O Planejamento de um Curso Línguas

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O Planejamento de um Curso de Língua:
A Harmonia do Material-Insumo com os
Processos de Aprender, Ensinar e
Refletir sobre a Ação.
José Carlos Paes de Almeida Filho
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
1. Introdução
Para realizar-se, uma operação formal de aprendizagem e ensino de língua necessita, dentre
outros requisitos, de um planejamento. Ele geralmente é um documento escrito, explícito, que
contém previsões dos conteúdos-amostras e da natureza das experiências que se farão com e na
língua-alvo. Mais recentemente temos tomado como o terceiro pé do planejamento as provisões de
momentos e procedimentos para a reflexão do planejador, do professor e alunos sobre o próprio
planejamento, materiais, procedimentos de aula e de avaliação já implementados. Esse foco da
reflexão dentro dos planejamentos já fora antecipado na obra de Stenhouse (1975) mas só agora se
consolida como prática padrão de aperfeiçoamento ou formação dos professores ao abrigo do
planejamento e mesmo do currículo. Essa é uma tarefa complexa para um professor que se propõe
ser um planejador de cursos. Para desincumbir-se dela o professor-planejador precisa de uma certa
formação geral (possivelmente a de um intelectual) e de conhecimentos específicos e sistemáticos
(da Lingüística Aplicada e outros conhecimentos) para premeditar conteúdos, processos e espaços
de reflexão em contextos de aprender em fases e procedimentos distintos de trabalho. Mesmo
quando um professor adota um material sem planejá-lo, ainda assim um planejamento está dado de
forma subjacente ou implícita nesse material.
O planejamento propriamente dito não é a rigor o início da operação global de aprender e
ensinar línguas formalmente na escola. Antes de produzir fatos descritivos da situação específica de
ensino e recorrer a procedimentos de planejamento visando a definição da experiência lingüística,
cultural e comunicativa de um curso de língua é preciso conhecer pelo menos os dados principais do
contexto maior onde se insere a situação de ensino e explicar os pressupostos sobre
língua/linguagem humana, ensinar e aprender línguas (isto e, a abordagem) com os quais o
planejador vai trabalhar.
Esses personagens, o planejador e o professor, podem ser diferentes pessoas ou a mesma
pessoa com um duplo papel. Depois de cumprida a tarefa de planejar até o ponto de determinarmos
as unidades de que se comporá o planejamento, restam ainda grandes fases da cadeia orgânica da
operação global de aprendizagem e ensino. Ainda caberão a produção ou adoção seletiva do
material didático, as definições metodológicas de como apresentar, praticar e usar com criatividade
a língua-alvo representada no material (e no planejamento antes dele), e, finalmente, a avaliação de
rendimento dos alunos no decorrer da operação de ensino/aprendizagem da LE
Para ilustrar o lugar relativo do planejamento de um curso ou programa propriamente dito
na configuração global do processo de ensino-aprendizagem, proponho situá-lo com seus dois
momentos no modelo sucinto da Figura 1. Note-se que não se trata de um mero arcabouço teórico
onde os componentes são estaticamente colocados, mas sim de uma proposta de representação
conjuntural, sistemática, hierárquica, ordenada e articulada do processo real de ensinar e aprender
uma língua.
2
Figura 1: Operação Global de Ensino de Línguas
ABORDAGEM
aaaaABORDAGEM
planejamento
curricular
Planejamento das
Unidades e
Experiências
-
-
Método:
Procedimentos de
ensinar e aprender
Avaliação e
Produção Material
de Ensino
perturbações possíveis no
sistema
Avaliação de
desempenho
Definição dos
objetivos do curso
a partir de
descrição da
situação de ensino
e antecedentes.
Organização das
unidades de
trabalho/estudo/en
sino.
2. Definição e Objetivos
O planejamento é, de maneira restrita, o processo ordenado e mapeado de decisões sobre
inserções do conteúdo lingüístico (amostras da língua-alvo, explicações, generalizações sobre
aspectos sistematizáveis dessas amostras e automatizações eventuais) do tipo de processo que será
engendrado no curso, e da reflexão sobre as decisões e resultados, das experiências mínimas na e
sobre a língua-alvo num curso de língua apresentado em forma de unidades de ensinoaprendizagem. Essas decisões são orientadas por uma dada abordagem de ensinar línguas e tomadas
visando a consecução de objetivos reconhecidos dos alunos e do curso e/ou projetados para os
alunos e curso. Sob a influência dos pressupostos do planejador (explícitos ou implícitos), um
planejamento de unidades vai servir de base para a produção ou seleção de material-insumo com o
qual alimentar o processo de ensino-aprendizagem.
