O Planejamento de um Curso de Língua: A Harmonia do Material-Insumo com os Processos de Aprender, Ensinar e Refletir sobre a Ação. José Carlos Paes de Almeida Filho UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA 1. Introdução Para realizar-se, uma operação formal de aprendizagem e ensino de língua necessita, dentre outros requisitos, de um planejamento. Ele geralmente é um documento escrito, explícito, que contém previsões dos conteúdos-amostras e da natureza das experiências que se farão com e na língua-alvo. Mais recentemente temos tomado como o terceiro pé do planejamento as provisões de momentos e procedimentos para a reflexão do planejador, do professor e alunos sobre o próprio planejamento, materiais, procedimentos de aula e de avaliação já implementados. Esse foco da reflexão dentro dos planejamentos já fora antecipado na obra de Stenhouse (1975) mas só agora se consolida como prática padrão de aperfeiçoamento ou formação dos professores ao abrigo do planejamento e mesmo do currículo. Essa é uma tarefa complexa para um professor que se propõe ser um planejador de cursos. Para desincumbir-se dela o professor-planejador precisa de uma certa formação geral (possivelmente a de um intelectual) e de conhecimentos específicos e sistemáticos (da Lingüística Aplicada e outros conhecimentos) para premeditar conteúdos, processos e espaços de reflexão em contextos de aprender em fases e procedimentos distintos de trabalho. Mesmo quando um professor adota um material sem planejá-lo, ainda assim um planejamento está dado de forma subjacente ou implícita nesse material. O planejamento propriamente dito não é a rigor o início da operação global de aprender e ensinar línguas formalmente na escola. Antes de produzir fatos descritivos da situação específica de ensino e recorrer a procedimentos de planejamento visando a definição da experiência lingüística, cultural e comunicativa de um curso de língua é preciso conhecer pelo menos os dados principais do contexto maior onde se insere a situação de ensino e explicar os pressupostos sobre língua/linguagem humana, ensinar e aprender línguas (isto e, a abordagem) com os quais o planejador vai trabalhar. Esses personagens, o planejador e o professor, podem ser diferentes pessoas ou a mesma pessoa com um duplo papel. Depois de cumprida a tarefa de planejar até o ponto de determinarmos as unidades de que se comporá o planejamento, restam ainda grandes fases da cadeia orgânica da operação global de aprendizagem e ensino. Ainda caberão a produção ou adoção seletiva do material didático, as definições metodológicas de como apresentar, praticar e usar com criatividade a língua-alvo representada no material (e no planejamento antes dele), e, finalmente, a avaliação de rendimento dos alunos no decorrer da operação de ensino/aprendizagem da LE Para ilustrar o lugar relativo do planejamento de um curso ou programa propriamente dito na configuração global do processo de ensino-aprendizagem, proponho situá-lo com seus dois momentos no modelo sucinto da Figura 1. Note-se que não se trata de um mero arcabouço teórico onde os componentes são estaticamente colocados, mas sim de uma proposta de representação conjuntural, sistemática, hierárquica, ordenada e articulada do processo real de ensinar e aprender uma língua. 2 Figura 1: Operação Global de Ensino de Línguas ABORDAGEM aaaaABORDAGEM planejamento curricular Planejamento das Unidades e Experiências - - Método: Procedimentos de ensinar e aprender Avaliação e Produção Material de Ensino perturbações possíveis no sistema Avaliação de desempenho Definição dos objetivos do curso a partir de descrição da situação de ensino e antecedentes. Organização das unidades de trabalho/estudo/en sino. 2. Definição e Objetivos O planejamento é, de maneira restrita, o processo ordenado e mapeado de decisões sobre inserções do conteúdo lingüístico (amostras da língua-alvo, explicações, generalizações sobre aspectos sistematizáveis dessas amostras e automatizações eventuais) do tipo de processo que será engendrado no curso, e da reflexão sobre as decisões e resultados, das experiências mínimas na e sobre a língua-alvo num curso de língua apresentado em forma de unidades de ensinoaprendizagem. Essas decisões são orientadas por uma dada abordagem de ensinar línguas e tomadas visando a consecução de objetivos reconhecidos dos alunos e do curso e/ou projetados para os alunos e