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DIREITO DE ACESSO AO JUDICIÁRIO
Eugênio Kruschewsky
1 – O princípio constitucional da intangibilidade do acesso ao
Judiciário. Notícia. Visão jurisprudencial. Breve Histórico.
Sistematização conceitual; 2 – As condicionantes infraconstitucionais e exceção(ões) ao princípio; 3 – A solução
judiciária numa visão marginal: ópio da cidadania; 4 –
Reflexões sobre uma proposta de limitação do livre acesso ao
Poder Judiciário; 5 – Conclusões.
“O Direito (...) é profunda e inteiramente político.
Juristas e juízes não podem evitar a política no
sentido amplo da teoria política” – Ronald Dworkin
1. O princípio constitucional da intangibilidade do acesso ao Judiciário.
Notícia. Visão Jurisprudencial. Breve histórico. Sistematização conceitual.
Como
estratégia
expositiva
sempre
considerei
mais
produtivo
insinuar,
primeiramente, o tema a ser discutido, apresentando os seus elementos, nuances e
matizes para, posteriormente, sistematizar as informações numa roupagem que
pretende ser científica.
A apresentação de um tema jurídico, a par disso, impõe visitar, contrito ou
descontraidamente, os posicionamentos dos tribunais, uma vez que o direito, ao fim
e ao cabo, nada mais é do que aquilo que os juízes afirmam sê-lo.
A maior vantagem dessa postura pedagógica é criar intimidade do receptor com a
mensagem, uma intimidade mais informal, que prestigia a realidade, facilitadora da
compreensão do assunto, para somente depois introduzir a versão puramente
dogmática do tema a ser discutido. É como se estabelecesse um namoro com a
temática, que justificaria suportar as agruras – não tão dolorosas assim – de um
casamento futuro.
2
É com esse espírito que introduziremos o assunto da intangibilidade do acesso ao
Judiciário, antes de trata-lo criticamente, esperando, alfim, reconhecer na estratégia
escolhida a vantagem anunciada.
O art. 5º, XXXV, da Constituição Federal estabelece que a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, disposição
semelhantemente emoldurada nos versículos 141, §4º da Constituição de 1946, 150,
§4º, da de 1967 e 153, §4º da Emenda Constitucional nº 1/69.
Ninguém desconhece que entre as funções primordiais do Estado projeta-se a
jurisdicional. Jurisdição é função pública, que tem como escopo a aplicação do
direito objetivo, garantindo-se a segurança institucional. A jurisdição, contudo, é,
por sua natureza, inerte. Será sempre necessária a sua provocação por conduto do
exercício do direito de ação. Em linguagem figurada pode-se dizer que o direito de
ação consiste na alavanca que aciona a jurisdição e instaura o processo que, por seu
turno, pode ser imaginado, em ângulo externo, como a jurisdição em movimento.
A jurisdição afirma-se, outrossim, como poder-dever. A um só tempo, o Estado-Juiz
exerce com firmeza o poder de aplicar as leis, sufocando os conflitos intersubjetivos
de interesses, que apresentam o risco de ruptura social, bem assim é devedor da
prestação jurisdicional na medida em que reservou, para si, o monopólio da
jurisdição. Retirando da comunidade a possibilidade de exercer a “justiça pelas
próprias mãos”, a autotutela dos conflitos de interesses, passou a ostentar o dever de
substituir os conflitantes na busca da solução para a quizília, daí caracterizar-se a
jurisdição como atividade substitutiva.
Não obstante, é de saber correntio que a função de julgar não é privilégio do Poder
Judiciário. Igualmente o Executivo e o Legislativo julgam a atuação funcional dos
seus servidores através dos processos administrativos disciplinares, sem
desconsiderar o julgamento de impeachment, de memória recente na história
brasileira. Em qualquer circunstância, todavia, ao Judiciário compete a derradeira
palavra em torno do assunto apreciado pelos demais Poderes do Estado.
3
Com este panorama, o princípio da intangibilidade do acesso ao Judiciário encarna
duas idéias básicas. Em primeiro, resta impossível ao Estado-Legislador estreitar a
via de alcance da solução judiciária, por conduto da promulgação de leis que
amesquinhem o alcance de uma solução judiciária; em segundo, como contra-face
natural dessa idéia, uma vez acessado o Poder, não pode o Estado-Juiz furtar-se a
prestar a jurisdição, solucionando os conflitos que se lhe apresentam.
