APOSTILA DE DIREITO CONSTITUCIONAL TEMA: DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: HISTÓRICO, CONCEITO E EXTENSÃO Material de apoio para a disciplina “Direitos Humanos” – LEITURA COMPLEMENTAR Elaborado por : Denis Domingues Hermida SUMÁRIO I- Introdução ...................................................................................................2 II - Conceito e histórico dos direitos fundamentais.........................................4 III - Conceito e histórico de direitos e garantias individuais.........................23 IV - Os direitos e garantias individuais consagrados na Constituição de 1988 e sua extensão......................................................................................................29 V - Conceito de cláusula pétrea.....................................................................112 VI- Interpretação do parágrafo 4o do artigo 60 da Constituição de 1988...135 VII – Conclusão.................................................................................................195 VIII – Bibliografia.............................................................................................198 1 I – INTRODUÇÃO Os direitos e garantias individuais estão abrigados dentro da categoria dos direitos fundamentais do homem, em razão de sua essencialidade. O trabalho que ora se apresenta procura desenvolver um estudo específico sobre essa espécie de direito fundamental, destacando principalmente o tratamento diferenciado que a Constituição Federal destinou a esses direitos. Buscando atingir os objetivos propostos pelo trabalho, primeiramente se realizou um estudo histórico dos direitos e garantias individuais, destacando inclusive a evolução dos próprios direitos fundamentais. Num segundo momento, se procurou formular um conceito de direito individual, verificando o que a doutrina brasileira compreende por tal termo. Para tanto, fez-se necessário abordar não apenas o conceito de direito individual, mas também distinguí-lo dos direitos coletivos e dos direitos sociais, não objeto do presente estudo. Também se procedeu à diferenciação entre os termos direitos e garantias, demonstrando a íntima conexão que existe entre eles. Cumpridas tais etapas, se analisou os direitos e garantias individuais consagrados na Constituição Federal, identificando seu conteúdo, as questões problemáticas implicadas em cada um deles e ainda a extensão de tais direitos e garantias. Embora se tenha procurado fazer uma abordagem ampla, estudando os inúmeros direitos fundamentais dessa espécie, certamente restaram alguns que não foram abordados, até em razão da dificuldade de sua identificação no corpo constitucional. Por fim, se desenvolveu um estudo das cláusulas pétreas com o intuito de demonstrar qual a interpretação mais adequada do artigo 60, §4º da Constituição Federal. Neste mesmo contexto, se analisou qual o tratamento destinado aos direitos e garantias individuais, considerando que a Lei Maior expressamente os elevou à categoria de cláusulas pétreas. Verificou-se também a possibilidade de se considerar outros direitos fundamentais, além dos direitos individuais, cláusulas pétreas. 2 II - HISTÓRICO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 1. A denominação direitos e garantias fundamentais Antes de adentrarmos no estudo dos direitos e garantias individuais é de suma importância estudarmos os direitos fundamentais dos seres humanos, uma vez que, já adiantamos, direitos individuais são espécies daqueles. Para tanto, vamos abeberar nos ensinamentos do professor Vidal Serrano Nunes Junior, cujo trabalho serviu de base para as definições que seguem. É importante salientar que esta categoria jurídica tem diversas expressões terminológicas, como Liberdades Públicas, Direitos do Homem, Direitos Humanos, Direitos Públicos Subjetivos. A expressão Liberdades Públicas é muito restrita, pois traduz apenas a essência dos direitos individuais ou civis. É a preservação da liberdade do indivíduo frente a possíveis atos de prepotência do Poder Público. É direito de resistência. É utilizado pela doutrina francesa, em especial. A denominação Direitos do Homem ou Humanos indica predicados inerentes à natureza humana enquanto tal, independente de um sistema jurídico específico, é de dimensão congênita e universalista. Vem antes da existência do direito positivado. J.J Gomes Canotilho, p.529, assim nos ensina: «As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jurisnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem,jurídico-institucionalmente garantidos espácio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica.» Os Direitos Públicos Subjetivos limitam suas abrangências às relações estabelecidas entre os indivíduos e o Poder Público, deixando de agregar em seu significado os deveres coletivos ou o propósito de limitação do poder econômico. Já a denominação Direitos Fundamentais traduz o acúmulo evolutivo dos níveis de alforria dos seres humanos e os coloca inerentes à condição humana e são passíveis de reivindicação judicial . 1.2.- Classificação e conceito dos direitos fundamentais Os Direitos Fundamentais são vocacionados para a proteção da dignidade humana em todas as suas dimensões. São de natureza poliédrica e prestam-se ao resguardo da liberdade 3 (direitos e garantias individuais); necessidades (direitos econômicos, sociais e culturais); preservação (direitos à fraternidade e à solidariedade). Os Direitos Fundamentais são frutos da evolução econômica e social em simultaneidade com a evolução das relações jurídicas da humanidade. Não surgem das mãos dos legisladores, mas por estes foram reconhecidos e positivados, inclusive nas Constituições. 1.2.1. Classificação Os Direitos Fundamentais podem ser abordados sob diversos enfoques, resultando, assim,em muitas classificações: a) conteudística ; b) jurídico positivo ; c) evolutivo cumulativo 1.2.1.1. Enfoque Conteudística Por este enfoque, os Direitos Fundamentais são classificados conforme os valores específicos que estão destinados a proteger: proteção da dignidade humana em todas as suas dimensões é o valor genérico que deseja proteger. As diversas dimensões são segmentadas segundo os valores específicos que venham contemplar e mesmo distintos entre si permanecem ligados pela finalidade que os une. São três as dimensões conteudísticas: a) direitos fundamentais protetivos da liberdade, os quais tem por finalidade limitar a atuação estatal em relação às liberdades individuais; é direito de resistência; b) direitos protetivos dos indivíduos diante das necessidades materiais, ao contrário do item anterior, neste caso o indivíduo tem direito a ações compensatórias do Estado, cuja finalidade é a diminuição das desigualdades econômicas, sociais e culturais; c) direitos protetivos da preservação do ser humano ou de solidariedade, que é o direito à paz, ao desenvolvimento, à comunicação social. 