Pronto-Socorro para Adorno

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Pronto-Socorro para Adorno: Fragmentos Introdutórios à Dialética Negativa
Christoph Türcke[1]
No dia-a-dia comum, os acidentados e doentes é que precisam de pronto socorro. No
dia-a-dia da filosofia, no entanto, pode ocorrer o oposto. Pensamento crítico, sagaz, vivo, que
acerta o ponto nevrálgico de sua época, costuma ser um pensamento que irrita, perturba, é
perigoso, e, por isso, coloca-se em perigo. Subentende-se, que o mero fato de ter inimigos não
qualifica um pensamento como genial. Há, ainda, inimigos da insensatez. Vale também o
contrário. Quanto mais acerta, tanto mais um pensamento se torna objeto da má vontade de
todos que se escandalizam com ele. Em termos filosóficos, então, realiza-se aquela previsão de
Nietzsche, que se refuta em termos sociais: os fortes estão perecendo, enquanto os fracos se
impõem. Sendo assim, o pensamento de Adorno precisa de socorro, justamente por ser um
dos mais vivos e atuais.
Um pronto-socorro limita-se a medidas iniciais e elementares. Em termos filosóficos:
trata-se de dar um primeiro acesso para iniciantes, servindo-se da linguagem mais simples
possível. Ainda assim, cabe lembrar que pronto socorro não é mumificação. Não se explica
Adorno ao expressá-lo em termos adornianos. Ou seja, o mero reiterar e parafrasear do
original não adianta. Explicação é vivificação, exigindo, portanto, perspectivas e exemplos
divergentes do assunto a ser explicado. O objetivo do que se segue é, então, contribuir com
alguns fragmentos, surgidos ao longo de um curso ministrado no Departamento de Filosofia da
UNICAMP, para uma explicação introdutória, mas não tautológica da obra mestre filosófica de
Adorno: a Dialética Negativa. Trata-se de partes de um puzzle, que, quando muito, deixarão
vislumbrar uma totalidade, à qual elas não se integram. Talvez, no entanto, consigam instigar à
leitura de um texto, cuja tradução portuguesa continua um desiderato.
O Instante Perdido da Filosofia
Nos departamentos alemães de filosofia há vários colegas, que dizem clandestina ou
abertamente: “No fundo, Adorno não era filósofo”. De certa maneira, eles têm razão. Para
apoiá-los, basta abrir a Dialética Negativa e ler a primeira frase: “A filosofia que outrora
parecia obsoleta, se mantém viva, pois o momento de sua realização foi perdido.” A filosofia
permanece, mas a permanência dela se deve a uma perda. Mais ainda: A filosofia está
conivente com esta perda. Por quê?
Ora, é uma longa história que vamos tratar de modo breve. A razão, aquela entidade
específica, que distingue os homens de qualquer outra criatura, é algo de bem particular: Não
somente uma disposição, que se encontra, em maior ou menor grau, em todas almas humanas
ou uma realidade intrínseca que se expressa exteriormente na fala e no comportamento de
cada um: ela contém, além disso, uma promessa. Promessa de que tipo? Ora, ao propor os fins
do trabalho humano, ao prestar as categorias do entendimento mútuo, ao formar as
estruturas da sociedade, a razão humana se manifesta como força própria capaz de formar,
por suas próprias leis, tanto os homens quanto o ambiente humano. Ao mesmo tempo,
porém, ela se mostra inesgotável em suas manifestações. Ela poderia conseguir mais do que
consegue, promete, então, mais do que realiza, abrindo, desta maneira, a perspectiva de uma
vida plenamente dirigida por forças racionais, que se sugere melhor e mais adequada às
necessidades humanas do que a existente. A percepção de que as manifestações reais da
razão se expressam num papel secundário, fragmentado e confuso inclui a percepção da
promessa de sua melhoria. Os primeiros filósofos, o que eram senão os descobridores da
autonomia da razão, os elaboradores de suas leis específicas? Na concepção deles a razão
humana se encontrava num estado lamentável, pois ignorava suas próprias leis, seu próprio
potencial humanizador, suas imensas possibilidades de contribuir para uma vida digna e feliz.
Chega desta ignorância; vamos transformar a razão num estado esclarecido, autoconsciente,
capaz de desdobrar-se livremente. A princípio, a filosofia é o trabalho desta transformação,
que resulta do fato de que a razão humana é contraditória. Ao manifestar-se, ela aponta para
além de si mesma. Ao expressar-se, ela mostra se inadequada a suas próprias leis, a suas
próprias necessidades. Nos termos de Marx: »A razão sempre existiu, mas não de forma
racional.« O trabalho filosófico, então, é levá-la à desejada forma racional, que ela mesma
sugere e promete, forma esta, na qual a razão deixa de contradizer a si mesma. Em outras
palavras: a razão contém tanto a promessa quanto a exigência de sua forma adequada. A
filosofia nasceu a serviço desta exigência, assumindo o papel de advogado da promessa da
razão.
Sabe-se que a tarefa de um advogado é lograr a vitória de seu cliente no tribunal.