Nesse diapasão, modulou a voz o Supremo Tribunal Federal ao decidir a ADIN
1.074-3-DF1, pontuando que o condicionamento da admissão de ações judiciais, que
tenham por objeto discutir dívida para com o INSS (Lei 8.807/94, art. 19, caput), ao
depósito preparatório do valor do débito configura cerceamento de acesso ao
Judiciário.
Em idêntica direção, decidiu o Soldalício Máximo com brilho singular que
recomenda, antes impõe, transcrição:
“EMENTA: Constitucional. Concurso público. Julgamento sigiloso da
conduta do candidato. Inconstitcuionalidade. CF/67, art. 153, §4º. CF/88,
art. 5º XXXV.
I - Exame e avaliação de candidato com base em critérios subjetivos, como,
por exemplo, a verificação sigilosa sobre a conduta, pública e privada, do
candidato, excluindo-o do concurso sem que sejam fornecidos os motivos.
Ilegitimidade do ato, que atenta contra o princípio da inafastabilidade do
conhecimento do Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito. É que, se a
lesão é praticada com base em critérios subjetivos, ou em critérios não
revelados, fica o Judiciário impossibilitado de prestar a tutela jurisdicional,
porque não terá como verificar o acerto ou o desacerto de tais critérios. Por
via oblíqua, estaria sendo afastada da apreciação do Judiciário lesão a
direito” (RE 125556/PR. Rel. Min. Carlos Velloso. Tribunal Pleno. Decisão
27.03.922)
1
2
DJU 23.09.94, pg. 25.314 e repertório IOB, 2ª quinzena, outubro/94 nº 1/8001;
Em Jurispr., v. 1.661-03, pg. 509. RTJ, v. 141-01, pg. 299. DJ de 15.05.92, pg. 6.786;
4
Engrossando o coro da jurisprudência a propósito do tema, no mesmo clima e
compasso posicionaram-se não menos respeitáveis tribunais brasileiros:
“EMENTA: Mandado de segurança. Ato judicial. Compensação. Finsocial.
Contribuições da mesma espécie, inclusive previdenciárias. Preliminares.
Violação ao princípio do juiz natural e ao duplo grau de jurisdição.
Sucedâneo recursal. Ordem parcialmente concedida.
I – Não há violação ao duplo grau de jurisdição, mas ao contrário, legítimo
exercício de competência constitucional pela via do mandado de segurança;
é, pois, inadmissível obstar o exercício do mandado de segurança, que tem
por fim corrigir ilegitimidades ou abuso de poder (art. 5º, XXXV, da CF/88).
Matéria preliminar rejeitada.
II – Presentes o relevante fundamento e o perigo da demora, concede-se
parcialmente a ordem, apenas para possibilitar o procedimento de
compensação com as contribuições previdenciárias, por ser diversa a
pessoa jurídica.” (TRF – 3ª Região. MS 94.03.005989/SP., Rel.: Juíza Lúcia
Figueiredo, 2ª seção, decisão de 29.11.943)
“EMENTA: Mandado de segurança. Objetivo. Ato contra o qual cabe
recurso administrativo. Admissibilidade. Desnecessidade do exaurimento da
via administrativa. Art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Preliminar
rejeitada.
Nada obriga ao axaurimento efetivo da via administrativa para que se
entenda prejudicado o mandado de segurança. O que não pode ocorrer é a
utilização, ao mesmo tempo, do recurso administrativo com efeito
suspensivo e do mandado de segurança, por isso que, interposto o recurso
administrativo com efeito suspensivo, o ato deixa de ser operante e
3
DJ de 22.02.95, pg. 8.645;
5
exeqüível.” (TJSP, MS 231.990-2/São Paulo, Rel.: Des. Marrey Neto.
Decisão: 1º.02.94, 13ª Câmara Cível4)
“EMENTA – Medida Cautelar. Objetivo. Sustação de cobrança de
prestações reputadas indevidas pelo autor ao réu. Ofensa ao direito
subjetivo de ação indicado pelo Estado e garantido pela Constituição da
República. Indeferimento da inicial. Recurso Provido.
Não se pode tolher qualquer pessoa de recorrer ao Judiciário para que
apresente ação que entender competente na defesa dos seus interesses.”
