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RELAÇÃO ENTRE O PENSAMENTO JURÍDICO E RELIGIOSO DA
ANTIGUIDADE À PÓS-MODERNIDADE.
Dilson Cavalcanti Batista Neto
Bacharel em Direito pela UFS, Mestrando em Direito Público na UFBA na Linha de Pesquisa
Limites do Discurso Jurídico, Pesquisador da CAPES, Advogado.
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Do Pensamento Jurídico Greco-Romano ao Jusnaturalismo
Racionalista. 2.1. O Direito e Religião antes de depois do Cristianismo. 2.2. Direito e Religião
no Medievo. 2.3. Renascimento, Reforma Protestante e as bases do Jusnaturalismo
Racionalista. 3. Da Escola da Exegese, Positivismo Jurídico, às linhas modernas de raciocínio
jurídico. 3.1. Escola da Exegese e o Republicanismo Secularista. 3.2. Proposta Positivista e os
valores. 3.3. “Descoberta” da Tópica e a Nova Retórica Jurídica. 3.4. A Pós-Modernidade e as linhas
contemporâneas do pensamento jurídico. 4. Conclusões. 5. Referências.
RESUMO. O presente estudo aborda o relacionamento entre o pensamento jurídico e o
religioso através da história, com o intuito de esclarecer alguns dos casos difíceis envolvendo
a laicidade no Brasil atualmente. Defende-se uma postura laica do Estado perante a religião,
mas que não pode ser confundida com uma aversão a ela. Para tanto, buscou-se traçar a
evolução do relacionamento entre o pensamento religioso e o jurídico desde a antiguidade, a
fim de se tentar compreender o princípio da separação entre o Estado e a religião de maneira
mais ampla. PALAVRAS-CHAVE: Laicidade, teoria do direito, religião, liberdade religiosa.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tentará contribuir, de maneira humildade e inicial, para o
desenvolvimento das discussões sobre a laicidade e liberdade religiosa que não podem se
restringir ao Direito Constitucional, mas deve buscar as origens do princípio da separação
Estado-religião na Teoria Geral do Direito, na história e na filosofia. Os casos difíceis que
hoje se apresentam, na verdade, podem ser melhor entendidos quando se faz uma abordagem
da relação entre o pensamento religioso e o jurídico através da história. Para tanto, o trabalho
foi dividido em dois capítulos.
O primeiro capítulo traça o início do relacionamento entre o pensamento jurídico
e religioso desde a antiguidade, perpassando pelas formulações do cristianismo, Idade Média,
7
até a criação do Estado Moderno. O segundo capítulo trata do surgimento do Iluminismo e
sua proposta da separação entre ciência e religião, até a crítica pós-modernista e suas
implicações para o direito, principalmente delineando limites para o discurso jurídico que
busque a eliminação da influência religiosa do meio público.
2DO
PENSAMENTO
JURÍDICO
JUSNATURALISMO RACIONALISTA
GRECO-ROMANO
AO
2.1- O direito e religião antes de depois do cristianismo.
Somente é possível analisar a relação entre direito e religião quando se vislumbre uma
distinção entre elas em algum grau, o que é improvável quando se pensa nas origens do
homem quando havia unidade entre o pensamento religioso, político e jurídico. Foi a partir
das culturas pré-modernas (China, Índia, Grécia, Roma, etc.), quando apareceram os
mercados, que se modificou o contexto primitivo no qual imperava a vontade do patriarca. Ou
seja, a posição do comerciante não é mais determinada por sua família, mas por um complexo
rol de interesses baseados em diversas culturas diferentes, não mais no do clã ao qual pertence
o mercador. É desta forma que aparece o domínio político, localizado em centros de
administração e diferenciado da organização religiosa e cultural.1
Não queremos, entretanto, inferir que nas citadas culturas havia uma total distinção
entre religião, justiça e direito. Ao contrário, a função do filósofo, como se verá nas lições de
Sócrates, refletia sobre os fenômenos sociais enquanto reflexo de uma verdade unificadora.
Mas nessas sociedades é que vamos reconhecer as primeiras formulações que tornam possível
o objetivo central do trabalho: como se relaciona o pensamento jurídico e religioso através da
história para se chegar ao contexto atual no Brasil.
Tomemos, pois, como ponto de partida as culturas clássicas (greco-romana) e a
judaico-cristã, delineando um breve esquema de como a relação entre o pensamento
metafísico, religioso e o jurídico-político foi se construindo. É de se reconhecer que existem,
1
Tércio Sampaio Ferraz Jr.. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. São
Paulo: Atlas, 2003, p. 53-54.
8
de igual maneira, diversos exemplos de sociedades que, antes mesmo das culturas acima
elencadas, já apresentavam um grau de complexidade que rompia com o modelo de
organização da sociedade em clãs (egípcios, babilônicos, orientais, entre outros), mas que não
tiveram influência inconteste no Ocidente como as que enumeramos acima.
Na Grécia pré-socrática já se pode encontrar os primeiros fundamentos da discussão
sobre justiça, direito e religião. O centro de tal discussão era a distinção fundamental, que é o
tema de "Antígona" de Sófocles, entre o justo por natureza e o justo por convenção, ou seja,
entre lei natural e lei positiva.
2
O contratualismo ganha força devido a defesa feita pelos
sofistas, que reduzem a justiça ao meramente convencional. O Direito parece-lhes ser uma
convenção feita entre homens cansados das intempéries da vida primitiva, marcada pela
violência e insegurança. Os epicuristas são, por sua vez, os maiores representantes do
contratualismo no pensamento grego. Para eles, “a justiça é instrumento e não a medida do
que deve caber a cada um, porém o meio de evitar a dor, jamais prejudicando a quem quer
que seja.” 3
Para os defensores do contratualismo na Grécia, era impossível ao homem conhecer a
verdade intrínseca das coisas. Contra tal convicção é que Sócrates se levantava. Ele defendia
que o homem deveria conhecer a si mesmo como meio de alcançar a verdade e a felicidade.4
O agir ético só era possível através do conhecimento verdadeiro que prescindia as aparências
e enganos que o homem era capaz de formular. A tarefa do filósofo era, então, erradicar a
ignorância, por meio da educação (paideia), re-afirmando, assim, seu compromisso com a
divindade.5
Pelo exposto, percebe-se que a ética socrática é uma junção de elementos sociais e
religiosos que se transmitiram e se consubstanciaram principalmente no pensamento de Platão
para quem a justiça ideal expressava as três partes da alma: a sensibilidade, a vontade e o
espírito. Sendo que a temperança é uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a
coragem é a justiça da vontade; e a sabedoria é a justiça do espírito.6 Já em uma vertente
política, Platão defendia a seguinte estratificação social: os artesãos, dos quais a justiça exige
2
Miguel Reale, Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 623.
Ricardo Maurício Freire Soares. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São
Paulo: Saraiva, p. 33.
4
Ibid, p. 30.
5
Eduardo C. B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida, Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas,
2005, p. 75.
6
SOARES, op. cit., p. 31.
3
9
a temperança; os militares, dos quais a justiça reclama a coragem; os chefes, dos quais a
justiça demanda sabedoria. Em resumo, desponta a justiça como a imperativa adequação da
conduta humana à ordem ideal do cosmos, constituindo ela a lei suprema da sociedade
organizada.
Outro grande pensador grego foi Aristóteles, que dentre vários escritos, dedicou-se ao
estudo da metafísica. Para ele, a metafísica é o estudo do “Ser enquanto Ser” 7, ou seja, a
filosofia estuda primordialmente: 1) o ser divino, a realidade primeira da qual todo o restante
procura se aproximar. “As coisas se transformam, diz Aristóteles, porque desejam encontrar
sua essência total e perfeita, imutável como a essência divina. É pela mudança incessante que
buscam imitar o que não muda nunca.” 8
O que difere no pensamento de Aristóteles para o de Platão em relação ao tema é que
para o segundo a realidade tátil é uma cópia deformada, uma sombra do mundo verdadeiro
(das ideias). Já Aristóteles entende que o ser divino pode ser entendido como um “primeiro
motor” porque é o princípio que move toda a realidade, imutável, perfeito.
No que concerne ao pensamento jurídico, Aristóteles, como não poderia deixar de ser,
também propôs uma organização e classificação. Primeiramente entre justiça natural e legal.
Natural sendo aquela objetiva e imutável, e o legal sendo a lei positivada. A Legal divide-se
em geral e particular. A particular divide-se em distributiva e justiça corretiva. E esta se
divide em comutativa e reparativa.9
Em suma, pode-se perceber, na relação entre a religião e a justiça na Grécia, um
sucessivo avanço da filosofia ao criticar a mitologia e construir, com base em argumentos de
natureza cosmológica e antropológica, entre o plano sensível e o ideal trabalhados em Platão e
posteriormente Aristóteles, uma vinculação do divino às ideias de razão e lei natural.
Malgrado não se chegue a abandonar a matriz politeísta tradicional, a religião mitológica de
outros tempos dá agora lugar a uma religião racionalizada e oficializada ainda que
desprendida de intenção proselitista como o Cristianismo possui, como veremos adiante.10
Entretanto antes de analisarmos o Cristianismo, passemos a abordar as discussões
sobre direito e religião em outro povo que foi crucial para a formação do pensamento
7
Marilena Chauí, Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, 277.
CHAUÍ, op. cit., p. 278.
9
SOARES, op. cit., p. 32.
10
Jónatas Eduardo Mendes Machado. Liberdade Religiosa Numa Comunidade Constitucional Inclusiva.
Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 16.
