168 ICTERÍCIA OBSTRUTIVA: ETIOLOGIA, FISIOPATOLOGIA E INVESTIGAÇÃO Prof. Dr. Antonio Roberto Franchi-Teixeira Icterícia é a condição de coloração amarelada do plasma, pele e mucosas determinada pelo acúmulo dos pigmentos biliares. A bilirrubina é produto final da degradação do grupo heme componente da hemoglobina. A bilirrubina é transportada pela albumina até o fígado onde é recolhida pelos hepatócitos através de sistemas protéicos transportadores de membrana (proteínas X e Y). Após sua entrada na célula a bilirrubina é conjugada por ação de enzimas microssomais (UDP glicuronil transferase) com o ácido glicurônico e forma um composto mais polar e hidrossolúvel (bilirrubina conjugada) que é excretado pelos canalículos biliares. Passa então a formar um complexo lipídico-micelar que é excretado no duodeno através do ducto biliar principal e será desconjugado e reduzido no colo por ação das glicuronidases bacterianas, formando os urobilinogênios. Estes são excretados nas fezes em sua maioria, porém uma pequena parte é reabsorvida e volta ao fígado pelo sistema porta constituindo o ciclo entero-hepático da bilirrubina. CLASSIFICAÇÃO A partir do conhecimento do ciclo fisiológico da bilirrubina definem-se as icterícias em pré-hepáticas (de produção ou de captação), hepáticas (de conjugação) e pós-hepáticas (de excreção). As icterícias de excreção podem ser devidas a problemas mecânicos/anatômicos sobre a via biliar principal constituindo o grupo das icterícias obstrutivas. Há várias causas conhecidas de colestase acometendo sítios anatômicos distintos, como se visualiza na figura abaixo. 169 Figura de Icterícia Colestática { Hepatite viral Hepatite alcoólica Cirrose Acetaminofen Halotano } Estrógenos Esteróides Gravidez { CBP CEP Sarcoidose Rejeição CEP Calculose intraepática Colangiocarcinoma Parasitas } Carcinoma da vesícula Atresia extraepática Estenoses traumáticas Hemobilia Cistos de colédoco } } } Cálculo Tumor de pâncreas Pancreatite crônica Neoplasias da ampola CBP: Cirrose biliar primária CEP: Colangite esclerosante primária CAUSAS DE ICTERÍCIA COLESTÁTICA: 1. Hepatócitos e canalículos: Drogas , hepatites virais, estrogênios. 2. Ductos interlobulares: Cirrose biliar primária (CBP), sarcoidose, colangite esclerosante primária (CEP), rejeição crônica do aloenxerto. 3. Ductos intraepáticos principais: CEP, cálculos intraepáticos, colangiocarcinoma, parasitas. 4. Ducto hepático comum: Carcinoma da vesícula biliar 5. Ducto biliar comum: Atresia extra-hepática, estenoses traumáticas, CEP, cistos de colédoco, parasitas, colangiocarcinoma , hemobilia. 6. Região periampular: Cálculos, tumores de cabeça de pâncreas, pancreatite crônica, neoplasias periampulares, anomalias da junção biliopancreática. 170 O estudo das colestases extra-hepáticas é de grande interesse para o cirurgião na medida em que a etiologia se apresenta de forma muito diversa e o manejo depende da causa básica. No objetivo de simplificar as classificações existentes e salientar dados de interesse cirúrgico, Benjamin (1983) classifica as icterícias obstrutivas em quatro grandes grupos: - Tipo I: Obstrução completa da via biliar principal constituindo icterícia severa. - Tipo II: Obstrução intermitente com alterações enzimáticas evidentes, com ou sem icterícia clínica. - Tipo III: Obstrução crônica incompleta, com ou sem alterações enzimáticas ou icterícia clínica, apresentando eventual alteração da histoarquitetura canalicular ou do parênquima hepático. - Tipo IV: Obstrução segmentar intraepática de um ou mais segmentos anatômicos, podendo assumir a forma progressiva, intermitente ou incompleta. As causas mais comuns das obstruções são: Tipo I: tumores de cabeça do pâncreas, ligadura iatrogênica do ducto principal, tumores hepáticos e colangiocarcinoma. Tipo II: coledocolitíase, tumores periampulares, divertículo duodenal, cistos de colédoco, doença policística hepática, parasitas intrabiliares e hemobilia. Tipo III: estreitamentos estreitamentos da anastomóticos, via biliar colangite (congênitos esclerosante ou iatrogênicos), pós- radioterapia, pancreatite crônica, fibrose cística e discinesia do esfíncter de Oddi (?). Tipo IV: trauma, litíase intra-hepática, colangiocarcinoma. INVESTIGAÇÃO Dados importantes da história clínica: -início súbito ou insidioso -eventos de colangite -uso pregresso de drogas de metabolização hepática -perda de peso associada ao quadro. colangite esclerosante e 171 No exame clínico, além dos clássicos estigmas de insuficiência hepatocelular, deve-se notar a presença de sinais indiretos de hipertensão porta. Um