1.2.1.2. O enfoque jurídico positivo São os Direitos Fundamentais que estão expressamente indicados no plano do direito positivado. A nossa Constituição reuniu num mesmo capítulo direitos de natureza diversa. Assim, não adotou corte metodológico, mas positivou os diversos Direitos Fundamentais historicamente reconhecidos pela humanidade, tanto os individuais, como os sociais,econômicos, culturais, políticos e coletivos. Poderíamos classificar o enfoque jurídico positivo no seguinte: a)direitos individuais, aqueles destinados à limitação do Estado, cuja finalidade é atribuir aos indivíduos direitos de liberdade, fruíveis e reinvindicáveis individualmente; 4 b)direitos coletivos, são aqueles transindividuais, cujos titulares são pessoas indetermináveis, ligadas a circunstâncias de fato(difusas) ou grupo, categoria ou classe, as quais estão ligadas entre si pela parte contrária a uma relação jurídica básica; c)direitos sociais (art.6º ); d)direitos de nacionalidade; e)direitos políticos; f) partidos políticos. Neste caso não existe divergência com José Afonso da Silva, p.164. Porém, ele não fala de partidos políticos, mas lembra dos direitos econômicos, artigo 170 e ss., com o qual concordamos. 1.2.1.3. O enfoque evolutivo cumulativo Existe um processo de evolução, uma vez que a positivação dos Direitos Fundamentais dos seres humanos é resultado de um aumento progressivo de aspectos da dignidade humana que passaram ao longo da história a serem objetos de proteção jurídica. Basicamente são três as gerações de Direitos Fundamentais: a) Direitos de 1ª geração, são os individuais e políticos, que visam a resguardar as liberdades individuais oponíveis ao Estado e a instrumentalizar a participação popular; b) Direitos de 2ª geração, são os direitos às ações positivas do Estado, aos serviços públicos, `a intervenção do Estado para diminuir as desigualdades por meio de diversas políticas compensatórias; c) Direitos de 3ª geração, são aqueles intrínsecos à preservação da espécie humana, à solidariedade, à paz, ao desenvolvimento econômico 1.2.2. Características intrínsecas dos direitos fundamentais Os Direitos Fundamentais por constituírem uma categoria jurídica trazem consigo algumas características, cuja essência os unificam e os diferenciam dos demais direitos expressos na Constituição. As características dos Direitos Fundamentais são as seguintes:a)historicidade; b) autogeneratividade; c) universalidade; d) limitabilidade; e)concorrência. Analisemos cada uma delas : 5 a) Historicidade,não existe consenso doutrinário em relação ao momento histórico.Mas é certo que os Direitos Fundamentais não surgiram do nada, mas de um processo histórico evolutivo. É resultado da luta da humanidade, em diferentes momentos históricos e lugares para assegurar a dignidade da pessoa humana e com o passar dos séculos foram sendo positivados. Este tema será aprofundado no item 2 deste capítulo. b) A autogeneralidade dos Direitos Fundamentais estão incluídos entre os elementos fundantes das Constituições. No entanto, na prática, elas só existem porque incorporam estes direitos juntamente com os elementos constitutivos do Estado ( população, governo, finalidade, território). Pablo Lucas Murillo, in “El Derecho a la Autodeterminación Informativa”, p.17, assim fundamenta: « no hay duda de que constituyen el núcleo del ordenamiento constitucional y, por tanto, del ordenamiento jurídico. El Estado como organización política juridicamente organizada tiene sua razón de ser en la realización de los derechos fundamentales» Já Carl Schimitt, leciona que « Por tener um concepto utilizable por la ciencia es preciso dejar afirmado que e el Estado burguès de Derecho son derechos fundamentales sólo aquellos que el Estado, no es que otorgue con arreglo a suas leyes, sino que reconece e protege com dados antes que él...» Assim, os Direitos Fundamentais possuem legitimidade, sua positivação não desqualifica o momento da jusnaturalização, aspectos forjados a partir de conceitos como dignidade humana, igualdade, liberdade, fraternidade. J.J.Gomes Canotilho: «a positivação constitucional não significa que os direitos fundamentais deixem de ser elementos constitutivos da legitimidade autogenerativa... e, por conseguinte, elemento legitimativo-fundante da própria ordem jurídica constitucional positiva....a positivação jurídica constitucional não “ dissolve” nem “consome” quer o momento de “jurisnaturalização” quer as raízes fundantes dos direitos fundamentais.» c) A universalidade dos Direitos Fundamentais existe, porque sua razão de ser é o gênero humano. Por isso, é incompatível sua restrição a um grupo, categoria, casta, classe ou estamento de pessoas. Afirmar os Direitos Fundamentais é colocar o ser humano acima de e independente de qualquer outra configuração de caráter econômico, social, racial, político, origem, cultural. d) A limitabilidade dos direitos fundamentais significa que estes direitos não são absolutos,logo a norma jurídica não pode, na sua aplicação ao caso concreto ser aplicada em toda a sua extensão e alcance em decorrência do fenômeno da colisão de direitos. Existe o fenômeno de colisão de direitos quando duas pessoas ou grupos de pessoas têm direito ao mesmo direito, porém estão com reivindicações opostas um ao outro. Citamos como exemplo: passseata de um sindicato em via pública x direito de locomoção de outros indivíduos que não fazem parte da passeata. Neste caso, dois direitos fundamentais se chocam.Assim, precisamos encontrar uma solução, a qual resume-se no seguinte: 1- admite-se que os direitos fundamentais são limitáveis e, 6 portanto, não absolutos; 2- a limitabilidade não deve ser definida no plano normativo, mas no plano fenomênico, diante da colisão de direitos concretamente exercidos. e) Irrenunciabilidade, posto que são intrínsecos aos seres humanos, a renúncia seria à própria condição de humanidade. f) Concorrência de direitos fundamentais significa que tais direitos são acumuláveis pelos indivíduos. Portanto,uma única conduta pode ser portegida simultaneamente por mais de uma norma constitucional. Citamos como exemplo , a veiculação de uma