Parece que a filosofia, ao dedicar-se à famosa inscrição do templo de Delfos »Gnothi sauton«
(Conheça-se a si mesmo), não se deu conta da abrangência da tarefa, não percebeu a ousadia
que é defender a promessa da razão no tribunal da história. Ela nasceu sem reconhecer-se a si
mesma. Não obstante, a filosofia não tem outra ocupação que esta defesa da promessa da
razão. É seu dever, é sua vida. O pensar do pensar, como Aristóteles chamou a atividade
filosófica, não faz sentido senão empenhando-se pela construção da razão humana, i. e., por
sua transformação a um estado adequado. Tal transformação, sabia-se de início, no entanto,
um trabalho de Hércules. Vejam-se os lamentos de Heráclito, Parmênides, Empédocles,
Sócrates etc. a respeito do povo. O povo, o que é em termos de razão? Uma massa perdida,
tomada de cegueira. Cabe-lhe ser dominado posto que resiste às necessidades da razão: o
destino da razão é impor-se. Platão já sabia que tal imposição não vingaria se os encarregados
dela não chegassem ao poder. Eis a razão incontestável no conceito insustentável do rei
filósofo. Uma das particularidades da razão humana, com efeito, consiste em espalhar-se
ilimitadamente, tanto por meio da linguagem, da ciência, da arte, da técnica, como da conduta
cotidiana e da estrutura social. Até a sociedade mundial atual compõe uma objetivação da
razão humana, embora uma objetivação bem irracional. Não adianta, então, restringir o
pensar do pensar às disciplinas limitadas como a lógica, a epistemologia ou a linguagem, pois o
advogado é obrigado a seguir seu cliente para onde ele for, e o cliente ¾ a filosofia ¾ é
penetrante como o fermento na parábola do Novo Testamento. A razão não deixa de
envolver-se em tudo que ela toca. Nas palavras de Nietzsche: »A mente pura é a mentira
pura.« Recompor a razão significa, em última instância, refazê-la em sua totalidade, na qual a
razão humana está envolvida, i. e., a totalidade das relações humanas. Trata-se, então, a
princípio, de uma tarefa desmedida, ou seja, o desmedido é, de antemão, a medida da
filosofia.
Ora, não tardou que o advogado da promessa da razão se encontrasse completamente
sobrecarregado com sua tarefa. Evidenciou-se, ao longo da história, cada vez mais a
desproporção entre a capacidade do advogado e as necessidades da defesa, a ponto de o
processo inteiro acabar fracassando. Eis, pelo menos, a avaliação de Adorno na frase acima
citada. A filosofia perdeu o momento de sua realização. Talvez nunca tivesse tido chances
reais, mas agora certamente não tem mais. Uma humanidade que permitiu duas guerras
mundiais e inclusive o fascismo, vive após o processo da modernidade ou seja na modernidade
que perdeu seu momento decisivo, e, neste sentido, talvez num estado pós-moderno, que,
porém, não é a pós-modernidade de que se fala hoje em dia. Adorno não compartilharia dessa
opinião. Pelo contrário. Ao falar de realização da filosofia, ele se refere tanto ao impulso mais
antigo da filosofia quanto à mais radical colocação moderna a respeito dela, que é a famosa
colocação de Marx: »A filosofia não se pode realizar senão pela “ascensão”[2] do proletariado,
o proletariado não se pode “ascender” senão pela realização da filosofia.« Como sabemos
hoje, esta colocação se iludiu com a disposição do proletariado em promover a revolução
mundial; não obstante, ela é genial quanto ao papel da filosofia. Abstraindo de todas as
querelas entre os filósofos, ela lembra a tarefa básica da filosofia que é defender a promessa
contida na própria razão. Realizar a filosofia é impor esta promessa, é levá-la à vitória no
tribunal da história. Não há outro destino para o advogado da razão. Filosofia, que não
pretende realizar-se, é inócua, não leva a sério sua própria ocupação, não se lembra, para o
que ela nasceu. Ao assumir sua tarefa, entretanto, ela tem que perceber sua incapacidade de
realizar-se por força própria, pois sua realização seria muito mais do que um processo
espiritual, mental ou cerebral, seria um processo social no campo aberto da história. A
recomposição da razão abrangeria tanto a emenda de pensamentos como de condutas e
estruturas. Não basta pensar e falar conforme as regras lógicas, não basta disputar a essência
e os primeiros princípios do mundo, não basta instalar departamentos de filosofia em todos os
bairros. A filosofia só chegaria a seu fim ou seja a sua forma adequada, se a humanidade
desistisse de seu curso suicida. Vê-se, então, a desproporção entre sua tarefa e os meios para
cumpri-la, vê-se sua necessidade de aliados fieis, vê-se, afinal, a ênfase filosófica no projeto
marxiano de associar a filosofia com o proletariado para eliminar a miséria filosófica junto com
a miséria social. Em busca das forças críticas sociais receptíveis para a força crítica do
pensamento, Marx agiu como advogado da razão à procura de apoio para sua promessa,
sabendo que este não se pode impor senão associado com as forças maiores, i. é, não pode
ganhar o processo a não ser quando aprovado pelo tribunal. Ao abandonar a filosofia em favor
dos estudos econômicos e da causa do movimento dos trabalhadores, ele pretendeu negá-la,
conservá-la, levá-la a cabo ao mesmo tempo. Tudo isso se compreende pela palavra alemã
»aufheben«. Em outras palavras: Ao virar-lhe as costas, ele deu à filosofia, como um presente
de despedida, a formula mais aguda de seu destino. A única atividade, que lhe cabe, é sua
realização[3], atividade que excede suas próprias forças.
Adorno, por sua vez, não discorda de Marx quanto à tarefa e ao destino da filosofia,
somente quanto à avaliação do tribunal. O instante da realização da filosofia está perdido, i. é,
o advogado perdeu o processo. A causa por ele representada não foi aprovada pelo tribunal da
história. O proletariado não se evidenciou como juiz da sociedade capitalista, mas, ao invés,
esta sociedade é que se evidenciou como juiz do proletariado. O advogado, respondendo pela
causa por ele defendida, encontra-se condenado em sua própria pessoa. As duas guerras
mundiais, o fascismo, os campos de concentração incluem um juízo fatal sobre a própria
filosofia. Ela mesma falhou, não pode lavar as mãos com inocência frente a tais
acontecimentos. Ela é conivente. E qual é o castigo a ela imposto? É a obrigação de continuar,
continuar enquanto advogado da promessa da razão, porém, na plena consciência de
empenhar-se por uma causa perdida.