Neste capítulo pretendo definir em pormenores não só as grandes fases de que se compõe
um planejamento, mas também a configuração ordenada e processual das possíveis etapas dessas
fases na medida em que respondem a variações de abordagem, do contexto sócio-político-culturaleducacional específico da situação de ensino e da cultura de aprender desses alunos nesse contexto.
O diagrama da Fig.2 apresentado na seção 3 a seguir condensa essas fases e etapas de planejamento
de cursos de línguas.
3
3. Planejamentos Explícitos e Difusos
A tarefa de planejar, quando entendida como dimensão bem definida, com natureza própria
e específica do processo de ensino-aprendizagem, se apresenta como empreendimento complexo e
dialético entre os condicionantes das situações ou contextos nas quais se darão os cursos e as forças
de abordagem ou filosofia de ensino que nortearão a natureza da experiência (fatores extrínsecos e
intrínsecos, respectivamente, na terminologia de Moita Lopes, 1987).
Fig.2: Roteiro para planejamento de cursos de línguas
justificativa
para aprender
uma LE
níveis
ou
ciclos
condições de
implementação
do planejamento
tipo
de curso
replanejamento
descrição do
contexto maior
definição do
contexto e
objetivos
tipo de
planejamento
abordagem
desejada
objetivos
taxonomia
diagramação e estética
avaliação
interna
da
proposta
formato da unidade
definição
das
unidades
versão
resumida
campanha de
relações públicas
peça
publicitária
coesão
inter-níveis
coesão
inter-unidades
J. C. P. Almeida Filho
4
O planejador pode atuar em situações de ensino de línguas onde já existem planejamentos
(inadequados em alguma medida) ou em situações novas para as quais o planejamento é um prérequisito para a implementação de um processo de ensino-aprendizagem. Os planejamentos em
serviço são mais complicados por razões externas ao próprio trabalho de planejar, ou seja, pela
necessidade de persuasão dos profissionais e/ou autoridades de que o re-planejamento é necessário e
contém vantagens. Vejamos uma situação típica de indefinição ou crise de planejamento. Trata-se
de uma disciplina de um curso universitário de língua estrangeira (4 semestres) para alunos de
Letras. Instala-se devido à precariedade do planejamento em vigor, uma dúvida se esse curso deve
ser voltado para o desenvolvimento de habilidades de produção e compreensão de linguagem oral
ou se para a leitura preferencialmente. Com o tempo, decide-se em alguma assembléia de
professores que a leitura deve ser enfatizada a partir de um certo ponto do curso. Meses mais tarde
surge nova decisão do grupo de que é prioritária a adoção de uma abordagem comunicativa do tipo
nocional-funcional. Como não há planejamento prévio sistemático improvisa-se uma colagem de
materiais com hiatos visíveis na textura dos conteúdos além de um sincretismo teórico ao nível da
abordagem. Dado que o trabalho se torna confuso e às vezes penoso para os professores, com o
passar do tempo decide-se assumir a adoção de um livro didático dentro da abordagens funcional já
previamente escolhida. O livro se mostra muito fácil e no semestre seguinte é preciso trocá-lo por
outro da mesma série. De qualquer maneira, com o passar do tempo, verifica-se a necessidade de se
enxertarem leituras e materiais extra gravados para uso no laboratório de línguas. No semestre
seguinte há nova resolução, leituras serão agora introduzidas depois de cada duas aulas. Em cada
aula de leitura será priorizada urna nova estratégia. Surge a dúvida se o livro didático adotado não
começa a se tornar redundante e desinteressante com seu universo peculiar de temas e assim se
sucedem crises e remendos, numa seqüência de ensaios, erros, acertos, marchas e contramarchas.
Todas essas ações sugerem que um planejamento novo, explícito e sob medida está há tempo sendo
protelado com graves prejuízos para alunos, professores e instituição envolvidos.
