Novo paradigma da relação contratual – repesando a figura do contrato no contexto de uma sociedade complexa. Dalmir José Lopes Jr. A teoria do contrato, erigida no século XIX, estava fundada sob postulados epistemológicos que sobrevalorizavam os aspectos subjetivos e formais das relações jurídicas. Tal concepção vem sendo superada pela teoria objetivista que preconiza a supremacia do interesse público sobre o particular. No entanto, ela precisa ser trabalhada no contexto de uma sociedade hipercomplexa, na qual o contrato fornece um acoplamento entre sistemas sociais, sendo ponto de tensão entre diversas racionalidades Palavras-chave (no máximo 3): contrato; complexidade; teoria dos sistemas. 1. Introdução A sociologia do direito de Max Weber gira em torno da reconstrução teórica do processo de racionalização do direito moderno.1 Para demonstrar esse processo, Weber lança mão de quatro modelos ideais de direito, esses modelos ou tipos possuem um valor heurístico para definir uma dada realidade sócio-jurídica. Esses tipos, portanto, dizem respeito a uma dada racionalidade. Essa racionalidade pode variar em torno de uma ordem jurídica “racional” ou “irracional”. Diz-se que se está diante de uma ordem jurídica “racional”, quando os resultados das ações podem ser previstos com um maior grau de certeza, ou seja, o racional é algo que pode ser regulado como objeto de uma deliberação relativamente padronizada, ao contrário do “irracional”, que é aquela ordem jurídica cujas decisões são arbitrárias, ou quando não, pouco claras, pois não se baseiam em normas gerais, e, por isso, estas decisões seriam pouco previsíveis. Paralelamente, os critérios de decisão podem estar mais próximos da formalidade ou da materialidade. Diz-se que o direito é “formal” quando os critérios de decisão forem especificamente jurídicos, e um direito é “material” quando estes critérios forem estranhos ao sistema jurídico. O direito das modernas sociedades européias ocidentais correspondia, ao tempo de Max Weber (fins do séc. XIX e início do séc. XX), a um direito racionalformal. A generalidade e a abstração permitiram criar um direito com um grau de previsibilidade elevado e com regras aplicáveis de forma genérica. Esse direito, tal qual Weber descreve, está circunscrito numa: Cf. ARNAUD, J. –A. e DULCE, M. J. F. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Trad.: Eduardo Pellew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 100 e ss. 1 (...) lógica jurídica puramente profissional, a ‘construção’ jurídica dos fatos da vida de acordo com ‘proposições jurídicas abstratas’ e amparo da máxima dominante segundo a qual ‘o que o jurista não pode ‘pensar’ em função dos ‘princípios’ derivados do trabalho científico, não existe juridicamente’, tem que conduzir inevitavelmente a resultados que destroem as ‘expectativas’ dos particulares.2 O grau de certeza quanto ao resultado das decisões possibilita um controle social mais efetivo sobre o conflito (ou sua possibilidade), uma vez que as expectativas individuais estão ancoradas numa generalização compartilhada e institucionalizada, numa ordem coercitiva socialmente reiterada. Assim, previamente se pode esperar certos efeitos quando se opta por uma conduta contrária ao direito. Tal configuração, esse direito formal e racional que Max Weber descreve como característica do direito europeu (e do anglo-saxão), tem suas raízes mais remotas na “revolução” do século XVII, e, em sua vertente filosófica, encontra nos filósofos do jusracionalismo o sustentáculo para sua implementação. É no iluminismo filosófico que ocorre pela primeira vez a conversão dos “direitos naturais” numa ordem jurídica pactuada e positivada.3 Embora os fundamentos tenham sido estabelecidos pelo jusracionalismo, o direito formal-racional expressa-se pela influência direta do pandectismo alemão, através do qual se estabelecem as condições para o jus-positivismo. A preocupação dos teóricos do direito desse período consistia em criar bases para uma ciência autônoma e por meio dela justificar as decisões jurídicas através de conceitos lógicos. A ciência jurídica do início do séc. XIX é marcada por uma idéia de que as normas WEBER, Max. Economia y Sociedad. Trad. de José Medina Echevaría et al. México: Fundo de Cultura Económica, 1996, p. 652. 3 Do ponto de vista dos direitos subjetivos, essa “revolução” que substituiu a justificativa divina ou religiosa da aplicação do direito, é descrita por Taylor da seguinte maneira: “A noção de direito, também chamado ‘direito subjetivo’, tal como desenvolvida na tradição legal do Ocidente, é de um privilégio legal vista como uma quase-posse do agente a quem é atribuído. Em princípio esses direitos eram posses diferenciais: algumas pessoas tinham o direito de participar de certas assembléias, de dar conselhos ou de cobrar taxas em dado rio e assim por diante. A revolução na teoria do direito natural no século XVII consistiu em parte em usar essa linguagem dos direitos para exprimir as normas morais universais. Começamos a falar de direitos ‘naturais’, aplicados agora as coisas como a vida e a liberdade, que supostamente todos tem.” (TAYLOR, Charles. As fontes do Self – A construção da identidade moderna. Tradução de Adail U. Sobral e Dinah de A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997, p. 25, [grifo nosso]). Segundo Franz Wieacker, a contribuição da filosofia do jusnaturalismo, traduziu-se no direito privado da seguinte maneira: “Com o sistema do jusracionalismo, a ciência jurídica positiva adotou também a sua construção conceitual. Numa teoria que tinha de se comprovar perante o fórum da razão através da exatidão matemática de suas premissas, o conceito geral adquiriu uma nova dignidade metodológica. Agora, ele não era já apenas um apoio técnico tópico, um artifício na exegese e harmonização dos textos, mas um símbolo central que exprimia a pretensão de ordenação lógica da ciência jurídica” (WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993, p. 310). 2 jurídicas e sua aplicação poderiam ser deduzidas exclusivamente a partir do sistema, dos conceitos e princípios doutrinários, sem precisar conceder abertura a prerrogativas éticas, políticas ou econômicas.4 Esse processo de racionalização, em termos weberianos, é a principal característica dos tempos modernos, e o distanciamento do direito das perspectivas de interesses de grupos específicos constitui um diferencial em relação aos períodos precedentes.5 Já em seu tempo Max Weber, início do século XX, apontava para o surgimento de certas tendências antiformalistas no interior do direito. No direito dos contratos, essa re-materialização manifesta-se na forma de uma “particularização crescente do direito” e por uma extensão do controle legislativo e judicial do conteúdo das convenções. Weber afirma que este fenômeno representava um risco para a racionalidade formal,6 em razão das normas de qualidades diferentes. “(...) com a aparição dos modernos problemas de classe surgem diversas exigências materiais dirigidas ao direito de parte de um setor dos particulares (principalmente da classe trabalhadora) e de parte dos ideólogos juristas que repudiam a vigência exclusiva de tais critérios de pura moralidade mercantil e exigiam um direito social sobre a base de patéticos postulados morais (‘justiça’, ‘dignidade humana’, etc.). Contudo, isto coloca radicalmente em questão o formalismo do direito (...)”.7 Essa tendência de re-materialização, inicialmente, encontrou espaço na jurisprudência dos tribunais superiores que adaptaram as regras do código civil, elaborado e até então aplicado com o espírito da Begriffsjurisprudenz, para contemplar as mudanças de seu tempo. Esse movimento apareceu na ciência do direito “A fundamentação ética desta convicção foi extraída de Savigny e pelos seus contemporâneos da teoria jurídica de Kant, segundo a qual a ordem jurídica não constitui uma ordem ética, mas a possibilita, tendo portanto, uma ‘existência independente’” (WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 492). 5 “o direito moderno revela-se concebido e animado por um pensamento profissional fechado sobre ele mesmo, obedecendo amplamente a uma racionalidade lógica específica, apartada das lógicas sociais tais como o utilitarismo e o pragmatismo” (BELLEY, Jean-guy. Max Weber et la théorie du droit du contrats. Paris: Droit et Société – Revue Internationale de Theorie du Droit et de Sociologie Juridique, nº 9, 1988, p. 303). 