Eis, para Adorno, o impasse histórico em que a filosofia se encontra na segunda
metade do século XX. Ignorá-lo não adianta, pois ignorância não é profissão da filosofia.
Rejeitá-lo também não adianta; significaria eximir-se da responsabilidade. Orgulhar-se de ser
filósofo, pretender enfiar-se na fila dos grandes pensadores para forjar um novo sistema digno
de ser batizado pelo nome de seu autor, não passa de uma postura ridícula frente à
desproporção entre filosofia e conjuntura mundial. Limitar a filosofia a tarefas de antemão
restritas como a limpeza da linguagem ou da lógica, acaba restringindo o próprio pensamento.
Contentar-se com a administração da tradição filosófica em vez de aplicá-la, seria dispensar-se
do peso da tarefa da filosofia. Nada disso oferece saída. Resta reconhecer a culpa, aceitar o
castigo, prestar penitência. Filosofia que não tem má consciência, não tem consciência
adequada de si mesma. Falta lhe a marca decisiva de qualquer filosofia: a auto-reflexão.
Todavia, na função da má consciência ― aliás, da má consciência de si mesma e de seu
ambiente social ― a penitência da filosofia pode redimir-se um pouco de seu aparente
fracasso e tornar-se aquele fermento crítico indispensável que justifica ¾ para não dizer exige
¾ sua permanência. Esta permanência, todavia, apresenta-se de forma alterada, pois tudo,
que a filosofia oferecer à recomposição da razão, não passará de um sucedâneo do que ela
deveria oferecer. Tal permanência, então, não é motivo de orgulho e, sim, de vergonha.
Vergonha, no entanto, é o sentimento mais intelectual na alma humana. É a
coincidência de autoconhecimento e autocrítica. Adão e Eva envergonharam-se ao perceber
sua nudez, pondo em marcha assim o processo do conhecimento humano. Envergonhar-se é
querer desistir de si mesmo e não poder, é querer negar-se a si mesmo e não
conseguir.Vergonha é o elemento da não-identidade, o germe de qualquer crítica séria, e o
catastrófico fracasso histórico da filosofia voltou a desnudá-lo. Só é percebê-lo e dar-lhe
espaço para se desenvolver. Eis a chance na falha. Filosofia, que não se envergonha de si
mesma, ainda não tomou a sério a inscrição no templo de Delfos, ainda não chegou a um
autoconhecimento radical. Tal vergonha de si mesma é a única postura que lhe cabe. Só pela
vontade de desistir de si mesma ela pode continuar dignamente. Só ao desconfiar de sua
tradição, de seus próprios métodos, sua terminologia, suas formas literárias, ela pode tornarse confiável. Devido a isso, entende-se melhor o desconforto daqueles colegas que suspeitam
que Adorno propriamente não fosse filósofo. O que pensam faltar em Adorno é a identificação
decidida com os métodos e procedimentos e fins comprovados da filosofia. Eles ainda não
alcançaram o estágio daquela vergonha que se tornou condição vital da filosofia, i. e, é
condição da possibilidade de sua continuação. O conceito de filosofia permanece pré-crítico.
Aliás, no estado da vergonha, se o pensamento reflexivo mantém ou rejeita o nome da
filosofia é simplesmente questão terminológica,.
Tudo isso soa, como se Adorno fosse um flagelante intelectual, andando descalço com
cinza sobre a cabeça. Não era assim. Pelo contrário. Quem conhece as observações de
Nietzsche sobre os ideais ascéticos sabe bem que a ascese, embora oposto a devassidão, não
carece de seus próprios prazeres, prazeres finos, sublimes, secretos. Sendo assim, a filosofia
penitente tem suas próprias recompensas. Não é à toa que Adorno foi chamado de pensador
opulento, não apenas por causa da riqueza de seus pensamentos e das questões por ele
tratados, como também por causa de seu estilo de pensar. Trata-se de um estilo ensaístico,
que nem se encaixa no procedimento científico, nem no procedimento artístico, embora
nutrido por ambos. O ensaio é uma forma literária fragmentária, que não se preocupa com
totalidades e não tolera prescrições sobre disciplina, tanto no sentido subjetivo de
comportamento como no sentido objetivo de matéria ou de assunto. O ensaio rejeita ser
fixado a um certo campo (filosofia, sociologia, literatura, arte, música), dispensa-se do aparato
científico de anotações, de enumeração da literatura secundária, de fundamentação completa
de todas observações alegadas etc. Ele trabalha um pensamento de maneira que é conduzido,
ou seja, seduzido pelo próprio impulso deste pensamento. Pensamentos têm sua própria
dinâmica, seu próprio ambiente, que estimula certas curiosidades, certas associações, certos
pulos. Ceder-lhes é um comportamento nem meramente científico nem arbitrário, e, sim, um
comportamento dançante, que faz lembrar as observações de Nietzsche sobre pensar e
dançar. O elemento deste dançar pensante é, conforme Nietzsche, o aforismo que não é senão
uma subcategoria do ensaio. Todos os aforismos procedem de modo ensaístico, mas nem
todos os ensaios são aforismos. No entanto, o que o aforismo e o ensaio têm em comum, é
aquela maneira dançante, que dá um toque artístico ao pensamento sem dilui-lo em arte. O
referido toque artístico, entretanto, não invade o pensamento como algo de alheio, mas dá
ressonância à própria vivacidade dele. Com efeito, dar espaço às associações e aos pulos, que
um pensamento concreto inspira, é mantê-lo vivo em vez de aprisioná-lo. O sistema é a prisão
do espírito. Para aprender a andar, precisa-se de instrumentos de apoio como muletas, coletes
etc., mas para movimentar-se livremente, certamente não. Sendo assim, o pensamento
ensaístico é contra qualquer sistema, não, porém, contra qualquer procedimento sistemático.