notícia por meio de comunicação de massa. Neste caso, o indivíduo receptor pode ao mesmo tempo exercer o direito de comunicação, de informação e de opinião. José Afonso da Silva, p.162, in Curso de Direito Constitucional Positivo 6ª ed., 1990, São Paulo, Revista dos Tribunais, fala apenas das seguintes características dos direitos fundamentais: historicidade( afirmando que aparecem com a Revolução francesa e que sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas); inalienabilidade ( são direitos intransferíveis, inegociávies, porque não são de conteúdo econômico-patrimonial, indisponíveis); imprescritíveis ( a prescritibilidade somente atinge direitos patrimoniais e não os personalíssimos); irrenunciáveis ( podem até não serem exercidos, mas podem potencialmente serem exercidos a qualquer tempo). Coloca, ainda, José Afonso, que os direitos fundamentais absolutos são aqueles cujo conteúdo e incidência decorrem inteiramente da Constituição, enquanto os relativos decorrem quando a lei preencher o conteúdo e a incidência. Na nossa opinião, a doutrina de Vidal Serrano é melhor, pois ajuda a solucionar os problemas concretos. 1.2.3. Características Extrínsecas dos Direitos Fundamentais Lembramos que as características intrínsecas identificam a essência de um direito fundamental. Já as extrínsecas são as características identificas na Constituição, as quais podemos caracteriza-las nas seguintes: a)rigidez; b) imodificabilidade das cláusulas pétreas; c) aplicabilidade imediata . Analisemos cada uma : a) rigidez, neste caso suas normas submetem-se a um processo mais gravoso de modificação via o legislador ordinário e todas as normas infra-constitucionais guardam dever de compatibilidade vertical com elas. b) direitos e garantias individuais clausuladas em cláusulas pétreas, conforme o artigo 60, § 4º da Constituição, o que torna esta espécie de Direitos Fundamentais impermeável à eventuais modificações via o legislador ordinário; c) aplicabilidade imediata de seus preceitos, segundo o artigo 5º,§ 1º da Constituição. 1.3. Conclusão deste tópico 7 1- Os Direitos Humanos são inerentes e intrínsecos aos seres humanos enquanto tal. Portanto, são universais e intemporais e independem de positivação jurídica para serem reconhecidos, segundo a visão jurisnaturalista. 2- Os Direitos Humanos, quando positivados, foram denominados de Direitos Fundamentais, conforme doutrina de José Joaquim Gomes Canotilho. 3- Os Direitos Fundamentais são gêneros, cujas espécies são basicamente as seguintes: a) Liberdades Públicas ou Direitos Individuais (direito de resistência ao Estado e à participação política); b) Direitos econômicos, sociais, culturais; c) Direitos à preservação da espécie humana. 4- Os Direitos Fundamentais são direitos públicos subjetivos. 5- Classificação dos Direitos Fundamentais: a)conteudística (direitos protetivos da liberdade; direitos protetivos dos indivíduos diante das necessidades materiais; direitos protetivos da preservação do ser humano; b) jurírico-postivo(direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade, políticos, de partidos políticos),c)evolutivo-histórico, ( direitos de preservação, à paz, à solidariedade, à fraternidade, ao desenvolvimento). 6- Os Direitos Fundamentais, conforme o processo evolutivo-histórico podem ser: - Direitos de 1ª geração( individuais e políticos, participação popular); - Direitos de 2ª geração (direitos às ações positivas do Estado, como os serviços públicos essenciais, com a finalidade de compensar desigualdades); - Direitos de 3ª geração (direitos de prevervação: paz, solidariedade, fraternidade, deselvolvimento). 7- Características intrínsecas dos direitos fundamentais.A essência, aquilo que o diferencia de outros direitos: historicidade; limitabilidade(fenômeno da colisão de direitos); irrenunciabilidade; concorrência. 8-Características extrínsecas. São as identificadas no direito positivo. Na Constituição: rigidez( processo mais gravoso de modificação); direitos individuais impermeáveis à modificação, cláusulas pétreas ( artigo 60, § 1º ); aplicação imediata de sues preceitos, artigo 5º,§ 1º da Constituição. 2) História dos Direitos Fundamentais Com a finalidade de conceituar Direitos Fundamentais nos utilizamos, basicamente, dos ensinamentos do professor doutor Vidal Serrano Nunes Junior e de outros doutrinadores utilizados em suas obras. Agora, no entanto, concluímos que a obra do professor doutor José Afonso da Silva é mais extensa, no aspecto histórico-evolutivo destes direitos.Assim, utilizaremos, especialmente, seus ensinamentos no trabalho que segue. Porém, é importante salientar que não existe consenso doutrinário em relação ao momento histórico que surgiram os Direitos Fundamentais. Mas é certo, segundo Vidal Serrano Nunes Junior, que a idéia foi consolidada com o advento do cristianismo que preconizava o homem à imagem e semelhança de Deus e, portanto, foi necessário a preservação da essência humana, da autodeterminação. José Afonso da Silva classifica os Direitos Fundamentais do Homem: individuais, políticos, sociais e econômicos, a exemplo da grande maioria dos doutrinadores. 8 2.1. Antecedentes das Declarações de Direitos O reconhecimento de direitos fundamentais é mais que uma conquista. É uma reconquista de algo que se perdeu quando a sociedade se dividira entre proprietários e não proprietários. Na sociedade primitiva, gentílica, o poder era interno à própria sociedade. Não existia poder dominante. Os seres humanos buscavam libertar-se da opressão da natureza, mediante descobertas e invenções, conforme Rudolf von Jhering, in “ L’Esprit du Droit Romain dans lês Diverses Fhases de son Developpement”. A forma de poder externo surge com o desenvolvimento do sistema de propriedade. Aparece, então, a opressão e a subordinação. Surge a escravidão sistemática. O Estado se forma para amparar e sustentar o sistema de dominação. A partir daí, o homem, além de lutar contra os empecilhos da natureza, viu-se diante das opressões sociais e políticas e sua história é a luta para se libertar da opressão e da dominação. O intelecto humano luta para dominar a propriedade, através da definição das relações entre o Estado e a propriedade: as obrigações e as limitações dos seus donos e as salvaguardas para as suas garantias. Tendo em vista que os interesses da sociedade são maiores que os interesses dos indivíduos isoladamente. A humanidade luta pela democracia no governo e a fraternidade na sociedade, pela igualdade de direitos e privilégios, pela