curso. Sob a influência dos pressupostos do planejador (explícitos ou implícitos), um planejamento de unidades vai servir de base para a produção ou seleção de material-insumo com o qual alimentar o processo de ensino-aprendizagem. Neste capítulo pretendo definir em pormenores não só as grandes fases de que se compõe um planejamento, mas também a configuração ordenada e processual das possíveis etapas dessas fases na medida em que respondem a variações de abordagem, do contexto sócio-político-culturaleducacional específico da situação de ensino e da cultura de aprender desses alunos nesse contexto. O diagrama da Fig.2 apresentado na seção 3 a seguir condensa essas fases e etapas de planejamento de cursos de línguas. 3 3. Planejamentos Explícitos e Difusos A tarefa de planejar, quando entendida como dimensão bem definida, com natureza própria e específica do processo de ensino-aprendizagem, se apresenta como empreendimento complexo e dialético entre os condicionantes das situações ou contextos nas quais se darão os cursos e as forças de abordagem ou filosofia de ensino que nortearão a natureza da experiência (fatores extrínsecos e intrínsecos, respectivamente, na terminologia de Moita Lopes, 1987). Fig.2: Roteiro para planejamento de cursos de línguas justificativa para aprender uma LE níveis ou ciclos condições de implementação do planejamento tipo de curso replanejamento descrição do contexto maior definição do contexto e objetivos tipo de planejamento abordagem desejada objetivos taxonomia diagramação e estética avaliação interna da proposta formato da unidade definição das unidades versão resumida campanha de relações públicas peça publicitária coesão inter-níveis coesão inter-unidades J. C. P. Almeida Filho 4 O planejador pode atuar em situações de ensino de línguas onde já existem planejamentos (inadequados em alguma medida) ou em situações novas para as quais o planejamento é um prérequisito para a implementação de um processo de ensino-aprendizagem. Os planejamentos em serviço são mais complicados por razões externas ao próprio trabalho de planejar, ou seja, pela necessidade de persuasão dos profissionais e/ou autoridades de que o re-planejamento é necessário e contém vantagens. Vejamos uma situação típica de indefinição ou crise de planejamento. Trata-se de uma disciplina de um curso universitário de língua estrangeira (4 semestres) para alunos de Letras. Instala-se devido à precariedade do planejamento em vigor, uma dúvida se esse curso deve ser voltado para o desenvolvimento de habilidades de produção e compreensão de linguagem oral ou se para a leitura preferencialmente. Com o tempo, decide-se em alguma assembléia de professores que a leitura deve ser enfatizada a partir de um certo ponto do curso. Meses mais tarde surge nova decisão do grupo de que é prioritária a adoção de uma abordagem comunicativa do tipo nocional-funcional. Como não há planejamento prévio sistemático improvisa-se uma colagem de materiais com hiatos visíveis na textura dos conteúdos além de um sincretismo teórico ao nível da abordagem. Dado que o trabalho se torna confuso e às vezes penoso para os professores, com o passar do tempo decide-se assumir a adoção de um livro didático dentro da abordagens funcional já previamente escolhida. O livro se mostra muito fácil e no semestre seguinte é preciso trocá-lo por outro da mesma série. De qualquer maneira, com o passar do tempo, verifica-se a necessidade de se enxertarem leituras e materiais extra gravados para uso no laboratório de línguas. No semestre seguinte há nova resolução, leituras serão agora introduzidas depois de cada duas aulas. Em cada aula de leitura será priorizada urna nova estratégia. Surge a dúvida se o livro didático adotado não começa a se tornar redundante e desinteressante com seu universo peculiar de temas e assim se sucedem crises e remendos, numa seqüência de ensaios, erros, acertos, marchas e contramarchas. Todas essas ações sugerem que um planejamento novo, explícito e sob medida está há tempo sendo protelado com graves prejuízos para alunos, professores e instituição envolvidos. 