4. Vantagens dos Planejamentos Explícitos
Quando alguém se propõe planejar um curso de línguas, o seu trabalho pode ou não resultar
de conhecimentos conscientes e explícitos que norteiam a tarefa. O produto final que resulta da sua
atividade pode então ser classificado quanto ao grau de explicitação dos pressupostos utilizados. A
escala de explicitação terá num extremo o uso totalmente implícito/assistemático de crenças e no
outro o uso completamente explícito/sistemático de pressupostos e, eventualmente, princípios.
As vantagens do maior grau possível de explicitação de pressupostos de planejamento de
cursos de língua são basicamente: (a) a maior facilidade em avaliar criticamente os pressupostos
adotados, (b) a maior clareza na especificação das variáveis incidentes na situação específica de
ensino, (e) a possibilidade de interpretar com base em dados o processo de aquisição que se
estabelece durante a implementação das unidades, e (d) a maior comparabilidade de planejamentos
de contextos equivalentes em situações distintas. Com relação a esses pontos, vejamos uma posição
mais antiga de Corder (1975:1):
“é tão somente quando os princípios são explicitamente formulados que alguém pode
avaliá-los ou testá-los com a finalidade de observar se eles poderiam, em partes, ser
mutuamente contraditórios e se eles são suficientemente abrangentes e detalhados para
5
fornecer uma base para a solução de vários tipos de distintos problemas que aparecem no
desenrolar do trabalho profissional do professor”
Embora os pressupostos mantidos por planejadores de cursos tenham alguma estabilidade
durante a fase de execução da sua tarefa de planejar unidades num curso, há condições e variáveis
específicas que afetam o planejamento que precisam ser levadas em conta durante o processo.
Algumas condições que merecem atenção específica já foram enumeradas há muito tempo por Lado
(1964:57). Elas são:
a) o aluno,
b) os materiais didáticos,
c)o professor, e
d) o cenário de aprendizagem.
Se decisões bem informadas e sistemáticas puderem ser tomadas com relação a essas
variáveis, as decisões arbitrárias do tipo intuitivo ou ensaio e erro serão reduzidas a um mínimo
tolerável.
A tarefa de planejar um curso de língua é uma atividade complexa do campo de
conhecimento especifico da LA que se ocupa do ensino e da aprendizagem de línguas, mas que não
se restringe à aplicação de uma única ciência fonte. Além de conhecimentos sobre a natureza e
descrição da linguagem (Lingüísticas Tradicional e Textual), sobre como se dá a
aprendizagem/aquisição (Aquisição de Segunda Língua-ASL) e sobre as funções da linguagem na
sociedade (Análise do Discurso, Sociolingüística, Pragmática), o planejador de cursos pode também
derivar teorizações parciais e ferramentas conceituais de outros campos tais como a Antropologia, a
Política Educacional, a Psicologia Educacional, a Pedagogia e a Estatística entre outros, muitas das
quais já absorvidas à teoria tronco da Lingüística Aplicada. Essa situação representa o planejamento
de cursos de língua como uma tarefa possível de ser convertida em projeto de pesquisa dentro da
Lingüística Aplicada na sua acepção de ciência aplicada preocupada com o estudo de questões de
uso social (neste caso, o ensino/aprendizagem) de linguagem detectadas na prática.
Neste caso, um planejamento pode ser concebido com mais segurança como um complexo
plano aberto para uma situação de ensino-aprendizagem. Esse plano traduz as maneiras de se ver a
otimização do processo de facilitar a aprendizagem e não poderia ser tomado como procedimentos
programáticos a serem necessariamente seguidos pelos professores que o adotassem. Ao contrário,
um planejamento explicitamente elaborado deveria ser capaz de permitir que os professores
ficassem menos dependentes do livro didático que por sua natureza mesma não pode servir a todo
tipo de necessidades e interesses do aluno. O planejamento deveria ainda conter a propriedade de
ensejar sua auto-melhoria gradual em termos (a) de variáveis não previsíveis na situação de ensino,
e (b) do constante retorno oferecido por professores e alunos envolvidos na sua implementação. Por
último, conforme aponta Stenhouse (1975), um planejamento serve de arena ao desenvolvimento da
capacidade de ensinar de professores que nele podem encontrar ambiente de crescimento e reflexão.