Pelo contrário. Não é à toa que Adorno se refere, na Dialética Negativa, à distinção famosa de
d’Alembert entre “esprit de système” e “esprit systematique”. A alusão a esta distinção
contém um dos pontos cruciais de sua conduta teórica. O verdadeiro procedimento
sistemático persegue a própria dinámica da causa em questão. Por isso, ele não chega a um
sistema encerrado em si, enquanto qualquer sistema é forçado, num certo ponto, a desistir
desta dedicação sistemática à causa para ter condições de aprisiona-la nas suas gavetas
conceituais. O sistema tem que interromper o curso sistemático para encaixar a causa,
enquanto a causa, perseguida conforme suas próprias necessidades, nunca se encaixa no
sistema. Tal paradoxo é que domina a Dialética Negativa inteira. No gesto ensaístico, então, de
Adorno, pegamos o nó, no qual se atam e penetram o lado ascético e o lado sensual de seu
pensamento, ou seja, seu lado marxista e seu lado nietzscheano. Recomenda-se ilustrar este
aspecto com alguns dados biográficos.
Adorno nasceu em 1903 em Frankfurt, onde cresceu no ambiente judeu-alemão, que
trouxe estímulos decisivos à cultura européia. O pai, um rico comerciante, e a mãe, uma
cantora erudita, deram ao único filho todas as possibilidades de desenvolver seus talentos
teóricos e artísticos. Doutorou-se, com 21 anos, em Frankfurt, em filosofia com o kantiano
Hans Cornelius, e depois tornou-se pianista, compositor e musicista, tendo estudado em Viena
com Alban Berg e Eduard Steuermann. Adorno, como Thomas Mann observaria mais tarde,
rejeitava a opção entre artísta e teórico, como a coleção de suas obras bem confirma[4]. Numa
avaliação quantitativa das publicações, Adorno é muito mais músico do que filósofo. Entrou,
aliás, no Instituto de Pesquisa Social dirigido por Horkheimer, não enquanto especialista de
filosofia, e, sim, de música. Claro que nenhum de seus colegas no Instituto deixou de exceder
os limites de suas disciplinas tradicionais, pois, em geral naquela época, a formação nas
camadas privilegiadas tinha um fundo muito mais amplo do que hoje. Faltaram, sobretudo, os
atuais meios de distração. Adorno, no entanto, representou o caso extremo entre seus
colegas, não apenas por viva inteligência, mas também por ligar os campos culturais distantes.
Não era apenas amante da música como somos diletantes em literatura, arte e música: era
músico mesmo, compositor. A música, entretanto, é um campo muito mais distante do
pensamento conceitual do que a literatura, talvez até das próprias artes plásticas. O ouvido
parece um pouco mais distante do intelecto do que o olho; está mais exposto a influências
exteriores, com menos condições de defender-se contra elas. Precisa de um tipo de
inteligência e de fantasia bem peculiar. São raros os músicos filósofos. Não é à toa que Adorno,
enquanto insider tanto da música como da filosofia contemporâneas, também fez o papel do
outsider em ambas disciplinas. Esta experiência simultaneamente interna e externa, esta troca
da perspectiva, que o fez considerar a filosofia com os olhos do artísta, e a arte, sobretudo a
música, com os olhos do filósofo, é a experiência chave do jovem Adorno, que o habilitou, mais
tarde, a considerar a cultura inteira com os olhos do sociólogo e a sociedade com olhos
filosóficos. Tal troca de perspectiva, que não carece de um aspecto artístico, bailarino, respira
todos os privilégios da formação burguesa desta época, mas se mostra plenamente disposta
para captar criticamente a conjuntura social na época do fascismo nascente. Para saber
dançar, pensar etc, todo mundo tem que primeiro aprender . Tem que se submeter às regras
indispensáveis para entrar no assunto. Assim, também Adorno estudou filosofia. Para poder
lidar de modo artístico e ensaístico com a filosofia teve que estuda-la. Muito antes de
compreender a importância do termo marxiano da realização da filosofia, i. é, o peso e alcance
deste termo, Adorno, por suas pretensões artísticas, já vivia a insuficiência do pensamento
conceitual-filosófico. Sua reserva em relação à filosofia tem um lado moral e outro estético,
um lado penitente e outro sensual, que se reúnem num grande nó chamado Dialética
Negativa. Vamos tentar, a seguir, desatar alguns de seus pontos.
Dialética Negativa
Dialética negativa ou positiva não é questão de livre escolha. No fundo, Adorno
pretende evidenciar a dialética negativa como tautológica. A dialética é sempre negativa. Ao
tornar-se positiva, ela deixa de ser dialética.