(TJSP. AC 203953-2/São Paulo. Rel.: Des. Pinheiro Franco, 11ª Câmara
Cível. Decisão: 19.08.935)
Evidentemente que o monopólio jurisdicional do Estado para solver os conflitos de
interesse não é absoluto, como nada, aliás, em dogmática jurídica, mas convive
harmonicamente com soluções de autotutela admitidas pelo sistema, como se dá
com a legítima defesa e o desforço incontinenti, bem como manifestações de
autocomposição não só toleradas como estimuladas, tal qual se dá com a transação,
a renúncia e o reconhecimento.
Historicamente o princípio da intangibilidade do acesso ao Judiciário ganhou corpo
delimitado na constituição de 1946, embora sustente Pontes de Miranda, com
inegável acerto, que tal idéia estruturante já poderia ser considerada implícita no
sistema constitucional adotado em 1891.
Em verdade, consoante lição de Pinto Ferreira6 o preceito em estudo teve forma
semelhante na Constituição do Império de 1824, em seu art. 179, XII, fazendo
referência aos direitos individuais, consignando que “será mantida a independência
do Poder Judicial. Nenhuma autoridade poderá evocar as causas pendentes, sustá-las
ou fazer reviver os processos findos”.
4
JTJ/SP-LEX-153, pgs. 232/33;
JIT/SP-LEX-148, pg. 112;
6
Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, pg. 141;
5
6
Não obstante isso, adverte Celso Bastos, com o rútilo habitual, que fora em 1891
que o Brasil se filiou à tripartição de Poderes, de maneira incontroversa. Como
cediço, o sistema constitucional então implantado fora fortemente influenciado pelo
modelo americano, o que pode explicar o fato de que o Poder Judiciário, na história
brasileira, sempre fora a última instância para o debate e decisões acerca das lesões
a direito7.
O modelo francês, de seu turno, implanta uma repartição da função jurisdicional.
Algumas questões são ajuizadas perante o Poder Judiciário, enquanto outras têm de
ser levadas a um contencioso administrativo, organismo que desempenha funções
jurisdicionais sem, contudo, fazer parte das estruturas do Poder Judiciário8.
No Brasil algumas exceções históricas ao princípio do livre acesso foram
determinadas quando não vigia o Estado de Direito, episódio em que, não raro,
determinados atos de força legislativa eram excluídos da apreciação do Poder
Judiciário. Tais exceções, todavia, vigiam na medida da sobrevivência dos regimes
totalitários que as impunham, findo o qual restabelecia-se o amplo e irrestrito acesso
ao Judiciário.
A despeito disso, mesmo o contencioso administrativo a que se referia a
Constituição de 1967 nunca chegou a ser regulamentado, nem mesmo teve o
rompante de afirmar que suas decisões teriam força jurisdicional, inidôneo, pois, a
implantar no Brasil um contencioso administrativo nos moldes do sistema europeu.
Em verdade o que se implantou fora uma espécie de instância administrativa de
curso forçado, que detinha a primazia em relação ao Judiciário9.
No sistema constitucional brasileiro vigente há a possibilidade de se criar instâncias
administrativas, o que se apresenta, até, recomendável, mas não corresponderão a
caminhos obrigatórios, afirmando-se como faculdade do jurisdicionado, que poderá,
7
Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, volume 2, pgs. 170/171;
Celso Bastos, ob. cit., pg. 171;
9
Ibdem;
8
7
desde logo, acessar o Poder Judiciário, o que representará, contudo, espécie de
preclusão lógica em relação ao debate administrativo, que se presume abdicado.
Fornecidas as notícias a respeito do princípio e sua operacionalização, com
passagem por seu desenvolvimento histórico, cumpre procurar sistematizá-lo
dogmaticamente, o fazendo com o auxílio imprescindível dos doutos.
No magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em sendo o princípio da
legalidade a base do Estado de Direito, a inafastabilidade da apreciação pelo Poder
Judiciário de lesão ou ameaça a direito é a sua própria garantia. A importância
prática do preceito está em vedar sejam determinadas matérias, a qualquer pretexto,
sonegadas aos tribunais, o que ensejaria o arbítrio. O crivo imparcial do Judiciário,
assim, pode perpassar por todas as decisões da Administração, contrariando a
possível preponderância de governantes e burocratas10.
Na retina do festejado autor, contudo, houve excessos no estabelecimento da
garantia, pois prevendo que cabe o controle judicial ocorrendo mera ameaça à
direito individual, a Constituição está implicitamente autorizando ao Poder
Judiciário interferir em atos da órbita administrativa, como inquéritos e
assemelhados.