8
10
contemporâneo sobre o tema: o romano. Destaque-se, de início, que o direito em Roma não
era estudado apenas por moralistas, por filósofos, teólogos ou sacerdotes, surgindo a figura
importante do jurisconsulto. Este era um profissional de uma nova Ciência ou Arte 11, que era
dar sentido prático (voluntas) ao fenômeno jurídico, não o tratando simplesmente como uma
parte teórica da sabedoria. Forma-se, então, das atividades concretizadoras do jurisconsultos a
palavra que até os dias atuais é usada: a jurisprudência. Tal expressão era uma das utilizadas
pelos romanos, ao lado de scientia, ars, notitia, para designar que o saber jurídico liga-se,
desta forma, ao que a filosofia grega chamava de fronesis (discernimento).12 Para que a
fronesis se exercesse eficazmente, era necessario o desenvolvimento de uma arte (ars, techne)
que é similar ao que Aristóteles chamava de dialética.
No que concerne à religião em Roma, esta era compreendida como parte integrante do
jus publicum, sendo as funções pontifícias e sacerdotais (atos de cultos), consideradas como
serviço público. Ou seja, era um setor da administração pública, da responsabilidade dos
funcionários estaduais. Malgrado a relação intima entre o Estado e a religião politeísta, assim
como ocorria na Grécia, a religião romana era não-dogmática, eclética e inclusiva.
13
Por se
tratar de um largo império, era comum e saudável a aceitação da existência de outras religiões
e práticas religiosas advindas de contextos culturais distintos, contexto tal que deixava poucas
margens para conflitos. A religião era vista como amalgama a serviço da eficácia de um
sistema jurídico.
Para Cícero, as virtudes são estimuladas por uma lei natural, já os vícios são
repreendidos por ela. Observando-se a natureza humana, deve-se buscar, segundo o filósofo
romano, o alcance de um grau de afinidade e harmonia com as leis que rege o todo, de forma
a que tudo se governe de acordo com uma razão divina.14 Esta percepção tem como foco a
liberdade humana perante o estoicismo grego (contratualismo).
Outra grande influência para o pensamento jurídico ocidental foi o cristianismo.
Antes, porém, de abordarmos as contribuições do pensamento cristão, é importante traçar um
11
12
13
14
REALE, op. cit., p. 636.
FERRAZ JR, op. cit., p. 57.
MACHADO, op. cit., p. 17.
BITTAR; ASSIS, op. cit., p. 153.
11
panorama sobre a cultura judaica. Esta se assentava numa concepção de matriz teocrática que
não deixava margem para uma clara distinção entre finalidades políticas e religiosas.15
O poder político judeu estava legitimado em premissas transcendentais, nas quais o
que se buscava efetivamente era a vontade de Deus. Isso porque a sociedade devia se
aperfeiçoar para que fosse possível re-estabelecer a conexão perdida com o Criador quando o
homem decidiu pecar. Nesse contexto, ganha importância o papel dos profetas, patriarcas e
sacerdotes. A esta classe cabia a função reformista de exortar os monarcas para não se
afastarem da lei de Deus e buscarem conformar a sociedade dentro do quadro das instituições
existentes. Tais instituições eram marcas que distinguiam, muitas vezes, os próprios cidadãos.
Na teocracia hebraica não havia espaço para liberdade de consciência individual, sendo a
sociedade entendida como um corpo orgânico. E, diferentemente do contexto greco-romano, a
coerção e a perseguição religiosa era a regra.
Fora a percepção de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus – ideia
base para futuras formulações jurídicas que imbuem o homem de um dignidade intrínseca –
outra herança judaica que persiste aos dias atuais é a ideia de um dia de descanso semanal.
Atualmente tal descanso está ligado ao direito trabalhista16, mas por mais que o descanso
semanal, nos dias de hoje, tenha um caráter eminentemente constitucional-trabalhista, o
aspecto religioso, contudo, ainda permanece na escolha do dia da semana a ser interrompido,
ao se adotar a fórmula “preferencialmente aos domingos”, bem como na fixação de alguns
feriados religiosos.17
Mas para os judeus, bem como para uma pequena parte dos cristãos, o dia de descanso
não é o domingo, mas o sábado (shabat). O nome do sétimo dia da semana é derivado do
hebraico - Shabat - que significa simplesmente "cessar de trabalhar". O Shabat não é somente
um dia de descanso para os judeus: é um dia de santidade, quando as pessoas podem, por um
curto período de tempo, deixar de lado suas preocupações e objetivos materiais da vida, e
devotar-se para a renovação espiritual e para a atividade religiosa. O Shabat é totalmente
observado quando há ambos, descanso físico e recreação espiritual. Esta combinação de
15
MACHADO, op. cit., p. 15.
Art. 7º, XV, da Constituição Federal/1988.
17
Flávia Moreira Guimarães Pessoa, Curso de Direito Constitucional do Trabalho. Salvador: Editora Jus
Podivm, 2009, p. 93.
16
12
elementos do Shabat é enfatizada nos Dez Mandamentos e em outras partes da Torá, onde
ambos os aspectos, o social e o religioso, são descritos.
O cristianismo trouxe inúmeras mudanças de paradigmas ao judaísmo e todo o
pensamento religioso até então existente. Não cabe fazer aqui uma abordagem exaustiva
teológica, histórica e filosófica sobre o cristianismo, mas trazer a lume dois pontos principais
que o distingue: 1) proposição de uma igualdade entre os seres humanos independente das
suas origens; e 2) a separação entre o pensamento político e o religioso.
Sobre o primeiro ponto, percebe-se desde a antiguidade clássica até os judeus18 que há
a orientação de respeito ao homem. Porém este deveria ser identificado como pertencente ao
mesmo clã, classe, profissão, para ser digno de tratamento igual. O cristianismo amplia a
dignidade da pessoa humana vinda da criação à imagem de Deus para toda a humanidade, não
somente para os judeus. Para o cristianismo, o perdão dos pecados só é possível através da
aceitação da morte de Cristo como válida para apagar os pecados, já que “o salário do pecado
é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”.19
Já que todos podem ter acesso à justiça divina em Cristo, não pode haver mais divisão
de origens e classes.20 Afirma Paulo: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em
um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber
de um só Espírito.”21 É certo que nos primórdios da igreja cristã esta mudança de paradigma
foi tão radical, que gerou discussões, à princípio, dentro do próprio movimento cristão, mais
precisamente entre Pedro e Paulo. Mas o que importa aqui reforçar é que a igualdade
concebida pelo cristianismo foi o motor de diversas formulações jurídicas posteriores,
inclusive na contemporaneidade, como veremos adiante no momento oportuno.
Outro ponto que interessa-nos é a separação proposta por Cristo entre os objetivos
políticos e religiosos. Num epsódio, Jesus foi questionado quanto ao pagamento de tributos à
César (já que a judéia fazia parte do império romano). Cristo respondeu proferindo a famosa
frase: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”22 Além deste epsódio, por
18
Ao contrário do que o senso comum entende, a máxima de amar o próximo como a si mesmo vem do
antigo testamento. Mais precisamente Levíticos 19:18: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do
teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR .”
19
Romanos 6:23.
20
Romanos 3:22: “justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que
crêem; porque não há distinção”.
21
1 Coríntios 12:13.
22
Este relato pode ser visto em Mateus 22:17-21; Marcos 12:14-1 e Lucas 20:22-25.
13
diversas vezes Jesus falava de um “reino do céu”, e em nenhum relato bíblico mostrou-se
favorável a uma tomada de poder político a fim de fundamentar e fortalecer suas ideias. Ao
contrário, a ordem que aparece nos finais dos evangelhos cristãos é para fosse ensinado suas
lições para todo o mundo, não fazendo alusão a qualquer ordem de sujeição
política.23Malgrado tal postura, a história do cristianismo foi ligada ao pensamento político
através do que se chama de cristanização do Império Romano.
Em Roma, como já afirmado, os cultos religiosos faziam parte da competência dos
funcionários públicos e havia uma tolerância em relação a outras práticas diferentes das
romanas. Mas tal tolerância somente ocorria desde que se aceitasse o culto ao Imperador,
considerado sumo pontífice, digno de adoração.24 Esta imposição não era aceitável para o
cristianismo primitivo. Malgrado procurassem respeitar as autoridades, mostrando-se
cidadãos exemplares25, os cristãos eram objeto de perseguição e incriminação. Tal fato de
dirigirem a sua lealdade suprema a outra pessoa que não ao Imperador os levavam à morte,
por muitas vezes, nas arenas de gladiadores.
Com o começo do declínio do Império, percebe-se o potencial socialmente integrador
do cristianismo que o torna a religião oficial romana, fazendo que a nova fé sirva de coluna
vertebral de uma homogeneizante religião civil. Os propósitos de tal mudança consistiam em
assegurar pax terrena, ou seja, a legitimação e legitimidade do poder, a estabilidade das
instituições e a integração e coesão do tecido social.26
Da perspectiva da liberdade religiosa, tal mudança trouxe uma inversão das
perseguições: os cristãos de perseguidos passaram para um posição política e juridicamente
privilegiada na qual o paganismo são punidos com a pena capital. Foi ordenada, ainda, a
destruição de todos os locais e objetos do culto não-cristão, sendo os seus bens confiscados e
atribuídos às igrejas.
23
Mateus 28: 18-20: “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu
e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do
Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos
os dias até à consumação do século.”
24
MACHADO, op. cit., p. 20.
25
Outro ponto interessante do cristianismo é o dever de respeitar as autoridades. Romanos 13:1 é claro
quando diz: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de
Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas”
26
MACHADO, op. cit., p. 23.
14
A cristianização do Império Romano realmente alterou a história do Ocidente, já que,
com a queda do Império, a Igreja Católica Apostólica Romana, no ponto de vista jurídico,
sustentará que o Papa era, não apenas sucessor de Pedro e da cristandade, mas também
sucessor de César, ou seja, herdeiro direto da dignidade imperial. Isto se deu, entre outros
fatores, por força da doação que Constantino fez à Igreja27. No plano político e teológico, a
Igreja reclama, nos séculos que se seguirão, a superioridade intrínseca do seu discurso
teológico relativamente a todos os aspectos da vida, inclusive no direito. A partir desta
perspectiva, passa-se a construir toda cultura ocidental a partir da ótica teocêntrica, mais
especificamente, refletindo a posição de superioridade da verdade objetiva encarnada na
doutrina e na prática da Igreja28, como veremos no próximo tópico.