Como provar isso? Definições não adiantam. Identidade da identidade e da nãoidentidade (Hegel) ― não explica nada. Recomenda-se lembrar a gênese da palavra
“dialegesthai”: dialogar, discutir, debater. As coisas têm que ser discutidas para serem
esclarecidas, pois não se subentendem, não são óbvias. O intelecto humano não pode
expressa-las de maneira a torná-las unívocas, fixas e identificadas de uma vez para sempre. Ele
não se liberta da perspectivas que as coisas lhe impõem, só pode expressá-las da maneira
como elas lhe aparecem. Ao mudar a perspectiva, a aparência muda também, e os conceitos
não chegam à plena congruência com a realidade que pretendem expressar. Eis a fraqueza
original do intelecto, ou seja o lado epistemológico do pecado original. Em outras palavras: a
princípio, o intelecto está condenado ao equívoco. É seu elemento. Não tem condições de
abandoná-lo até ao juízo final. É esse seu movimento. Eis a ocupação da dialética. Ela não é
senão a auto-reflexão do equívoco. O equívoco, por sua vez, tem vários significados. Há
equívocos meramente subjetivos, que resultam da falta de precisão conceitual. É fácil corrigilos. Há, no entanto, também equívocos que não se eliminam nem com o máximo de argúcia:
equívocos objetivos, que se devem à incongruência principal entre intelecto e causas. A
dialética consiste em desdobrá-los de modo racional evitando cair em suas armadilhas. Os
pioneiros idealistas da dialética, no entanto, sobrecarregavam-se pretendendo diluir os
equívocos por meios conceituais. O genial em Hegel, mestre deles, foi mostrar a insuficiência
do conceito, o que o transforma num método auto-suficiente, ou seja, toma-se uma carência
humana como motor do processo inteiro. Sempre que isto ocorre, a dialética pára em vez de
aperfeiçoar-se. Dialética negativa não é senão lembrar e enfrentar a insuficiência do conceito.
Procedimento musical
A Dialética Negativa é um tema com inumeras variações. Só que, sendo música
intelectual do século XX, ela não expõe seu tema antes de entrar no cíclo das variações. O
tema não existe sem as variações. São elas que revelam, por suas voltas e viradas grandiosas,
cada vez mais o tema. O tema não se manifesta senão nas variações; quanto mais variações,
tanto mais nítido ele se torna. Mas a sequência das variações não obedece a uma lógica
estrita; não está conduzida pelos conceitos de fundamento e de consequência, pois o próprio
tema questiona a validade incondicional dos termos. Assim, as variações não resultam uma da
outra com necessidade lógica, , não formam elos de uma cadeia lógica, que ou chega a um fim
ou volta ao início. Formam, antes, o que Adorno, em outro contexto, chamou de
»constelação«. A passagem de uma a outra nunca é coercitiva, não carece de momentos
saltitantes, tampouco é meramente arbitrária. Enquanto a sequência das variações poderia ter
sido, até um certo grau, diferente, o conteúdo de cada uma está firmemente conjugado ao
conteúdo das outras. Cada uma aponta para as outras, fazendo com que o conjunto de todas
forme uma estrutura de explicação mútua. Só quando uma for capaz de explicar as outras será
capaz de explicar o tema. A explicação mútua das variações e a do tema são a mesma coisa.
Nenhuma deve exceder as outras. No caso ideal, todas se encontrariam na mesma
proximidade do centro. Só que o centro ou seja o tema não se abre senão mediante as
variações que apontam para ele. Não há acesso imediato.
Sendo assim, o método da Dialética Negativa obedece ao próprio conteúdo desta. O
procedimento lúdico-saltitante evidencia-se como altamente consequente: imanente ao
conteúdo. As assim chamadas variações praticam, em escala macrológica, o que cada uma
pretende realizar micrologicamente: aproximar-se do objeto considerado, que excede sua
identificação. Adorno, com efeito, depara-se, em qualquer conceito simples, com uma
ambigüidade abismal. A função óbvia de cada um é identificar, classificar alguma coisa:
apreendê-la em categorias lógicas. Ao mesmo tempo, cada um quer expressar
conceitualmente algo de não-conceitual, apontando, destarte, para além de si mesmo.
Qualquer conceito, então, não apenas pratica a predicação de algo, mas também a dedicação a
algo. Devido a esta, que cada um deles »sente« sua própria insuficiência em relação ao objeto,
inserindo-se, portanto, no contexto de outros conceitos, que cerca a coisa em questão ao
explicarem-se mutuamente.
O fluxo concreto da linguagem não é senão este processo de explicação mútua. Não
constrói uma hierarquia entre sujeito, predicado e objeto, mas cria reciprocidade entre todos
os elementos linguísticos, que se integram a juízos, conclusões, tratados, de forma narrativa
ou argumentativa. Só enquanto os elementos conceituais conseguem explicar-se mutuamente,
a coisa em questão, i. é a coisa cercada por eles, se explica. Sendo assim, a explicação excede o
ato da identificação. Não se trata de explicar alguma coisa colocando-a numa gaveta
conceitual, e, sim, de fazer com que alguma coisa se explique a si mesma. Explicação assume,
destarte, as conotações de abertura, até de revelação da coisa em questão. Só que tal
revelação não acontece imediatamente, mas somente mediante conceitos, em que cada um se
apoia no outro e todos apontam para a coisa cercada. Assim, em vez de encaixá-la, o objetivo é
fazê-la sair da caixa de identidade, retirá-la do processo usual de identificação.
Este processo de abertura recíproca, entre os conceito, a constelação e a coisa
cercada, é visado pelo termo adorniano da »afinidade«.Nunca a afinidade chega à identidade;
consiste, antes, em elementos diferentes (irredutíveis), em que um carece do outro e se deve
ao outro. A explicação que eles se prestam é comunicação mútua de socorro e carência, e a
constelação conceitual, que é comunicativa neste sentido, incita, por assim dizer, o objeto
cercado para ele se manifestar em sua carência.