Michel Temer contribui para o enriquecimento da apreciação do tema ao enfocá-lo
por um ângulo original, asseverando que a preservação da ordem social pela
inexistência de conflitos entre seres personalizados é a determinação máxima da
ordem constitucional jurídica. Por isto que, quanto antes se der solução a eventuais
controvérsias, maior estabilidade ganhará a ordem social. Quando o interessado
deixa de lado a via administrativa para, imediatamente, buscar o Judiciário está, na
verdade, buscando a solução definitiva do litígio e a conseqüente pacificação da
vida social11.
Comentários, volume 1, pg. 55, citado em ‘A Constituição na Visão dos Tribunais’, Saraiva, publicação do
Gabinete de Revista do Tribunal Regional Federal da 1º Região, vol. 01, pg. 72;
11
Elementos de Direito Constitucional, 10ª edição, revista e ampliada, 2ª tiragem, São Paulo, Malheiros,
1994, pg. 192;
10
8
O nunca assaz festejado J. J. Gomes Canotilho disseca o princípio da garantia da
via judiciária para dividir o seu alcance em sub-princípios que batizou de tópicos, id
est, o da imposição jurídico-constitucional ao legislador, o da função organizatóriomaterial, o da garantia de proteção jurídica, da garantia de um processo judicial, da
criação de um direito subjetivo público, da proteção jurídica ou da
constitucionalidade e da responsabilidade do Estado ou da compensação de
prejuízos12.
Destacando os tópicos elencados, afirma ser verdadeiramente fundamental no
princípio da abertura da via judiciária a sua conexão com a defesa dos direitos,
reforçando o princípio da efetividade dos direitos fundamentais, proibindo a sua
inexecução ou ineficácia por falta de meios judiciais. Tal efetiva proteção jurídica,
implicaria, segundo o mestre lusitano, um controle das questões de fato e das
questões de direito suscitadas no processo, de forma a possibilitar uma decisão
material do litígio feita por um juiz em termos juridicamente vinculantes13.
O amplo acesso ao Poder Judiciário no Brasil traz, sem dúvidas, benefícios
relevantes – malgrado o excesso de sua previsão, como se verá adiante -, isto
porque, embora o direito represente, fundamentalmente, um instrumento de
manutenção do poder, pois, ao solver os conflitos de interesses mantém as coisas no
estado em que se encontram, coibindo a fissura social, só o direito, a despeito disso,
coíbe o arbítrio, protege uma parte da dignidade pessoal e social que se afirma
inegociável.
E o comando constitucional ora estudado dirige-se, fundamentalmente ao legislador,
que encarna o mais criativo dentre os Poderes transferidos ao Estado, capaz de
regular a conduta humana, atividade, todavia, que estará sempre sujeita ao controle
de um poder revisor, cujo acesso se garante.
2 – As condicionantes infra-constitucionais e supostas exceções ao princípio.
12
13
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 4ª edição, pgs. 273 a 276;
ob. cit., pg. 274;
9
Se verdadeiro que o sistema constitucional brasileiro consagrou com amplitude o
alcance da via judicial, nem por isso absteve-se de regular o seu exercício,
estabelecendo condições e pressupostos que cumpre sejam observados para que se
possa viabilizar a análise da pretensão submetida a juízo.
Assim é que, primeiramente, exige-se atendidos os chamados pressupostos
processuais, os quais, em síntese apertada, podem ser divididos em positivos e
negativos, adotando-se a classificação encarecida por Arruda Alvim14.
Os pressupostos processuais positivos são aqueles que reclamam presença para que
se garanta a existência de uma relação processual ou, na melhor das hipóteses, uma
relação processual válida.
Os pressupostos positivos dividem-se, assim, em de existência ou constituição e de
validade ou de desenvolvimento válido e regular do processo. As ausências dos
primeiros comprometem mesmo a efetiva verificação da relação processual, ao
passo que os segundos garantem a aptidão da relação jurídica processual produzir
efeitos reconhecidos pelo sistema.
Os pressupostos processuais de existência são a provocação da parte, uma vez que
o princípio da inércia da jurisdição não tolera a espontaneidade do magistrado na
deflagração da relação processual, sob pena de grave comprometimento de sua
imparcialidade, a jurisdição, posto que para que a provocação produza efeito
precisa ser dirigida a um órgão investido do poder de julgar, a existência de
citação, pois para que processo haja, necessário será que se dê ao réu a
oportunidade de compô-lo e a capacidade postulatória, que consiste na
imperiosidade dos protagonistas do litígio se fazerem representar por advogados
regularmente inscritos na Ordem dos Advogados.
