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VOLTAIRE: PROVIDÊNCIA E SUPERSTIÇÃO
O filósofo francês recorria a
grandes questões filosóficas
para atacar os preconceitos e as superstições de
seu tempo
Voltaire (1694-1778) escreveu Providência em 1771, como um verbete de sua
obra Questões sobre a Enciclopédia (1770- 1772). O texto, que traz um diálogo
entre duas personagens – uma freira e um metafísico –, lida com um dos temas
caros aos filósofos modernos, que preocupou o autor por muito tempo de sua longa
vida: a relação de Deus com sua criação.
O assunto é tratado de diferentes maneiras em obras muito distintas, como nos
Elementos da Filosofia de Newton (1738), no Discurso em Verso sobre o Homem
(1738), no conto filosófico Zadig ou o Destino (1747) e no Poema sobre o Desastre
de Lisboa (1756), bem como em Cândido ou o Otimismo (1759).
O termo “providência” se origina do verbo“prever”. Trata-se da presciência, do
cuidado, do plano de Deus em relação à criação. Há uma ordem planejada no
universo? Deus tudo previu? Qual é a relação de Deus com sua criação? Como
compreender esse plano divino em relação à liberdade humana? Tudo está
planejado detalhadamente ou apenas as leis gerais foram prescritas? A história
humana também é dirigida por Deus? Qual é o lugar do homem em uma suposta
ordem geral? Essas são algumas questões que o tema da providência suscitou em
Voltaire e em outros de seus contemporâneos.
No pequeno texto, apresentado aqui em tradução inédita para o Português, o
filósofo condensa diversos pontos de vista que se confundem e constituem uma
obra cujo texto não é propriamente reflexivo. Ele não pretende apresentar de modo
sério uma resposta às questões que o tema da providência suscita. Além disso, não
podemos identificar em sua totalidade a perspectiva de Voltaire com a fala do
metafísico, personagem que também aparece em outras obras do autor e é
freqüentemente criticada. O ponto aqui não é real apresentar a sua posição sobre o
tema.
A bem da verdade, o texto é mais uma das críticas mordazes de Voltaire: Ecrassez
l’Infâme (esmaguem a infâmia). Apesar de sua crença em Deus, o filósofo francês
pretende atacar a superstição religiosa, a qual trata muito levianamente questões
aviltantes para o homem que pensa, assim como para o religioso profundo.
Portanto, atacar aqueles que fazem de Deus um grande ser pronto a tudo mudar,
que esperam a realização de seus desejos mesquinhos.
Conforme o filósofo não se poderia afirmar que Deus muda sua vontade de acordo
com cada um dos pedidos que lhe são feitos, pois sua bondade não está em
atendê-los com prontidão. A crítica se endereçava sobretudo aos devotos de seu
tempo. Voltaire estava convencido da existência de um Deus atingido por meio de
uma reflexão sobre a organização do todo, das leis da natureza, construída
mediante do estudo da Filosofia de Newton e da leitura do otimismo filosófico de
Alexander Pope (1688-1744): a ordem do mundo lhe indicava um ordenador. Tal
como pensava Newton, Deus tem de intervir no universo. Sua mão está sempre a
corrigi-lo; sua ação emendadora objetiva regular seu movimento, mas não a vida
dos homens.
VOLTAIRE: PROVIDÊNCIA E SUPERSTIÇÃO
Contra a religião utilitária
No texto, a freira aparece apenas para encarnar o alvo a ser
atacado: a superstição, a religião e seus pregadores
interessados. O metafísico se faz porta-voz de um esforço
maior em compreender a grandeza do Ser divino e sua relação
com o todo da criação. Ao utilizar a terminologia do Ensaio
sobre o Homem (1733) de Alexander Pope, o metafísico não
compreende como, na chamada “corrente do ser”, o
encadeamento entre a ordem de tudo que existe, um elo
queira que todo o conjunto do qual é parte mude para
satisfazer seus interesses.
Pedido aos religiosos
Voltaire escreve:
(…) pensem, por favor! Se acreditam que Deus existe e que é também providente,
que organizou o universo e escreveu o livro dos destinos, como podem se
comportar orando a Deus para pedir favores e não para louvá-lo. Se tudo está
escrito, como é possível continuar achando que Deus mude a todo momento sua
vontade e a organização do todo para atender aos pedidos de umaínfima parte da
criação que é o homem? Não podemos dizer quando algo acontece“era para ser
assim mesmo” e continuar a pedir a Deus que nos ajude. Deus está ocupado com
as leis gerais da natureza que regulam e movem o universo, não pode mudar tudo
a todo momento para satisfazer as particularidades de sicrano ou beltrano.
É desse modo que o metafísico apresenta a providência geral divina, expressando
claramente um dos pontos centrais da perspectiva de Voltaire: Deus se encarrega
de intervir no curso do mundo somente em termos gerais, o que não favorece nem
prejudica ninguém individualmente. O metafísico afirma que Deus não está
preocupado em atender às nossas demandas.
Contudo, no final das contas, nossa história foi ou não escrita por Deus? Aqui se
fazem algumas confusões, agora por parte do metafísico. Se no diálogo houvesse
outro personagem, talvez o próprio Voltaire, algumas outras perguntas seriam
feitas. Ora, se Deus não se importa com nossos pedidos, estamos completamente
desvinculados dele, totalmente livres? Ou, como afirma o metafísico, caso
contrário, se Deus tudo planejou nos mínimos detalhes, como fica nossa liberdade?
No final das contas, nossa história já foi traçada por Deus ou somos nós que a
escrevemos?
O metafísico não parece explicar-se muito bem, mas ao menos não trata a
providência de modo assim tão simplista como faz a freira, ela que poderia ser
acusada de heresia ao pôr o Ser supremo ao serviço de suas mesquinharias. Não se
trata de atacar a Deus, e sim aos pregadores, como o confessor de irmã Fessue;
confessor que hoje tanto nos lembra os atuais engravatados pastores televisivos:
garantem o favor de Deus, a cura de nossos pardais e a realização de nossos
anseios financeiros. Tudo isso mediante a aceitação de Jesus e a doação mensal de
uma certa quantia a ser depositada num banco qualquer.
Rodrigo Brandão é tradutor, professor do Departamento de Filosofia da UFPR e
doutorando do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.
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