4. Vantagens dos Planejamentos Explícitos Quando alguém se propõe planejar um curso de línguas, o seu trabalho pode ou não resultar de conhecimentos conscientes e explícitos que norteiam a tarefa. O produto final que resulta da sua atividade pode então ser classificado quanto ao grau de explicitação dos pressupostos utilizados. A escala de explicitação terá num extremo o uso totalmente implícito/assistemático de crenças e no outro o uso completamente explícito/sistemático de pressupostos e, eventualmente, princípios. As vantagens do maior grau possível de explicitação de pressupostos de planejamento de cursos de língua são basicamente: (a) a maior facilidade em avaliar criticamente os pressupostos adotados, (b) a maior clareza na especificação das variáveis incidentes na situação específica de ensino, (e) a possibilidade de interpretar com base em dados o processo de aquisição que se estabelece durante a implementação das unidades, e (d) a maior comparabilidade de planejamentos de contextos equivalentes em situações distintas. Com relação a esses pontos, vejamos uma posição mais antiga de Corder (1975:1): “é tão somente quando os princípios são explicitamente formulados que alguém pode avaliá-los ou testá-los com a finalidade de observar se eles poderiam, em partes, ser mutuamente contraditórios e se eles são suficientemente abrangentes e detalhados para 5 fornecer uma base para a solução de vários tipos de distintos problemas que aparecem no desenrolar do trabalho profissional do professor” Embora os pressupostos mantidos por planejadores de cursos tenham alguma estabilidade durante a fase de execução da sua tarefa de planejar unidades num curso, há condições e variáveis específicas que afetam o planejamento que precisam ser levadas em conta durante o processo. Algumas condições que merecem atenção específica já foram enumeradas há muito tempo por Lado (1964:57). Elas são: a) o aluno, b) os materiais didáticos, c)o professor, e d) o cenário de aprendizagem. Se decisões bem informadas e sistemáticas puderem ser tomadas com relação a essas variáveis, as decisões arbitrárias do tipo intuitivo ou ensaio e erro serão reduzidas a um mínimo tolerável. A tarefa de planejar um curso de língua é uma atividade complexa do campo de conhecimento especifico da LA que se ocupa do ensino e da aprendizagem de línguas, mas que não se restringe à aplicação de uma única ciência fonte. Além de conhecimentos sobre a natureza e descrição da linguagem (Lingüísticas Tradicional e Textual), sobre como se dá a aprendizagem/aquisição (Aquisição de Segunda Língua-ASL) e sobre as funções da linguagem na sociedade (Análise do Discurso, Sociolingüística, Pragmática), o planejador de cursos pode também derivar teorizações parciais e ferramentas conceituais de outros campos tais como a Antropologia, a Política Educacional, a Psicologia Educacional, a Pedagogia e a Estatística entre outros, muitas das quais já absorvidas à teoria tronco da Lingüística Aplicada. Essa situação representa o planejamento de cursos de língua como uma tarefa possível de ser convertida em projeto de pesquisa dentro da Lingüística Aplicada na sua acepção de ciência aplicada preocupada com o estudo de questões de uso social (neste caso, o ensino/aprendizagem) de linguagem detectadas na prática. Neste caso, um planejamento pode ser concebido com mais segurança como um complexo plano aberto para uma situação de ensino-aprendizagem. Esse plano traduz as maneiras de se ver a otimização do processo de facilitar a aprendizagem e não poderia ser tomado como procedimentos programáticos a serem necessariamente seguidos pelos professores que o adotassem. Ao contrário, um planejamento explicitamente elaborado deveria ser capaz de permitir que os professores ficassem menos dependentes do livro didático que por sua natureza mesma não pode servir a todo tipo de necessidades e interesses do aluno. O planejamento deveria ainda conter a propriedade de ensejar sua auto-melhoria gradual em termos (a) de variáveis não previsíveis na situação de ensino, e (b) do constante retorno oferecido por professores e alunos envolvidos na sua implementação. Por último, conforme aponta Stenhouse (1975), um planejamento serve de arena ao desenvolvimento da capacidade de ensinar de professores que nele podem encontrar ambiente de crescimento e reflexão. Essa posição de Stenhouse converge com a proposta de Giroux de que o trabalho docente seja concebido como o de um intelectual crítico com espírito de questionamento e coerente na sua ação transformadora (vide também Gramsci, 1971, e Freire, 1984). 