Direito penal e controle social: uma análise à luz teoria da reação

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Direito penal e controle social: uma análise à luz teoria
da reação social (www.eduardo-viana.com)
15/06/2010 por Ana Karla Viana
É preciso reconhecer que não há uma ordem única de controle social, ou seja, controle
exercido exclusivamente por uma agência. Em termos mais abrangentes isto significa
que o controle social é plúrimo, vale dizer, exercido por agências diversas, com
conteúdos, métodos, fins e alvos diversos, porém todos procuram assegurar a
socialização dos grupos e das sociedades onde intervenham.
Assim estabelecido o estado da arte, percebe-se que controle social é uma expressão
genérica que engloba todos os mecanismos idôneos a produzir no indivíduo um padrão
de conduta que não contrarie aquele das relações sociais. Em uma precisão conceitual,
entende-se por controle social os mecanismos destinados ao comando e regulação das
relações sociais, uma necessária condição para inspirar e motivar uma convivência
harmoniosa da sociedade. Não por outra razão HASSEMER conceitua como “uma
condição fundamental irrenunciável da vida em sociedade”[1].
Disto se infere que o sistema de controle social é formado por subsistemas de controle,
dentro do qual está inserido o Direito penal. Estes subsistemas de controle, se
instrumentalizam através dos seus componentes, no nosso caso, a norma penal e a
consequência jurídica pelo fato cometido[2]. Nesse contexto satelitário é que se
desenvolvem os fins, objetos, meios e os processos de formalização do controle penal,
não sendo equívoco, à luz destas precisões, concluir que o Direito penal integra apenas
um extrato do controle social, no entanto é aquele que incide de maneira mais incisiva
na esfera particular do indivíduo.
Feitos os esclarecimentos prévios, passemos a uma pequena enunciação sobre
criminologia da reação social[3].
A Teoria da Reação Social apareceu nos Estados Unidos (alguns de seus teóricos:
George H. Mead, Alfred Shutz, Howard S. Becker, Edwin M. Lemert e Edwin M.
Schur) ganhando fôlego na década de 60 por conta dos movimentos pela luta dos direito
civis naquele país. Segundo o interacionismo, não se pode compreender a criminalidade
sem analisar a (re)ação que o sistema penal tem contra ela (a criminalidade), devendo
iniciar a investigação desde a elaboração das normas abstratas até a reação das
instâncias de controle[4].
De ver-se que o labeling approach, numa proposta oposta de direção da pesquisa,
inverte o paradigma da criminologia que, até aquele momento, buscava as causas
etiológicas do desvio em fatores individuais ou estruturais. Para o labelling é preciso
investigar a justificativa do delito com base na reação social, a análise sobre a etiologia
do desvio se desloca do plano da ação para o plano da reação. Conforme conhecida
definição de BECKER, o desviante “è una persona alla quale questa etichetta è stata
applicata con successo; il comportamento deviante è un comportamento che la gente
etichetta come tale[5]”.
Esse conceito provoca, conforme já alertado, uma mudança de foco, já que “la devianza
non è una semplice qualità presente in certi tipi di comportamento ed assente in altri,
ma è piuttosto il prodotto di un processo che implica le reazioni di altre persone ad un
determinalto comportamento”[6]. Partindo dessa constatação, a investigação científica
não deveria incidir sob as causas que motivaram o comportamento desviante, mas sobre
o processo através do qual se formaliza e aplica-se, com sucesso, a etiqueta de
desviante.
Assim, conforme propõe BECKER, para uma compreensão do fenômeno desviante,
deveríamos voltar os olhos para aqueles que fazem e aplicam as leis:
È interessante il fatto che la maggior parte della ricerca e della teorizzazione
scientifica sulla devianza si occupi delle persone che infrangono le norme piuttosto che
di quelle che le istituiscono e le fanno applicare. Se vogliamo raggiungere una totale
comprensione del comportamento deviante, dobbiamo mettere sulla bilancia queste due
possibili direzioni d’indagine. Dobbiamo vedere la devianza, e gli outsiders che
personificano questo concetto astratto, come una conseguenza di un processo di
interazione fra persone: alcune, nel servizio dei propri interessi, elaborano e fanno
applicare delle norme che colpiscono altre persone che, nel servizio dei propri
interessi, hanno commesso degli atti etichettati come deviant”[7]
Através dessa perspectiva fenomenológica inversa para análise do fenômeno desviante,
a teoria do etiquetamento muda a ordem das perguntas. Como exemplificação,
poderíamos imaginar um diálogo travado com um representante da teoria da anomia.