2.2
- Direito e religião no medievo
Após a queda do Império Romano, a Igreja passa a adotar a distinção romana entre
auctoritas e potestas, ou seja, reclamava para si a primeira e deixando a segunda, que não mais
pertencia aos cidadãos romanos ou ao imperador, mas aos príncipes seculares que representavam
os povos bárbaros que agora passaram a dominar a Europa. A situação política se resumia em que
o poder político era somente um poder, mas não era a autoridade, não tinha a última palavra, esta
pertencia aos que se diziam representante de Cristo na terra que era responsável para adequar a
realidade política, jurídica, artística, científica em geral à vontade de Deus.29 No presente esquema
histórico, a dinâmica entre a Igreja e os príncipes marca uma separação entre o pensamento
religioso e jurídico nunca antes teorizado. Os filósofos da idade média, pertencentes ao chamado
Jusnaturalismo Teológico, são pioneiros na análise da relação entre religião e o direito já que
foram herdeiros da proposição cristã de separação entre o religioso e o político. Sendo assim, dois
grandes movimentos surgem na Idade Média: a patrística e a escolástica.
A patrística foi o movimento liderado por padres dos séculos I e II, que
filosoficamente buscavam fundamentar os dogmas católicos, tendo como principal expoente
Santo Agostinho. Ele defendia a existência de duas concepções em relação ao Estado: o
helênico, pagão, e a segunda sendo composto por almas libertas do pecado e próximas de
27
28
29
A partir de agora, quando utilizarmos o termo “Igreja”, estaremos nos referindo à Igreja Católica.
MACHADO, op. cit
FERRAZ JR, Op. cit., p. 63.
15
Deus. A base que marcava tal dicotomia era a diferença entre a Lei Eterna, criada por Deus e
a Lei Natural, insculpida no homem.30
A filosofia agostiniana, apesar de inteiramente orientada para a metafísica e para a
teologia, traz uma série de orientações para a construção de um sistema sobre o governo das
almas, ou seja, no campo político. Agostinho pregava que a vida terrena devia ser valorizada
como meio de correção dos rumos de cada alma em particular, tudo a partir dos praecepta
divinos.31
Foi exatamente de tal divisão entre o plano divino e o terreno com implicações
políticas, que Agostinho trouxe-nos a famosa distinção entre a Cidade de Deus (Civitas Dei) e a
dos Homens. O objetivo maior dos pensadores da patrística é a de, num mundo repleto de
iniqüidades, aproximar o homem de Deus e, para tanto, devem reinar em todas as relações
humanas os princípios divinos insculpidos no coração humano, fazendo com que a se faça reinar
também na Terra a Cidade de Deus.32 Para Agostinho, nesta dicotomia, podem-se identificar
dois amores: um primeiro, ou seja, o amor de si e o desprezo de Deus, que deu origem a
cidade terrestre; um segundo, ou seja, o amor de Deus, e o desprezo de si, a cidade celeste.
Já a Escolástica teve como principal representante Tomás de Aquino, que considerava
que existia a divisão entre lei eterna, natural e humana, mas que estas não podem ser
estanques, sendo que todas devem se complementar ao máximo. Dividia a lei natural em duas
espécies: a propriamente dita, que governa a natureza dos animais, e o direito natural das
gentes, sendo que a ordem jurídica não deve se restringir a uma conjunto de normas, já que a
justiça é uma virtude.
A teoria de Tomás de Aquino encontra-se desenvolvida especialmente na Summa
Theologica. Nesta obra, o grande filósofo medieval trata da questão da lei e da justiça,
destrinchando problemas jurídico-políticos. Aquino traça algumas categorias de leis.33 A
primeira é a lei eterna. Esta foi promulgada por Deus e tudo ordena, em tudo está; a segunda é
a lei natural: trata-se de uma lei comum a homens e animais. Outra categoria é a da lei comum
a todas as gentes: trata-se de uma lei racional, extraída da lei natural, entretanto, comum
somente a todos os homens; e, por último e a mais volátil da escala, a lei humana: trata-se de
30
31
32
33
SOARES, op. cit, p. 35.
BITTAR; ASSIS, op. cit., p. 190.
Idem, p. 192.
Idem, p. 205.
16
uma lei puramente convencional e relativa, assim como altamente contingente, e que deve
procurar refletir a essência das leis eterna e natural.
A teoria tomista sobre a justiça traz implicações vastas para o pensamento teoréticojurídico. Com esta classificação mais larga da lei e da justiça, Aquino tenta responder ao
problema da justiça de maneira mais completa e racional. Sua contribuição reside em seu
jusnaturalismo. Como vimos, sua teoria admite uma lei natural mutável, e que, portanto, não
se encontra nos ombros estreitos do que e absoluto. Ademais, sua concepção aponta para uma
lei maior do que a natural: a lei divina. Desse modo, todo conteúdo de direito positivo
(contratual, volátil) deve-se adequar às leis e prescrições que lhe são superiores: o direito
natural e o direito divino.34 Com o advento do Renascimento e do Iluminismo, como veremos
adiante, o apego e fundamentos teológicos para a explicação do justo, base do pensamento
tomista, tenderá a diminuir entre os filósofos e teóricos do direito. O que importa aqui frisar é
que após a contribuição de Tomás de Aquino, o direito natural, que já era uma teoria
defendida na corrente socrático-aristotélica e na estóica, bem como na obra de Cícero e de
jurisconsultos romanos, adquire um sentido diverso, não apenas por tornar-se uma lei da
consciência, uma lei interna à consciência humana, mas também por ser considerada inscrita
no coração do homem por Deus.
Saindo do campo eminentemente filosófico para o político, a Igreja Católica, durante a
Idade Média, aprofunda sua pretensão teológica exclusiva de corporizar a verdade objetiva e
buscava, a despeito do que pregava o cristianismo primitivo, a supremacia política. Para tanto,
formula o conceito da libertas eclasiae, baseada num juízo da Igreja Católica sobre o mérito
teológico da sua própria doutrina que viria a assumir um papel crucial no desenvolvimento
ulterior do posicionamento dela perante o Estado.35 A luta entre o poder temporal e o poder
espiritual prolongar-se-ia durante quase todo o medievo, fazendo com que vários princípes
fossem destituídos por não acatarem a vontade da Sumo Pontífice. Como reação, e com o
apoio da classe ascendentede dos burgueses e devido a diversos fatores – como veremos no
próximo tópico-, os princípes acabaram por estruturar a separação no mundo ocidental entre o
poder espiritual e o poder político, delineando-se assim claramente as atribuições de cada um.
34
35
REALE, op. cit., p. 638.
MACHADO, op. cit., p. 32.
17
Destas relações conflituosas é que surgem as primeiras concordatas, sendo que a
Concordata de Worms de 1122, é geralmente considerada como o primeiro exemplo seguro
de uma concordata.36 Do ponto de vista curialista37, o objetivo é favorecer, ao menos em
princípio, o ideal do Estado Cristão, aliado e subordinado à Igreja e às suas específicas
concepções de verdade objetiva e de liberdade eclesiástica.38
O sistema do direito na Idade Média, centrado no soberano, está ligado ao mecanismo
de apossamento da terra, sendo que o servo poderia usá-la com algumas contraprestações, que
geralmente eram desmedidas ao ponto do soberano ter poder de vida ou morte. Mas, por mais
que seja verdade que a soberania era o direito basilar da ordem jurídica, ela era limitada pela
ideia de soberania divina, ou seja, de um poder político que encontrara sua fonte e seu limite
em Deus. Como nos referimos acima, a potestas deriva-se dessa suprema auctoritas, que
atuava conforme o ensinamento da Igreja que, por sua vez, atuava como limitadora do poder
político.
2.3
– Renascimento, Reforma Protestante e as bases do
jusnaturalismo racionalista.
Após séculos de predominância do pensamento religioso sobre os demais (inclusive
jurídico), a Europa, como já demonstrado acima, passa a viver grandes transformações sociais
e políticas. Antes de trazermos o pensamento dos juristas sobre o direito e a religião,
primeiramente trataremos do Renascimento Cultural, que repercutiu em todos os ramos do
conhecimento científico; depois abordaremos a Reforma Protestante, que modificou o cenário
religioso europeu.
Enquanto na Idade Média existia um sistema ético subordinado a uma ordem
transcendente, o homem renascentista procura explicar o mundo humano tão-somente
segundo exigências humanas. Portanto, Maquiavel e Hobbes, por exemplo, tentam explicar o
Direito e o Estado sem transcender o plano do simplesmente humano.
36
Idem, p. 39.
Termo utilizado para demonstrar como age a Cúria Romana, ou seja, a Curia (em latim significa Corte)
é um órgão responsável para assistir o Papa em suas funções.
38
Ibidem.
37
18
O homem passa a colocar-se no centro do universo (humanismo), indagando da
origem de tudo aquilo que faz parte da sua realidade. A preocupação dos cientistas das mais
diversas áreas do renascimento é não se contentar com explicações fora da verificação
racional. Para tanto, sujeita tudo a uma verificação de ordem racional, dando valor essencial
ao problema das origens do conhecimento, a uma fundamentação segundo verdades
evidentes.39
O período histórico em comento chama-se “renascimento” por tentar trazer de volta a
postura clássica de valorizar a Razão com meio de se chegar ao conhecimento verdadeiro. Só
ela, como denominador comum do humano, parecerá manancial de conhecimentos claros e
distintos, capazes de guiar a espécie humana. Tal mudança de postura, com o veremos
adiante, fará nascer um Jusnaturalismo distinto do de cunho teológico: não mais ligado a uma
lei insculpida por Deus no coração humano, ou simplesmente presente na natureza, mas que
tenha o homem como ponto de partida.40 Enquanto para Tomás de Aquino parte-se da a "lei"
para depois se pôr o problema do "agir segundo a lei", para o Jusnaturalismo Racionalista
põe-se primeiro o "indivíduo" com suas capacidades, para depois se pôr a "lei".