A comunicação que, assim, se põe em causa, excede a mera mensagem lingüística a
favor de uma comunicação entre conceito e coisa tendente à comunhão. A Dialética Negativa
pode ser lida como tentativa de desencadear a inclinação de todo espiritual e material a tal
comunhão, e o próprio texto da Dialética Negativa tenta participar neste processo por seu
procedimento em variações, das quais cada uma explica as outras e se socorre nas outras, para
que o tema se revele através de todas.
O Algo
A segunda parte da Dialética Negativa, seu núcleo conceitual, começa expondo uma
noção que parece um mero fantasma: »algo«. Nada é mais vago. A realidade concreta consiste
em coisas determinadas. »Algo« é seu extrato conceitual mais abstrato. Mantém-se, nele, no
entanto, a lembrança do não-conceitual enquanto pressuposição de todos os conceitos, ou
enquanto solo alimentício e alvo de qualquer pensamento. Ou seja, pertence ao pensamento,
inextinguivelmente, o impulso que aponta para além de si mesmo. Assim, o »algo«,
atentamente percebido, evidencia-se enquanto fator elementar que perturba e impede vingar
tanto a autofundamentação do pensamento humano quanto a fundamentação do mundo pelo
pensamento. O »algo« ensina que todas as tentativas a esse respeito vão ser castigadas por
abstração demasiada, ou seja, o pensamento que pretende tal fundamentação, acaba
esvaziado em vez de confirmado.
Em outras palavras: os conceitos “finais”, que pretendem apoderar-se da plenitude do
ente, como o absoluto, o ser, o em si, a quintessência, sofrem o castigo de ser os mais
abstratos e ocos, maldição que persegue também conceitos finais “de preço reduzido”,
apresentados da seguinte maneira: tudo que os homens expressam, já se encontra nas formas
lógicas ou nas linguísticas. Então, vamos limitar nossa ocupação filosófica à reelaboração, isto
é, à limpeza ou da lógica ou da linguagem. Tal modéstia não desiste de tomar a lógica ou a
linguagem pelo primeiro e último ¾ não do mundo, é verdade, mas, sim, da própria ocupação,
ignorando o incurável envolvimento metalógico da lógica, metalingüístico da linguagem, que
impede, de saída, a subsistência da lógica e linguagem em si mesmas. Todas as pretensões de
sustentar tal subsistência desembocarão em conceitos vazios ou falsos.
Resta a pergunta: De onde tais pretensões? Por que não acabam? Porque a razão
humana tem uma inclinação natural para elas. É por seus próprios meios lógicos, i. é através de
conceitos, juízos e conclusões, que a razão chega aos conceitos finais. Não há nada de
insensato nisso. É o próprio curso da lógica que leva o pensamento a eles. Só que, ao longo
deste curso, o pensamento humano tende a sucumbir às próprias sugestões que sua atividade
acarreta. Pensar não é senão transformar realidade em conceitos. Mas é justamente este
processo de transformação que tende a iludir o pensamento a respeito de seu próprio alcance,
sugerindo-lhe uma capacidade de se encaixar sem resíduo a realidade em suas gavetas
conceituais, ou seja, sugerindo-lhe a congruência de seus conceitos e da realidade por eles
captada.
Tal sugestão ou até auto-sugestão do pensamento representa o germe de uma
tentação diabólica, que a razão contrai por sua autodinâmica, pela »lei de seu movimento«,
como diz Adorno, aludindo a uma colocação marxiana, tentação que pode ser chamada de
inclinação ideológica da própria razão. Ela se manifesta, micrologicamente, em qualquer ato
simples de identificação, que não se pode eximir da equivalência do não igual, e,
macrologicamente, na recondução, quer dizer redução do realidade inteira a princípios
conceituais, que é, em última instância, redução do universo ao espírito.
Sendo assim, a razão vive sob a sugestão permanente da onipotência dos
pensamentos, tendo, para se defender deles, apenas suas armas. Ou seja, a razão humana,
sempre tentada a iludir-se com seu próprio alcance, contém, não obstante, a força de
desiludir-se dele. Eis a força metalógica da lógica, a força auto-reflexiva e autocrítica da razão,
à qual Adorno apela, força que habilita a razão a pensar contra sua própria »lei de
movimento« sem desistir de si mesma. O desencadeamento desta força e o desdobramento
livre da razão são a mesma coisa: o empreendimento da Dialética Negativa.
Contradição
A auto-significação mais famosa da Dialética Negativa é »ontologia do estado falso«.
Tal falsidade, o que é? Num outro lugar, Adorno a chama de »coisa não reconciliada«. Eis sua
fórmula negativa para contradição. O mundo continua »falso« enquanto envolvido em
contradições, e a contradição não é senão falta de reconciliação. Sendo assim, a contradição
entre mundo e pensamento revela-se assunto bem abismal, que se reflete reciprocamente
sem se diluir um no outro, e mostra aspectos lógicos, sociais, ontológicos, até teológicos.
A rigor, a realidade inteira fica num estado contraditório, conforme a famosa
colocação da Minima Morália: »O todo é o falso.« Coisas inorgânicas não sentem a
contradição, mas fazem parte dela. Seres orgânicos, no entanto, sentem-na. Qualquer carência
e dor representam uma forma elementar de contradição. »A dor diz: esqueça!« reza a fórmula
nietzschiana correspondente, altamente apreciada por Adorno. Em outras palavras: A dor
consiste em contradizer a sua própria existência, sendo, portanto, contradição por excelência.
Conflito pulsional, sofrimento e luta representam formas básicas da contradição muito antes
de penetrar a forma mais abstrata e sublime, que é a contradição conceitual.