Assim, perguntaríamos: o que levou o indivíduo a cometer o delito? Responderia um
mertoniano: o delito teve como causa, certamente, uma discrepância entre as metas
culturais e a estrutura social; se a sociedade distribui igualmente entre os indivíduos as
metas culturais a serem alcanças e, ao mesmo tempo, não distribui equitativamente os
meios legítimos para alcançar aquelas metas, o indivíduo tende a adaptar-se a essa
discrepância (entre metas e meios) o fazendo através da inovação, que é a busca dos
meios ilegítimos para se alcançarem as metas culturais.
Por certo esse colóquio não seria possível com um membro representante do labellig
approach, isso porque o ato que deflagrou a conversa (pergunta) não faria sentido.
Partindo da premissa que essa teoria desloca o foco do olhar para a reação frente ao
delito, as perguntas mudam para: quem é definido como desviante? Que efeito decorre
dessa definição? Quem define quem? E é justamente sob este viés que o controle social
formal surge. Afinal, entendendo – dentro da teoria da rotulação – que o crime só pode
ser compreendido através da análise da atuação das instâncias de controle social,
forçoso concluir que é este, ou seja, o controle social formal, quem cria (e fomenta[8]) a
criminalidade[9].
Assim sendo, o mesmo comportamento social pode ser considerado desviante ou não
conforme o rótulo seja aplicado com sucesso. Alguns exemplos ajudam a entender: 1) O
descaminho. Aquele que tem dinheiro para contratar um bom advogado, poderá se livrar
da persecução penal; ao passo que o “muambeiro”, sem dinheiro para um bom
advogado, por certo será, ao final do processo crime, taxado de criminoso. Perceba que
o mesmo fato gera dois rótulos distintos: na primeira hipótese o indivíduo é inocente; na
segunda, como o rótulo foi aplicado com sucesso, o indivíduo é criminoso; 2) O furto.
Imagine a seguinte situação fática: furto de um relógio de ouro em uma loja; numa
primeira hipótese o furto é cometido por uma mulher rica; em uma segunda situação o
furto é cometido por uma mulher pobre. A possibilidade do rótulo de desviante ser
aplicado com maior facilidade e sucesso, sem dúvida alguma, será na segunda hipótese
(pobre). A rica, por exemplo, poderá argumentar que esqueceu o relógio no punho por
puro ato de displicência; ou, que tem dinheiro suficiente para comprar 10 (dez) relógios
iguais àquele, razão pela qual não teria necessidade de furtar o relógio; ou, por fim, que
passa por um período de depressão profunda, carente de afeto e atenção que culminou
com o comportamento “cleptomaníaco”[10], todas essas argumentações seriam
facilmente aceitas pelo dono da loja; por outro lado, a mulher “pobre” não teria
qualquer argumento em seu favor; 3) Em um terceiro exemplo poderíamos imaginar a
conduta de um filho, adolescente, que abre a carteira do pai de “furta” uma determinada
quantia em dinheiro. Ora, analisando esta hipótese, todos são levados a considerar
absolutamente normal a conduta, justificando a atitude do filho adolescente. Aliás, sem
adentrar nas questões político-criminais do código penal, é essa a impressão que se tem
ao ler os dispositivos encartados à altura do art. 181 do Código Penal. HUNGRIA,
comentando o dispositivo, deixou consignado:
Por motivos de ordem política, ou, seja, em obsequium ao interesse de solidariedade e
harmonia no círculo da família, as legislações penais em geral declaram absoluta ou
relativamente impuníveis os crimes patrimoniais quando praticados, sine vi aut minis,
entre os cônjuges ou parentes próximos. [...]. Além disso, continua o autor, [...] outro
argumento passou a justificar a presença desta (imunidade): a conveniência de evitar
ensejo à sizânia, à violação da intimidade e ao desprestígio da família [...].[11]
No entanto, se mudarmos o sujeito ativo do desvio para o filho do vizinho, a reação ao
fato será absolutamente inversa. A primeira atitude será procurar os pais da criança para
informar do ocorrido pedindo providências para que o adolescente não volte a
“delinqüir”. Neste e nos demais exemplos, para o mesmo fato, surgem reações sociais
antagônicas.