Essa posição de Stenhouse converge com a proposta de Giroux de que o trabalho docente seja
concebido como o de um intelectual crítico com espírito de questionamento e coerente na sua ação
transformadora (vide também Gramsci, 1971, e Freire, 1984).
6
5. Interpretação do contexto e antecedentes
A primeira fase do planejamento sistemático se endereça ao estudo e caracterização do
contexto ou situação de planejamento culminando com a definição dos objetivos do curso.
Para conhecer a situação ou contexto e torná-la explícita a outros implementadores, pais e
autoridades, o planejador busca dados sobre os alunos, história do curso, perfis de formação dos
professores que implementarão o curso, cultura de aprender dos alunos e cultura de ensinar da
escola, papel da língua-alvo na comunidade. Geralmente se coletam os registros com informações
no próprio local com pessoas familiarizadas com a situação através de conversas, entrevistas e
questionários. É freqüente iniciar o processo com um questionário aberto, reformatá-lo num
questionário fechado ou semi-fechado e completar o ciclo com entrevistas em cima das informações
colhidas por escrito.
6. Justificativas para aprender a língua-alvo
Neste estágio, explicitam-se as justificativas mais gerais para aprender a língua-alvo
pautando-se pelas justificativas para aprender qualquer nova língua. Vejamos um roteiro mínimo de
categorias de objetivos envolvendo a aprendizagem de uma língua estrangeira e algumas das suas
materializações possíveis nos variados contextos.
OBJETIVOS
Lingüísticos
- compreender o funcionamento da LE e através disso compreender melhor (e com mais
consciência) os mecanismos de funcionamento da L materna.
Educacionais
-
possibilidade de formação na língua-alvo
conhecer e compreender a(s) cultura(s) da L-alvo
desenvolver capacidade de reflexão, julgamento, observação e iniciativa
apreciação de valores, atitudes mentais positivas e socialmente úteis
Psicológicos
- experimentar estar na posição de outras pessoas
- aumentar a segurança pessoal
- sentir-se mais polivalente
Culturais
- abrir-se para o outro, interessar-se por culturas estrangeiras (firmando o conhecimento da própria
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cultura e o respeito por ela sem perder a postura crítica a seu respeito)
- compreender especificidades de aprender uma LE (estar sensível a fenômenos políticos, influências
culturais, econômicas, preconceitos e vieses)
- servir-se do conhecimento técnico-científico-cultural que circula na L-alvo
Práticos
- construir novas competências para o êxito na vida
- aprender língua viva, alternativa de comunicação, conversível em possibilidades de empregos e
oportunidades de viagens
7. Definição dos interesses e necessidades
Quase sempre buscamos o guia seguro de necessidades lingüístico-comunicativas concretas
dos aprendizes. Com freqüência nos frustramos com a ausência de necessidades puras e nos
deparamos ao invés, com interesses manifestos com invariável vaguidão. Quando não facilmente
discerníveis, esses interesses podem ser mais bem reconhecidos como fantasias mantidas e às vezes
despercebidas pelos aprendizes. As fantasias de qualquer modo merecem ser reconhecidas porque são
também fonte de energia advinda de motivações e uma vez conhecidas podem ser trabalhadas até o
ponto de se transformarem em interesses explicitados.
8. Abordagem incidente
A abordagem é o grande piloto filosófico-qualitativo da operação global de ensino da nova
língua. A abordagem contemporânea à qual mais se dirigem as atenções de professores, planejadores
e produtores de materiais é a comunicativa Ela sucede, pelo menos no dizer dos profissionais,
gradualmente a abordagem formalista, sistêmica ou gramatical que se tornou o paradigma da
modernidade na versão estruturalista do ensino das línguas nas décadas de 60 a 80.
Abordagem pode ser entendida como uma força que orienta e, portanto, caracteriza todo um processo
específico de ensino de língua Essa força necessita das competências implícita, aplicada e (meta)
profissional do professor ou de quaisquer outros agentes ativos de ensino tais como autores de LDs,
planejadores de cursos, produtores de instrumentos de avaliação, pais, tutores, etc. Essas
competências dependem de posicionamentos explícitos, no caso da competência aplicada,
(englobando a sub-competência teórica) e da profissional, e de posicionamentos implícitos com
intuições, disposições a partir de experiências prévias, cultura partilhada de ensinar da região/escola,
etc, no caso da competência implícita. A força da abordagem opera com energia de motivação para
ensinar e com “matéria-prima” de conhecimentos explícitos e implícitos. Os implícitos são teoria
informal, subjetiva, primitiva, na forma de crenças culturalmente marcadas pelo inconsciente coletivo.