O Jusnaturalismo do Renascimento nada mais é do que uma reação ao racionalista a
situação teocêntrica na qual o Direito se encontrava o medievo. Na prática, antes de estar
ligado à filosofia cristã medieval, o Direito tinha na Igreja, e em suas tradições, sua única
fonte válida. Trata-se da acentuada passagem do pensamento teocêntrico ao antropocêntrico.
Saliente-se que para esta nova visão do Jusnaturalismo não é a natureza que dá aos homens o
entendimento sobre o justo; mas por meio do uso da razão o homem apreende o conhecimento
e coloca em prática na sociedade.41
A reação contra a predominância do catolicismo não vai surgir somente nos meios
artístico e científico, mas dentro do próprio cristianismo. A Reforma Protestante trouxe uma
verdadeira quebra do cristianismo que repercutiu tanto em mudanças doutrinárias, como na
construção do Estado Moderno. Além disso, é da Reforma Protestante que nasce as primeiras
formulações sobre liberdade religiosa para proteger uma minoria protestante diante das
perseguições feitas pela até então maioria católica. Ela vai comprometer decisivamente as
39
40
41
REALE, op. cit., p. 645.
Idem, p. 647.
BITTAR; ASSIS, op. cit., p. 236.
19
aspirações de unidade teológico-política da Cristandade, colocando sob forte pressão o
conceito de libertas ecclesiae.42
Num contexto de lutas intensas pela disputa do poder entre a Igreja Católica e os
príncipes, a Reforma passou a ser uma aliada destes a fim de legitimar suas intenções.
Inevitavelmente, diversos conflitos religiosos passaram a ocorrer já que as confissões
religiosas emergentes da Reforma de igual forma reivindicavam para si o estatuto da
verdadeira religião, e pretendiam ver tal status devidamente reconhecido pelos poderes
públicos.
Foi esta junção de situações que impulsionou os teóricos do direito e do Estado
formularem soluções institucionais que permitissem a coexistência, no seio da uma
comunidade política, de confissões religiosas que estavam em rota de colisão.43 Da ideia de
volta do império da Razão, comum aos renascentistas, que se formulou boa parte das
soluções. Entre elas estão a criação do Estado Moderno, como veremos adiante, e no
pensamento jurídico, passa-se a se desenvolver uma teoria capaz de promover uma certa
neutralidade, visando dirimir os intensos conflitos. O direito passa a preocupar-se mais com as
questões técnicas, conduzindo a doutrina jurídica a uma racionalização e formalização do
direito.44 Tal formalização é que vai ligar o pensamento jurídico ao chamado pensamento
sistemático, o qual, juntamente com a herança do dogmatismo medieval, servirá de base para
as futuras formulações do positivismo jurídico.
Por hora, permaneçamos na análise do jusnaturalismo racionalista que, como diz o
próprio nome, com base no antropocentrismo, há uma inversão do fundamento da justiça de
Deus para a Razão. Para Grotius, o direito natural era imanente ao homem e regulava
moralmente os demais direitos (chamados de voluntários) como os da família, do Estado etc.45
Para Pufendorf, a lei natural não seria interior, como dizia Grotius, mas resultava de
forças exteriores, unindo os homens em sociedade, pois o homem tem a necessidade de
conviver em sociedade. Samuel Pufendorf é personagem importante por incorporar a proposta
42
43
44
45
MACHADO, op. cit., p. 57.
Idem, p. 60.
FERRAZ JR, op. cit., p. 66.
SOARES, op. cit., p. 37.
20
protestante de quebra com a tradição católica. Para ele, o jusnaturalismo foi um produto da
luta contra a cultura representada pelos Católicos.46
Já Locke entendia que as leis naturais não são inatas, não se encontram impressas na
mente humana dadas por Deus, mas, através da razão pode-se apreendê-las da natureza.
Locke, diferentemente de Hobbes, não possui uma visão pessimista do estado de natureza. 47
Para ele, o estado de paz só seria quebrado pela ausência de um ente que dirimisse os
conflitos. Para Locke, somente o pacto social, ou seja, o Estado liberal-democrático poderia
garantir o direito natural.
Hobbes, por sua vez, concebia que a natureza humana era individualista. Para ele, o
Estado-Leviatã deveria ser constantemente obedecido, em consequência de uma abertura de
liberdades individuais, fato este decorrente de uma vontade geral de forma um pacto social
para que os direitos naturais sejam resguardados. Como afirmamos acima, para o pensamento
de Hobbes, o estado de natureza humano propiciava o amplo uso da liberdade, o que levava a
ponto de uns lesarem aos outros, ou seja, ele tinha visão negativa do estado de natureza
anterior ao Estado.48 Nesse sentido, para Hobbes, a ditadura de um é preferível à ditadura de
todos.
De todos os pensadores do Jusnaturalismo até então citados, nenhum foi tão perspicaz
no que tange a busca de desvincular o pensamento jurídico - e filosófico em geral - do
religioso foi Immanuel Kant. Para ele, o conhecimento só era possível aliando as experiências
às práticas formais da Razão. Formulou o imperativo categórico (age somente segundo uma
máxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma máxima universal). A
razão prática é legisladora de si, “definindo os limites da conduta humana.” O ser humano age
moralmente quando não visa outro fim a não ser o ato em si que está a praticar. Kant não
buscou definir o que era justiça, mas pode ser considerado um jusnaturalista já que admitia a
existência de normas jurídicas anteriores ao direito positivo.49
No panorama até aqui feito tem se mostrado como o pensamento jurídico e religioso
tem se relacionado através da história, desde os primórdios da humanidade, até as
formulações humanistas, racionalistas advindas do Renascimento. Ocorre que os ideais
46
Francisco Carpintero. Historia del derecho natura. México: Universidad Nacional Autónima de
México, 1999, p. 337.
47
BITTAR; ASSIS, op. cit., p. 232.
48
Idem, p. 235-236.
49
SOARES, op. cit., p. 38-39.
21
humanistas formulados até o Renascimento estão, em sua maioria, baseados na Bíblia,
inclusive a ideia de que todas as pessoas têm igual valor. Ou seja, usava-se muitas vezes a
mesma fonte de inspiração da Igreja Católica – a Bíblia - para criticá-la, como observa-se na
obra dos teólogos e filósofos da Reforma Protestante. Sendo que a primeira vertente do
humanismo foi de base cristã.50
Os teóricos renascentistas, em sua maioria cristãos, criticaram o poder eclesiástico e a
intolerância religiosa, enquanto ressaltavam as necessidades religiosas do homem. Já no
Iluminismo, o humanismo ganhou novos contornos, sendo usado para descrever uma filosofia
de vida que se opunha a todas as formas de religião. Veremos no próximo capítulo que a
religião e o direito, a partir do Iluminismo, nunca mais se encontrarão formalmente já que o
ateísmo e o agnosticismo serão parte das formulações científicas nas mais diversas áreas,
inclusive a jurídica. Ressalte-se que o termo usado acima foi “formalmente”, já que a
discussão sobre direito e religião ganhará uma nova roupagem, já conformada com os novos
tempos de tolerância religiosa, na qual a dicotomia central é a segurança jurídica versus a
justiça. Na verdade, trata-se de uma disputa que já ocorria desde a Grécia: entre o justo por
natureza e o justo por convenção.
Entretanto, a partir da Escola da Exegese, influenciada pelo Republicanismo
Secularista gerado pela Revolução Francesa, a doutrina teorética-jurídica ocidental não mais
admitirá ligação formal com qualquer denominação ou linha religiosa. Portanto, o que se
discutirá a partir de então de conteúdo religioso no campo jurídico vestirá a roupagem da
axiologia, ou nas formulações sobre liberdade religiosa dos cidadãos. Veremos que algumas
linhas de pensamento político-jurídica tentarão, a partir da revolução francesa, retirar toda
influência religiosa do meio público. E a base para tal atitude será, justamente, a substituição
da religião revelada, pela Razão humana. Percebe-se, desta forma, que haverá, a partir da
Escola da Exegese, duas posturas: na primeira, uma negação à religião em nome do império
da Razão humana (posteriormente apoiado, de igual forma, por teóricos evolucionistas); e, a
segunda estará preocupada com a tolerância aos valores em geral (que incluem os religiosos)
na formulação das linhas de pensamento da teoria do Direito.
50
Victor Hellern, Henry Notaker Jostein Gaarder. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p. 253.
22
3- DA ESCOLA DA EXEGESE, POSITIVISMO JURÍDICO ÀS LINHAS
MODERNAS DE RACIOCÍNIO JURÍDICO.
3.1- Escola da exegese e o republicanismo secularista.
No capítulo anterior, vimos que a justiça primitiva (clássica e cristã) foi condicionada
por uma postura de conformidade com as fórmulas sacras. Ou seja, tratava-se da santificação
de costumes ou de fórmulas reveladas pelos porta-vozes de uma divindade. Até então, quando
se construíam teorias jurídicas, o justo confundia-se com o piedoso e o sagrado. 51 Acreditavase, de maneiras diferentes, que havia uma lei, eterna e inalterável, que regia toda a
humanidade, em todas as épocas. Esta lei eterna pressupunha a existência de uma divindade
que a promulgou e a sancionou. Aquele que não a obedecesse, estava negando
automaticamente sua natureza humana.