6 5. Interpretação do contexto e antecedentes A primeira fase do planejamento sistemático se endereça ao estudo e caracterização do contexto ou situação de planejamento culminando com a definição dos objetivos do curso. Para conhecer a situação ou contexto e torná-la explícita a outros implementadores, pais e autoridades, o planejador busca dados sobre os alunos, história do curso, perfis de formação dos professores que implementarão o curso, cultura de aprender dos alunos e cultura de ensinar da escola, papel da língua-alvo na comunidade. Geralmente se coletam os registros com informações no próprio local com pessoas familiarizadas com a situação através de conversas, entrevistas e questionários. É freqüente iniciar o processo com um questionário aberto, reformatá-lo num questionário fechado ou semi-fechado e completar o ciclo com entrevistas em cima das informações colhidas por escrito. 6. Justificativas para aprender a língua-alvo Neste estágio, explicitam-se as justificativas mais gerais para aprender a língua-alvo pautando-se pelas justificativas para aprender qualquer nova língua. Vejamos um roteiro mínimo de categorias de objetivos envolvendo a aprendizagem de uma língua estrangeira e algumas das suas materializações possíveis nos variados contextos. OBJETIVOS Lingüísticos - compreender o funcionamento da LE e através disso compreender melhor (e com mais consciência) os mecanismos de funcionamento da L materna. Educacionais - possibilidade de formação na língua-alvo conhecer e compreender a(s) cultura(s) da L-alvo desenvolver capacidade de reflexão, julgamento, observação e iniciativa apreciação de valores, atitudes mentais positivas e socialmente úteis Psicológicos - experimentar estar na posição de outras pessoas - aumentar a segurança pessoal - sentir-se mais polivalente Culturais - abrir-se para o outro, interessar-se por culturas estrangeiras (firmando o conhecimento da própria 7 cultura e o respeito por ela sem perder a postura crítica a seu respeito) - compreender especificidades de aprender uma LE (estar sensível a fenômenos políticos, influências culturais, econômicas, preconceitos e vieses) - servir-se do conhecimento técnico-científico-cultural que circula na L-alvo Práticos - construir novas competências para o êxito na vida - aprender língua viva, alternativa de comunicação, conversível em possibilidades de empregos e oportunidades de viagens 7. Definição dos interesses e necessidades Quase sempre buscamos o guia seguro de necessidades lingüístico-comunicativas concretas dos aprendizes. Com freqüência nos frustramos com a ausência de necessidades puras e nos deparamos ao invés, com interesses manifestos com invariável vaguidão. Quando não facilmente discerníveis, esses interesses podem ser mais bem reconhecidos como fantasias mantidas e às vezes despercebidas pelos aprendizes. As fantasias de qualquer modo merecem ser reconhecidas porque são também fonte de energia advinda de motivações e uma vez conhecidas podem ser trabalhadas até o ponto de se transformarem em interesses explicitados. 8. Abordagem incidente A abordagem é o grande piloto filosófico-qualitativo da operação global de ensino da nova língua. A abordagem contemporânea à qual mais se dirigem as atenções de professores, planejadores e produtores de materiais é a comunicativa Ela sucede, pelo menos no dizer dos profissionais, gradualmente a abordagem formalista, sistêmica ou gramatical que se tornou o paradigma da modernidade na versão estruturalista do ensino das línguas nas décadas de 60 a 80. Abordagem pode ser entendida como uma força que orienta e, portanto, caracteriza todo um processo específico de ensino de língua Essa força necessita das competências implícita, aplicada e (meta) profissional do professor ou de quaisquer outros agentes ativos de ensino tais como autores de LDs, planejadores de cursos, produtores de instrumentos de avaliação, pais, tutores, etc. Essas competências dependem de posicionamentos explícitos, no caso da competência aplicada, (englobando a sub-competência teórica) e da profissional, e de posicionamentos implícitos com intuições, disposições a partir de experiências prévias, cultura partilhada de ensinar da região/escola, etc, no caso da competência implícita. A força da abordagem opera com energia de motivação para ensinar e com “matéria-prima” de conhecimentos explícitos e implícitos. Os implícitos são teoria informal, subjetiva, primitiva, na forma de crenças culturalmente marcadas pelo inconsciente coletivo. Os explícitos são teoria formalizada, aprendida, (re)construída