Todavia, contradição conceitual tem, por sua vez, ao menos três significados: 1. erro,
isto é, não saber aplicar devidamente as exigências lógicas; 2. contradição de pensamentos
imposta pelas próprias exigências lógicas; 3. contradição entre pensamento e realidade
pensada. Adicionalmente, o terceiro significado se distingue em dois:
a. O pensamento humano, oriundo de raízes não espirituais, condenado a perseguir
suas regras lógicas sob condições não lógicas, está em equívoco insuperável. Ao expressar a
realidade material por conceitos, expressa também a ruptura entre matéria e pensamento, o
que impede sua congruência, ruptura que funda o intelecto humano e que, em termos
teológicos, se chama pecado original; em termos epistemológicos, entretanto, chama-se
metabasis eis allo genos (mudança para um gênero diferente). Tal ruptura, que significa a
ferida da natureza no intelecto, se reproduz em todos os atos pensantes. Por mais logicamente
que procedam permanece sua contradição intrínseca,.
b. Perceber, ou seja refletir esse envolvimento natural contraditório do intelecto, no
entanto, é querer livrar-se dele, é contradizê-lo: contradição à ruptura, à qual o pensamento
humano se deve. Sendo assim, até a auto-reflexão crítica do intelecto contém um impulso
contraditório, que coincide, no entanto, com seu impulso reconciliador, o que contradiz a
contradição do »estado falso«. A auto-reflexão, no sentido adorniano, é a irmã privilegiada da
dor, expressando por conceito e linguagem, o que a dor exprime por gritos.
Todos estes significados são matizes da »coisa não-reconciliada«, matizes a serem
atentamente diferenciados, mas não separados. Os aspectos ontologicos, teológicos, lógicos e
sociais se penetram mutuamente. A cada um deles aderem os rastros dos outros, nem fica
decidido, qual aspecto precede aos outros. Claro que a contradição, na qual todos os seres
orgânicos se encontram, existia milhares de anos antes da consciência humana acordar. Assim,
a consciência é bem posterior à realidade contraditória. Por outro lado, aquela contradição
pré-lógica não se dá a entender senão em termos lógicos. Assim, sendo a força reveladora de
qualquer tipo de contradição, o intelecto, embora posterior em termos de espaço e tempo,
mantém o aspecto do anterior. A contradição o precede, sim, mas só ele é que lhe dá à luz a
expressão consciente.
Um trabalho sobre contradição em termos de Dialética Negativa continua um
desiderato.
Lógica do desmoronamento
De saída, a Dialética Negativa é lógica do desmoronamento: sustenta que nenhum
conceito é capaz de pousar em si mesmo, de se manter homogêneo e unívoco, pois todos já se
encontram em conjuntos não-conceituais, não-lógicos, pelos quais estão castigados com mil
equívocos. É aquele »algo«, o último bastião do não-conceitual, que não os deixa em paz
consigo mesmos. O »algo« é o fator perturbador, que põe em marcha o desmoronamento da
suposta pureza e autarquia dos conceitos, da mente, do espírito. Ainda assim, a lógica do
desmoronamento não é o desmoronamento da lógica; é, ao contrário, sua auto-reflexão, que
significa ampliação da lógica para além de si mesma: sua Aufhebung, quer dizer, seu fim
enquanto disciplina própria, mas, em compensação, a agudização de sua pretensão.
É difícil dizer se a Dialética Negativa constrói ou deixa desmoronar os conceitos (outra
interpretação: “faz ou deixa desmoronar conceitos”- nota da revisão). Com certeza, ela não
está limitada à destruição. O que ela destrói, sim, é aquela interpretação do mundo concreto
por meio de pares conceituais como sujeito-objeto, conceito-coisa, fundamento-conseqüência,
causa-efeito, essência-aparência, pares imprescindíveis, mas prestes a serem endurecidos, por
sua »lei de movimento«, em gavetas, isto é, em categorias unívocas, opostas, independentes,
em lutas por primazia. Qual é a gaveta superior? Tal pergunta que, em termos físicos tem
sentido, não o tem em termos filosóficos. Quem é o primordial: sujeito ou objeto, conceito ou
coisa etc.? Eis as alternativas falsas, que levam, inevitavelmente, ao impasse antinômico entre
monismo e dualismo. Neste impasse, como diz Kant, quem tem razão, é o agressor. É
impossível que sujeito e objeto, conceito e coisa, causa e efeito sejam igualmente originais; um
se deve ao outro, alega o monismo. Supondo um incondicionado primeiro, ninguém tem
condições de explicar a gênese do segundo, a não ser recorrendo ao mistério da creatio ex
nihilo, responde o dualismo. Ambos refutam-se mutuamente, têm razão ao se refutarem, não
têm ao serem refutados. Tal impasse, no entanto, é o castigo contraído pelo esquecimento do
simples fato do entrelaçamento conceitual não retratar, 1 a 1, o entrelaçamento das coisas,
amnésia que faz endurecer os conceitos em gavetas classificatórias.
Lógica do desmoronamento, portanto, significa fazer desmoronar o sistema de
gavetas, isentar os conceitos da gaveta de sua univocidade mentirosa, recuperando sua
vivacidade para fazer transparecer sua interpenetração, ou, falando em termos teológicos, sua
communicatio idiomatum. Sujeito e objeto, conceito e coisa, essência e aparência etc.:
penetram-se mutuamente, comunicam-se um ao outro, a ponto do sujeito, por sua vez, ter o
aspecto do objeto e vice versa, e assim por adiante, e a regra para lidar racionalmente com tais
equívocos ¾ equívocos inevitáveis, pois devidos a uma realidade não-unívoca ¾ reza: Não
confundir e não separar. Eis a regra negativa e reflexiva, que a Dialética Negativa observa da
primeira à última frase.