A partir do Renascimento, houve uma mudança de postura entre os teóricos do Estado
e do Direito. Com a herança da dogmática e hermenêutica canônica, passou-se a elaborar um
sistema de direito justo, universal, só que desta vez inteiramente fundada em princípios
racionais, independente do meio social, cultural. Havia, à época, um entusiasmo científico
devido aos progressos efetuados pelas ciências naturais, que propunha que Deus teria criado o
mundo inspirando-se nas matemáticas, o que motivou os juristas a elaborarem sistemas de
jurisprudência universal.52 Como vimos anteriormente, apesar de serem cristãos, muitos
juristas como Pufendorf e Grotius, passaram a buscar uma laicização do direito natural,
concebendo-o como um sistema de direito puramente racional.
No campo político, a Europa neste contexto vive sobre a dominação dos monarcas.
Com a formação dos Estados Modernos, a busca da solução justa tinha seu alicerce em um
mosaico teórico do qual faziam parte o direito, a moral e a religião. Acontece que,
diferentemente do que ocorreu na Idade Média, o monarca aqui detinha o poder temporal e
exercia grande influência sobre o religioso. Neste contexto, no campo jurídico a situação era
catastrófica, já que não havia, por exemplo, necessidade de motivar as sentenças, as fontes do
51
52
Chaïm Perelman, Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 15.
Idem, p. 16.
23
direito eram imprecisas, o sistema do direito era pouco elaborado e as decisões da justiça
quase não eram levadas ao conhecimento do público.53
Tal cenário não se restringia ao Direito, mas havia uma insatisfação da maioria da
população. Os regimes absolutistas eram apoiados pelas religiões, sendo que a maioria ainda
era ligada ao papado. Fato este que impulsionou uma mudança no racionalismo com a queda
das monarquias absolutistas na Europa. O racionalismo antes da ascensão dos burgueses ao
poder era formulado por pensadores cristãos em sua maioria. Mas com tal mudança política,
era necessário, de igual modo, a negação ou esterilização da influência no meio público da
religião que sustentava os regimes depostos: o cristianismo num sentido amplo. Esta
pretensão foi materializada com as formulações dos pensadores do Republicanismo Laicista.
Mas, antes de traçar a influência de tais pensadores, é importante abordarmos a escola jurídica
que foi herdeira da Revolução Francesa: a Escola da Exegese.
Após a Revolução Francesa, os burgueses que assumiram as rédeas da nação foram
influenciados pelas construções doutrinárias racionalistas que tinham na ideia de sistema uma
forma de criação de um corpo de normas que fosse capaz de uniformizar o direito, suprimindo
a obscuridade, a ambigüidade, a incompatibilidade e a redundância. Sob a ótima de tal
racionalismo, surge, na França, em 1804, o Código Civil Francês, conhecido como Código de
Napoleão. E o movimento doutrinário ao qual pertencia os grandes comentaristas do novo
código ficou conhecido como a Escola da Exegese.
Uma preocupação entre os integrantes da Escola da Exegese era a firmar o novo
regime que se instaurou na França pós-revolução. Havia um temor de que os que compunham
o poder judiciário tivessem ainda ligações com a classe nobre. Propugnou-se, então, uma
atuação restrita do poder judiciário por meio de um apego excessivo às palavras da lei.54 A
atividade dos juízes, até então comprometidos com o Antigo Regime, seria controlada pela
observação radical da lei feita pelo povo, em cujo conteúdo representa a vontade geral.
O sistema de direito proposto pela Escola da Exegese, e posteriormente modernizado
pelo positivismo, tinha basicamente duas pretensões: a completude e a coerência. Ou seja,
seria necessário que para cada situação dependente da atuação jurisdicional houvesse uma
regra de direito aplicável, uma resposta pronta, isenta de toda ambiguidade. O juiz não
53
54
p. 65-68.
Idem, p. 184.
Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e Argumentação. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
24
poderia, portanto, deixar-se levar por suas convicções morais ou religiosas. A neutralidade do
magistrado reflete uma tendência filosófica da época que repercutirá no fenômeno religioso: o
republicanismo laicista. Este foi formulado por revolucionários (jacobinos) que pretendiam
acabar com o poder da religião sobre a cultura francesa.
Na verdade, os conflitos religiosos na França já era uma constante que, certamente,
fortificou a postura do republicanismo laicista. Diversos eventos como o massacre da noite de
São Bartolomeu, gerou anos mais tarde um relativo desconhecimento, pelas forças
revolucionárias de Paris, do cristianismo igualitário e congregacional, em algum medida
associado aos ideais da República de Cromwell e à independência dos Estados Unidos.55
O republicanismo laicista de inspiração francesa é marcada por uma intenção de
retirada total do pensamento religioso sobre a vida pública. Sendo, inclusive, uma das antigas
propostas do jacobinismo radical, adotadas pelos bolsheviques, a descristianização total da
sociedade, através de redenominação das cidades, vilas, aldeias e ruas, da remoção de todos
os símbolos religiosos do espaço público, etc.56
Embora essa postura tenha sido afastada pelo modelo de secularização francesa, vez
por outra ainda torna-se a ver sua influência, por exemplo, quando se proíbe o uso do véu
islâmico nas salas de aula. Além desta visão, há o do liberalismo político, que também parte
de dois pressupostos que veem a religião negativamente: 1) O primeiro entende que a religião
é um resíduo do passado caracterizado pelo dogmatismo irracional, cego, que já foi superado
através da racionalização da política e do direito. É de se notar que por traz deste
entendimento está uma filosofia evolucionista da história que vê a religião como pertencendo
a uma fase inicial do desenvolvimento humano, sendo ela algo nocivo para o progresso
científico; 2) O segundo diz respeito à posição de vantagem epistemológica à razão, às razões
e às justificações secularizadas, em detrimento da razão religiosa, obrigando os crentes a
colocarem as suas convicções religiosas entre parêntesis quando entram na esfera de discurso
público.57
Como nos referimos acima, o sistema jurídico que foi formado na Escola da Exegese
partia das construções racionalistas que vislumbravam a possibilidade da construção de um
55
Jónatas Eduardo Mendes Machado, Tempestade perfeita? Hostilidade à liberdade religiosa no
pensamento teorético-jurídico. In: Valerio de Oliveira Mazzuoli, Aldir Guedes Soriano (coord.). Direito à
liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o séc. XXI. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 119.
56
Idem, p. 124.
57
Ibidem.
25
sistema coeso e completo, capaz de solucionar as contingências da sociedade. Ocorre que, os
teóricos do Direito passam, através dos séculos, a abandonar o jusnaturalismo por
entenderem, influenciados pelo crescente evolucionismo, que não era possível existir uma lei
eterna, imutável, à qual deveria o sistema jurídico buscar validade. Passou-se, então, a se fazer
uma distinção entre a causalidade natural e a jurídica. A causalidade natural se baseia em leis
naturais, ao passo que a causalidade jurídica se funda em leis humanas, sendo que estas
últimas em certo sentido são produto duma criação arbitrária. Ou seja, a consequência jurídica
concreta não pode se achar predeterminada.58
Além da crítica ao republicanismo laicista, outra importante é que o tipo de Estado
concebido pela Escola da Exegese estava centrado no texto legal. Ou seja, o poder do Estado
nunca deve ser exercido contra os cidadãos individuais, a não ser em conformidade com
regras explicitamente especificadas num conjunto de normas públicas à disposição de todos.
59
A crítica está no fato de que esta perspectiva de Estado é bastante asséptica, já que não
estipula nada a respeito do conteúdo das regras que podem ser colocadas no texto jurídico. A
vontade geral pode tornar-se, desta maneira, um engodo político para se impor atitudes
antidemocráticas.
3.2- Proposta positivista e os valores.
O positivismo, que teve sua formulação mais sofisticada em Kelsen, trouxe algumas
mudanças no que tange a relação entre o direito e a religião. Devemos relembrar que desde a
mudança do jusnaturalismo teológico, para o racionalista, nas discussões que envolvem
religião no campo jurídico, ela faz parte da mesma categoria da ética, moral, etc. Esta
mudança de paradigma teve o seu ápice na proposta positivista que é de dar cientificidade ao
Direito através da sua separação em relação à moral e à ética.
Para Kelsen60, o Direito pode até ser moral. Mas não tem necessariamente de o ser.
Dessa forma, ordem social que não é moral, ou seja, justa, pode, no entanto, ser Direito. O
que ele refuta é que deva, necessariamente, existir a exigência de que o Direito deve ser
moral, isto é, deve ser justo.
58
59
60
Karl Engish. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenlian, 1972, p. 55.
Ronald Dworkin, Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 6-7.
Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 71-72.
26
O positivismo entende que a moral não pode justificar o Direito, já que se não pode
pressupor que apenas uma Moral é a única válida, absoluta, eterna e imutável. A exigência de
uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem
jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida. Isso não quer dizer,
necessariamente, que o conceito de Direito não caiba no conceito de bom.61 Para Kelsen, o
conceito de “bom” não pode ser determinado senão o de “deve ser”, e não algo que “é”. O
positivismo kelseneano não exclui a existência da moral, da ética, da religião, mas
simplesmente entende que elas não podem fundar o ordenamento jurídico. Para ele, trata-se de
uma ilusão querer encontrar um fundamento absoluto, justo e eterno para o Direito:
Na verdade, quando se trata de efetuar essa escolha ou opção, as diferentes
doutrinas do direito natural dão respostas tão variadas e divergentes como o
positivismo relativista. Elas não poupam o individuo, não o libertam da
responsabilidade da escolha. Porém, cada uma destas doutrinas
jusnaturalistas dá ao individuo a ilusão de que a norma de justiça que ele
escolhe ou pela qual opta provem de Deus, da natureza ou da razão, pelo que
é dotada de validade absoluta, excluindo a possível validade de uma outra
norma de justiça que a ela se oponha ou contradiga - e, por esta ilusão,
muitos fazem um total sacrifidum intellectus.62
A questão central para Kelsen é fundamentar sua Teoria Pura do Direito em uma
norma que seja capaz de distinguir o Direito da Moral. A norma fundamental, segundo
Kelsen, não pode ter um conteúdo específico. Caso o tenha, todo o sistema estaria vinculado a
tal mandamento específico. Essa tentativa de fundamentação não foi pioneira de Kelsen.