Já os pressupostos processuais de validade afirmam-se como a petição inicial apta,
ou seja, que não possa ser legalmente caracterizada como inepta, não enquadrável
10
em uma das hipóteses do art. 295, §único, do CPC, uma provocação qualificada,
enfim, um juízo competente e um juiz imparcial, posto que a eqüidistância e
isenção do julgador consiste no mais relevante ingrediente de um processo judicial
regular e a capacidade processual, cuja noção se inspira no conceito de capacidade
civil, para considerar idôneo a protagonizar o processo aquele igualmente idôneo a
praticar os atos da vida civil, ressalvadas as chamadas pessoas formais – espólio,
massa falida – que não ostentam personalidade jurídica, mas detém capacidade
processual.
Ao lado dos pressupostos processuais positivos, destacam-se, como visto, os
negativos, aqueles cuja ausência se reclama para que o processo possa desenvolverse com validade. São a perempção, a litispendência e a coisa julgada.
Ao lado dos pressupostos processuais, existem condições que precisam ser
observadas para que o direito de ação reste reconhecido, tais quais a legitimidade
de parte, a capacidade específica para compor uma lide em particular, a
possibilidade jurídica do pedido e o interesse processual.
A despeito da digressão aprofundada acerca das condições da ação e pressupostos
processuais não se afigurar oportuna no presente trabalho, impende asseverar que
correspondem a exigências condicionantes do livre acesso ao Poder Judiciário. Em
outras palavras, malgrado o acesso remanesça livre, o mérito, a pretensão deduzida
em juízo, o bem da vida almejado não será objeto de deliberação da autoridade
constituída, salvo se a iniciativa reste corretamente operacionalizada.
Ao lado dos condicionantes do correto acesso, a doutrina nacional destaca as
supostas exceções ao princípio da inafastabilidade do controle do Judiciário, citando
o julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, que se dá
no âmbito do Congresso Nacional, bem assim os atos administrativos meramente
discricionários.
14
Manual de Direito Processual Civil, Revista dos Tribunais, 5ª edição, pg. 434 e ss.
11
Não correspondem, propriamente, a exceções ao princípio da intangibilidade do
acesso ao Judiciário, uma vez que são os méritos do julgamento ou dos atos que se
afirmam insindicáveis, mas a legalidade destes, que passa igualmente por uma
noção de competência e alcance de finalidade, pode ser objeto de apreciação
jurisdicional.
Uma outra exceção que se costuma sublinhar é a representada pelo juízo arbitral.
A subscrição de cláusula compromissória ou de compromisso arbitral implica na
opção dos contratantes para que determinado conflito de interesses seja solucionado
por um árbitro, escolhido pelos pactuantes, que poderá julgar de acordo com o
Direito ou à luz das normas de eqüidade. O mérito das decisões arbitrais não poderá
ser revisado pelo Poder Judiciário, ou seja, são estas judicialmente irrecorríveis.
Tal sistema apresenta, de fato, inúmeras vantagens: o julgador será alguém que
inspire confiança e respeito às partes, o processo é muitas vezes mais informal e, por
isso, menos oneroso e acentuadamente mais célere.
De toda sorte, a execução de tais decisões haverá de ser feita pelo Poder Judiciário,
uma vez que somente ao Estado-Juiz cabe manejar a violência institucional, bem
assim a sentença arbitral pode ser tisnada por nulidade, nas hipóteses do art. 32 da
Lei 9.307/96, a ser por igual reconhecida pelo Poder Judiciário.
A par disso, nem todos os direitos podem ser dirimidos por conduto do juízo
arbitral, mas somente os relativos a direitos patrimoniais disponíveis, tal qual se lê
no art. 1º, da Lei 9.307/96.
Assim é que, percebe-se, com clareza solar, que embora o juízo arbitral crie uma
seara apartada e autônoma de apreciação dos conflitos de interesses, as suas decisão
não estão absolutamente imunes a um controle judicial, e mesmo que não se afirme
a hipótese de nulidade, a necessidade de uma execução em sede jurisdicional
contamina a eficácia e a celeridade de todo o processo, uma vez que a nenhum
operador do direito é dado desconhecer as agruras e dificuldades de um processo de
12
execução judicial no foro brasileiro, bastas vezes mais demorado do que o próprio
processo de conhecimento.