Os explícitos são teoria formalizada, aprendida, (re)construída e citável na forma de pressupostos e
princípios estabilizados. Pode resultar contraditória a força da abordagem como resultado de posições
teóricas conflitivas entre as três vertentes de que se compõe a abordagem: a concepção de linguagem
(de língua, linguagem humana, língua estrangeira), a concepção de ensinar língua e a concepção de
aprender/adquirir língua. Nessas vertentes podemos incluir ainda a concepção básica de aluno e
professor como Homem em processo de humanização via aprendizagem e ensino de língua, os papéis
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de professor e aluno/aprendiz e a concepção de sala de aula de que se parte na abordagem. A
abordagem, em última instância, orienta o processo ou operação global de planejamento de cursos, de
produção ou análise dos materiais, das experiências realizadas para aprender dentro e fora das salas de
aula e das avaliações de rendimento efetuadas. O termo abordagem se relaciona (e muitas vezes se
confunde na literatura) com método e técnica em relação aos quais é superordenado ou superior
hierárquico. São exemplos de abordagem a contemporânea e multifacetada abordagem comunicativa
e a abordagem formal ou gramatical de movimentos de ensino historicamente anteriores (vide
Almeida Filho, 1993 e 2001 para uma caracterização dessas abordagens).
9. A natureza do curso
Quando os aprendizes demonstram possuir interesses, fantasias ou nenhuma delas, tem sido
mais freqüente a adoção do tipo geral de curso, ou seja, um programa para fins não óbvios ou difusos.
No caso de turmas com perfil de necessidades específicas ou interesses localizados, tem sido
escolhida a organização instrumental do curso. Instrumental ou para fins específicos é o curso que
responde a restrições de vários tipos de tempo disponível para realizá-lo, de propósitos, de
necessidades, etc.
Em situações onde um tema é desenvolvido ou uma área de uso adotada como organizadora
do curso total, dizemos que o curso é instrumentalizado, na medida em que acarreta uma delimitação
ou restrição temática a qual permite um tratamento em grande parte instrumental do planejamento de
cursos e produção de materiais.
10.
Tipos de Planejamento
Um planejamento é, afinal. um plano organizado de atividades de ensino cujos componentes
se interligam internamente de maneira coerente uns com os outros e externamente com outros
planejamentos de outros níveis. Não se trata de uma mera lista de unidades especificas de ensino e a
serem transferidas para o estudante.
Do ponto de vista teórico, qualquer plano ou estrutura de unidades pode ser de dois tipos
básicos: linear e cíclico.
O planejamento linear prototípico é aquele que representa uma progressão de um item de
aprendizagem para outro, cada um logicamente decorrendo do outro.
x1
y1
x2
y2
x3
y3
xn
yn
Figura 3: Representação de um planejamento linear
Na prática, contudo, e como tem sido demonstrado em inúmeras aplicações do arcabouço
linear, especialmente em versões da abordagem gramatical do ensino de línguas (para o qual ele se
presta sobremaneira), é impossível isolar segmentos lingüísticos simples. Dado que a linguagem se
apresenta como objeto de estudo em múltiplos níveis, envolvendo a associação simultânea dos seus
9
elementos entre significado, forma sintática e elementos fonológicos, além da complexa associação
dos seus elementos em cada um dos níveis, não é viável pensarmos a rigor numa progressão linear
simples. Mesmo que por consenso geral os planejadores de curso tenham aceito um ponto de ensino
como uma unidade gramatical simples, permanece o fato de que vários traços (sintáticos, fonológicos,
discursivos, etc.) estarão forçosamente presentes na mesma unidade gramatical isolada para o ensino.
Por exemplo, se o planejador de curso na língua inglesa visa introduzir a estrutura pronome +
verbo “be” + adjetivo envolvendo o pronome de 3ª pessoa do singular “he” ou “she”, seguido da
forma verbal “is” (3ª pessoa do singular do verbo “be”) seguido ainda do adjetivo “English”, o mesmo
planejador estará “ensinando” ao aluno simultaneamente ordenação de palavras na frase inglesa e
concordância verbo-pronome e verbo-adjetivo entre outras coisas.