Dentro dessa nova ordem de indagações e constatações, fica fácil perceber o porquê de
os presídios brasileiros serem frequentados por membros de classes inferiores (sem
capacidade política). Evidente que não o são porquanto cometem mais crimes, senão
pelo fato de que o controle social os tem como alvo primário; em um país penalmente
pouco democrático como o nosso, as normas penais são reflexo da sociedade classicista;
esse é o estigma que devemos encarar. Essa é a lógica que os teóricos do labeling
prognosticam para nosso subsistema de controle social.
No entanto, é preciso por acento nisso, os subsistemas de controle social formam uma
interconexão: (in)formal e in(formal). Antes de serem antagônicos eles se completam e
se justapõe.
O Direito penal, conforme dito, se projeta sob a sociedade como a forma reacional mais
intensa do qual pode lançar mão o Estado, razão pela qual um processo racional e
legítimo de formalização desse controle é, antes de tudo, uma garantia para o cidadão,
por isso o controle social onde está inserido o Direito penal é denominado de formal (ou
controle regulativo).
No entanto, salvo melhor juízo, apenas a previsão das normas penais e sanções penais
são insuficientes para formar a carga psicológica necessária à coação dos impulsos
delitivos. Ao lado desse subsistema jurídico-penal gravitam normas e sanções sociais
que integram o chamado controle social informal (ou controle sugestivo).
As normas e sanções acompanham o individuo desde sua infância até o momento de
confronto entre praticar ou não uma conduta desviante. Desde criança são transmitidos,
através de um processo de socialização, valores morais e éticos sobre determinadas
ações, tão logo possa compreender suas ações as crianças assimilam padrões sociais de
conduta, que podem ou não se referirem a normas penais: não mate, não roube e tenha
boas notas na escola; a cada uma dessas normas sociais correspondem sanções sociais:
uma surra, um olhar de censura, uma reclamação. Aqueles dois primeiros padrões de
conduta são normas sociais que equivalem à norma penal que, por sua vez, corresponde
a uma conseqüência jurídica (sanção penal); no entanto, a terceira hipótese não há
corresponde penal.
Portanto não me parece exagero afirmar que as normas e sanções sociais são o
combustível necessário para a manifestação ou não de uma conduta desviante; conforme
aquele processo de socialização tenha sucesso, será minimizada a possibilidade de
conduta desviante[12]. O exemplo serve para demonstrar que muitas vezes os
comportamentos adequados aos padrões éticos e morais não se justificam pelas normas
penais, mas pelo sucesso das instâncias informais de controle.
Certo, portanto, que o controle formal sem o informal teria, quando muito, um efeito
medíocre; e o controle informal sem as instâncias formais poderia se tornar estéril.
Assim, ambos os sistemas formam um conjunto de regras comunicantes no sentido de
que as normas penais influenciam as normas sociais (descriminalização de algum tipo
penal), bem como as normas sociais influenciam as normas penais (crime de porte de
entorpecente para uso próprio)[13]. São mecanismos interconexos e justapostos, já que
o sistema jurídico-penal pressupõe os demais âmbitos de controle.