6 Como bem mostra Rottleuthner, que Weber apontava para o déficit que estava sujeita a racionalidade jurídica da época. Uma crescente materialização e irracionalidade que corroiam a base da formalidade do direito civil da época, e sob a qual se apoiava o movimento teórico crítico do formalismo liderado por Eugen Ehrlich (Cf. ROTTLEUTHNER, Hubert. La sociologie du droit en Allemagne. Paris: Droit et Société – Revue Internationale de Theorie du Droit et de Sociologie Juridique, nº 11/12, 1989, pp. 105-106). 7 WEBER, Max. Op. cit, p. 653. O sentido da crítica weberiana expressada ao dizer que o direito social está assentado “patéticos postulados morais”, expressa seu receio na volta de uma materialização ancorada em aspirações morais abstratas. Para este autor, os quatro tipos ideais do direito seguem um sentido evolutivo linear. 4 apontando para o fato de que as leis, principalmente no que tange ao direito privado, não poderiam fornecer a solução mais adequada aos casos concretos unicamente por seus textos. Novamente o direito civil constituiu-se como o substrato mais nítido para as mudanças engendradas na teoria do direito. De uma forma geral, ocorreu a substituição da idéia da liberdade total das partes para contratar através de uma nova hermenêutica de cláusulas que exigiam dos contratantes uma “boa-fé contratual” ou boa-fé objetiva dos contratanes. De acordo com Wieacker, a jurisprudência do início do século XX valeu-se das cláusulas gerais da primeira parte do BGB, “(...) originalmente destinadas apenas à preservação da moral geral e da lealdade das regras do jogo, para a transformação da moral econômica liberal numa outra adequada às idéias do Estado social”.8 A jurisprudência tradicional, que baseava suas decisões num método dedutivo-legal, aproximou-se mais das relações de fato estabelecidas entre os sujeitos de direito. Uma rendição que ocorreu na esteira da compreensão lógico-sistemática do conflito, perpassando pela pragmática de incluir a vontade do legislador nas decisões judiciais, os interesses em jogo, ou mesmo uma adequação da lógica à situação fática, uma superposição de interesses sociais sobre interesses privados. O princípio da boa-fé objetiva passou a ser utilizado como um instituto corretivo e um elemento interpretativo da relação obrigacional, quer dizer, como sendo um dado inerente à própria obrigação. Uma prática que, no caso alemão, aparecerá consolidada na própria Lei Fundamental: a idéia de que a “legislação é objeto da ordem constitucional, o Executivo e o Judiciário são vinculados à lei e à justiça”.9 Com isso, subentende-se que o direito privado não é regido apenas pela liberdade volitiva das partes, mas igualmente por imperativos de ordem pública, ou seja, pelos ditames legais impostos em prol da ordem social. Na teoria do direito isso aparece através do conceito geral de que o contrato estaria sujeito a uma função social, principalmente para contrabalançar a figura dos contratos de adesão,10 que aparece como uma 8 Cf. WIEACKER, Franz. Op. cit., p. 596. Art. 20, III da Lei Fundamental da Alemanha (GG – Grundgesetz). 10 Após a revolução industrial do início do século dezenove, a descoberta de novas formas de energia, a nova organização do trabalho nas empresas com o fordismo, todas estas mudanças atingem o conjunto da economia com um impacto sem precedentes. O contrato standard aparece como uma necessidade para as praticas econômicas. Estandardizam-se os títulos de crédito, os contratos que disciplinavam as transações na bolsa. Os bancos passaram a uniformizar as cláusulas que negociavam com seus clientes. Os transportes de massa trazem a necessidade de um contrato de seguro que o abrangesse, e etc. “(...) Em uma época de rápida evolução das condições sócio-econômicas e de desenvolvimento tecnológico vertiginoso, a disciplina legal das relações – a que dá corpo o conjunto das normas dispositivas – resulta freqüentemente lacunosa e inadequada às novas situações e às mais avançadas exigências sentidas pelas empresas (...), estas podem remediar as insuficiências e os atrasos da lei, criando, por si, um ‘direito’ que melhor corresponde ao arranjo e à dinâmica das relações de 9 necessidade da dinâmica da economia capitalista do período. A liberdade privada começa a ser questionada como instituto régio das relações contratuais – haja vista que os contratos de adesão a colocavam em xeque – em prol de um novo mandamento, a igualdade de fato entre os partícipes da relação jurídica. Porque se outrora a liberdade plena deflagrava uma igualdade mais concreta, algumas mudanças na estrutura econômica fizeram com que esta verdade perdesse sua eficácia com o passar do tempo, e fosse esperança fátua de garantia social. 2. Justificativa As transformações exigidas para se alcançar uma igualdade formal levaram a criação de um direito mais “flexível”. Com isso, a própria estrutura do direito privado foi reformulada para incluir normas que pudessem estar aptas a responder aos mais diversos contextos, atribuindo, ao Poder Judiciário, a tarefa de melhor adequar o conteúdo contextual dessas normas abertas aos fatos sociais plurais. Nesse sentido, a boa-fé contratual e a função social dos contratos aparecem como novos institutos jurídicos que atribuem uma prerrogativa ao Estado-Juiz de adequar o velho paradigma dos contratos de autonomia individual aos interesses públicos e aos valores sociais. O que colocamos em foco nesse projeto é o instituto jurídico do contrato como liame social. O contrato, como instituto jurídico, foi, durante o período moderno, no qual ele é reestruturado com um instituto jurídico pelo pandectismo alemão, como um acordo de vontades que ligava apenas as vontades das partes contratadas. Diz Enzo Roppo, que o Contrato é uma construção da ciência jurídica elaborada (além do mais) com o fim de dotar a linguagem jurídica de um termo capaz de resumir, designando-os de forma sintética, uma série de princípios e regras de direito, uma disciplina jurídica complexa. No entanto, ao tratar melhor da semântica do instituto, aponta que: as substâncias que constituem o contrato podem ser resumidas na idéias de operação econômica. Afirma-se que o contrato é a veste jurídico-formal de operações econômicas. Donde se conclui que onde não há operação econômica, não pode haver também contrato. a) Visão subjetivista e objetivista do contrato. mercado e por isso resulta – do ponto de vista das exigências empresariais – mais racional” (ROPPO, Enzo. Op. cit., pp. 314-315). Essa visão, que ora designamos como subjetivista, situa a relação contratual no âmbito exclusivo das relações privadas, subordinando o instituto dos contratos aos tradicionais princípios consagrados na ordem jurídica oitocentista: liberdade contratual, autonomia da vontade e relatividade dos efeitos contratuais. Sob esses princípios, o contrato seria válido quando houvesse um consenso entre duas partes capazes de manifestar suas respectivas vontades; autonomia contratual significa que a vontade declarada, desde que livre e consciente, vincula as partes envolvidas na relação jurídica. O por último, a relatividade dos efeitos está ligada ao fato de que o contrato é uma norma jurídica singular, isto é, vincula apenas aquelas pessoas envolvidas na relação jurídica por elas mesmas criada. Nesse sentido, o contrato assumiu, dentro de seu paradigma clássico, uma roupagem essencialmente formalista e privitista, pois toda a relação criada entre as partes nela envolvida, ficava restrita às regras por elas mesmas criadas. Isto é, para que exista um contrato é necessário, por regra, que existem duas partes, e que cada uma delas exprima a sua vontade de sujeitar-se àquele determinado regulamento das recíprocas relações jurídicas patrimoniais, que resulta do conjunto das cláusulas contratuais. É necessário, em concreto, que uma parte proponha aquele determinado regulamento e que a outra o aceite. O contrato formase, precisamente, quando essa proposta e essa aceitação se encontram, dando lugar àquilo que se chama de consenso contratual.11 Explica Antonio Junqueira de Azevedo que os grandes movimentos sociais do final do Séc. XX obrigaram os juristas a reconhecer o papel da ordem pública, acrescentando às relações jurídico-privadas, postulados morais e éticos na avaliação da relação entre as partes. O Código Civil Brasileiro de 2002 suscitou reforçou igualmente essa mudança de orientação (paradigma) tanto no âmbito doutrinário como também jurisprudencial no que tange às relações privadas. Parece até impróprio que um projeto da década de 1970 possa realmente gerar mudanças sensíveis, mas tais méritos residem nos esforços de seus redatores, que o criaram sob uma orientação voltada para a valorização dos aspectos fáticos das relações jurídicas e, sobretudo, pela adoção de princípios éticos de orientação judicial. Essas mudanças não foram setoriais, ocorreram tanto na parte especial como, e principalmente, em sua parte geral. Decerto que a mudança legislativa por si só não condiciona uma mudança social, ao contrário, boa parte dessas mudanças refletem as próprias demandas de uma sociedade que necessita de normas que acompanhem a mutação de seus MARQUES, Frederico do Valle Magalhães Marques. O princípio contratual da boa-fé. O direito brasileiro e os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, volume 25, Janeiro-março de 2006, p. 58. 