Isolar aspectos gramaticais artificialmente de maneira que cada um pudesse posar de
elemento simples seria contradizer nossa percepção intuitiva de linguagem como configuração de
traços simultâneos em estreita interrelação uns com os outros na construção de sentido. Além do mais,
as unidades não são sempre logicamente dependentes nem independentes umas das outras. Não há
nada inerentemente lógico em se planejar a introdução num curso das formas do presente antes das do
passado, por exemplo.
Uma versão moderada do tipo linear é usada freqüentemente em planejamento e materiais
gramaticalistas audio-linguais. Quando esse é o caso, o procedimento linear é alterado pelo recurso à
intercalação de unidades de revisão globalizantes após algumas unidades linearmente arranjadas.
xl
x2
x3
x3,l,2
xn
yl
y2
y3
y2,l,3
yn
Figura 4: Versão moderada de planejamentos lineares com unidades de revisão
O planejamento cíclico, como o próprio nome sugere, implica uma volta a um conjunto
inicial, pré-selecionado de unidades de curso de maneira que se possa expandi-las cada vez que forem
retomadas em ciclos posteriores.
O conjunto inicial de unidades pode ser expandido ou modificado para acomodar novas
unidades de ensino exigidas pelas necessidades e interesse dos alunos.
Figura 5: Os planejamentos cíclico e evolutivo
10
Duas características do planejamento cíclico podem bem caracterizá-lo: (a) a acumulação e,
(b) a integração. Por permitir o retorno a um conjunto de unidades já estruturadas, o planejamento
cíclico favorece o acúmulo orgânico de elementos. Esse acúmulo não se dá por mero depósito, mas
através de uma integração com elementos anteriormente aprendidos dentro do todo da língua. Esse
planejamento é tido como propício para cursos de base semântica ou nocional (Wilkins, 1976: 58)
uma vez que ao final de cada ciclo de unidades corresponderia um nível específico de competência
comunicativa.
Do mesmo modo que o tipo linear, a organização cíclica não pode chamar a si qualquer
propriedade de progressão rigorosa de unidades que sejam a um tempo simples e logicamente
dependentes umas das outras. Se uma organização de base gramatical linear não tem o poder de lidar
com apenas um traço gramatical por vez, da mesma forma um planejamento de base nocional cíclica
não pode apresentar apenas um tipo de significado em cada unidade semanticamente definida. A
conclusão a ser tirada é que não pode haver uma aplicação lógica rigorosa em quaisquer dos tipos de
planejamento vistos nesta seção e é somente num sentido mais flexível e pedagógico que o planejador
empregará tais conceitos em seu beneficio.
É preciso notar ainda neste ponto que ambas as formas prototípicas de organização das
unidades e os ciclos parecem conceituar a aprendizagem de línguas como um esforço para ensinar
língua per se (seja ela tomada como regras gramaticais, vocabulário ou com funções comunicativas e
regras sócio-culturais). Não está considerada a visão alternativa de se tomar a experiência de aprender
línguas como parte de uma experiência maior de aprender outras coisas como, por exemplo, os
conhecimentos das outras disciplinas como ciência, história, artes, etc. Neste caso, as possibilidades
de utilização de planejamentos evolutivos são maiores mas haveria especificidades - é possível
imaginar um curso de geografia que é retomado em diferentes níveis de profundidade e abrangência
com as respectivas implicações ao nível da linguagem mas também é possível imaginar o mesmo
curso de geografia de nível 1 ser sucedido por outro de arte contemporânea ao nível 2 para o mesmo
grupo de alunos. Nesse caso, o conceito de cíclico não se aplica mais como antes sendo preferível
substituí-lo pelo conceito de planejamento evolutivo onde a demanda cognitiva é um forte parâmetro
de planejamento das experiências com a língua-alvo.
11. Especificação de níveis ou ciclos
O nível de entrada dos alunos servirá para estabelecer uma relação com um piso inicial de
competência sobre o qual desenvolver os outros níveis. O nível de saída de um nível é aquele que faz
o aluno aceder às exigências do próximo até o último nível, que usualmente deve representar uma
faixa de uso e/ou conhecimentos que permita uso social e/ou profissional da língua-alvo. Conhecendo
as especificações do piso e do teto, será possível estabelecer a sua relação com um nível limiar e com
os níveis intermediários e ir, aos poucos, a cada ano ou semestre ajustando os níveis de expectativas
do curso com a realidade.