modelo de investigação razoavelmente completo em um doente portador de icterícia obstrutiva poderia constituir-se de: Testes hematológicos: os clássicos, incluindo contagem de reticulócitos, provas de coagulação. Testes de função: enzimas séricas (AST, ALT, GGT, fosfatase alcalina), dosagens de bilirrubinas e proteínas séricas (eletroforese). Testes imunológicos e sorologias: IgG, IgA, IgM, anticorpos anti- mitocôndria, músculo liso e antinúcleo, antígenos virais de superfície (HBsAg), IgM anti vírus da hepatite A, sorologia contra vírus C, anticorpo anti-CMV, testes parasitológicos de fixação de complemento, teste de Wasserman. Testes específicos: alfa-1-antitripsina, amilasemia, ferro, cobre sérico e urinário, ceruloplasmina sérica. Marcadores tumorais: alfa-fetoproteína (hepatocarcinoma), CA 19-9 (colangiocarcinoma). MÉTODOS DE IMAGEM A ultrassonografia (US) é atualmente um método bastante disponível. No estudo da árvore biliar a ultrassonografia é usada na avaliação das diversas estruturas anatômicas que compõem o sistema bilioexcretor. O nível das obstruções pode ser definido traçando-se o perfil anatômico de toda a árvore biliar. Em geral o nível de obstrução pode ser determinado em 80% das vezes. O exame ecográfico pode ser capaz de revelar a etiologia da obstrução, na medida em que cálculos, tumores e cistos na via biliar são razoavelmente detectáveis e tumores pancreáticos sintomáticos usualmente são grandes o suficiente para aparecerem a US. Os tumores periampulares, ainda que muito pequenos para serem detectados, podem ser inferidos a partir de dados sonográficos como o sinal do duplo ducto (dilatação simultânea da via biliar e pancreática). A tomografia computadorizada (TC) com o uso de reforço de contraste (enhanced CT scan) é importante na propedêutica. Permite a avaliação de tumores biliares, cálculos, cistos, doenças inflamatórias e anomalias. A tomografia 172 computadorizada tem sensibilidade aproximada de 75% na detecção de cálculos na via biliar principal, em contraste com os 20% apresentados pela US. Dilatações da via biliar, saculações e estenoses concêntricas corroboram o diagnóstico tomográfico da doença de Caroli. A síndrome de Mirizzi é uma condição rara na qual o ducto hepático comum é obstruído por cálculos provenientes da vesícula biliar (bolsa de Hartman ou ducto cístico) extruídos através de uma fístula colecistocoledociana. A colangite esclerosante primária (CEP) é uma entidade cujo aspecto tomográfico revela áreas focais de dilatação intra-hepática com espessamento da parede ductal podendo haver imagens nodulares intraparenquimatosas (o que sugere o desenvolvimento tumoral associado à doença básica). A presença de anomalias na desembocadura das vias biliar e pancreática é tão comum que é implicada como fator determinante desta doença. A herniação do colédoco na luz duodenal configura a coledococele, que pode ser visualizada na TC como uma massa intraluminal contígua ao colédoco distal. A ressonância nuclear magnética (RNM) utiliza diversos contrastes que permitem a diferenciação das diversas estruturas (gadolínio, manganês, ferro). A RNM apresenta vantagens na avaliação hepática: vasos são visualizados facilmente e o contraste entre estruturas normais e patológicas é bastante evidente. A colangiografia (visualização radiológica da via biliar por injeção direta de contraste opaco) é o mais completo e detalhado método de demonstração anatômica da via biliar. Pode ser realizada por punção trans-hepática (colangiografia transparietoepática-CTP) ou retrogradamente por cateterização da papila (colangiopancreatografia endoscópica retrógrada-CPRE). A colangiografia transparietoepática (CTP) realiza-se a partir da punção dos elementos biliares intra-hepáticos com agulhas de fino calibre (Chiba) guiadas por US ou CT, geralmente sob monitorização fluoroscópica. Contrastes iodados solúveis em água são empregados e possuem pesos específicos maior que a bile. Utilizando-se essa propriedade aliada a manobras de rotação da mesa fluoroscópica é possível a visualização completa do aparelho biliar excretor sob regime de baixa pressão na maioria dos casos. 