educação universal, entre outras lutas até chegar às declarações formais de direitos ou aos direitos da primeira geração. O pensamento sofístico da Antiguidade Clássica elaborou divagações sobre o princípio da igualdade, porém o pensamento dominante não colocava preocupações humanitárias ( livro do Vidal Serrano Nunes Junior) Podemos citar como antecedentes das declarações formais de direitos: - O veto do Tribuno da Plebe contra ações injustas dos patrícios em Roma; - A lei de Valério Publícola que proibe penas corporais contra cidadãos em determinadas situações; - O Interdicto de Homine Libero Exhibendo que dava a proteção jurídica da liberdade e é antecedente remoto do Hábeas Corpus Porém, essas medidas não eram universais, uma vez que se limitavam a proteger os membros da classe dominante. Durante a Idade Média surgiram os antecedentes diretos das declarações de direitos.Nesta fase da história da humanidade, em muito contribuiu a teoria do direito natural a qual condicionou o aparecimento do princípio das leis fundamentais do reino, sendo estas limitadoras do poder do monarca. Muitas denominações apareceram: “pactos”; “florais”; “cartas de franquia”; “estatutos e cartas assecuratórias de direitos”, cujos objetivos eram a proteção de direitos grupais e de estamentos, mas com reflexos nos direitos individuais. Os espanhóis elaboraram, os seguintes documentos que visavam limitar o poder do rei: 9 -Leon e Castela-1188, o qual falava de segurança, domicílio, propriedade, atuação em juízo; -Aragão- 1265- reconhecimento de direitos e limitação do poder dos nobres; -Viscaia-1526- reconhecendo privilégios, franquias e liberdades. Para os ingleses e toda a história da humanidade, podemos citar a Magna Carta-1215-1225como um marco histórico e o Mayflower Compact de 1620, que por si só, é um documento de garantia de governo limitado, além dos seguintes documentos : - Petition of Rights-1628 : a petição de direitos é de origem parlamentar. É um documento do parlamento inglês solicitando do rei o reconhecimento dos direitos e liberdades para os súditos. Na realidade foi um meio de transação entre o reio e o parlamento e na verdade foi uma solicitação para que os direitos já expressos no artigo 39ª da Magna Carta fosse colocado em prática. O rei cedeu porque necessitava de autorização do parlamento para executar as finanças públicas. ; - o Hábeas Corpus Amendment Act- 1679; tinha por objetivo suspender as prisões arbitrárias, foi um grande golpe nos déspotas; - o Bill of Rights- esta declaração de direitos é fruto da da Revolução liberal de 1688, a qual conquistou de uma vez por todas a supremacia do parlamento, a monarquia constitucionalista e submissa à soberania popular. A partir daí superou-se, assim, a realeza de direito divino. É verdade que estes textos são estamentais e se condicionam à formação de regras consuetudinárias. Porém, foram importantíssimos símbolos das liberdades públicas e serviram de base para que juristas extraíssem, especialmente, da Magna Carta os fundamentos da ordem jurídica democrática inglesa. A estabilidade e o firme desenvolvimento das instituições inglesas bastaram para tornar ociosa uma lista maior de liberdades públicas. As constantes afirmações do Parlamento e dos precentes judiciais formando a Common Law foram suficientes para assegurar o mais firme respeito pelos Direitos Fundamentais dos seres humanos. Citamos, ainda, os diversos documentos das Colônias inglesas da América do Norte, os quais são estatutos e cartas assecuratórios de direitos fundamentais, como: Charter of New Englant- 1620; Charter of Massachusetts Bay- 1629; Charter of Maryland- 1632; Charter of Carolina- 1663; Charter of Geórgia- 1732 ; Massachusetts Body of Liberties- 1641; New York Charter of Liberties- 1683; Pensylvania Charter of Privileges-1701. 2.2 As Declarações Universais de Direitos De grande envergadura foram as declarações de direitos dos Estados da Virgínia e Pensylvania de 1776, as quais precederam à Revolução burguesa na França, mas comungavam das mesmas idéias e tinha como filosofia os mesmos pensadores. Porém, a carta de maior pujança foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na França, fruto da Revolução burguesa. Esta sim de cunho universalista. Conforme Paulo Bonavides: “Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de 10 abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada ( os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano.” Após a revolução francesa a grande maioria dos ordenamentos jurídicos dos diversos Estados constitucionalizou estas declarações, transformando-as em normas jurídicas, geradoras de direitos subjetivos. Podemos citar como marco a Constituição Belga de 1831, conforme Paulo Biscaretti de Rufia, in Curso de Direito Constitucional, p.516 , mas antes deste meio consenso histórico, podemos citar, também, a Constituição brasileira de 1824, a qual foi outorgada ao povo, por d.Pedro I. É importante frisar as características da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: a) intelectualismo, porque foi uma operação de ordem puramente intelectual que se desenrolaria somente no plano das idéias, era antes de tudo um documento filosófico e jurídico que visava uma sociedade ideal, mas baseada no consentimento popular, na legitimidade; b) mundialismo, pois pretendia ultrapassar os indivíduos franceses, desejava um valor geral, universal; c) individualismo ,uma vez que somente consagra os valores individuais e não menciona a liberdade de associação e nem a liberdade de reunião, preocupa-se apenas em defender o indivíduo contra o Estado, declara o direito de resistência. É de cunho estritamente liberal, burguês. Assim, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, traz apenas os direitos da primeira geração; isto é, os direitos individuais e políticos, esquecendo-se dos direitos materiais(de segunda geração) e dos direitos à preservação, à paz, à solidariedade ( direitos da terceira geração). Portanto, apesar de pretender-se universal, acabava, na prática, não atingindo nem a totalidade do povo francês. Formalmente, todos tinham direitos.Mas, era apenas perante a lei e não na lei; isto é, à igualdade substancial. Logo, atendia, apenas o povo burguês. Tal fato se explica, uma vez que a burguesia do século XVIII estava oprimida apenas do ponto de vista político, uma vez que tinha o poder econômico. Com o desenvolvimento industrial e o consequente surgimento de uma classe operária o povo desprovido de poder econômico percebeu logo