12. Alinhamento dos materiais, método e avaliação
Depois da definição das condições de implementação do planejamento proposto, torna-se
necessário prever os alinhamentos de materiais adequados, tônica do processo ou método adequado à
usufruição do planejado, e da tônica e momentos do processo de avaliação do curso, do professor e
11
alunos. A partir da definição dos objetivos específicos é então possível passar para a segunda fase
do planejamento que tratará da especificação das unidades do plano.
13. Definição dos objetivos
Para a definição dos objetivos específicos será necessária uma taxonomia adequada com a
qual verbalizá-los. Servirá de ilustração o quadro seguinte:
Fig. 6 : Uso da Taxonomia para a Especificação de Unidades
TEMAS
-Ecologia
-Violência
-Meios de
transporte
-Drogas
-Hábitos
alimentícios
-Juventude
-Interesses especiais
-Esportes
-Música
-Lazer
-Cultura
-Sexo
-Família
TÓPICOS
-Ecologia
-Destruição da
camada de Ozônio
-Movimentos
ecológicos
-Amazônia
-Metanol
-Indígenas
brasileiros
-Consciência e
educação
ecológica
-Elementos do
ecossistema
RECORTES
COMUNICATIVOS
 e discutir
(  = ler,
compreender língua
oral (assistir)) com
compreensão
-Tomando notas
depois de relatos
orais e escritos
-Escrevendo
relatórios
-Resumir um texto
-Ouvir um  e
tomar notas
-Transformar a
representação não
verbal em discurso
verbal
-Conversar sobre
anotações e
compará-las
-Conversa de
encerramento (ao
final de unidade)
FUNÇÕES
-Interromper
-Afirmar
-Expressar opinião
(aberta/com
reserva)
-Definir
-Exemplificar
-Listar
-Comparar
Estas especificações podem ser transformadas em objetivos específicos contanto que sejam
precedidas de um caput que as coloque em contexto. Os temas são reais e podem ser convertidos em
objetivos educacionais. Processos necessários à aquisição da língua-alvo e os momentos e tônica das
reflexões sobre eles serão especificados como objetivos também.
Os objetivos dão energia e apontam o rumo para toda a operação de aprender/ensinar. O
encaminhamento do processo é marcado por um ideário, um conjunto freqüentemente não harmônico
de conceitos como o de linguagem humana, o de aprender uma L2 e o que conta como ensinar uma
12
L2. A esses ideais de princípios, pressupostos teóricos e crenças intuitivas damos o nome de
abordagem conforme vimos anteriormente na seção 8.
Por exemplo, na nossa abordagem podemos ter que aprender uma língua é aprender as formas
em frases que são gramaticalmente bem formadas. Isso contribui para caracterizar um foco na forma o
que já reduz (se não elimina) as chances de atentar para ou perceber o sentido daquelas amostras da
linguagem que temos de apresentar ou criar em sala de aula. Vejamos quais são e como se comparam
os traços do foco na forma com características outras quando o foco é no sentido.
FOCO NA FORMA
-
código, sistema formal
correção (pelo modelo ideal)
aprendizagem de habilidades
pseudo-comunicação
reprodução, imitação,
transformação, preenchimento de
lacunas
- conteúdos “dos outros”,
estratosféricos, pretextos
- professor dirige atividades sabendo
resultados
FOCO NO SENTIDO
-
-
abordagem sistêmica/gramatical
conteúdo, sentidos
linguagem apropriada
uso cada vez mais fluente da L2
aprendizagem em atividades que
necessitam de interação
comunicação real
iniciativa, possibilidade de
escolha do que dizer, negociação,
reformulação com colegas,
interlocutores, autonomia
conteúdos “meus”, da minha
turma, da minha região
professor que promove
conscientização de linguagem
abordagem comunicativa
14. Definição das unidades
A tarefa que se nos apresenta neste ponto é a proposta de um formato de unidade de estudo.