Hobbes, por exemplo, põe como fundamento da sua teoria do Direito e do Estado a máxima
Pax est quaerenda (A paz deve ser procurada), e com isso procura entender que o postulado
ético fundamental do homem é a necessidade de evitar a guerra e procurar a paz. 63 Dessa
regra fundamental, Hobbes tenta deduzir todas as principais regras da conduta humana, que
chama de leis naturais. Todas essas leis formam um sistema jurídico, uma vez que são
deduzidas da primeira. Este referido sistema, para Kelsen, seria estático, já que num sistema
desse gênero as normas estão relacionadas entre si no que se refere ao seu conteúdo. Diferente
de um sistema estático, Kelsen indentifica a ordem jurídica como tendo um caráter dinâmico.
61
62
63
72.
Idem, p. 75-76.
Hans Kelsen, O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 115.
Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p.
27
Isso quer dizer que uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, mas
porque é criada por uma forma determinada.64
O positivismo jurídico, avesso a qualquer teoria do direito natural, filiado ao
positivismo filosófico, negou os valores como meio de fundamentação da ciência. Foi, sem
sombra de dúvida, a escola jurídica predominante no Ocidente até o fim da Segunda Guerra
Mundial. Trata-se de uma teoria que busca descrever o Direito, e identificar sua cientificidade
não importando a sociedade em que se encontre. Tenta eliminar, portanto, do direito qualquer
referência à ideia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar
tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais
compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário, incluindo-se aqui
prioritariamente, os valores religiosos.65
Tais formulações legitimaram ao longo da história do Ocidente, segundo os críticos do
positivismo, experiências sociais muitas vezes trágicas, a exemplo dos arbítrios cometidos
contra a humanidade pelos regimes totalitários do século XX, legitimados por uma ordem
jurídica válida, mas injusta.66 A certeza e segurança são, de fato, essenciais para a consecução
da justiça, mas a positivação não pode ser suficiente, já que o sistema normativo está em
constante mudança, exigindo a apropriação de novos valores e fatos na experiência jurídica de
maneira intensa.
Após a Segunda Guerra Mundial, durante o processo de Nuremberg, a ideia que
preponderou entre os julgadores foi a de que os crimes cometidos pelos dirigentes da
Alemanha nazista não podiam escapar à justiça, mesmo na ausência de disposições legais
expressas, a menos que fossem consideradas tais as regras do direito internacional público. O
problema era que devia ser respeitada a máxima de que não há crime sem lei prévia que o
defina, a fim de que fosse feito um julgamento coerente. A solução encontrada foi a de
defender a existência de um princípio geral reconhecido pelas nações civilizadas, concernente
ao respeito da dignidade da pessoa humana.67 A partir desta postura, os tribunais em todo o
mundo passaram a recorrer com frequência cada vez maior e mais abertamente aos princípios
gerais do direito.
64
KELSEN, 2003, p. 221.
PERELMAN, op. cit., p. 91.
66
Ricardo Maurício Freire Soares, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São
Paulo: Saraiva, 2010a, p. 51-52.
67
PERELMAN, op. cit., p. 102.
65
28
3.3- “Descoberta” da tópica e a nova retórica jurídica.
Desde o fim das atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial, os juristas
passaram a trazer os valores como base das suas formulações, embora não se tenha
abandonado completamente a perspectiva sistemática do juspositivismo, num movimento
impulsionado pela utilização das fórmulas persuasivas chamadas de topoi. Trata-se de um rol
de lugares-comuns da argumentação jurídica, válidas para todos os envolvidos no processo,
ou presentes no auditório. Esta busca pelo justo foi, indiscutivelmente, o principal objeto de
investigação da ciência jurídica na segunda metade do século XX, cabendo à jurisprudência
mostrar suas possibilidades de uso a fim de se chegar a uma resposta mais próxima da
correção e da justiça.68
Theodor Wiehweg (1907-1988) foi o “descobridor” da tópica moderna. Na verdade, a
tópica foi formulada desde a Antiguidade. Mas foi Wiehweg, após descobrir uma biblioteca
escondida dentro de um claustro, que iniciou uma minuciosa pesquisa que teve como produto
final Tópica e Jurisprudência (publicado em 1953), apresentado à Universidade de Munique
para obtenção do título de livre-docência. O autor se reporta à scientiarum instrumenta,
portanto, aos métodos científicos, dos quais Vico caracteriza ao antigo método conhecido
como retórica (tópica).69 Esse método antigo tem como o ponto de partida o senso comum,
que procede por verossimilhança, alterna pontos de vista segundo os cânones tópica retórica e,
em particular, atua principalmente com quantidade de silogismos.70
Wiehweg entende que a tópica jurídica se trata de uma técnica do pensamento que está
orientada para o problema a ser resolvido juridicamente. Mas não se trata de qualquer
problema jurídico, mas do que o jurista chama de aporia, que indica questão que se coloca e a
qual não se esclarece, significa uma “falta de um caminho”.71 A tópica pretende, portanto,
68
Ricardo Maurício Freire Soares, Hermenêutica e interpretação jurídica. São Paulo: Saraiva, 2010b, p.
72.
69
Theodor Wiehweg, Tópica e Jurisprudência. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 18-
19.
70
71
Ibidem.
Idem, p. 33.
29
proporcionar orientações sobre o modo como se deve comportar numa determinada situação
em que não se queira ficar sem uma resposta satisfatória.
O pensamento tópico trouxe à tona uma discussão mais profunda do que a crítica ao
positivismo. Wiehweg ataca o próprio pensamento sistemático do Direito, construído desde as
formulações jusnaturalistas racionalistas. Para Atienza, Viehweg exagera na contraposição
entre pensamento tópico e pensamento sistemático (lógico-dedutivo), já que não propõe um
modelo que possa substituir o sistemático. Para o referido autor, “afirmar que a jurisprudência
deve buscar soluções justas a partir de conceitos e proposições extraídos da própria Justiça.
Mas isso só pode ser qualificado, na melhor das hipóteses, como uma trivialidade que,
evidentemente, não contribui muito para fazer avançar a jurisprudência”72
Uma das críticas mais contundentes feita ao pensamento tópico foi a de Canaris. Este
autor aponta as insuficiências da Tópica, mas reconhece que ela tem, sim, utilidade para o
Direito. Embora a Tópica não possa abarcar eficazmente o fundamento a estrutura da Ciência
do Direito, há, no entanto, áreas nas quais ela tem uma função legítima a desempenhar. Para
Canaris, quando surge a falta de valorações legais durante a atividade jurídica, não havendo,
portanto, espaço para o pensamento sistemático, é que a Tópica se mostra importante. 73 Em
suma, a oposição entre o pensamento sistemático e a tópica não é, assim, exclusivista. Há
entre as formas de pensamento uma complementariedade.
De qualquer forma, deve-se reconhecer que no pensamento da tópica jurídica
inaugurada por Viehweg, apesar de não fornecer uma base sólida sobre a qual se possa
edificar uma teoria da argumentação jurídica, há o mérito fundamental de ter descoberto um
campo para a investigação. Um dos que aprofundou a contribuição de Wiehweg, foi o belga
Chaïm Perelman.
Na verdade, Perelman foi um dos percussores da valorização da linguagem e
argumentação na ciência jurídica. Para ele, deve-se partir da premissa de que o contato dos
espíritos exige uma linguagem comum que possa ser compreendida pelos ouvintes, que lhes
seja mesmo familiar. Percebe, na linha de Wiehweg, que na práxis jurídica (e argumentativa
no geral) o que ocorre é uma tentativa de persuasão do auditório destinatário. Nenhum
problema ocorre ao orador caso se dirija a ouvintes que têm a mesma formação profissional,
72
Manuel Atienza. As Razões do Direito. São Paulo: Landy, 2003, p. 55.
Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e o conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 288-289.
73
30
religiosa, etc. Mas o grande desafio ocorre quando o meio é desconhecido, ou se procura obter
a adesão de um auditório não especializado.74
Destarte, Perelman traça algumas regras argumentativas para persuadir o auditório. O
primeiro ponto é conhecê-lo. Mais precisamente, conhecer as teses que ele admite que sirvam
de base para argumentação. É importante frisar que não só conhecer quais são as teses
admitidas pelos ouvintes é fundamental, mas também a intensidade da adesão do auditório.75
Na prática argumentativa, prevalecerá a tese à qual se confere maior peso, à qual se adere com
maior intensidade. Ressalta Perelman que “vincular uma argumentação a premissas às quais
se concede uma adesão apenas de fachada é tão desastroso como pendurar um quadro pesado
a um prego mal fixado à parede: tudo corre o risco de vir abaixo”.76
A importância de Wiehweg e Perelman para o presente estudo é crucial. Eles
buscaram um rompimento da proposta positivista kelseniana de separar a Moral
(consequentemente, os valores da religião) do fenômeno jurídico. Para Perelman,
especificamente, o positivismo além de tentar eliminar do Direito toda referência à Justiça,
entende que ele é a expressão arbitrária da vontade do soberano, valorizando a coação como o
que caracteriza o Direito, esquecendo de que para funcionar com eficácia o Direito deve ser
aceito, e não apenas imposto por meio da coação, como comprova a insatisfação geral que
marcou as grandes revoluções.77
Não estamos inferindo que simplesmente superou-se o positivismo. Mas, certamente,
provocou-se uma mudança na postura positivista. Para Perelman, o discurso religioso tinha
papel importante na práxis argumentativa. Ele, entretanto, não vislumbra uma volta ao
jusnaturalismo teológico prevendo que o discurso religioso deva vincular a persuasão do
auditório, não levando a nenhuma decisão concreta, mas serve para fortalecer os valores,
criando, entretanto, uma disposição preliminar, essencial para orientar certas escolhas futuras.