que aquelas garantias eram apenas formais e que, muitas vezes, serviam apenas para proteger as propriedades da burguesia e seus direitos políticos contra greves, assembléias de trabalhadores, direitos de associações, de reunião. Assim, nos explica Juan Ferrando Badía, p.49: (J.AS. pág.142): “A burguesia liberal aperenta conceder a todos a liberdade de imprensa, a liberdade de associação, os direitos políticos, as possibilidades de oposição política: mas , de fato, tais direitos e liberdades não podem ser exercidos realmente senão pelos capitalistas, que são os que têm os meios econômicos indispensáveis para que tais liberdades sejam reais. E assim, no caso do direito de sufrágio, este serve para camuflar diante dos olhos dos proletários uma papeleta de voto, mas a propaganda eleitoral se encontra nas mãos das forças do dinheiro. Simula conceder-lhes o direito de formar sindicatos e partidos políticos, mas as oligarquias capitalistas conservam, direta ou indiretamente, o controle.” Em oposição a este estado de coisas surgem novas doutrinas: os socialistas, primeiro os utopistas (Saint-Simon, Fourier, Louis Blanc, Owen ) e depois os cientistas(Karl Marx , Engels), os quais submeteram as concepções abstratas da liberdade, da igualdade a severas críticas, uma 11 vez que medravam as injustiças e as iniqüidades na repartição da riqueza e faziam prosperar a miséria das massas proletárias, enquanto a burguesia acumulava cada vez mais riquezas. O sistema favorecia poucos e gerava crises econômicas para a grande maioria do povo. O fruto destas críticas foi a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado: o Manifesto Comunista de 1848, cuja influência é comparado por Harold Laski , p.27 com a Declaração de Independência Norte Americana e com a Declaração de Direitos de 1789. A partir daí surgiram outras concepções em bases teóricas da sociedade e do Estado, além de documentos de outras correntes, como as encíclicas papais, a Rerun Novarum, 1891, de Leão XIII. No plano jurídico, a Revolução de 1848, em Paris, garantiu o direito do trabalho em sua constituição de curta duração. Mas foi a Constituição do México de 1917 a primeira que sistematizou um conjunto de direitos sociais do homem, denominado de Declaração de Direitos Socais, artigo 123 , sem romper com o sistema capitalista Em seguida veio a Constituição alemã de Weimar, 1919, qual sob o signo de Direitos e Deveres Fundamentais dos Alemães, incluiu os direitos da pessoa individual, os direitos da vida social, os da vida religiosa, os da educação e escola e os da vida econômica.Apesar da Constituição mexicana ser a mais avançada foi a alemã de Waimar que teve mais influência no constitucionalismo após a primeira grande guerra mundial, inclusive na brasileira de 1934. Porém, apesar de suas contradições, foi uma marco histórico, uma passo muito grande para a humanidade, pois através de seus ideais foi pos+sivel a conquista de outros direitos fundamentais. Em 10 de dezembro de 1948 a ONU- Organização das Nações Unidas- sacramentou a idéia de reconhecimento universal dos Direitos Humanos, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. 12 III - CONCEITO DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS Como dito anteriormente, os direitos e garantias individuais estão inseridos na categoria dos direitos fundamentais, ou seja, aqueles direitos são espécies do gênero direitos fundamentais. Partindo desse pressuposto, faz-se necessário compreender o significado do termo direito fundamental, para posteriormente analisar o conceito de direito individual. Para tanto, recorre-se às lições de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, os quais afirmam que “os direitos fundamentais podem ser conceituados como a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as dimensões” 1. Os referidos autores analisam ainda o conteúdo de cada uma das palavras que compõem a expressão, concluindo que “o vocábulo direito serve para indicar tanto a situação em que se pretende a defesa do cidadão perante o Estado como os interesses jurídicos de caráter social, político ou difuso protegidos pela Constituição. De outro lado, o termo fundamental destaca a imprescindibilidade desses direitos à condição humana.”2 Em relação aos direitos individuais, também denominados de direitos de liberdade, liberdades públicas, ou ainda direitos civis, pode-se afirmar que correspondem aos direitos fundamentais de primeira geração, que impõem uma limitação à atuação do Estado e dos particulares. Reforçando esta idéia, encontram-se as considerações realizadas por Vladimir Brega Filho, para quem os direitos individuais “são concebidos para serem exercidos pela pessoa humana individualmente considerada e trazem como característica principal a imposição de limites ao poder estatal e aos demais indivíduos.”3 A partir desse conceito, Vladimir Braga Filho constata que os direitos individuais podem ser visualizados através de duas perspectivas diferentes, pois por um lado concedem o exercício de um direito ao indivíduo e, por outro, impõem ao Estado e aos demais membros da sociedade o dever de se abster, de não se intrometer na esfera pessoal do indivíduo. Nesta mesma linha, identificando os direitos individuais com os direitos fundamentais de primeira geração, destacam-se os ensinamentos de José Afonso da Silva, o qual define os direitos individuais como sendo os “direitos fundamentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio estado.”4 Em seu “Curso de direito constitucional”, Celso Ribeiro Bastos5 destaca uma importante característica dos direitos individuais que se refere ao fato de incidirem sobre a pessoa pela simples razão dela existir, não necessitando de nenhum fato aquisitivo. Em conformidade com os demais autores mencionados, destaca também que tais direitos garantem ao Homem o exercício de uma autonomia e impõem limitações ao Estado. 1 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 87. 2 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 86. 3 BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 75. 4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 181. 