11 costumes e de suas práticas para alcançar um bem viver. No entanto, inegável o mérito do código civil de 2002 que despertou uma “nova consciência jurídica” acerca das relações privadas no país. Essa mudança repercutiu-se também no âmbito doutrinário. Aliás, a doutrina já apontava, de longa data, muitas impropriedades que o código de 1916 possuía e que finalmente foram corrigidas com o código de 2002. Ademais, o efeito póscodificação gerou um novo paradigma hermenêutico, como afirma Gustavo Tepedino: Se o século XX foi identificado pelos historiadores como a Era dos Direitos, à ciência jurídica resta uma sensação incômoda, ao constatar sua incapacidade de conferir plena eficácia ao numeroso rol de direitos conquistados. Volta-se à ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana, como tem ocorrido de maneira superabundante nas diretivas européias e em textos constitucionais, bem como sua transposição na legislação infraconstitucional.12 No que concerne à parte geral do código, a adoção de cláusulas gerais como a boa-fé objetiva e a função social dos contratos permitiu uma maior concretização da justiça em termos materiais. Essas cláusulas abertas vieram a amenizar os princípios da igualdade formal e os princípios clássicos da vontade erigidos no séc. XIX, como a autonomia privada, o pacta sunt servanda e o princípio de relatividade dos efeitos contratuais.13 Com essas cláusulas o negócio jurídico14 passa a ser entendido como um fenômeno jurídico social, pois não se avaliam, nos casos de uma lide, apenas seus pressupostos formais: vontade, objeto e forma, mas, nessa nova fase do direito civil brasileiro, na qual os interesses privados e a vontade das partes, embora núcleos das relações jurídicas privadas, encontram-se limitados pelo interesse de ordem pública, pela ética e pelas garantias e pelos princípios constitucionais. O Artigo 104 do Código Civil Brasileiro traz os requisitos essenciais para que os contratos, em geral, sejam válidos. São eles: que o agente seja capaz e tenha legitimação legal para o negócio que está praticando, que o objeto seja lícito, possível e determinável, e se houver uma forma prescrita em lei, essa deve ser observada. Podemos afirmar que ao lada dessas exigências estão: que a declaração de vontade seja livre e consciente e que se respeite a boa-fé objetiva, pois em muitos casos, a 12 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 8-9. Cf. MARQUES, Frederico do Valle Magalhães Marques. O princípio contratual da boa-fe. O direito brasileiro e os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, volume 25, Janeiro-março de 2006, p. 5390. 14 Instituto jurídico advindo do direito germânico e incorporado ao Código Civil de 2002. 13 ausência desse elemento ético-objetivo (por ser analisado em face das circunstâncias fáticas) implica na anulação do contrato. Essa mudança nos leva a uma segunda concepção de contrato: a objetivista ou social, que em termos práticos, implica na adoção de novos princípios contratuais de forma a limitar os clássicos princípios oitocentistas: o princípio da função social dos contratos; o princípio do equilíbrio econômicos dos contratos – vedação ao abuso do poder econômico e da lesão; e o princípio da boa-fé objetiva. Destarte, um contrato, por esse novo paradigma, não ficaria circunscrito apenas à vontade das partes, mas sobretudo, a imperativos éticos limitadores dos abusos das partes, inscrevendo neles regras gerais de lealdade e confiança entre as partes. Em outras palavras, o contrato passa a ter uma concepção material e não apenas formal, exigindo-se um agir ético dos envolvidos na relação jurídica determinada, perdendo assim, como outrora claramente delineada, seu caráter de relação privada, na medida em que o poder público passa a ter ingerência sobre essas relações com base nos postulados éticos citados. b) o contrato dentro das sociedades policontexturais. Vivemos numa era, segundo Gunther Teubner, de policontexturalidade,15 isto é, vivemos numa época de hipercomplexidade, pela qual o vínculo jurídico que une as partes de uma relação, envolve um choque com os mais variados contextos discursivos de uma sociedade. Nesse sentido, o professor da Universidade de Frankfurt, vem defendendo que o vínculo jurídico deveria levar em conta não apenas a vontade, mas os discursos sociais que circunscrevem os sistemas sociais em que as respectivas declarações de vontade das partes têm origem. O novo paradigma do contrato insere-se entre dois projetos de sociedade que não conseguiram atingir seus objetivos: o projeto de um Estado de Bem-estar social16 e o de um Estado mínimo, neo-liberal, ou com reduzido grau de intervenção na esfera privada. Não a mão invisível, nem o Estado garantidor foram levados a cabo como projetos edificantes de uma sociedade democrática. No lugar de ambas as concepções, surgem novas teorias que pretendem preencher a lacuna jurídico-política TEUBNER, Gunther. Mundos contratuais: o direito na fragmentação de regimes de private governance. In: Idem. Direito, sistema e policontexturalidade. São Paulo: UNIMEP, 2005, p. 269-300. 16 “a conseqüência desse tipo de medidas é que as relações sociais passam a ser mediadas por instituições políticas democráticas, em vez de permanecerem dependentes da esfera privada” (PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p, 247, apud WERNECK VIANNA, Luiz et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 17). 15 desses projetos, um bom exemplo, é a Law and Economics cujo principal expoente é Richard Posner, o qual tem por orientação básica fornecer um novo critério de justiça teleológica as relações civis, substituindo o critério de justiça, clássico, do utilitarismo, pela fórmula de riqueza geral da sociedade. Todos esses projetos, por assim dizer, ficam prejudicados por uma sociedade globalizada e com uma progressiva complexificação das relações nos mais diversos níveis sociais. Nesse sentido, pensar o contrato num contexto de uma sociedade policontextural, mas precisamente, quer retratar o fato de que as sociedades ocidentais modernas criaram sistemas sociais altamente especializados para responder mais eficientemente aos problemas sociais surgidos ou simplesmente para ampliar o desenvolvimento do conhecimento e da tecnologia. Assim, um contrato pode e estará muitas vezes, circunscritos a determinados contextos plurais. Tais contextos demandas do jurista uma compreensão que não se reduz a interpretação legal, pois até mesmo para empreendê-la, será necessário compreender os demais contextos envolvidos. Como num contrato educacional, médico, de prestação de um serviço, numa operação econômica bancária ou no mercado de capitais, numa fusão ou numa aquisição de uma empresa, e etc. Cada um desses contextos, subdivide-se em outros mais. No caso médico: a obstetrícia, a cirurgia plástica, as cirurgias em geral, a anestesiologia e etc.17 Por essa razão que citando a Jacques Derrida, Gunther Teubner afirma que “o laço da obrigação ou da relação de obrigação não existe entre aquele que dá e aquele que recebe, mas entre dois textos (entre dois 'produtos' ou 'criações')”. 18 Sustenta o autor que o contrato deve ser pensado sob um novo paradigma. Um paradigma que permitisse contemplar as relações jurídicas contratuais sob uma perspectiva relacional abrangente e complexa. Assim, um contrato, dentro de uma sociedade policontextural deve ser pensando como um instituto que vincula uma série de discursos que muitas vezes entram em colisão entre si, pois os sistemas sociais se contraem, encolhem, 17 A hipercomplexidade de realidade necessita de uma abordagem que compreenda o objeto de estudo em sua totalidade. Neste sentido, nossa abordagem segue o método complexo: “o paradigma da complexidade não ‘produz’ nem ‘determina’ a inteligibilidade. Pode somente incitar a estratégia/inteligência do sujeito pesquisador a considerar a complexidade da questão estudada. Incita a distinguir e fazer comunicar em vez de isolar e de separar, a reconhecer traços singulares, originais, históricos do fenômeno em vez de liga-los pura e simplesmente a determinações e leis gerais, a conceber a unidade/multiplicidade de toda entidade em vez de hetegeneizar em categorias separadas ou de homogeneizar em indistinta totalidade, incita dar conta dos caracteres multidimensionais de toda realidade estudada” (MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000, p. 334). 