A crítica que se faz a Perelman é ele que traça como pressuposto argumentativo o
equilíbrio entre opiniões contrapostas, que se associa à noção de racionabilidade, pode sempre
ser conseguido. Nem sempre isso será conseguido. Inclusive o Direito tem a função de
jurisdição, ou seja, pressupõe muitas vezes um desarcordo, expectativas contrárias. O que se
74
75
76
77
PERELMAN, op. cit., p. 145.
Idem, p. 146.
Ibidem.
ATIENZA, op. cit., p. 85.
31
conhece como casos difíceis (hard cases) é um exemplo disso. Neles a opinião pública está
notadamente dividida de maneira tal que não é possível tomar uma decisão capaz de satisfazer
a uns e a outros. Perelman, portanto, não chega a propor critérios adequados para a solução
dos casos difíceis.78
3.4- A pós-modernidade e as linhas contemporâneas do pensamento
jurídico.
A modernidade é uma construção que envolve todas as áreas do conhecimento
humano e teve suas bases lançadas no contexto do Iluminismo, espalhando-se por todo o
Ocidente desde então. O ideal da modernidade consiste numa formação social que multiplica
sua capacidade produtiva através do desenvolvimento técnico e científico, de modo que as
necessidades sociais possam ser preenchidas, com o uso mais rigoroso e sistemático da razão,
libertando a humanidade da irracionalidade dos mitos, das superstições, das religiões.79
A perspectiva pós-moderna é, por sua vez, uma formulação filosófica que tem por
meta indicar a falência das promessas modernidade, quais seja, a liberdade, o progresso, a
igualdade, e a felicidade acessíveis a todos. Chegou-se à conclusão de que ao direito moderno
foi atribuída a tarefa de assegurar a ordem exigida pelo capitalismo e a verdade é fruto da
interpretação, do processo comunicativo, e não mais fruto de uma Razão universal atingível
através da neutralidade científica.
A racionalidade, na pós-modernidade, é inserida no processo comunicativo. “A
verdade resulta do diálogo entre atores sociais. Essa nova razão brota da intersubjetividade do
cotidiano, operando numa tríplice dimensão. A racionalidade comunicativa não só viabiliza a
relação cognitiva do sujeito com as coisas (esfera do ser), mas também contempla os valores
(esfera do dever ser) e emoções (esfera das vivências pessoais).” 80
O direito, sob a influência do pós-modernismo, passa a ser plural, reflexivo,
prospectivo, discursivo e relativo. Plural, pois cada vez mais surgem microssistemas jurídicos,
como o direito do consumidor. Reflexivo, pois “já não se concebe o ordenamento jurídico
78
79
80
Idem, p. 83-84.
SOARES, 2010a, p. 55.
Idem, p. 63.
32
com um sistema hermético, mas como uma ordem permeável aos valores e aos fatos da
realidade cambiante.”
81
Prospectivo, pela textura aberta dos dispositivos, exigindo do
legislador a necessidade de descrever nos textos normativos os cânones hermenêuticos e as
propriedades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da
identidade cultural que se pretende proteger. Discursivo, já que o direito é uma manifestação
da linguagem humana, “a realização do ordenamento jurídico exigem o uso apropriado dos
instrumentos lingüísticos da semiótica ou semiologia” 82, devem-se buscar as significações do
direito no contexto de interações comunicativas. E finalmente é relativo, já que não se podem
conhecer verdades jurídicas absolutas.
Em relação ao pensamento religioso, a pós-modernidade trouxe uma mudança de
perspectiva em relação ao modelo proposto pelo Iluminismo. Este apontava para um
individualismo radical que tinha seu enfoque no sujeito auto-reflexivo, autodeterminante, e
autônomo que se situa fora de toda tradição ou comunidade. Por mais que o cristianismo
tenha um discurso voltado ao indivíduo, a vida em comunidade, e não o indivíduo é o enfoque
da maioria das religiões. Desta forma, o pós-positivismo, apesar de não propor que exista uma
verdade absoluta, não nega o valor das tradições, pré-compreensões, na atividade científica.83
Não estamos querendo afirmar que o pós-modernismo é uma volta ao pensamento
teológico, longe disso. Mas a postura pós-moderna sobre a ciência, a epistemologia, contra a
neutralidade científica, dá para o pensamento religioso uma abertura à discussão pública.
Ressalte-se, entretanto, que as religiões são cosmovisões que têm a pretensão de verdade
exclusiva, o que a coloca em total oposição ao conceito de verdade pós-moderna.
A pós-modernidade, juntamente com as críticas trazidas por Perelman, Wiehweg, de
que a ciência jurídica deveria ter como método o pensamento problemático, e não o
sistemático, fez com que o positivismo jurídico e o constitucionalismo de cunho iluminista
passassem por grandes reformulações.
O novo paradigma proposto - pós-positivismo - concebe a ordem jurídica como um
sistema plural, dinâmico e aberto aos fatos e valores sociais.
84
Tal postura gerou uma
mudança à maneira como o positivismo concebia os valores. Estes deixaram de ser simples
81
Idem, p. 68.
Idem, p. 70
83
Stanley J. Grenz, Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida
Nova, 1999, p. 245.
84
SOARES, 2010a, p. 74
82
33
normas secundárias na hora da decisão, para se tornarem normas que fundamentam o
ordenamento, passando a vincular a atuação do juiz e de todo agente público. O póspositivismo, desta forma, amplia o status de norma, que até então era exclusiva das regras
prontas, aos princípios jurídicos. Estes são fruto do pluralismo e marcado pelo seu caráter
aberto, que é justamente uma extensão do ideal pós-moderno no direito. Esta nova teorização
é avessa à lógica que governa a aplicação das regras e à hierarquização, características do
positivismo.
Tal mudança de perspectiva estabeleceu ao Estado um dever de proteção dos direitos
fundamentais, independentemente de quem seja seu destinatário. Diante deste, fica o Estado
obrigado a proteger os direitos fundamentais mediante prestações normativas (normas) e
fáticas (ações concretas)85 Com o pós-positivismo há uma obrigação, por parte do jurista, de
não mais de apenas revelar a vontade da lei, mas projetar uma imagem, corrigindo-a,
adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais. Sendo que quando essa
correção ou adequação não for possível, só lhe restará demonstrar a inconstitucionalidade da
lei.86
No campo do neoconstitucionalista, uma das principais consequências deste novo
entendimento foi a de que os princípios – forma jurídica da maioria dos direitos fundamentais
– devem irradiar para todo o ordenamento, vinculando a atuação de todo os órgãos de direção
política (Executivo e Legislativo), sendo que, inclusive, as normas programáticas passam a ser
vinculativas, a despeito de sua abertura ou indeterminabilidade.87
Essas novas linhas do pensamento jurídico de caráter aberto, discursivo, fez com que,
nos últimos anos, viessem à público vários questionamentos e reivindicações por parte de
diversos setores da sociedade. Este fenômeno foi tão rápido que nem o próprio Legislativo
não está conseguindo acompanhá-lo com êxito, fazendo com que o Judiciário, por muitas
vezes, passe a uma posição ativa nas decisões políticas. Questões que antes eram tabus vieram
a integrar as discussões públicas88, e o objetivo deste trabalho é levantar a importância das
questões envolvendo o princípio da laicidade. Malgrado já ter ocorrido alguns julgamentos
85
Luiz Guilherme Marinoni, Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 73.
Idem, p. 47.
87
SOARES, 2010a, p. 124.
88
Como exemplo temos o caso da permissão de pesquisa com células-tronco embrionárias, no qual houve
a primeira audiência pública feita pelo STF. Cf. ADIN 3510/STF.
86
34
sobre o tema, o tema ainda é muito controverso, principalmente por envolver questões limites
com a proteção à cultura, à memória e à história do Brasil.
Sem querer adentrar na discussão entre Alexy e Dworkin sobre a possibilidade de
respostas corretas em direito, fundados na idéia de abertura do discurso da pós-modernidade,
concluímos que existem alguns limites para o discurso da laicidade que não podem ser
violados, sob pena se comprometer os objetivos do Estado de Direito. É importante que se
frise que tal laicidade não pode ser confundida com a proposta do republicanismo secularista
89
que pretendia retirar a influência religiosa do contexto público.
Além das linhas de pensamento jurídico citadas nos capítulos anteriores,
encerraremos o presente capítulo analisando mais duas linhas que tentam promover a
marginalização do pensamento religioso com o intuito de não se possa confundir laicidade
com laicismo, ou secularismo. São elas, a teoria jurídica homossexual e o novo ateísmo.
A primeira tem como base a ideia na qual o matrimônio não possui qualquer
fundamento ontológico, devendo-se retirar dele apenas os valores da amizade, do
companheirismo, da intimidade, da confiança, entre outros. Do mesmo modo, outra base de
tal pensamento é que as instituições sociais são apenas criações sociais e estaduais e não
reflexos de uma qualquer ordem ontológica da criação pré-existente, com acolhimento no
direito natural.90
Sem querer desmerecer a luta travada pelos defensores de tal teoria, mas deve-se
olhar com cuidado algumas das propostas feitas, pois elas podem resvalar em marginalização
e silenciamento dos argumentos religiosos, do próprio direito fundamental à liberdade
religiosa. Assim como qualquer minoria que busca seus direitos, a teoria homossexual tenta
proibir a liberdade de expressão religiosa sobre essas matérias.91
Um exemplo da proposta da referida teoria está no Projeto de Lei 122/2006,
conhecido como a Lei da Homofobia. Esta lei trata da homofobia em diversas situações, entre
elas a trabalhista, a fiscal, etc. O ponto de choque com a liberdade religiosa ocorre é que o
projeto de lei quer criminalizar condutas nas quais podem se enquadrar claramente a atividade
religiosa (privada ou pública), como por exemplo: “impedir ou restringir a expressão e a
89
Cf. item n° 2.1.