5 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 260 13 Embora reconheça que a maioria dos direitos individuais impõe apenas deveres de abstenção ao Estado, Celso Bastos ressalta que atualmente já se pode notar na Constituição Federal a existência de alguns direitos individuais que implicam em um investimento estatal, ou seja, que implicam em uma atuação positiva do Estado. Mesmo reconhecendo essa realidade, o autor aponta a necessidade de se distinguir tais direitos individuais dos direitos econômicos, sociais, etc As considerações realizadas trazem então uma importante reflexão para o trabalho que consiste em diferenciar os direitos individuais dos direitos sociais. Primeiramente, é preciso confessar que em muitos momentos tais direitos se entrelaçam, em razão dos direitos sociais assumirem o papel de instrumentos hábeis a garantir e a concretizar direitos individuais. Dito de outro modo, pode-se afirmar que os direitos sociais, em diversas hipóteses, constituem-se pressupostos para a eficácia de direitos individuais.6 Neste mesmo sentido, transcreve-se o conceito de direito social formulado por José Afonso da Silva, o qual serve para comprovar a conexão existente entre esse e os direitos individuais: “Direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível como o exercício efetivo da liberdade.”7 Para demonstrar os aspectos comuns e os divergentes entre os direitos individuais e os direitos sociais, pode-se também fazer referência ao pensamento de Gustavo Just da Costa e Silva. Em relação às diferenças existentes entre essas espécies de direitos fundamentais afirma o autor que “os direitos de liberdade e os direitos sociais estão associados a distintas etapas da formação e evolução do Estado constitucional. Suas consagrações positivas refletem por isso diferentes concepções do Estado e da constituição, e diferente é o papel que cada uma dessas espécies de direitos desempenha na legitimação das constituições contemporâneas”8. Por outro lado observa que ambos os direitos “são reconhecidas ao indivíduo em decorrência de sua simples condição de membro da coletividade, sendo esse reconhecimento essencial para a própria definição do regime político adotado. E é por isso que se trata, em ambos os casos, de direitos fundamentais.”9 Como mencionado anteriormente, Celso Ribeiro Bastos também se ocupa da tarefa de diferenciar os direitos individuais dos direitos sociais, concluindo que aqueles exigem do Estado no máximo a edição de normas e a fiscalização do seu cumprimento, enquanto que os segundos dependem da realização de despesas específicas, ou seja, exigem a aplicação de recursos orçamentários para atingir os objetivos que integram tais direitos. Em relação aos direitos individuais mostra-se também útil apresentar a classificação proposta por alguns autores tendo em vista a localização dos direitos individuais. Para abordar esta questão, é preciso analisar a regra constitucional que indica onde se localizam os direitos e garantias individuais. Conforme disciplina o artigo 5º, §2º da Constituição Federal, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios 6 O tema referente à relação existente entre os direitos individuais e os direitos sociais será aprofundado nos capítulos seguintes deste trabalho. 7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 277. 8 SILVA, Gustavo Just da Costa. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 120. 9 SILVA, Gustavo Just da Costa. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 120. 14 por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” No entendimento de José Afonso da Silva10, os direitos individuais podem ser agrupados em três categorias: direitos individuais expressos, que são aqueles enunciados no artigo 5º da Constituição Federal; direitos individuais implícitos, que são aqueles subentendidos nas regras de garantia; e direitos individuais decorrentes do regime e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil. Embora semelhante à classificação proposta por José Afonso da Silva, Vladimir Brega Filho propõe que dentre os direitos individuais expressos sejam englobados não apenas os enunciados no artigo 5º da Constituição Federal, mas também todos os direitos individuais explícitos distribuídos ao longo de todo o texto constitucional. 11 Como o intuito deste trabalho é estudar os direitos individuais, faz-se necessário também compreender o que são direitos coletivos, para não confundi-los com os direitos individuais. Ao tratar dos direitos coletivos, Vladimir Brega Filho12 expõe a teoria do constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, o qual, por sua vez faz uma distinção entre direitos fundamentais coletivos e direitos fundamentais de exercício coletivos. De acordo com o entendimento de Canotilho, os direitos coletivos só podem ser exercidos por pessoas coletivas, não se admitindo que os membros, individualmente, exerçam tais direitos. Os direitos fundamentais de exercício coletivo, por sua vez, são direitos que embora exercidos coletivamente, também podem ser exercidos individualmente por cada um dos membros integrantes daquela coletividade. No entendimento do constitucionalista português, o fato de tais direitos poderem ser exercidos coletivamente, não os faz perder a natureza jurídica de direitos individuais. Analisando as considerações de José Afonso da Silva, constata-se que esse autor realiza a mesma distinção proposta por Canotilho, pois considera que a liberdade de reunião e a de associação não são propriamente direitos coletivos, mas sim direitos individuais de expressão coletiva. Em relação aos direitos coletivos, merece também ser ressaltada a concepção de Celso Ribeiro Bastos, o qual considera que os direitos coletivos “dizem respeito também ao homem, mas tomado, ou melhor, considerado em conjunto com outros dando lugar a um fenômeno necessariamente meta-individual. O mundo moderno, ao massificar as relações humanas, tanto do ponto de vista do consumo como da produção, trouxe a necessidade de muitas vezes discutir-se globalmente uma determinada situação que pertine a um grupo muito grande de pessoas.”13 Para que se possa completar a abordagem do conceito de direitos e garantias individuais, é preciso ainda distinguir o que são direitos e o que são garantias. Com o intuito acima mencionado, recorre-se aos ensinamentos de Jorge Miranda, para quem: “Clássica e bem atual é a contraposição dos direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos ou direitos e liberdade, por um lado, e garantias, por outro lado. Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo 10 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 191. BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 78. 12 BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 81. 13 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 262. 