e citável na forma de pressupostos e princípios estabilizados. Pode resultar contraditória a força da abordagem como resultado de posições teóricas conflitivas entre as três vertentes de que se compõe a abordagem: a concepção de linguagem (de língua, linguagem humana, língua estrangeira), a concepção de ensinar língua e a concepção de aprender/adquirir língua. Nessas vertentes podemos incluir ainda a concepção básica de aluno e professor como Homem em processo de humanização via aprendizagem e ensino de língua, os papéis 8 de professor e aluno/aprendiz e a concepção de sala de aula de que se parte na abordagem. A abordagem, em última instância, orienta o processo ou operação global de planejamento de cursos, de produção ou análise dos materiais, das experiências realizadas para aprender dentro e fora das salas de aula e das avaliações de rendimento efetuadas. O termo abordagem se relaciona (e muitas vezes se confunde na literatura) com método e técnica em relação aos quais é superordenado ou superior hierárquico. São exemplos de abordagem a contemporânea e multifacetada abordagem comunicativa e a abordagem formal ou gramatical de movimentos de ensino historicamente anteriores (vide Almeida Filho, 1993 e 2001 para uma caracterização dessas abordagens). 9. A natureza do curso Quando os aprendizes demonstram possuir interesses, fantasias ou nenhuma delas, tem sido mais freqüente a adoção do tipo geral de curso, ou seja, um programa para fins não óbvios ou difusos. No caso de turmas com perfil de necessidades específicas ou interesses localizados, tem sido escolhida a organização instrumental do curso. Instrumental ou para fins específicos é o curso que responde a restrições de vários tipos de tempo disponível para realizá-lo, de propósitos, de necessidades, etc. Em situações onde um tema é desenvolvido ou uma área de uso adotada como organizadora do curso total, dizemos que o curso é instrumentalizado, na medida em que acarreta uma delimitação ou restrição temática a qual permite um tratamento em grande parte instrumental do planejamento de cursos e produção de materiais. 10. Tipos de Planejamento Um planejamento é, afinal. um plano organizado de atividades de ensino cujos componentes se interligam internamente de maneira coerente uns com os outros e externamente com outros planejamentos de outros níveis. Não se trata de uma mera lista de unidades especificas de ensino e a serem transferidas para o estudante. Do ponto de vista teórico, qualquer plano ou estrutura de unidades pode ser de dois tipos básicos: linear e cíclico. O planejamento linear prototípico é aquele que representa uma progressão de um item de aprendizagem para outro, cada um logicamente decorrendo do outro. x1 y1 x2 y2 x3 y3 xn yn Figura 3: Representação de um planejamento linear Na prática, contudo, e como tem sido demonstrado em inúmeras aplicações do arcabouço linear, especialmente em versões da abordagem gramatical do ensino de línguas (para o qual ele se presta sobremaneira), é impossível isolar segmentos lingüísticos simples. Dado que a linguagem se apresenta como objeto de estudo em múltiplos níveis, envolvendo a associação simultânea dos seus 9 elementos entre significado, forma sintática e elementos fonológicos, além da complexa associação dos seus elementos em cada um dos níveis, não é viável pensarmos a rigor numa progressão linear simples. Mesmo que por consenso geral os planejadores de curso tenham aceito um ponto de ensino como uma unidade gramatical simples, permanece o fato de que vários traços (sintáticos, fonológicos, discursivos, etc.) estarão forçosamente presentes na mesma unidade gramatical isolada para o ensino. Por exemplo, se o planejador de curso na língua inglesa visa introduzir a estrutura pronome + verbo “be” + adjetivo envolvendo o pronome de 3ª pessoa do singular “he” ou “she”, seguido da forma verbal “is” (3ª pessoa do singular do verbo “be”) seguido ainda do adjetivo “English”, o mesmo planejador estará “ensinando” ao aluno simultaneamente ordenação de palavras na frase inglesa e concordância verbo-pronome e verbo-adjetivo entre outras coisas. Isolar aspectos gramaticais artificialmente de maneira que cada um pudesse posar de elemento simples seria contradizer nossa percepção intuitiva de linguagem como configuração de traços simultâneos em estreita interrelação uns com os outros na construção de sentido. Além do mais, as unidades