3 – A solução judiciária numa visão marginal: ópio da cidadania.
Este é um capítulo particularmente importante do presente trabalho, porque
abordará idéias que, quiçá, não estejam sequer amadurecidas no espírito do
Signatário, mas são registradas como um desabafo de descontentamento com o
rumo que o direito brasileiro tem trilhado nos dias que correm, vendido como
panacéia para todos os males sociais.
Como já tive oportunidade de afirmar15, inspirado nas aulas inolvidáveis do Prof.
Calmon de Passos, o Direito, numa visão macro-sistêmica, é uma técnica/ciência a
serviço de um ideal de dominação social, e não de justiça como ingenuamente
proclamado.
É a solução que a organização social encontrou para lidar com a sua permanente
escassez, que ensejam insatisfações, que geram conflitos, que precisam de regras
pré-determinadas e impositivas para serem resolvidos, conferindo-se o mínimo de
segurança institucional à vida e paz à convivência social.
De toda sorte, os conflitos de interesses são o estorvo social, é o que a vida
organizada não deseja, não tolera.
Assim sendo, para garantir o mínimo de segurança nas relações entre os homens,
para salvaguardar a paz social é que se estabelecem regras de observância
compulsória, em face das quais se prevê sanção em caso de descumprimento, e a
ciência que estuda ou a técnica que aplica esse conjunto de regras chama-se Direito.
Artigo intitulado como “O Conteúdo Econômico do Jurídico”, Revista da OAB-BA, vol. I, julho de 2002,
pg. 37 e ss., publicação organizada por Mariana Matos de Oliveira;
15
13
De logo se vê que o Direito é um importantíssimo fator de dominação políticasocial, porque legitima a violência aplicada na solução dos conflitos de interesses, e
na medida que os soluciona é responsável pela manutenção das coisas no estado em
que se encontram, posto aplaque as turbulências sociais.
Por isso, é preciso evitar vincular direito à Justiça, sob pena de se estar realizando
verdadeira manipulação ideológica. Isto porque, bem pensado e refletido, a justiça é
a antítese do direito, a sua negação. Se os homens vivessem em uma sociedade
plenamente justa, a primeira coisa a prescindir seria o direito. Nas comunidades
igualitárias o direito é uma ciência de menor relevo e expressão. Não por outra
razão é que essas agremiações dificilmente geram grandes juristas.
Difícil conhecer, verbi gratia, um grande jurista escandinavo, enquanto no Brasil
existem em exponencial quantidade. A antiga Roma, de seu turno e para ilustrar, na
qual fermentava uma sociedade tremendamente desigual, escravocrata, sectarista,
destituída de mobilidade social, consistiu no canteiro onde o direito encontrou as
melhores condições para medrar.
Assim é que, na esteira do rutilante pensamento do impertérrito Calmon de Passos,
não é demasiado asseverar que a única justiça capaz de ser realizada pelo direito é
aquela que ele já realiza. E toda opção jurídica pressupõe, necessariamente, uma
opção política, ditada, sobretudo a partir do surgimento do capitalismo, por
variáveis econômicas.
Dito isso, não posso deixar de criticar esse sentimento que contamina o pensamento
jurídico nacional, que está presente nas universidades e que tem guiado as reformas
legislativas, de que o Poder Judiciário, dotado de prepostos (juízes) com poderes
cada vez mais concentrados e menos controlados, com acesso cada vez mais
facilitado, apresenta-se como alternativa respeitável e viável para implementar
reformas sociais, proteger os oprimidos e transformar a sociedade. Somente não
classifico tal postura como de um otimismo panglossiano porque desconfio de sua
boa-fé, imaginando tratar-se de uma manobra adrede arquitetada, refletida, com
objetivos claros de controle ideológico.
14
A mudança política não se viabiliza através do Judiciário, por mais acessível que
este seja. O papel de tal Poder é meramente confirmador, não reformador.
Não há exemplo histórico de mudança político-social através do Judiciário. Se na
Roma antiga o pretor era curador do direito, somente um patrício poderia ser pretor,
e, a par disso, tinha o mandato de um ano, após o qual seria julgado pelo Senado, e
se tivesse traído as causas do patriciado podia ser morto, ou pior, banido de Roma e
entregue à barbárie.