11 15 nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.”14 No Brasil, bastante lembradas são as lições de Rui Barbosa 15, o qual entendia que os direitos eram disposições declaratórias, enquanto que as garantias eram disposições assecuratórias que, buscando defender os direitos, limitavam o poder. A distinção entre direitos e garantias nem sempre se mostra uma tarefa fácil, pois em muitas ocasiões um direito é também uma garantia e uma garantia é também um direito. Além disso, outra dificuldade que se impõe é o fato do texto constitucional em muitas ocasiões utilizar expressões como “é garantido” ou “é assegurado” para se referir a direitos. Por fim, ressalta-se que atualmente estão reconhecidas no texto constitucional inúmeras garantias, pois percebeu-se que nada adianta declarar um direito sem que haja uma norma que lhe assegure, isto é, sem que haja uma norma contendo uma garantia capaz de dar efetividade ao direito. 14 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1988, tomo IV, p. 88 e 89. BARBOSA, Rui. República: teoria e prática. apud SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 183. 15 16 IV – OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E SUA EXTENSÃO Partindo do conceito de “direitos e garantias individuais” obtido no capítulo anterior, apresentamos abaixo a enumeração dos direitos e garantias individuais consagrados pela CF/88, apresentando a extensão de cada um deles : 1- O direito à igualdade O direito à igualdade, também denominado princípio da igualdade e princípio da isonomia é, em realidade, norma jurídica extraído do enunciado constante do caput do artigo 5o. da CF/88, in verbis : “ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...” Para que possamos ter a real noção do conteúdo da norma jurídica constitucional da isonomia, necessitamos interpretar o que vem a ser “iguais perante a lei” e “sem distinção de qualquer natureza”. Iniciemos o nosso trabalho interpretativo que, ressaltamos, tem por objetivo verificar a real extensão do princípio da igualdade previsto na Constituição Federal de 1988, através de uma análise do conceito de igualdade. Da leitura da expressão “iguais perante a lei”, poderíamos, pela técnica interpretativa gramatical, extrair 2(duas) hipóteses semânticas possíveis, quais sejam: que, absolutamente, todos deveriam ser tratados pela lei da exata mesma forma, ignorando-se a existência de grupos heterogêneos e de circunstâncias individuais que careceriam qualquer espécie de tratamento individual que a igualdade está relacionada às características do indivíduo ou de determinado grupo, isto é, indivíduos iguais deveriam ser tratados da mesma forma, indivíduos diferentes deveriam sofrer normatizações de comportamento diversas Também da mesma expressão, poderíamos, ainda gramaticalmente, construir outras possibilidades relacionadas ao destinatário da ordem de tratamento igual : o destinatário é somente o legislador que, no ato de produção de enunciados prescritivos, deveria considerar a igualdade o destinatário seria o intérprete da lei, que, no momento de interpretar os enunciados prescritivos, formando as normas jurídicas aplicáveis aos casos concretos, deveria levar em consideração a igualdade, isto é, o valor a ser utilizado na interpretação (técnica interpretativa axiológica) deveria ser, entre outros cabíveis, o da igualdade 17 os destinatários seriam o legislador que, no ato de produção de enunciados prescritivos, deveria considerar a igualdade e o intérprete da lei, que, no momento de interpretar os enunciados prescritivos, formando as normas jurídicas aplicáveis aos casos concretos, deveria levar em consideração a igualdade, isto é, o valor a ser utilizado na interpretação (técnica interpretativa axiológica) deveria ser, entre outros cabíveis, o da igualdade Continuando o nosso procedimento interpretativo da expressão “iguais perante a lei”, importante é a utilização da técnica interpretativa histórica, valendo, nesse ponto, citar José Afonso da Silva16 no sentido de que : “Nossas Constituições, desde o Império inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5o., caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais, conforme apontamos supra e, especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social” Isto é, a tradição constitucional brasileira é no sentido da utilização do termo “igualdade” como “igualdade perante a lei”, isto é, igualmente formal, no sentido de que a igualdade está relacionada às características do indivíduo ou de determinado grupo, isto é, indivíduos iguais deveriam ser tratados da mesma forma, indivíduos diferentes deveriam sofrer normatizações de comportamento diversas Além, utilizando-se as técnicas interpretativas sistemática e axiológica, também concluímos pela versão formal e relativa da igualdade, somente satisfeita se o legislador tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais. Isto porque, não se poderia interpretar de outra forma se levarmos em consideração que os fundamentos da República Federativa do Brasil, na forma do artigo 3o. da CF/88, é, entre outros “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”(inciso III). Ora, a única forma de buscar a igualdade entre desiguais é tratando os desiguais de forma que, privilegiados pela norma jurídica, logrem atingir um patamar próximo do status dos demais indivíduos que, inicialmente, situavam-se em situação mais privilegiada por diversos fatores como, por exemplo, o cultural, o econômico, o político etc. No entanto, é importante que se destaca que a questão da igualdade deve ser considerada em relação a determinado fator como, por exemplo, do ponto de vista econômico ou do ponto de vista físico. E é nesse sentido que introduzimos os elementos que devem ser levados em consideração para a ocorrência concreta do princípio da igualdade, apresentados por Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Luiz Alberto David Araujo17 : a) fator adotado como critério discriminatório; b) correlação lógica entre o fator discriminatório e o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada; c) afinidade entre a correlação apontada no item anterior e os valores protegidos pelo ordenamento constitucional É da análise conjunta desses três elementos que se alcança a conclusão quanto à ocorrência ou não in concreto do princípio da isonomia. Observe-se que esse procedimento proposto leva em consideração não só as diferenças entre os indivíduos, como também a razão da normatização discriminatória, possuindo profundo interesse axiológico. 