não são sempre logicamente dependentes nem independentes umas das outras. Não há nada inerentemente lógico em se planejar a introdução num curso das formas do presente antes das do passado, por exemplo. Uma versão moderada do tipo linear é usada freqüentemente em planejamento e materiais gramaticalistas audio-linguais. Quando esse é o caso, o procedimento linear é alterado pelo recurso à intercalação de unidades de revisão globalizantes após algumas unidades linearmente arranjadas. xl x2 x3 x3,l,2 xn yl y2 y3 y2,l,3 yn Figura 4: Versão moderada de planejamentos lineares com unidades de revisão O planejamento cíclico, como o próprio nome sugere, implica uma volta a um conjunto inicial, pré-selecionado de unidades de curso de maneira que se possa expandi-las cada vez que forem retomadas em ciclos posteriores. O conjunto inicial de unidades pode ser expandido ou modificado para acomodar novas unidades de ensino exigidas pelas necessidades e interesse dos alunos. Figura 5: Os planejamentos cíclico e evolutivo 10 Duas características do planejamento cíclico podem bem caracterizá-lo: (a) a acumulação e, (b) a integração. Por permitir o retorno a um conjunto de unidades já estruturadas, o planejamento cíclico favorece o acúmulo orgânico de elementos. Esse acúmulo não se dá por mero depósito, mas através de uma integração com elementos anteriormente aprendidos dentro do todo da língua. Esse planejamento é tido como propício para cursos de base semântica ou nocional (Wilkins, 1976: 58) uma vez que ao final de cada ciclo de unidades corresponderia um nível específico de competência comunicativa. Do mesmo modo que o tipo linear, a organização cíclica não pode chamar a si qualquer propriedade de progressão rigorosa de unidades que sejam a um tempo simples e logicamente dependentes umas das outras. Se uma organização de base gramatical linear não tem o poder de lidar com apenas um traço gramatical por vez, da mesma forma um planejamento de base nocional cíclica não pode apresentar apenas um tipo de significado em cada unidade semanticamente definida. A conclusão a ser tirada é que não pode haver uma aplicação lógica rigorosa em quaisquer dos tipos de planejamento vistos nesta seção e é somente num sentido mais flexível e pedagógico que o planejador empregará tais conceitos em seu beneficio. É preciso notar ainda neste ponto que ambas as formas prototípicas de organização das unidades e os ciclos parecem conceituar a aprendizagem de línguas como um esforço para ensinar língua per se (seja ela tomada como regras gramaticais, vocabulário ou com funções comunicativas e regras sócio-culturais). Não está considerada a visão alternativa de se tomar a experiência de aprender línguas como parte de uma experiência maior de aprender outras coisas como, por exemplo, os conhecimentos das outras disciplinas como ciência, história, artes, etc. Neste caso, as possibilidades de utilização de planejamentos evolutivos são maiores mas haveria especificidades - é possível imaginar um curso de geografia que é retomado em diferentes níveis de profundidade e abrangência com as respectivas implicações ao nível da linguagem mas também é possível imaginar o mesmo curso de geografia de nível 1 ser sucedido por outro de arte contemporânea ao nível 2 para o mesmo grupo de alunos. Nesse caso, o conceito de cíclico não se aplica mais como antes sendo preferível substituí-lo pelo conceito de planejamento evolutivo onde a demanda cognitiva é um forte parâmetro de planejamento das experiências com a língua-alvo. 11. Especificação de níveis ou ciclos O nível de entrada dos alunos servirá para estabelecer uma relação com um piso inicial de competência sobre o qual desenvolver os outros níveis. O nível de saída de um nível é aquele que faz o aluno aceder às exigências do próximo até o último nível, que usualmente deve representar uma faixa de uso e/ou conhecimentos que permita uso social e/ou profissional da língua-alvo. Conhecendo as especificações do piso e do teto, será possível estabelecer a sua relação com um nível limiar e com os níveis intermediários e ir, aos poucos, a cada ano ou semestre ajustando os níveis de expectativas do curso com a realidade. 