ultrapassar, um espaço a percorrer (p. 229).
E com isso retornamos ao ponto de origem em que a liberdade surge atrelada à
propriedade (e se mantém como tal), o que limita e condiciona tanto a experiência
política (liberdade) quanto o desenvolvimento da sociedade civil (emancipação política)
e a afirmação de direitos sociais, sobretudo a igualdade - e não a desigualdade diante
do poder e interposta entre proprietários e não-proprietários. Da experiência norteamericana, portanto, podemos reter a confirmação de que a expansão da liberdade
depende da retração da propriedade - ao contrário do que possa parecer -, pois não
haverá liberdade se um, apenas um, for colonizado em seu próprio território.
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A liberdade americana, portanto, será expansiva em relação à liberdade do
outro, à propriedade do outro – vai expandir-se para além de si mesma, para cima e
para dentro da sociedade vizinha. Vai de encontro, em direção e contra a Sociedade
Sem Estado de que nos falava Pierre Clastres, pois a liberdade americana advém da
expropriação da propriedade e da liberdade do índio americano. Para que sua liberdade
prosperasse, uma outra foi colonizada – daquele que perdeu a posse ou propriedade,
uma vez que os dois não repartiram e não coabitaram os espaços de origem. Sem
dúvida, sua liberdade será expansiva, mas também será colonizadora, expropriadora,
apropriadora do território, dos símbolos e da ação do outro – quando, enfim,
desapareceu a liberdade sem fronteiras do índio americano, pois que não será páreo
para a liberdade além da fronteira do colono americano.
Em síntese, a sociedade civil americana será construída a partir (de dentro)
dessa Sociedade Sem Estado: seu movimento interno de institucionalização, dessa
forma, iria ou da Sociedade Sem Estado, mas com liberdade, rumo à sociedade com
Estado, mas sem liberdade (ou com liberdade reduzida, vigiada pela política e
conduzida pela própria expansão da propriedade), das sociedades da felicidade,
ilimitadas diante da natureza (ou de natureza ilimitada), sedentas de liberdade, em
direção às sociedades fronteiriças, mas agora domesticadas, tornadas domésticas,
caseiras, sedentarizadas para satisfazer sua ânsia de liberdade. Novamente em Negri
(2002), tem-se aí uma espécie de liberdade insaciável:
Assim, o poder constituinte está fadado a constituir uma "segunda natureza" no
sentido próprio do termo: uma nação – a americana no caso – que se estende entre
dois oceanos, um imenso território a construir (...) E põe a fronteira histórica dos
Estados americanos como obstáculo a ser continuamente superado para dar aos seus
cidadãos uma liberdade cada vez maior (p. 230).
Em uma expressão, sua liberdade negativa (política e jurídica) será construída,
transformada em direito positivo, sobre a simples negação das liberdades dos demais
sujeitos (de direito natural). Ainda vale realçar que essa relação não está traçada por
algum tipo de desvio quanto à natureza da democracia que era nascente pela história
norte-americana, mas sim uma demonstração de que a liberdade limitada pela condição
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da propriedade. Como vimos na assertiva de Marx, não há que se falar sobre a maior
extensividade da emancipação humana, se esta vem a reboque de uma determinada
imposição política que não a mais abrangente possível – e pelo viés liberal, vimos que
não será possível falar de liberdade ou do direito de forma ampla, se a liberdade ou o
direito é condicionado e limitado por outro.
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SAINT-JUST, Louis Antoine Léon. O espírito da revolução e da Constituição na
França. São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista, 1989.
SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada. Volume 1: o debate
contemporâneo. São Paulo : Ática, 1994.
THOREAU, H. D. Desobediência Civil. Lisboa-Portugal : Edições Antígona,
1966.
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caderno 01, p.03.
VIEIRA, Evaldo. O que é desobediência civil. (2ª ed.). São Paulo : Brasiliense,
1984.
-------------------------------------------------------------------------------Notas
1. Entendamos o conceito como a concepção jurídica que procura juridicizar
(tornar direito positivo, regrado) o poder constituinte (força política renovadora,
revolucionária).
2. Pois, poder constituinte implica em revolução, em transformação radical e
profunda da estrutura e da dinâmica social e política. E assim se refere ao que virá, ao
futuro, ou ao presente transformado pela força popular revolucionária. É evidente como
está atrelado ao direito à revolução.
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