18 DERRIDA, Jacques. Babylonische Türme: Wege, Umwege, Abwege. In: HIRSCH, A. (ORG.) Übersetzung und Deskonstruktion. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 1356, Apud: TEUBNER, Gunther. Op. cit., p. 271. diminuem, especializam-se em uma função, um código, externalizando o resto que lhe é estranho, que não compartilha sua razão própria. O que nos leva a tese central do autor: a unidade do contrato se fragmentou em um jogo sem fim de discursos.19 E portanto, deve ser pensado como uma junção de projetos em seus respectivos mundos sociais, que englobaria três momentos: primeiro, um acordo produtivo que vincula as partes envolvidas, isto é sempre versará sobre troca relacional que envolve uma dada atividade (produção distribuição ou serviços em tecnologia, ciência medicina, jornalismo, esporte, turismo, educação e etc.); segundo, o contrato reconstrói-se no mundo econômico como um acordo rentável e um projeto empreendedor e por último, o contrato reconstrói-se no mundo jurídico como um compromisso que vincula por determinado tempo as pessoas nele envolvidas. Diz o autor que o contrato como projeto discursivo deve ser compreendido como o laço que “[...]não vincula apenas a vontade de ambos os parceiros, mas sua conversação; ele vincula o sistema social que se edifica entre eles”.20 Assim, por exemplo, um contrato que envolva uma atividade cirúrgica invasiva de natureza estética, implica não apenas a anuência do médico-cirurgião em fazer a intervenção e a do paciente a se submeter a mesma com vista de um resultado favorável, mas extrapola a este consenso da parte para vincular uma prestação médico-científica, um acordo econômico e um negócio jurídico temporal. O instituto do contrato, aponta Teubner, é reconstruído sob os diversos sistemas sociais que por ele são acoplados: medicina, economia e direito. O direito afirma que esse contrato é de resultado, fato que vincula o cirurgião a obtenção de um resultado pretendido pelo paciente, isto ocorre em razão da tradução desse contrato na esfera jurídica consumerista. Do ponto de vista médico, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica erigiu-se contrária a esse entendimento, de tal modo que O Conselho Federal de Medicina expediu a Resolução CFM No. 1.361 de 2001, que em seu Art. 4º. diz: “o objetivo do ato médico na Cirurgia Plástica como em toda prática médica, constitui uma obrigação de meio e não de fim ou de resultado”. Em entrevista, para a SBCP, o consultor jurídico do órgão afirma: “Há um desconhecimento por parte do Poder Judiciário das questões da classe médica. Isso se deve em boa parte porque a medicina é uma ciência própria, com conceitos e termos essencialmente técnicos, que para serem analisados pelos juízes de direito nos casos de demanda ajuizados por pacientes, dependem integralmente de peritos e auxiliares médicos”.21 19 Cf. Idem. Ibidem, p. 279. Idem, Ibidem, p. 283. 21 FERREIRA, Luiz Otávio Rodrigues. A cirurgia plástica nos tribunais: estétic vs. reparadora. Plastiko’s. Órgão Oficial de Divulgação da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. [S.l] [200], p. 11. 20 A simples narrativa do caso acima, dos dilemas que compõem um contrato de cirurgia plástica, nos leva a referendar inicialmente a tese do professor de Frankfurt: o contrato outrora descrito não pode ficar circunscrito a uma esfera meramente subjetiva, senão deve ser analisado dentro da perspectiva discursiva que une tanto o entendimento jurídico da questão como a realidade médico-científica. O contrato numa sociedade policontextural está concomitantemente situado sob o âmbito de vários sistemas sociais: o da ciência, o jurídico e o econômico, se levarmos apenas em consideração o caso descrito acima. A tese que queremos analisar nesse projeto é a proposta de uma nova forma de vislumbrar as relações jurídico-negociais. Ela envolve segundo o autor, não apenas uma concepção subjetivista ou objetivista do contrato, mas uma relação sócio-jurídica que embarque a pluralidade dos discursos e contextos nas quais as relações estão compreendidas. Nesse sentido, para citar uma última vez ao autor, o nosso século deverá ser marcado como aquele na qual a justiça será pensada não a partir apenas dos indivíduos, mas da pluralidade discursiva que compõe essa mesma sociedade.22 Neste ponto, Teubner traz questionamentos interessantes: quais são os recursos cognitivos que o direito dispõe que poderiam capacitá-lo a decidir entre uma racionalidade econômica, política, científica ou moral? E ainda, tais recursos seriam suficientes para consolidar uma capacidade aglutinadora do direito sobre a sociedade, visto que o procedimento é uma construção idiossincrática de cada uma dessas respectivas realidades (econômica, política, científica, moral e etc.)? Esse projeto propõe o estudo de uma nova forma de contemplar as relações jurídicas negociais de forma inédita no direito brasileiro, pois as teorias jurídicas nacionais não atentaram ainda para a concepção dos contratos sob a perspectiva comunicativa e inter-relacional entre sistemas sociais diversos. Metodologia A base metodológica para a abordagem desse projeto, adota a toeira dos sistemas sociais como referencial teórico para sua compreensão e desenvolvimento, quer na identificação dos problemas de colisão discursiva, quer para fundamenta uma nova concepções contratual em face da pluralidade discursiva. Neste sentido, a teoria dos sistemas, que tem por base os escritos de Niklas TEUBNER, Gunther. “Altera pars audiatur: o direito na colisão de discursos”, in LINDGREN ALVES, J.A. et al. Direito e cidadania na pós-modernidade. São Paulo: UNIMEP, 2002, p. 108 e ss. 22 Luhmann, sustenta que os sistemas sociais são formados por especializações comunicativas de uma sociedade. Luhmann identifica a comunicação como elemento que forma os sistemas sociais, isto é, os sistemas sociais são sistemas cujos elementos representam a própria comunicação.23 Fixemos inicialmente a máxima luhmanniana: “sistemas físico-psíquicos percebem e agem, sistemas sociais comunicam”. A teoria parte do pressuposto de que a sociedade é formada essencialmente por enlaces comunicativos e não por ações individuais. Tal pressuposto metodológico reside no fato de ser deveras complexo explicar como a consciência afeta o direito e vice-versa (ou melhor, como a opinião pessoal de um juiz, por exemplo, suas convicções fundadas em sua história de vida, suas ideologias políticas, sua formação acadêmica, podem vir a afetar a decisão judicial e, no sentido inverso, como a jurisprudência, as leis e a doutrina jurídica afetam a concretização da decisão judicial). Por isso, é consenso entre os que compartilham dessa teoria que os seres humanos, que percebem as coisas em nível da psique, constituem apenas o meio dos subsistemas sociais e da sociedade como um todo. Um sistema social não pode pensar, mas também um sistema psíquico não pode comunicar, isto porque ambos são sistemas auto-referencialmente fechados e possuem, cada qual, sua forma própria de se autoreproduzir. Ambos coexistem apenas por estímulos recíprocos.24 Por isso, tanto a ação A teoria luhmanniana é auto-lógica, pois toda descrição da sociedade ocorre dentro da própria sociedade. Com isso queremos afirmar que para descrever a sociedade é preciso descrever a própria teoria, que é a base da descrição da sociedade. A sociologia tradicional, segundo Luhmann, peca em não conseguir levar avante tal empreendimento (de explicar a sociedade) em razão da limitação imposta pela adoção das seguintes hipóteses: a) tem com ponto de partida a idéia de que a sociedade é composta por seres humanos concretos e das relações entre eles; b) logo, em decorrência dessa primeira hipótese advém uma segunda: a sociedade só pode ser constituída ou integrada como resultado de um consenso entre os seres humanos, através da concordância de suas opiniões e objetivos; c) sociedades existem como unidades regionais ou territoriais, por isso a dificuldade de assumir a comunicação como elemento teórico; d) por fim, as sociedades podem ser observadas de fora. 24 “Não significa que não exista reciprocidade ou que tais interconexões não possam ser observadas(...), [senão que] significa que um deve ter em conta o fato de que os efeitos podem surgir somente através da cooperação do sistema que os experimenta. (...) São sistemas opacos um para o outro. Uma conseqüência disto reside em que a consciência somente contribui para a comunicação com ruído, confusão e perturbação, e vice-versa”. (LUHMANN, Niklas. ¿Qué es Comunicación? Trad.: Miguel Chávez et al. Santiago: Universidad de Artes, Ciencias y Comunicación - UNIACC. Revista Talon de Aquiles, Outono de 1995, nº1). “Aqui a tradicional vinculação da idéia de autoreferência da consciência como a base da operação é abandonada. Deste modo, a teoria do sujeito da consciência (no sentido de subjectum, hypokeimenon) e com isso a primazia da diferença epistemológica entre sujeito e objeto é rejeitada. Ao contrário, dois tipos de operações são distinguidos a auto-reprodução e a observação” (LUHMANN, Niklas. “The unity of the Legal System”, in: TEUBNER, Gunther. Autopoietic Law: a new approach to law and society. Berlim; Nova Iorque: de Gruyter, 1987, p. 13). 