Jónatas Eduardo Mendes Machado, Tempestade perfeita? Hostilidade à liberdade religiosa no
pensamento teorético-jurídico. In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; SORIANO, Aldir Guedes (Coord.). Direito
à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o séc. XXI. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 146.
91
Idem, p. 148-149.
90
35
manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público, em virtude das
características previstas no art. 1º desta Lei; (...) proibir a livre expressão e manifestação de
afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e
manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs”. Sabemos que a presente questão é
tema para outro trabalho monográfico, mas, apenas a título de reflexão, caso tal lei seja
sancionada, as religiões estariam proibidas de ensinarem que o homossexualismo é uma
conduta desaprovada, de acordo com a Bíblia. Ou seja, imagine-se que um Pastor ou Padre,
por exemplo, podem ser, caso a lei seja aprovada nos termos propostos, processados por
citarem versos bíblicos em seus púlpitos.92
Reitere-se que todas minorias devem encontrar proteção num Estado que se diz
pluralista. Reiteramos que não somos aqui contrários ao projeto da Lei da Homofobia. A
homofobia é, sem dúvida, uma atitude que transgride os direitos humanos e deve ser extirpada
da sociedade. Mas para tanto, não se pode simplesmente sacrificar a liberdade de expressão
dos grupos religiosos, classificando-a como crime de opinião.
Já para o novo ateísmo não existe qualquer fundamento metafísico para as noções
de Homem, direito, e direitos humanos. Este movimento tem como propósito a destruição de
todo o lastro judaico-crsitão que está na base dos direitos fundamentais. A religião, para os
defensores do novo ateísmo, é percebida como raiz de todos os males e a causa de todos os
conflitos ao longo da história.93
Para os novos ateístas, a solução para os problemas do mundo está numa nova
intolerância religiosa, exemplificada na posição de Dawkins sobre a educação religiosa das
crianças. Ele entende que ensinar religião para elas pode ser equiparada ao abuso sexual de
menores, e o ensino da doutrina da criação deve ser liminarmente proibido no espaço
público.94 O que, à princípio, pareçe um discurso de proteção à liberdade religiosa individual
feito por Dawkins95, quando diz:
Num capítulo anterior, generalizei o tema da "conscientização", começando
pela conquista das feministas de fazer com que fiquemos incomodados ao
92
Alguns versículos, como Levíticos 18:22, 20:13, 1 Coríntios 6:9-10, entre outros, poderão levar, em
tese, cristãos a responderem criminalmente, caso o PL 122/2006 seja aprovado nos termos em que se encontra
atualmente.
93
MACHADO, 2009, p. 151.
94
Idem, p. 152.
95
Richard Dawkins, Deus, um delírio. São Paulo: Compahia das Letras, 2006, p. 345.
36
ouvir um termo como "homens de boa vontade" em vez de "pessoas de boa
vontade". Aqui quero conscientizar de outra maneira. Acho que todos nós
devemos nos sentir incomodados quando ouvirmos uma criança pequena
sendo rotulada como pertencente a uma ou outra religião específica.
Crianças pequenas são jovens demais para tomar decisões sobre suas
opiniões a respeito da origem do cosmos, da vida ou da moral. O simples
som do termo "criança cristã" ou "criança muçulmana" deveria soar como
unhas arranhando uma lousa.
não passa de uma tentativa de marginalizar a religião, colocando-a como um fato histórico,
sem influência, sem qualquer utilidade para a sociedade, quando diz que:
Não vou martelar o assunto. Provavelmente já disse o suficiente para
convencer pelo menos meus leitores mais velhos de que uma visão de
mundo ateísta não é justificativa para excluir a Bíblia, e outros livros
sagrados, de nossa educação. E é claro que podemos manter uma lealdade
sentimental às tradições culturais e literárias, por exemplo, do judaísmo, do
anglicanismo ou do islã, e até participar de rituais religiosos como
casamentos e enterros, sem aderir às crenças sobrenaturais que
historicamente acompanham essas tradições. Podemos abrir mão de acreditar
em Deus sem perder contato com uma história valiosa.96
Existem outros defensores eminentes do novo ateísmo como Peter Singer97,
Christopher Hitchens
98
, que mereceriam um tramento mais adequado. Mas o que importa
destacar aqui é que o desprezo contra a religião no campo político não é algo novo. A atitude
encontrada nas obras dos defensores no novo ateísmo foi colocada em ação por algumas vezes
na história da humanidade. E em todas elas foram acompanhadas de genocídios e destruição
das estruturas da sociedade. Além das guerras como a dos Trita Anos, II Guerra Mundial,
alguns estadistas como Stalin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot, são exemplos da do que a intolerância
religiosa aplicada ao Estado pode fazer.
É de se reconhecer que a religião, por sua vez, foi, e ainda é responsável por inúmeros
massacres em todo o mundo. Entretanto, o que se quer destacar no presente trabalho é que,
pela importância dela na vida das pessoas, a liberdade de religião deve ser protregida através
96
97
98
2010.
Idem, p. 350.
Cf. Peter Singer, Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Cf. Christopher Hitchens, Deus não é grande:como a religião envenena tudo. Rio de Janeiro: Ediouro,
37
da postura laica do Estado. No caso brasileiro e Ocidental, o cristianismo serviu de inspiração
para as bases das construções jurídicas mais modernas, como, por exemplo, o paradigma da
dignidade da pessoa humana que se reflete em todo o ordenamento. Independente da
cosmovisão dominante em cada época histórica, em cada região, o jurista deve ter sempre em
mente a importância de proteger a religião como um meio de realizar cada vez mais o valor da
dignidade da pessoa humana, valor-fonte de todos os demais valores jurídicos.99
4- CONCLUSÕES
Desde a antiguidade, o pensamento jurídico e religioso teve uma estreita relação.
Sendo que, até o surgimento das grandes civilizações, não se podia vislumbrar a diferença
entre elas. Foi com os gregos que surgiram as primeiras formulações sobre a distinção
fundamental entre o justo por natureza e o justo por convenção. O que se convencionava,
portanto, deveria refletir a justiça cosmológica. Com o avançar dos séculos, o cristianismo foi
quem propôs uma separação entre a religião e o Estado, baseando sua doutrina numa ética na
qual se via todos os seres humanos como iguais. Esta visão fez com que o evangelho
messiânico se espalhasse tão rapidamente, que acabou sendo incorporado ao Estado Romano,
que por sua vez, após o seu fim, teve um herdeiro durante a Idade Média: a Igreja Católica
Apostólica Romana.
Durante o medievo, a Igreja, apesar do poder temporal dos príncipes, tinha a
autoridade final sobre todos os tipos de conhecimentos (inclusive o jurídico) já que se julgava
a representante de Deus na terra e buscava conformar toda a realidade à teologia cristã. Tal
domínio gerou uma insatisfação tanto dos príncipes quanto dos religiosos. Com a Reforma
Protestante, houve uma quebra da unidade cristã na Europa, surgindo, consequentemente,
diversos conflitos e guerras religiosas. Tal cenário, juntamente com as formulações do
jusnaturalismo racionalista, formaram a base intelectual para o surgimento dos Estados
Modernos.
Pode-se perceber que até aqui o pensamento jurídico e religioso estão intimamente
relacionados. Tal aproximação foi rompida com o fortalecimento do Iluminismo, que tinha na
99
Ricardo Maurício Freire Soares, Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 142.
38
Razão um substituto para a religião, já que esta se mostrava instável, e fonte de guerras e
disputas. A partir da Revolução Francesa, o republicanismo laicista radical dos jacobinos
tentou retirar toda influência religiosa do meio público, o que acabou não se concretizando
formalmente em França. Mas é importante frisar que o pensamento jurídico e religioso, a
partir de então, passaram a ser tratados distintamente. Desde a Escola da Exegese, tendo como
base a Razão Humana, passou-se a se construir um sistema jurídico cada vez mais sofisticado
e afastado dos valores (inclusive religiosos), processo que teve como ápice o positivismo
jurídico.
Após a II Guerra Mundial, os juristas fizeram críticas ferrenhas ao positivismo, já que
este tenta afastar a justiça do fenômeno jurídico, ou seja, permite que líderes inescrupulosos
possam legitimar seus regimes juridicamente através do positivismo. Neste desiderato, com o
resgate da tópica grega, e a contribuição da Nova Retórica de Perelman, a ciência jurídica
passa a se voltar para o discurso, a argumentação, sem deixar completamente - é importante
que se diga - a ideia de sistema. Esta mudança de paradigma atinge seu ponto alto através das
críticas feitas pelos filósofos da pós-modernidade à Modernidade iluminista. Esta entende que
é possível conhecer verdades científicas, através da Razão. Mas para pós-modernidade ela
será dialógica, ou seja, as verdades são construídas através da interação dos atores sociais, que
trazem em si toda uma carga valorativa. Desta forma, o conhecimento científico não pode ser
neutro.
No campo jurídico, tal mudança de postura gerou a proposição dos neoconstitucionalistas no sentido de se “positivar os valores”, fato este que representou um
avanço à perspectiva do positivismo jurídico. Os princípios deixaram de ser simples critérios
secundários na hora da decisão, para se tornarem normas que fundamentam o ordenamento,
passando a vincular a atuação do juiz e de todo agente público.
O posicionamento laicista radical tem sido responsável, em várias épocas, por
propostas e tentativas no sentido de se restringir a prática religiosa individual e coletiva.
Deve-se, portanto, reconhecer a importância do pensamento religioso para a sociedade, sendo
um meio de coesão de pacificação, formulando proposições jurídicas que tenham uma
concepção de liberdade religiosa e laicidade que levem a sério a consciência individual e as
convicções e práticas religiosas. Tudo isso, evidentemente, sem comprometer o essencial dos
princípios do Estado Constitucional
39
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