A primeira providência que a revolução francesa adotou, verbi gratia, foi a
submissão dos juízes ao Ministério da Justiça, facultando a sua demissão, posto
representavam o poder da nobreza destituída, o poder conservador.
A venda da idéia de que as reformas do Judiciário, a performance do Ministério
Público, o acesso facilitado à Justiça, o “magistrado de bairro” sediado nos juizados
especiais, contribuem para a implementação da justiça social atende a uma manobra
de despistamento da cidadania, afastando o cidadão do verdadeiro motor de
mudanças sociais: o processo político.
Os operadores do direito não resistem à concepção tentadora – e aqui também faço
uma autocrítica – de que se consubstanciam em uma casta de privilegiados, de
homens puros, reunidos por um critério meritocrático, capazes de mudar o mundo, e
incentivam nos jurisdicionados, nos alunos das universidades, nos “hiposuficientes”,
nos detentores dos tais direitos coletivos, difusos, a noção de que nenhuma mudança
se legitimará senão passando pelo Judiciário, quando não há poder mais impeditivo
de efetiva mudança do que o Judiciário.
Trata-se de um projeto ardiloso e sagaz de manutenção do status quo.
Assim é que, se de um lado a casta dos puros fomenta o seu delírio coletivo, a um
só tempo descredencia o processo político. Hoje somente com dificuldade se
encontra um jovem universitário de Direito que se proponha a seguir um projeto
15
político partidário. As verdadeiras vocações políticas estão sufocadas, abandonadas
por um sonho distante e quimérico de mudança social e equanimidade
implementável pelo Poder Judiciário.
Evidente que tal idéia – à margem do entendimento dominante, por isso marginal não encontra, aqui, espaço para ser debatida com profundidade, nem o Signatário
afirma-se como a pessoa mais indicada para aperfeiçoá-la e protegê-la, mas está
convencido de que ganha corpo e prejudica a formação da cidadania desejada, a
qual haveria de impor-se naturalmente, muitas vezes prescindindo da solução
judiciária.
Não remanescem dúvidas, outrossim, que o lastro primeiro de tal concepção
transformadora detida pelo Poder Judiciário é a de que este pode ser facilmente
acessado, que o seu alcance deva ser amplamente permitido e a sua procura
estimulada, quando precisamente o inverso é que deveria ser fomentado.
4 – Reflexões sobre uma proposta de limitação do livre acesso ao Poder
Judiciário.
Uma sociedade com níveis acentuados de organização costuma ter baixos índices de
beligerância, recorrendo ao Poder Judiciário como derradeira alternativa, porque
encontra, no próprio corpo social, fórmulas para solucionar os conflitos de
interesses.
Normalmente, o acesso à Justiça é limitado ou, quando franco, é de tal modo caro
que incentiva a autocomposição.
Um primeiro passo que pode ser dado, pois, na direção de uma mudança de
mentalidade, que valorize o esforço persuasivo da efetiva composição, em
detrimento da alternativa fácil do embate, seria preparar os profissionais de Direito
para tal tarefa.
16
Com efeito, nas faculdades de Direito não se costuma valorizar o esforço persuasivo
que viabilize a transação, nem tampouco é habitual ensinar que, neste mundo de
intolerância absoluta, uma composição afirma-se como vitória para os advogados,
que viabilizaram, com sabedoria, uma solução rápida e pouco onerosa para o
problema que se lhes apresentava.
Em verdade, na mór parte das faculdades de direito são preparados “guerreiros” da
prática jurídica, operadores prontos a patrocinar o mais ferrenho e inconseqüente
confronto, mas absolutamente inábeis a viabilizar uma solução suasória. O
profissional, aliás, que teima em vislumbrar uma saída autocompositiva é, não raro,
desvalorizado pelos colegas, que interpretam a tentativa de cumprimento de um
papel social como demonstrador de fraqueza.
Necessário, pois, conferir-se maior relevo ao ensino de técnicas compositivas, nas
universidades brasileiras.
Uma outra alternativa que tenta enxugar a pesada e anacrônica maquina judicial,
limitando o seu acesso para o bem da coletividade, seria a de desjurisdicionalizar
algumas hipóteses de jurisdição voluntária. Nestas se confere uma administração
pública, bastas vezes desnecessária, de interesses privados.