23 como a comunicação não podem ser separadas.25 A comunicação, assim apresentada, deve ser compreendida como uma junção de três momentos (inseparáveis na prática)26: informação (Information); mensagem (Mitteilung) e compreensão (Verstehen). A comunicação é o elemento básico para a existência da sociedade, isto é, para existir sociedade, é necessário pressupor a existência de atos comunicativos. As diversas percepções somente podem compartilhar experiências com a utilização de uma linguagem que as conecte. Na medida em que isso acontece, é possível construir uma realidade separada da percepção individual, ou seja, alter e ego podem compartilhar experiências sobre o seu próprio agir e sobre o agir de seus semelhantes. A linguagem é, portanto, o elemento que permite uma acoplagem estrutural entre percepção individual e comunicação social, sem ela não existira algo como uma realidade social. Mas nas sociedades contemporâneas há várias espécies de comunicações sobre os mais variados assuntos, algumas exercendo uma função. Numa sociedade moderna e democrática alguns entendimentos podem ser relativizados (tolera-se o dissenso), enquanto outros precisam de um grau mínimo de previsibilidade quanto ao que se pode ou não aturar como desvio do padrão. O sistema tem por função o controle das expectativas e executa essa função através do controle seletivo de suas comunicações. Por isso, os subsistemas sociais, como o direito, têm por função precípua reduzir a complexidade do mundo social (Umwelt), através da adoção de um código seletor do que diz respeito ao sistema e de uma programação que seleciona ativamente num procedimento específico de tratamento. O código funcional, que é o núcleo central do sistema, atua como um mecanismo seletor que possibilita o direito reduzir a complexidade do mundo social, “Eu vejo o problema no fato que a comunicação e a ação não podem ser separadas, não obstante elas possam ser distinguidas (...) [na verdade,] sistemas sociais são decompostos em ações, e por essa redução adquirem a base para conexões que servem para continuar o curso da comunicação” (LUHMANN, Niklas. Social Systems. Tradução de John Bednarz Jr e Dirk Baecker. California: Stanford University, 1995, p. 138-139) ou ainda: “O sistema comunicativo da sociedade é, nesse sentido, um acoplamento estrutural com sistemas de consciência. Apenas através da consciência [...]que a sociedade pode influir sobre o seu meio. Somente dessa forma é possível, com base num sistema comunicacional operacionalmente fechado da sociedade [como o direito] construir uma alta complexidade, a qual se atualiza sob a forma de uma novidade [Überraschung], quer dizer, de uma informação. O aniquilamento da forma de vida física e da consciência não mais produziria uma irritação para a comunicação, a qual pereceria. (LUHMANN, 1993, p. 444). 26 “O que é proferido não apenas é selecionado, mas igualmente já é uma seleção – isto porque é proferido. Por isso comunicação não deve ser vista como duas partes, mas como um processo de seleção de três partes” (LUHMANN, 1995, p. 140). 25 controlar sua produção (criação de normas jurídicas), delimitar sua esfera de abrangência pelo programa da norma27 e influir sobre o seu funcionamento (papel de interpretação realizado pela dogmática jurídica). Por isso, a primeira função do código é permitir a diferenciação do sistema com relação à missão específica do direito. A segunda é assegurar a reprodução autopoiética do sistema, quer dizer, a clausura da coerência na reprodução. O código funcional permite estabelecer o tratamento das expectativas normativas sob o ângulo dominante de saber se ele é compatível ou não com o tratamento das expectativas realizadas até então.28 A comunicação do sistema jurídico atua, dessa forma, através de um processo de distinção, quer dizer, separando o designado e o distinguindo de um fundo. O direito prevê, inicialmente, a expectativa, não levando em conta a materialidade do fato, senão através de um mecanismo abstrato que distingue o que pode ser aturado como desvio e o que não pode ser aturado. Isso é averiguado no interior de uma comunicação por meio do código do direito/não-direito (Recht/Unrecht).29 O direito portanto define seu universo através de um código, que diferencia aquilo que faz, daquilo que não faz parte de sua comunicação. A comunicação do sistema jurídico passa a ser especializada, não importando – do ponto de vista interno ao sistema –, por exemplo, a informação de que um dos partícipes de uma relação “chorou” em razão de um constrangimento, mas apenas, se houve um constrangimento e se este ato afetou uma expectativa fundada nos direitos da personalidade, ou seja, se houve um dano moral. A informação de que a parte chorou não integra um argumento válido do ponto de vista interno ao sistema jurídico porque não pode ser entendida em termos de direito/não-direito (nem imediatamente como através da abstrata distinção entre lícito e ilícito, em poucas palavras, não se constitui “[programa diz respeito] [`]as ações mediante as condições que devem supor ou as conseqüências que se devam alcançar, ou ambas as coisas. Paralelamente, se podem distinguir os programas condicionais dos programas finais. Por meio destas reduções – não somente de ações gerais, senão de ações determinadas, ou ações que podem determinar-se como corretas – a diferença entre sistema e meio adquire uma forma ‘operável’ para o sistema” (LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. Tradução de Silvia Pappe y Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos, 1998, p. 195). 28 Cf. LUHMANN, Niklas. Le droit comme système social. Paris: Droit et Société – Revue Internationale de Theorie du Droit et de Sociologie Juridique, nº 11/12, 1989, p. 58. 29 Todos os subsistemas sociais constituem-se, segundo Luhmann, através da adoção de um processo de redução da complexidade. Tome por exemplo, um contrato, que é uma acoplagem estrutural do sistema jurídico com o sistema econômico: o contrato é um ato econômico, mas do ponto de vista jurídico, a compra e venda é regida por pressupostos e requisitos de validade. O direito visualiza a relação contratual como sendo meramente jurídica, separando os interesses, num primeiro momento, de fundo econômico. No entanto, para players do mercado importa mais as conseqüências econômicas que poderão advir dele. 27 como um fato jurídico). O tema é definido dentro de seus limites por meio de regras de seleção cujos temas podem ser aceitos ou rejeitados, este trabalho é feito por meio do código do sistema. Com a adoção de um código, o sistema fecha-se operacionalmente.30 O código do sistema jurídico é que possibilita o sistema criar seus limites de atuação, além de especificar sua função, que consiste em estabilizar as expectativas de comportamento.31 O código do sistema é o que fornece sentido à comunicação. A comunicação jurídica, expressa através do ato jurídico, cria a unidade do sistema, em outras palavras, possibilita que o sistema se organize, mas não só se organize, senão que se auto-organize tendo em vista que uma comunicação segue a outra de forma recursiva.32 A interação dos elementos do sistema através de um código, que ao mesmo tempo delimita e participa da organização, permite ao sistema criar para si um espaço de observação própria da realidade. Semelhante ao que ocorre com os sistemas psíquicos, os (sub)sistemas sociais – aqui incluído o sistema jurídico – constroem sua realidade. O código jurídico permite que o direito venha a criar sua identidade, que por si não é simplesmente criadas por essa distinção. Trata-se de uma condição sine qua non para que o sistema jurídico consiga separar o jurídico do não-jurídico. A positividade do direito33 emerge como uma real possibilidade de autodeterminação de suas próprias operações sem interferência direta de outros códigos funcionais como o da política (poder-não-poder), da economia (ter/não-ter, lucro/prejuízo), dos vínculos afetivos (amizade/inimizade). O afastamento dessas interferências constitui a passagem outrora narrada por Weber como característica do direito moderno, baseado numa abstração de Segundo Luhmann, tudo o que penetra no interior do sistema jurídico, em suas comunicações, deve ser considerado como legal ou ilegal e aquilo que não se conforma a esta codificação compete apenas ao direito como uma questão prévia ao êxito do que se refere como legal ou ilegal (LUHMANN, 1989, p. 57). 