173 A CTP é também muito útil na detecção de lesões estenóticas benignas da via biliar, como nas síndromes ictéricas pós-colecistectomia. Os fatores que devem ser ponderados na escolha entre a realização da CTP ou da CPRE devem levar em conta algumas características específicas dos métodos e das instituições que os aplicam. A colangiopancreatografia endoscópica retógrada (CPRE) permite uma boa inspeção da região periampular. Através da cateterização seletiva das vias pancreática e biliar é possível a visualização sob fluoroscopia. A avaliação biliar do doente ictérico é a principal indicação da CPRE, geralmente após a realização de testes não invasivos (US/TC). Quando esses métodos já evidenciaram um provável nível de obstrução, a CPRE pode indicar a causa em 8590% dos doentes e muitas vezes até assume função terapêutica (papilotomia, retirada de cálculos, colocação de próteses). Na avaliação da doença calculosa da via biliar a canulação desta com preenchimento de contraste até os ductos intraepáticos de segunda ou terceira ordens permite virtualmente a visualização de quaisquer anomalias da via biliar. Armadilhas na interpretação incluem a presença de pancreatite obstrutiva secundária a compressão tumoral cefálica, a presença de anomalias ductais no pancreas divisum e pancreatites crônicas focais. As lesões relacionadas a colangite esclerosante primária (CEP) aparecem à CPRE como estenoses anulares e concêntricas principalmente acometendo a via biliar em sua porção intra-hepática, porém pode haver acometimento da via principal e até da vesícula biliar. Vale a pena salientar aqui importância da CPRE na avaliação de parasitoses intrabiliares, colangites secundárias, lesões obstrutivas pós-quimioterapia intra-arterial hepática, entre outras. A colangiografia por ressonância nuclear magnética (colangioressonância - CR), é um método que utiliza diversas seqüências de obtenção de imagens e possibilita a formação de imagens tridimensionais. Além disso, a CR permite a realização do mapeamento axial do abdome, angiografia e espectroscopia simultaneamente, perfazendo três exames em um único ato. Na detecção da colédocolitíase e tumores da via biliar, a CR tem se mostrado muito útil na detecção do nível de obstrução e da causa básica. Compararam-se os achados da CR com a CPRE (considerando a colangiografia direta como padrão 174 gold standard) na investigação da anatomia biliar e concluíram que não há diferença estatisticamente significativa entre os métodos na capacidade de detecção do nível de obstrução biliar. Concluiram também que “a CR, por ser método não invasivo e não se utilizar contraste radiográfico pode, em muitos casos, ser utilizada ao invés da CPRE para melhor direcionar terapêuticas invasivas”. Em um futuro não muito longínquo, poderá ser a CR o método de primeira instância na investigação da icterícia obstrutiva em adultos, por razão de sua confiabilidade e segurança. CONCLUSÃO A diversidade de métodos e formas de investigação do doente portador de icterícia obstrutiva demonstra a variada gama de afecções que acometem o sistema hepatobiliopancreático em diferentes idades do desenvolvimento. A criação de grupos interessados no estudo mais profundo dessas doenças criou unidades onde clínicos, cirurgiões e radiologistas trabalham lado a lado na condução do processo investigatório e terapêutico do doente ictérico. Este convívio profícuo entre as diferentes especialidades em busca do mesmo objetivo é que permitiu a diminuição drástica das taxas de morbidade e mortalidade no tratamento cirúrgico e endoscópico do doente ictérico. Novas tecnologias como a colangiorresonância, a ultrassonografia endoscópica ou a cintigrafia hepatobiliar não minimizam o valor da propedêutica clássica na avaliação do doente ictérico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Benjamin I S. Biliary tract obstuction. In Surgery of the Liver and Biliary Tract, ed. Blumgart LH, Churchill Livingstone, Avon, UK, pág135-145,1984. 2. Schaffner F, Popper H. Classification and mechanism of cholestasis. In Liver and biliary disease: pathophysiology, diagnosis and manegement. Ed Wrigt R ,Albert KGMM, Karran 3. Teixeira ARF, Boin IFSF, Antonialli F, Leonardi LS. Icterícias Obstrutivas: Conceito, Classificação, Etiologia e Fisiopatologia. Revista Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo- Ribeirão Preto, vol 30 pag 159-163. 4. Maurantonio M, Venezia L, Carulli L. Cholestatic Icteris: Is There Still a Role for the Clinic? Ann Ital Med Int. 19(2): 131-43, 2004 175 ALGORITMO DE INVESTIGAÇÃO Icterícia colestática Colestase intra-hepática Doença benigna Avaliação clínica, testes laboratoriais Colestase extra-hepática Doença maligna US TC Observação Sorologia Testes imunológicos US/TC Ductos dilatados Citologia Tratamento Cirúrgico Endoscópico Percutâneo Sim Não CRNM ou CTPH CRNM CPRE se necessário Obstrução demonstrada CTPH = COLANGIOGRAFIA TRANSPARIETOHEPÁTICA CPRE = COLANGIOPANCREATOGRAFIA ENDOSCÓPICA RETRÓGRADA CRNM = COLANGIORRESSONÂNCIA NUCLEAR MAGNÉTICA