Síntese
Aos estereótipos mais comuns sobre a Dialética Negativa pertence a suposição de que
ela »não tenha síntese«. Adorno diz a respeito: »Ela está posta à crítica não enquanto ato
mental singular, que reune momentos separados em sua relação, mas enquanto idéia
condutora e suprema.« (DN, 158) Quer dizer, a síntese é um dos fatos mais comuns e
cotidianos. Não há identificação conceitual senão por síntese de inúmeras miudezas sensoriais
a um só conceito. e não há sociedade senão por síntese de seres humanos e seus trabalhos,
funções, poderes, instituções etc. A síntese é condição da possibilidade tanto de qualquer
conhecimento quanto de qualquer estrutura social.
Por outro lado, nunca deixa de ser um ato violento. Não há síntese senão subsumindo,
abreviando, desfigurando alguma coisa, e subsunção, em termos sociais, é subjugação,
abstração e desrespeito, enquanto desfiguração é mutilação. A síntese, então, sendo um fato
tanto gnoseológico quanto moral e social, revela-se altamente ambígua: tanto inevitável
quanto inadequada. Ela capta as coisas, mas não lhes faz justiça, encaixando-as em vez de
pronunciar sua índole, detendo-as em vez de abrir-lhes o sentido. O espartilho da síntese não é
a voz da coisa espartilhada nem seu porta-voz. É seu sucedâneo. O mais espantoso, porém, é o
fato de a consciência humana ter condições de perceber isso. A insuficiência da síntese não
fica impermeável a uma virada mental, que pode ser chamada de o milagre da reflexão,
milagre este, que fez Nietzsche exclamar: »Somos seres de antemão injustos e incompletos e
capazes de conhecer isso. Eis uma das maiores desproporções da existência.« A desproporção
não some por ser conhecida; seu conhecimento, antes, a perfaz. Ainda assim, a tomada de tal
conhecimento é um ato iluminador e, por assim dizer, milagroso, pois consegue dirigir-se
contra a síntese com os meios dela. Abster-se da síntese funciona tão pouco quanto abster-se
da alimentação. O que funciona, contudo, é expressar, por conceitos identificadores e juízos
sintetizantes, os defeitos da identificação e da síntese. Assim se perfaz um duplo movimento
autocontraditório [hipótese 2: Assim se perfaz uma dupla Aufhebung] : negação e conservação
ao mesmo tempo. Ao serem voltadas contra si mesmas, identificação e síntese são tanto
conservadas quanto negadas. Identificação e síntese formam a condição da possibilidade de
tal virada e, ao mesmo tempo, seu objeto. Claro, que a própria transformação não escapa do
equívoco, mas lhe dá a luz da autoconsciência: a única possibilidade de movimentar-se nele de
modo racional.
Esta transformação implica a voltar a dialética contra o mestre da dialética: Hegel. Em
seu sistema, síntese significa, em última instância, apoteose. Qualquer síntese é considerada
como algo de superior aos elementos sintetizados, algo que os eleva a um patamar mais alto,
digno e verdadeiro. Contraindo-os a uma unidade superior, a um novo unívoco, a reflexão dá
um pulo. Este pulo representa o ponto crucial e cego no procedimento hegeliano, velando o
fato de a ascensão dialética ― passo a passo, da certeza sensorial até ao conhecimento
absoluto, a um patamar mais alto ― não ter nenhuma necessidade lógica. Sempre que o ser e
o nada, o algo e seu outro, o fundamento e o fundado parecem se sintetizar,
automaticamente, a um estado mais elevado; nada de automático acontece e, sim, algo de
bem arbitrário: um salto para fora da derivação e mediação dialética. A mediação suspensa
recomeça logo que o novo patamar é alcançado, mas o próprio pulo para lá carece de
qualquer necessidade lógica. Não passa de uma decisão, de um dogma do autor, tendo
necessidade somente de fazer vingar seu sistema filosófico.
Não se trata aqui, todavia, do milagre dentro da reflexão, quer dizer, daquela
capacidade espantosa e não-derivável, que habilita a consciência humana à virada contra si
mesma, senão, pelo contrário, de um milagre fingido, se bem que por um dos maiores
feiticeiros intelectuais. Pela sua virtuosidade, a síntese acaba sacralizada, justificada, enquanto
motor divino da dialética, ao passo que Adorno não fez senão adiantar sua desmistificação.
Hegel, ao considerar a síntese o ponto de fuga do processo dialético, finge a possibilidade de
sair dialeticamente do envolvimento dialético. Tal saída, porém, é fictícia, é feitiçaria, tornando
Aufhebung um ato unilateral, unívoco, não-dialético de elevação misteriosa, bem
correspondente, aliás, ao ato de elevação dos elementos na eucaristia depois de tanto
envolvimento preparatório entre sacerdote, coroinhas e comunidade. Em vez de divinizar a
síntese a uma Aufhebung não-dialética, Adorno se ocupa com a Aufhebung dialética da
síntese, desvelando-a enquanto fato humano demasiado humano, que pode e deve ser
excedido pela virada crítica da consciência humana contra si mesma.
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[1] Professor da Universidade de Leipzig, Alemanha.
[2] O autor emprega a palavra alemã “Aufhebung”, difícil de traduzir em outras línguas, mas
que podemos indicar como abrangendo o seguinte campo semântico: eliminação, negação,
elevação etc. Neste parágrafo vamos entende-la por vezes como ascensão e por vezes como
realização.
[3] Novamente o jogo com o termo “Aufhebung”: acima “ascensão”, aqui “realização”.
[4] Cf. volumes de 12 a 19 e de 21 a 23.
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