31 “A primeira função do código é permitir a diferenciação do sistema com relação à missão específica do direito. A segunda é assegurar a reprodução autopoiética do sistema, quer dizer, a clausura da coerência na reprodução. Ele permite estabelecer todo o tratamento das expectativas normativas sob o ângulo dominante de saber se ele é compatível ou não com o tratamento das expectativas realizadas até aqui” (Id., Ibid., p. 58). 30 A comunicação permite criar a idéia temporal, pois se me refiro a um ato passado ou a uma comunicação passada, atualizando-a como referência, no qual essas comunicações/ações servem como parâmetro para enquadrar uma comunicação/ação presente, eu posso predizer, com certo grau de segurança, o que se pode esperar no futuro, principalmente no que se refere as comunicações jurídicas (atos jurídicos – processuais/materiais). 33 Positividade, nesse sentido, quer dizer a capacidade do sistema jurídico de se afirmar perante o meio ou de re-afirmar uma conseqüência para uma expectativa normativa violada por um comportamento fático. 32 uma diferenciação funcional, em detrimento das sociedades pré-modernas em que se delimitava o direito em virtude da diferenciação por segmentos sociais. Se o fato de dispor exclusivamente do código-diferença ‘lícito/ilícito’ conduz ao fechamento operacional, a escolha entre lícito e ilícito é condicionada pelo ambiente. Por outro lado, a autodeterminação do direito fundamenta-se na distinção entre expectativas normativas e cognitivas, que só se tornou clara a partir da codificação binária da diferença entre lícito e ilícito exclusivamente pelo sistema jurídico. Com base na distinção entre normativo e cognitivo, o fechamento operativo do sistema jurídico é assegurado e simultaneamente compatibilizado com sua abertura ao meio.34 O sistema jurídico é um subsistema que tem por função reduzir a complexidade, mas como sistema possui elementos que o tornam autônomo em relação às demais esferas (subsistemas) comunicativas da sociedade. Por isso, o código funcional feche o sistema operacionalmente, na medida que permite que ele mesmo crie suas estruturas, as modifique, e dite os limites de sua aplicação. É porntanto um sistema autopoiético. Autopoiesis define-se como reprodução recursiva de um dado sistema a partir de suas próprias estruturas. Um sistema auto-reprodutivo define, por si, os limites de sua própria mudança estrutural a partir de sua organização, em que as pressões externas funcionam apenas como elementos “modeladores” das mudanças internas. O termo autopoiesis foi criado pelos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela que, no campo da biologia e da neuro-psicologia tentaram responder a seguinte indagação: como se pode definir um ser vivo? O que define a vida? Para responder a uma questão complexa como esta, quanto maior o número de características, maior poderá ser o número de exceções que comporta cada item, por isso devia partir de uma idéia simples, “muito simples e potencialmente complicada”.35 A organização36 é a primeira chave para esta compreensão, e Maturana a define como uma “relação entre componentes que definem a identidade de classes de um sistema”,37 34 NEVES, 2007, p. 135-136. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A Árvore do Conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 50. 36 “Entende-se por organização as relações que devem ocorrer entre os componentes de algo, para que seja possível reconhecê-lo como membro de uma classe específica” (Idem, p. 54). 37 MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização e tradução de Cristina Magro e Victo Paredes. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 76. 35 quer dizer com isso que organização pressupõe uma relação entre elementos que por si criam uma identidade. Organização, portanto, cria identidade. A estrutura38 de algo, pelo contrário, é definida pela relação dos componentes entre si de forma particular. Assim, uma mesa, para ser mesa, precisa preencher alguns requisitos como ter uma superfície plana, algum suporte, tudo isso com certa relação de dimensão. Quando alguém corta um pedaço dessa mesa, ela não deixa de ser mesa, mas sua estrutura foi alterada, este pedaço de madeira arrancado tem uma relação particular com a mesa como um todo. Agora, se esta mesa é serrada ao meio, já não há mais mesa, pois a organização foi afetada. Quando falamos em seres vivos, estamos atribuindo a eles algo que os define como uma classe. Então, qual é a organização que define os seres vivos como classe? Para Maturana e Varela, o que define os seres vivos é a característica de produzirem de forma contínua a si próprios, e essa forma de organização é chamada autopoiética. Os componentes moleculares de uma unidade viva devem estar relacionados numa rede contínua que produz seus próprios componentes, isso ocorre em nível do metabolismo celular. Esse metabolismo produz os componentes através de matéria e energia provenientes do meio, mas a natureza do que é produzido com essa “matéria-prima” é um resultado da rede de interações própria do ser vivo. Alguns componentes formam uma fronteira, ou seja, um limite para essa transformação, essa clivagem limítrofe nos seres vivos é dada pela filtragem da membrana celular. No entanto, essa membrana não apenas dita o limite das transformações, como igualmente participa desse processo. Por isso, um ser vivo se distingue do meio em que vive porque embora por ele seja condicionado, pode afirmar-se perante o mesmo, dele se distinguindo. A autopoiesis do sistema jurídico não é da mesma natureza da dos seres vivos, mas guarda com ela uma correlação que permite fazer essa transposição: o direito, como um subsistema da sociedade, é capaz de reproduzir a si mesmo, de controlar a aplicação de seus elementos, de delimitar seu âmbito de atuação, e de permitir que o meio o influencie, por meio através de estímulos externos. Sob a perspectiva de um sistema autopoético, as mudanças, às quais o sistema jurídico está sujeito, não podem ser compreendidas como um produto direto de uma evolução social geral, senão que devemos conceber estas mudanças levando em conta um jogo freqüente de co-evoluções entre o direito e o seu meio social. “Entende-se por estrutura de algo os componentes e relações que constituem concretamente uma unidade particular e configuram sua organização” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 54). 38 Com a teoria luhmanniana, a autopoiesis deixa de ser unicamente uma teoria explicativa da vida e da percepção, para tornar-se uma teoria complexa e avançada dos sistemas sociais. A incorporação de novos conceitos para explicação permite a ele observar que os sistemas sociais não possuem capacidade de se autoproduzir, mas igualmente de auto-observar seu funcionamento (reflexividade) e de delimitar sua esfera de abrangência (reflexão). Desse modo, o sistema jurídico torna-se autônomo em relação ao meio, na medida em que não será mais o monarca, ou os nobres, ou um líder político que deterá o poder de aplicar as leis ou mesmo de criá-las à conveniência de seus interesses, senão que o sistema jurídico passa a controlar a partir de uma função (dupla)39 o seu funcionamento. Autopoiesis do sistema jurídico é sinônimo de autonomia operacional do direito sem a influência da política ou da economia, fato que implica uma dupla afirmação: a) o direito somente pode responder ao seu meio (sociedade) de forma eficiente se possui a capacidade de diferenciar sua comunicação das demais comunicações que fazem parte de seu meio, isto é, se consegue selecionar a comunicação apta a “entrar” no sistema jurídico, mas sem perder sua própria referência. Numa metáfora com a autopoiesis de primeira ordem (biológica): se os seres vivos fossem sistemas abertos, nunca se afirmariam perante o meio, mas seriam completamente mutáveis em razão dos diversos fatores que se lhe apresentam. Em outras palavras, se o direito fosse um sistema aberto ao meio, perder-se-ia nas disputas políticas, nos debates religiosos, na subserviência aos interesses econômicos e etc. A autonomia do direito é requisito para que possa responder aos demais sistemas sem que se destrua na racionalidade desses mesmos sistemas (eqüidistância, tratamento igualitário, altera pars auditur, isenção e etc., são idéias que traduzem uma necessidade funcional do sistema); b) ao mesmo tempo é preciso que o sistema esteja apto a responder e a compreender as demandas. Autopoiesis implica fechamento operacional do sistema e abertura cognitiva. Se o sistema jurídico não possuir estruturas que possibilitam a compreensão das demandas das mais diversas esferas (setores/sistemas) da sociedade, não estará apto a decidir sobre os conflitos. Um sistema jurídico em que as demandas jurídicas são decididas conforme o poder político, conforme uma lógica de mercado, conforme interesses que não podem “As comunicações jurídicas possuem uma dupla função como operações no interior do sistema jurídico: serem fatores de produção e garantia da manutenção de suas estruturas” (LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, p. 49). 