Com os objetivos indicando um possível cenário de chegada (competências-alvo) é preciso ainda
definir a natureza das experiências que serão promovidas nas unidades e os conteúdos que estão
implícitos nessas experiências. A unidade já pode ser pensada em termos de uma diagramação e
estética próprias que marcarão posteriormente os materiais.
Também se coloca a questão do que dará unidade ou coesão ao conjunto das unidades (coesão
inter-unidades). É possível imaginar, por exemplo, que as unidades se desenvolverão em torno de um
tema maior, uma história ficcional ou de uma disciplina.
No quadro abaixo, apresento um esquema processual básico de organização das unidades:
13
Fig. 7: Esquema processual de organização de unidades num planejamento comunicativo
CENÁRIOS
TEMAS
TÓPICOS
ATIVIDADES OU
RECORTES COMUNICATIVOS
FUNÇÕES
REALIZAÇÕES
GRAM / VOC. /FON./ ASPECTOS CULTURAIS
Exemplo de atividade ou recorte comunicativo:
Participar de palestra tomando nota:
Funções discerníveis nesse recorte:
- definir
- comparar
- selecionar informações
- anotar dúvidas
- exemplificar
- classificar
- descrever
- avaliar
- estabelecer associações
- questionar
- diagramar
- destacar
- expressar acordo/desacordo
- abreviar palavras ou termos
15. Avaliação interna (do planejamento) e momentos de reflexão
Para se transformar num projeto de médio-prazo em desenvolvimento curricular ou em
planejamento, a proposta precisa se auto-colocar parâmetros e pressupostos com os quais avaliar o
andamento e resultados. Embora a reflexão seja de natureza contínua, é recomendável em
planejamentos contemporâneos estabelecerem-se momentos para avaliação do e reflexão sobre o
curso, a própria atuação e condições contextuais para o andamento do programa.
14
Neste ponto, é conveniente ainda criar os contornos de uma verdadeira campanha de
relações públicas que apresente positivamente o projeto e prepare o público-alvo para implementá-lo.
Quase sempre se produz uma versão resumida (de uma ou duas páginas) da proposta contendo
objetivos, o programa de unidades, atividades/procedimentos previstos, formas de avaliação e
bibliografia de apoio.
16. Planejamento, planos de cursos e possibilidades de pesquisa aplicada nessa dimensão
Todo planejamento consta ambigüidade de um trabalho no plano abstrato das idéias e outro
no plano concreto da proposta escrita com previsões da sua implementação. No primeiro plano, o
planejamento será visto como:
- uma dada representação de pressupostos e ênfases acerca do processo de ensinar e aprender
(incluindo materiais, método e avaliação);
- um processo de tomada de decisões auto-explicitado;
- uma definição de procedimentos esperados;
- uma concepção de contexto(s) a que o planejamento é sensível e ao qual responde.
No plano concreto da realização das unidades premeditadas, o planejamento será visto como:
-
um roteiro para alcançar os objetivos;
uma seleção de experiências e das partes da língua-alvo implicadas nelas;
um continuador da implementação das ações do cotidiano do curso;
mapa de percurso para guiar decisões sobre avaliação dos alunos e do próprio curso.
Quando entendido nessas duas dimensões, o planejamento explicitado em seus pressupostos e
na ação futura servirá como campo de investigação aplicada no ensino de línguas. O foco pode ser,
por exemplo, o processo de planejar em si analisado num pano de fundo da prática da sua
implementação em contextos específicos complexos onde outras forças de abordagem concorrem para
modular o processo que se obtém e se registra na forma de possíveis dados.
17. Considerações finais
A área de planejamento de cursos é uma típica área “aplicada” no sentido de que está
naturalmente ligada a uma atividade da prática educacional no ensino das línguas. Há dificuldades na
concepção dessa área como espaço privilegiado para inovações fundamentadas nas teorias
contemporâneas de ensino-aprendizagem que precisam ser contempladas. O planejamento não é a
parte fácil para quem tem prática e já sabe teoria lingüística ou teoria pedagógica geral. Nem é,
tampouco, um conglomerado eclético de anotações da tradição mágica, de dogmas ao estilo religioso
e princípios científicos combinados com arte para dar certo. Essa área de estudo ainda pouco
documentada, essa tarefa prática de base intuitiva e mimética como exercício vazio de início de ano
letivo precisa ser reconceituada com vigor e urgência.
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