Essa justaposição dos controles, no entanto, conforme intuitivamente se deduz, não
significa coincidência de objetos, instrumentos e o processo de formalização. A
diferença entre o controle social penal dos demais mecanismos de controle gravita em
torno daqueles três fatores. Assim, no âmbito jurídico penal temos: a) o objeto de
atuação incide nas condutas desviantes consideradas como de maior relevância social;
b) os instrumentos são aqueles considerados mais nocivos, os mais graves meios de
intervenção na vida privada; c) processo de formalização é uma exigência dos dois
fatores anteriores; como o objeto é o mais relevante e os instrumentos são os mais
nocivos, o processo de formalização desse controle deve ser arejado por um conjunto de
garantias e princípios rígidos. Por outro lado, nos outros âmbitos de controle social
(informal), o processo de formalização é mais flexível[14], prescindindo de um núcleo
duro de garantias e princípios. Isso não significa, ao contrário do defendido por alguns
autores[15], ausência de sanções e prêmios, senão que essas são menos nocivas do que
as do âmbito jurídico penal.
Deste modo, pode-se concluir que o abuso do modelo de política criminal
intervencionista contraria a prespectiva criminológica, vez que não significa outra coisa
senão um cego e parcial modelo de intervenção. É preciso, portanto, investigações
criminológicas que forneçam o substrato empírico necessário para fundamentar e
justificar o controle social formal que seja legítimo, igualitário e racional.
[1] HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos de Direito Penal; trad. Pablo
Rodrigo Alfen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005, p. 414. (grifos no original); Cf.
MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e controle social; trad. Cíntia Toledo
Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 22-23; GARCÍA-PABLOS DE
MOLINA, Antônio. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 25-25.
[2] Parte-se, aqui, de uma concepção ampla de consequência jurídica alcançando,
inclusive, a interação do indivíduo com o sistema prisional. É sabido que o indivíduo
interage continuamente com o espaço físico que o circunda. Portanto, nosso sistema de
arquitetura – controle, visibilidade, espaço, tempo e desumanidade – influencia no
psiquismo do recluso, (re)modelando sua personalidade. Vale consultar SÁ, Alvino
Augusto de. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p.122-140.
[3] Refiro-me ao Labelig Approach, que também é denominado de teoria da: reação
social, rotulação social, interacionista, etiquetamento. Doravante utilizaremos as
expressões indistintamente.
[4] Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal,
introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 85 e
seguintes.
[5] BECKER, Howard S. Outsiders. Saggi di sociologia della devianza. Torino, 1997,
cit., p. 22.
[6] Ibidem, p. 25.
[7] Ibidem, p. 126.
[8] As instâncias formais não se cansam de ressaltar que a sociedade pede por mais
“justiça”, por mais presos, prisões enfim, por mais direito penal.
[9] Nesse sentido Hassemer: “a criminalidade não é característica de uma determinada
conduta, mas o resultado de um processo de atribuição, de uma estigmatização; a
criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia pelo ministério público e
pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social. HASSEMER, Winfried.
Introdução aos… Op. cit, p. 101-102.
[10] Vale ressaltar que os objetos que o cleptomaníaco “elege” não são necessariamente
valiosos ou possuem utilidade.
[11] Hungria, Nelson. Comentários ao Código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955,
vol. VII, p. 316-317. (destaques no original).
[12] Optei por utilizar o termo minimizar por entender que é possível a manifestação da
conduta desviante ainda que o processo de socialização seja exitoso. Não pode ignorar
os desvios gerados por fatores emocionais, alhear a essa hipótese seria admitir uma
racionalidade inexistente; parafraseando Hassemer, seria menosprezar a insensatez
humana.
[13] No sentido do texto: Garcia-Pablos, Antonio. Direito Penal: introdução…Op. cit.,
p. 27; Hassemer, Winfried. Introdução aos…Op. cit., 415-416; Muñoz Conde,
Francisco. Direito Penal…Op. cit., p. 24-26.
[14] Para Hassemer os aspectos que diferenciam o sistema jurídico-penal dos demais
âmbitos de controle social resultam dos objetos e dos instrumentos de controle do
desvio. Op. cit., p. 415.
[15] Por todos BACIGALUPO, Enrique. Manual de derecho penal. Bogotá: Temis,
1984, p. 1.
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