39 encontrar justificativa do ponto de vista da autonomia interna do direito, é um sistema aberto e não autopoiético, pois estaria suscetível a qualquer racionalidade: poder, dinheiro, conhecimento e etc.. Chamamos, na teoria dos sistemas esse fenômeno de corrupção sistêmica. Corrupção sistêmica ocorre quando o sistema jurídico passa a decidir os conflitos não mais com base na distinção direito/não-direito, senão que trata a distinção em suas operações internas a partir de outra racionalidade (outro código funcional) como o poder/não-poder ou o ter/não ter, levando a uma alopoiesis.40 A Law and Economics que tem forte apelo nos EUA implicam, nesse sentido, um risco a racionalidade jurídica de solução dos conflitos. Segundo Luhmann, a autopoiesis define-se por uma sucessão de etapas: a autoreferência, a reflexividade e a reflexão. São, portanto, três os componentes fundamentais dessa operação: distinção da diferença, construção de uma posição que distingue o selecionado do meio e o estabelecimento de uma unidade inseparável entre essa posição e essa diferença.41 A auto-referência elementar caracteriza-se pela capacidade do sistema produzir seus próprios elementos constitutivos, separando o designado de um fundo (meio). Isso ocorre simplesmente com a adoção de um código funcional. O sistema possui a capacidade de criar normas e modificá-las, bem como, a partir delas, delimitar a esfera do agir, criando uma comunicação específica para controlar as defraudações das expectativas sociais generalizadas.42 Alo, do gr. állos, é, o 'outro, um outro; diferente; estrangeiro /estranho gr. Poíésis, 'criação; fabricação, confecção; produção. Sobre esse ponto, verifique o texto de NEVES, Marcelo. De la autopoiesis a la alopoiesis del derecho. Revista Doxa, Cuardernos de Filosofia del Derecho, No. 19, 1996, p. 403-420. Assim como, do mesmo autor: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 140 e ss. e NEVES, Marcelo. “E se faltar o décimo segundo camelo? Do direito expropriador ao direito invadido.”, in ARNAUD, André-Jean e LOPES Jr., Dalmir (org.). Niklas Luhmann: do sistema social a sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 41 Importante citar aqui a contribuição tributada por Luhmann a George Spencer Brown (Laws of form. New York, 1972): “Esse funcionamento é compreensível em sua totalidade somente se se considera uma segunda diferença. Em conexão com Spencer Borwn queremos falar de distinção (distinction) e indicação (indication), quando se trata dessa operação específica. Os resultados específicos são diferença e identidade. A distinção entre diferença e identidade será introduzida transversalmente na diferença entre atualidade e possibilidade para controlar a possibilidade na operação”. (LUHMANN, 1998, p. 82). 42 Certa correlação pode existir entre esses conceitos e o defendido pelo autor inglês Hebert Hart. No entanto, fica presso a estrutura do sistema como composto por um sistema de normas, sem destacar a influência que o próprio procedimento exerce para reduzir a expectativa das partes – neste ponto, para Luhmann, o procedimento é responsável pela redução da complexidade de expectativa das parte em relação à decisão final – não se preocupa de como as regra secundárias se inter-relacionam com a doutrina jurídica e as decisões judiciais para o fechamento (unidade) do direito. Então, para parafrasear o autor 40 Por reflexividade deve-se entender a característica criada pelo sistema de poder fazer referência a um processo, ou seja, o sistema jurídico estabelece um procedimento que é capaz de fazer referência a este próprio procedimento e não apenas às condutas (expectativas generalizadas dentro do procedimento judicial), seria uma espécie de auto-referência processual. O sistema jurídico, por si, controla o jogo de argumentos e contra-argumentos utilizados pelas partes definindo até onde uma prova pode ser apresentada, quais os prazos para os recursos, o momento correto para discutir o mérito e etc. Reflexão é o ponto chave da compreensão do conceito de autopoiesis do sistema jurídico. Esse é o momento em que o sistema jurídico cria uma identidade, pois o sistema é capaz de fazer referência ao seu próprio funcionamento ou a si mesmo e as suas operações, o que se chama na cibernética de observação de segunda ordem.43 Significa que o sistema jurídico é capaz de refletir sobre sua própria função e limites de aplicação de suas estruturas (normas) para, de forma mais eficiente, responder as demandas sociais,44 no dizer de Gunther Teubner, trata-se de delimitar as reais operações de produção das normas jurídicas concretas. Podemos igualmente chamar essa operação de autodescrição.45 A distinção entre auto-referência e hetero-referência nestes casos é o que permite a própria autopoiesis, e isto quer dizer: o sistema tem uma visão[Seitenblick] real [gleichzeitig] de como ele opera em seu meio existente e como pode orientar os efeitos de sua própria operação que nele acontecem com uma espécie de controle cibernético. Donde se pode distinguir formas altamente pretensiosas de auto-referência, sobre todas aquelas [formas] de autodescrição do sistema. Com isso, acontece a identificação do sistema como unidade e como descrição de suas peculiaridades (de seu sentido e de sua função, e etc.) mas no interior do próprio sistema. Tudo isso, precisamente como autodescrição, quando acontece como operação no sistema, acontece como uma operação dentre outras. Nós podemos chamar de reflexão esse modelo [utilizado] para o uso de textos do sistema no interior do sistema.46 inglês, o conceito de direito não pode ser fornecido pela simples união das regras primárias com as secundárias (Cf. HART, Hebert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbekian, 2005, em especial capítulo V). 43 Cf.LUHMANN, 1993, p. 532. 44 “O sentido da descrição guiada pela teoria dos sistemas localiza-se, no estabelecimento de uma relação entre a teoria do direito e a teoria da sociedade, o que implica dizer, uma reflexão teórico-social do direito.” (LUHMANN, 1993, p. 24). 45 TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução e prefácio de José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1993, p. 85-86. 46 LUHMANN, 1993, p. 53-54 [grifos do original]. Embora acabe sendo reducionista a tentativa de expor esse fechamento de um ponto de vista empírico, no âmbito do direito privado, os enunciados emitidos pelo Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal que organizou, até o presente momento, quatro jornadas que tiveram por objetivo, interpretar o código civil. Esses enunciados, construídos a partir de uma reflexão prática da aplicação da nova legislação, fornecem um limite para aplicação dos artigos e dos institutos analisados.47 No Enunciado n. 25, por exemplo, emitido pela primeira jornada afirma: “O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual”. Enquanto o Código Civil determina que a boa-fé seja observada na execução e na conclusão do contrato, a doutrina, consolidada, num consenso geral doutrinário desse enunciado, fornece uma interpretação extensiva que permite aplicar isso não só na fase anterior ao contrato, mas mesmo depois dele já ter sido executado.48 Com isso, a reflexão permite um acoplamento estrutural entre o sistema científico (ciência do direito) e a funcionalidade do sistema jurídico. A doutrina contribui para a reflexão do sistema jurídico, descrevendo os limites da aplicação de uma norma ou de como deve ser interpretado determinado conceito, mas essa relação igualmente não é direta, pois o próprio funcionamento também opera limites à aplicação da doutrina, criando-se assim uma relação circular e paradoxal. Trata-se de um círculo auto-refencial entre a teoria e a prática jurídica, ambos se irritando mutuamente.49 Aqui está o cerne da teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann. O sistema jurídico é um sistema operacionalmente fechado e cognitivamente aberto. O fundamento de validade do sistema jurídico não é fornecido por uma norma jurídica superior (hipotética transcendental), artifício utilizado por Hans Kelsen em sua teoria pura do direito, nem pela junção de regras primárias (de obrigação) com regras secundárias (de competência e/ou poder), mas pela própria constituição particular do sistema, apenas para usar uma expressão de Teubner, por um enlace hipercíclico de Esses enunciados são importantes na medida em que se incorporam nos manuais de diversos autores e são utilizados por jurista, não só para seu aprendizado, mas para fundamento de suas pretensões (seus argumentos). 