12. Alinhamento dos materiais, método e avaliação Depois da definição das condições de implementação do planejamento proposto, torna-se necessário prever os alinhamentos de materiais adequados, tônica do processo ou método adequado à usufruição do planejado, e da tônica e momentos do processo de avaliação do curso, do professor e 11 alunos. A partir da definição dos objetivos específicos é então possível passar para a segunda fase do planejamento que tratará da especificação das unidades do plano. 13. Definição dos objetivos Para a definição dos objetivos específicos será necessária uma taxonomia adequada com a qual verbalizá-los. Servirá de ilustração o quadro seguinte: Fig. 6 : Uso da Taxonomia para a Especificação de Unidades TEMAS -Ecologia -Violência -Meios de transporte -Drogas -Hábitos alimentícios -Juventude -Interesses especiais -Esportes -Música -Lazer -Cultura -Sexo -Família TÓPICOS -Ecologia -Destruição da camada de Ozônio -Movimentos ecológicos -Amazônia -Metanol -Indígenas brasileiros -Consciência e educação ecológica -Elementos do ecossistema RECORTES COMUNICATIVOS e discutir ( = ler, compreender língua oral (assistir)) com compreensão -Tomando notas depois de relatos orais e escritos -Escrevendo relatórios -Resumir um texto -Ouvir um e tomar notas -Transformar a representação não verbal em discurso verbal -Conversar sobre anotações e compará-las -Conversa de encerramento (ao final de unidade) FUNÇÕES -Interromper -Afirmar -Expressar opinião (aberta/com reserva) -Definir -Exemplificar -Listar -Comparar Estas especificações podem ser transformadas em objetivos específicos contanto que sejam precedidas de um caput que as coloque em contexto. Os temas são reais e podem ser convertidos em objetivos educacionais. Processos necessários à aquisição da língua-alvo e os momentos e tônica das reflexões sobre eles serão especificados como objetivos também. Os objetivos dão energia e apontam o rumo para toda a operação de aprender/ensinar. O encaminhamento do processo é marcado por um ideário, um conjunto freqüentemente não harmônico de conceitos como o de linguagem humana, o de aprender uma L2 e o que conta como ensinar uma 12 L2. A esses ideais de princípios, pressupostos teóricos e crenças intuitivas damos o nome de abordagem conforme vimos anteriormente na seção 8. Por exemplo, na nossa abordagem podemos ter que aprender uma língua é aprender as formas em frases que são gramaticalmente bem formadas. Isso contribui para caracterizar um foco na forma o que já reduz (se não elimina) as chances de atentar para ou perceber o sentido daquelas amostras da linguagem que temos de apresentar ou criar em sala de aula. Vejamos quais são e como se comparam os traços do foco na forma com características outras quando o foco é no sentido. FOCO NA FORMA - código, sistema formal correção (pelo modelo ideal) aprendizagem de habilidades pseudo-comunicação reprodução, imitação, transformação, preenchimento de lacunas - conteúdos “dos outros”, estratosféricos, pretextos - professor dirige atividades sabendo resultados FOCO NO SENTIDO - - abordagem sistêmica/gramatical conteúdo, sentidos linguagem apropriada uso cada vez mais fluente da L2 aprendizagem em atividades que necessitam de interação comunicação real iniciativa, possibilidade de escolha do que dizer, negociação, reformulação com colegas, interlocutores, autonomia conteúdos “meus”, da minha turma, da minha região professor que promove conscientização de linguagem abordagem comunicativa 14. Definição das unidades A tarefa que se nos apresenta neste ponto é a proposta de um formato de unidade de estudo. Com os objetivos indicando um possível cenário de chegada (competências-alvo) é preciso ainda definir a natureza das experiências que serão promovidas nas unidades e os conteúdos que estão implícitos nessas experiências. A unidade já pode ser pensada em termos de uma diagramação e estética próprias que marcarão posteriormente os materiais. Também se coloca a questão do que dará unidade ou coesão ao conjunto das unidades (coesão inter-unidades). É possível imaginar, por exemplo, que as unidades se desenvolverão em torno de um tema maior, uma história ficcional ou de uma disciplina. No quadro abaixo, apresento um esquema processual básico de organização das unidades: 13 Fig. 7: Esquema processual de organização de unidades num planejamento comunicativo CENÁRIOS TEMAS TÓPICOS ATIVIDADES OU RECORTES COMUNICATIVOS FUNÇÕES REALIZAÇÕES GRAM / VOC. /FON./ ASPECTOS CULTURAIS Exemplo de atividade ou recorte comunicativo: Participar de palestra tomando nota: Funções discerníveis nesse recorte: - definir - comparar - selecionar informações - anotar dúvidas - exemplificar - classificar - descrever - avaliar - estabelecer associações - questionar - diagramar - destacar - expressar acordo/desacordo - abreviar palavras ou termos 15. Avaliação interna (do planejamento) e momentos de reflexão Para se transformar num projeto de médio-prazo em desenvolvimento curricular ou em planejamento, a proposta precisa se auto-colocar parâmetros e pressupostos com os quais avaliar o andamento e resultados. Embora a reflexão seja de natureza contínua, é recomendável em planejamentos contemporâneos estabelecerem-se momentos para avaliação do e reflexão sobre o curso, a própria atuação e condições contextuais para o andamento do programa. 14 Neste ponto, é conveniente ainda criar os contornos de uma verdadeira campanha de relações públicas que apresente positivamente o projeto e prepare o público-alvo para implementá-lo. Quase sempre se produz uma versão resumida (de uma ou duas páginas) da proposta contendo objetivos, o programa de unidades, atividades/procedimentos previstos, formas de avaliação e bibliografia de apoio. 16. Planejamento, planos de cursos e possibilidades de pesquisa aplicada nessa dimensão Todo planejamento consta ambigüidade de um trabalho no plano abstrato das idéias e outro no plano concreto da proposta escrita com previsões da sua implementação. No primeiro plano, o planejamento será visto como: - uma dada representação de pressupostos e ênfases acerca do processo de ensinar e aprender (incluindo materiais, método e avaliação); - um processo de tomada de decisões auto-explicitado; - uma definição de procedimentos esperados; - uma concepção de contexto(s) a que o planejamento é sensível e ao qual responde. No plano concreto da realização das unidades premeditadas, o planejamento será visto como: - um roteiro para alcançar os objetivos; uma seleção de experiências e das partes da língua-alvo implicadas nelas; um continuador da implementação das ações do cotidiano do curso; mapa de percurso para guiar decisões sobre avaliação dos alunos e do próprio curso. Quando entendido nessas duas dimensões, o planejamento explicitado em seus pressupostos e na ação futura servirá como campo de investigação aplicada no ensino de línguas. O foco pode ser, por exemplo, o processo de planejar em si analisado num pano de fundo da prática da sua implementação em contextos específicos complexos onde outras forças de abordagem concorrem para modular o processo que se obtém e se registra na forma de possíveis dados. 17. Considerações finais A área de planejamento de cursos é uma típica área “aplicada” no sentido de que está naturalmente ligada a uma atividade da prática educacional no ensino das línguas. Há dificuldades na concepção dessa área como espaço privilegiado para inovações fundamentadas nas teorias contemporâneas de ensino-aprendizagem que precisam ser contempladas. O planejamento não é a parte fácil para quem tem prática e já sabe teoria lingüística ou teoria pedagógica geral. Nem é, tampouco, um conglomerado eclético de anotações da tradição mágica, de dogmas ao estilo religioso e princípios científicos combinados com arte para dar certo. Essa área de estudo ainda pouco documentada, essa tarefa prática de base intuitiva e mimética como exercício vazio de início de ano letivo precisa ser reconceituada com vigor e urgência. 15 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA FILHO, J C P. Dimensões Comunicativas no Ensino de Línguas. Campinas: Pontes Editores, 1993 ____________Maneiras de Compreender Lingüística Aplicada. Revista Letras, n. 2, UFSM, Santa Maria (RS), 1991. CLARK, J.L. Curricuium Renewal in School Foreign Language Learning Oxford: Oxford University Press, 1987 DUBIN, F. e OLSHTAIN, E. Course Design. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. KRASHEN, S.D. Principles and Practice in Second Language Acquisition. Oxford: Pergamon MOITA LOPES, E. P. “Elaboração de Programas de Ensino de Línguas Estrangeiras: um Modelo Operacional”. Revista Perspectiva, n. 8. Florianópolis: Editora da UFSC, 1987. STENHOUSE, E. An Introduction to Curriculum Research and Development. London: Heineman Educational, 1975 TABA, H. Curriculum Development: Theory and Practice. New York: Harcourt, Brace and World, 1962. WIDDOWSON, H.G. O Ensino de Línguas para a Comunicação. Campinas: Pontes Editores, 1991 WILKINS, D.A. Notional Syllabuses. Oxford: Oxford University Press, 1976.