Em face disso, nos casos de jurisdição voluntária em que não houvesse,
efetivamente, conflitos de interesses, mas confluência, como se daria, verbi gratia,
com a separação consensual, com o registro de testamento público, com o inventário
que não envolvesse direito dos menores nem discordância entre os herdeiros, melhor
seria conferir ao assunto um tratamento notarial, ou seja, transformava-se a solução
encontrada em escritura pública, que, antes de registrada, passaria por um juízo de
legalidade de representantes do ministério público. A dissensão quanto à aceitação
da providência pelo sistema jurídico, abordada no parecer do parquet, remeteria a
análise do tema para o Poder Judiciário, no molde em que se dá, hodiernamente,
com a suscitação de dúvida pelo oficial de registros públicos.
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Nesse passo de estreitamento da via judiciária, com vantagens para o corpo social,
porque estimula o alcance da solução pelos próprios interessados, contribuindo para
a formação da cidadania, para a compreensão do papel construtivo que todos devem
protagonizar, projeta-se, ainda, a possibilidade de se conceber um juízo arbitral
compulsório para a aplicação das normas não cogentes.
De há muito, como cediço, já ruiu a utilidade da classificação do Direito em público
e privado16, ao menos em sua leitura original, havendo, pois, de distinguir, apenas,
aquelas normas cujo cumprimento encarece à comunidade em geral, daquelas cujos
efeitos não se projetam senão na esfera daqueles particularmente interessados.
Dessa avaliação dimanam as normas cogentes e não cogentes.
As normas não cogentes, em regra, dizem respeito a interesses patrimoniais
privados, ressalvados aqueles decorrentes das relações de direito de família. A
apreciação dos conflitos instalados neste terreno poderia ser compulsoriamente
reservada ao juízo arbitral, à justiça privada, que decerto melhor se aparelharia para
a atividade, sem prejuízo do acesso à justiça pública em caso de nulidade da
sentença arbitral, nas mesmas hipóteses atualmente previstas, que poderiam ser, até,
ampliadas.
Tais reflexões, não se nega, além de assistemáticas, posicionam-se como contratendência em relação ao predominante pensamento jurídico brasileiro, que mais a
mais enaltece o amplo acesso à via judiciária e o papel transformador do
magistrado, de criador da norma aplicável à espécie. Não por outro motivo é que a
postura aqui ostentada foi batizada como marginal, por situar-se à margem da
discussão central hoje vigorante.
Em sendo marginal e minoritária não pode acalentar apoio nem pretender adesão,
mesmo porque não esgota o assunto, nem soluciona o problema, mas a iniciativa
emoldurada no presente artigo deseja, apenas, fornecer elementos idôneos a inspirar
dúvidas sérias nas verdades absolutas alardeadas pelo pensamento jurídico nacional.
Vide artigos da Parte I, da coletânea “A Reconstrução do Direito Privado”, Revista dos Tribunais, 2002,
obra coordenada por Judith Martins-Costa;
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Se inspirar o debate, semear a saudável dissensão, e permitir a reflexão em torno do
aperfeiçoamento do papel do princípio do amplo alcance da via judiciária, o
presente trabalho terá alcançado o seu, ainda assim, ambicioso propósito.
5 – Conclusões.
Todo pensamento crítico tem que abrigar conclusões, que são os resultados
sistematizados da reflexão, que assim dispostos melhor se submetem à censura do
receptor da mensagem.
De tudo quanto meditado conclui-se:
1 – O princípio da inafastabilidade do controle judicial apresenta estatura
constitucional e conta, de há muito, com a reverência do pensamento jurídico
nacional, que reconhece vantagens no seu alargamento;
2 – O indigitado princípio, todavia, sofre condicionamentos infra-constitucionais e,
em poucas circunstâncias, pode ser entendido como excepcionado;
3 – O Direito consiste em instrumento servil de um projeto de dominação social e
manutenção do status quo. Não existe exemplo histórico de transformação social
capitaneada pelo Poder Judiciário;
4 – O princípio do livre acesso ao Judiciário atende e compõe o projeto maior de
dominação social albergado pelo Direito, consistindo em eficiente manobra de
despistamento da cidadania para a alternativa verdadeiramente eficaz de
transformação: o processo político;
5 – Pode ser socialmente útil limitar o livre alcance da via judiciária a fim de criar
mecanismos de solução de conflitos que emanem do próprio corpo social,
contribuindo com a construção de uma cidadania realizadora.
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