48 Exemplos concretos da aplicação dessa interpretação podem ser obtidos na jurisprudência (AC n. 70022177216 do TJRS) como também no texto de AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O princípio da boa-fé objetiva nos contratos. In: Anais do Encontro Sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro. Série Cadernos do CEJ, Volume 20, 2002. Disponível em: << http://daleth.cjf.jus.br/revista/seriecadernos/vol20.pdf>>. 49 Cf. LUHMANN, 1993, p. 543-544. Igualmente GARCIA AMADO, Juan Antonio. Sobre los modos de conocer el derecho ou de cómo construir el objeto jurídico. Revista Doxa, Cuardernos de Filosofia del Derecho, n. 11, 1992, p. 193-217. 47 normas jurídicas (estruturas), os atos jurídicos – materiais e processuais (elementos) e da doutrina (identidade). O código funcional do sistema jurídico é direito/não-direito, pois ainda que num primeiro momento o sistema selecione a partir de um modelo ideal do que pode ser aceito ou não do ponto de vista das expectativas generalizadas, somente com o transcurso de um processo judicial é que as pretensões de ambas as partes são analisadas. As normas envolvidas irão justificar os argumentos apresentados pelos sujeitos da relação jurídica, sejam essas normas advindas de uma lei, de uma súmula, de uma decisão diretiva, as quais são submetidas a um procedimento juridicamente controlado, e somente então é possível obter a quaestio juris. Decerto que nesse operar de criação das normas jurídicas, as decisões dos tribunais superiores estão mais aptas a produzir uma maior adesão, ou justificação, para argumentos se comparadas com decisão de tribunais inferiores. Por isso, no centro do sistema jurídico estão os tribunais superiores, os quais exercem sobre a periferia do sistema um controle das decisões, um controle reflexivo ou uma auto-observação dos procedimentos, bem como dos limites de atuação – auto-descrição (reflexão).50 Com isso, podemos ver que o sistema jurídico realiza seu fechamento operacional pela codificação, mas mantém-se aberto às influências políticas através da Constituição, dialoga com a ciência jurídica através da utilização da doutrina, e utiliza as suas próprias decisões como fundamento argumentativo, compreende o contrato vinculandose à economia, e etc., opera dessa maneira uma intricada rede co-relacional e coevolutivas através das mais variadas formas de acoplamento. A validade do direito mistura-se com a própria legitimidade de suas decisões, quando o procedimento jurídico é respeitado. A validade somente pode ser obtida pela unidade do sistema jurídico, contemplando-o não como um sistema de normas, mas como uma unidade, isto é, a validade do sistema jurídico é fornecido pela autopoiesis do sistema, e por isso, compreende o direito não só do ponto de vista estático, mas igualmente dinâmico, não o considerando como um sistema composto por normas, mas como uma complexidade ordenada na sociedade, como um sistema comunicativo que cria, controla e fundamenta as suas decisões. A teoria dos sistemas autopoéticos na vertente luhmanniana preocupa-se em descrever o sistema jurídico tal como ele opera numa sociedade diferenciada funcionalmente, ao contrário das teorias jus-filosóficas que pressupõem determinadas Cf. LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. Revista Ajuris. Porto Alegre: Ajuris, n. 49, ano XVII, julho de 1990, p. 149-168. 50 atitudes positivas a serem assumidas, como a diferenciação entre princípios e regras ou a criação de “um novo raciocínio jurídico” para se alcançar decisões mais justas. Tratase, portanto, de uma teoria sócio-jurídica que embora tenha seu fundamento numa base teórica abstrata, com conceitos relativamente sofisticados e, por vezes, exóticos para uma linguagem jurídico-dogmática tradicional, espelham de forma realista e empírica as relações do direito com seu meio social. No dizer de Luhmann, a justiça advém quando o direito é capaz de responder a toda e qualquer demanda sem que os interesses alheios a sua racionalidade influenciem a decisão judicial, pois essa ocorre quando o direito é capaz de decidir casos iguais de forma semelhante. 3. Objetivos Sistematizar as teorias atuais sobre a concepção contratual, explicitando seus limites; Propor um novo paradigma – pela teoria dos sistemas sociais – da concepção teórica dos contratos, bem como dos novos institutos e sua influencia nesse objetivo: a função social dos contratos e a boa-fé que guia os contratantes; Fornecer aos operadores do direito uma nova perspectiva de análise para a solução de problemas sociais de modo que lhes permita uma melhor compreensão da realidade social subjacente às decisões judiciais. 4. Metodologia A pesquisa versará sob o fundamento teórico dos contratos que recentemente vem sendo desenvolvido na Teoria Geral do Direito, avaliando o instituto clássico do contrato, e a limitação de seus princípios, para então vermos como a nova concepção de contrato pode contribuir para uma aplicação do direito de forma mais justa e mais adequada aos casos concretos. Para tanto, elegemos como objeto de análise qualitativa, casos que envolvam a relação médico-paciente, pois entendermos que nestas relações existem muitas questões controversas que pode levar a uma colisão discursiva. 4.1 Estratégias de Coleta de Dados Será feito um levantamento teórico nas doutrinas nacionais e estrangeiras que versem sobre a matéria contratual. Paralelamente, realizar-se-á uma análise de casos concretos de forma qualitativa com a finalidade de se verificar os limites e a utilidade da nova forma de tratar os problemas jurídicos que envolvem o novo paradigma contratual trabalhado. O levantamento dos dados será feito pela pesquisa jurisprudencial eletrônica nos Tribunais de Justiça dos Estados e nos Tribunais Superiores. Os dados como servirão ou não para demonstrar até onde a nova concepção dos contratos supera a visão reducionista dos contratos visando uma nova forma de justiça discursiva para essas relações que contemple não apenas as demandas das partes, mas as demandas dos sistemas discursivos que o envolvem. Delimitamos a abordagem empírica, de forma a oferecer uma melhor consistência e unidade para o desenvolvimento teórico, centrando o levantamento nos julgados relativos à área médico-sanitária. Essa pesquisa embora seja eminentemente teórica, para a fundamentação de uma nova teoria contratual, a análise empírica ganha especial destaque para a verificação, ainda que hipotética, das conseqüências que eventualmente decorreriam através da superação de determinadas concepções clássicas. 4.2 Estratégias de tratamento e análise Esse projeto centra-se na análise de uma nova teoria contratual, a qual será confrontada com as concepções clássicas desenvolvidas nos manuais e na prática jurídica cotidiana. O direito comparado e a metodologia da teoria dos sistemas sociais forneceram a base para o desenvolvimento da reflexão dessa pesquisa. Os dados empíricos provenientes da análise de decisões judiciais serão confrontados com as diversas perspectivas teóricas de modo a verificar até que ponto a decisão judicial ficou alheia as nuances que envolvem os discursos de outros sistemas sociais, em especial ao discurso proveniente da ciência médica, e/ou como ele pode melhor responder a essas demandas que envolvam um contexto complexo de análise. 5. Bibliografia ARNAUD, Andre–Jean. e DULCE, M. J. F. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Trad. :Eduardo Pellew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. ABREU FILHO, José. O Negócio Jurídico e sua teoria geral. São Paulo: Saraiva, 2003. ALBALADEJO, Manuel. Derecho civil. Vol I. Introducción y parte general. Barcelona: Librería Bosch, 2002. AZEVEDO, Antônio Junqueira. O princípio da boa-fé objetiva nos contratos. In: Anais do Encontro Sobre o Projeto do Código Civil Brasileiro. Série Cadernos do CEJ, Volume 20, 2002. 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