16 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo : Malheiros, 10a. edição revista, 1995, p. 209 ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 5a. edição, revista e atualizada, 2001, p.91 17 18 Também, nessa esteira, importante o magistério de Alexandre de Moraes18 , para quem “o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que se protege são certas finalidade, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação ou programas de ação estatal” Se de um lado Alexandre de Moraes não nos apresenta um procedimento para a verificação in concreto do respeito ao princípio da igualdade, o que muito bem o faz Bandeira de Mello, de outro lado, apresenta-nos o grau axiológico que deve acompanhar qualquer discussão sobre o princípio da igualdade. Para que possamos por conclusão apontar a real extensão do princípio da igualdade, temos que definir quem é o real destinatário do princípio da igualdade : é o legislador, é o interprete ou ambos ? O Direito tem por função o controle social, sendo que para que atinja o seu desiderato, o Direito faz uso das normas jurídicas que podem ser vistas como estruturas lógica-deônticas. As normas jurídicas, como já destacamos em outras partes dessa monografia são produzidas através do trabalho interpretativo que, num Estado Democrático de Direito como o Brasil, com a imposição do princípio da legalidade, deve partir das possibilidades semânticas dos enunciados prescritivos (textos legais-constitucionais). Ora, se as normas jurídicas são extraídas do processo interpretativo e se o trabalho de interpretação não deve se afastar das possibilidades semânticas do direito positivo, concluímos que são destinatários do princípio da igualdade não só o legislador, como também o intérprete. Antes de concluirmos é importante esclarecer que, a despeito de alguns autores, como, por exemplo, Luiz Alberto David Araujo19, entenderem que o princípio da igualdade não é um direito individual, mas somente uma regra-mestra para a interpretação das demais normas constitucionais, entendemos que o direito à igualdade é um direito individual, perfeitamente aplicável no caso concreto sob a forma de norma jurídica específica. Em suma, apresentaos a extensão do princípio da igualdade : a igualdade está relacionada às características do indivíduo ou de determinado grupo, isto é, indivíduos iguais devem ser tratados da mesma forma, indivíduos diferentes devem sofrer normatizações de comportamento diversas, tudo no sentido de se lograr a igualdade entre os indivíduos, compondo as suas diferenças. O trabalho de busca da igualdade mediante o tratamento desigual dos desiguais, se faz por critério discriminatório baseado em determinado fator, que deve manter correlação lógica com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada e afinidade com os valores protegidos pelo ordenamento jurídico constitucional pátrio. Tal princípio, na extensão acima apontada, é de aplicação obrigatória, não só pelo legislador, como também pelo intérprete. Eis o conteúdo petrificado ! 2 – A proibição de tortura 18 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo : Atlas, 12a. edição, 2002, p. 64 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília : Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE, 1994, p.52 19 19 A proibição de tortura consta do inciso III do artigo 5o da CF/88, sendo que a interpretação do citado enunciado constitucional será capaz de nos apresentar a real extensão de tal direito individual. Consta do inciso III do artigo 5o. da CF/88 que : “ ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; “ Devemos buscar o significado buscado pela Constituição para o termo “tortura” para, após, verificarmos se possui alguma relação com a “tratamento desumano ou degradante”, somente assim verificaremos a real extensão de tal direito petrificado. Poderíamos buscar diretamente a Lei 9.455, de 7 de abril de 1997 que tipificou o crime de tortura, a fim de buscar o significado de tal termo. No entanto, entendemos não ser correto interpretar a Constituição com base em conceitos infra-constitucionais. Partimos, assim, do significado denontativa para, após, analisar sistemática e axiologicamente o enunciado sob exame. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira20 apresenta : “ tortura sf 1. Suplício, tormento, infligido a alguém. 2. Fig. Grande mágoa. 3. Fig. Lance difícil” Fancisco da Silveira Bueno21 apresenta significações idênticas às apresentadas por Aurélio Buarque, isto é, tortura como “suplício, tormento, tortuosidade, grande mágoa, lance difícil”. Isto é, “tortura” é ato que se qualifica pelos seus efeitos em relação a seu sujeito passivo, efeitos esses que podem ser de natureza física ou psicológica, não possuindo vínculo necessário com específico fim do comportamento ativo de torturar. E mais, do ponto de vista sistemático e axiológico, necessário é esclarecermos que a classe dos atos de tortura proibidos deve ser a maior possível, e deverá ter como limites o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da proporcionalidade. Adentremos mais profundamente nessa discussão. A prisão, por exemplo, é um ato que, sem dúvida alguma, pode se enquadrar entre aqueles que tem como efeito o suplício, o tormento do prisioneiro, podendo se enquadrar na classe dos “atos de tortura”. No entanto, a prisão é instrumento extremado, mas necessário para o controle do comportamento dos indivíduos que compõem a sociedade, isto é, trata-se de instrumento de preservação da própria sociedade, sendo portanto, admitido através do próprio princípio da proporcionalidade, no sentido de que a restrição da liberdade do indivíduo somente deve ser considerada como forma necessária para a liberdade e segurança da sociedade, isto é, como ensina Lenio Luiz Streck : “ a difícil linha demarcatória estabelecida pelo princípio da proporcionalidade, tão bem especificada por Jelineck já no longínquo ano de 1971, quando afirmou que “o 20 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 3a. edição, revista e ampliada, 12a. impressão, 1993, p. 540 21 BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Fae, 20 Estado somente pode limitar com legitimidade a liberdade do indivíduo na medida em que isso for necessário à liberdade e à segurança de todos.”22 Se o princípio da proporcionalidade é capaz de apresentar o limite negativo da proibição da tortura. O princípio da dignidade da pessoa humana, visto como instrumento de acesso do ser humano à felicidade, compõe o limite positivo da proibição da tortura, no sentido de que qualquer sofrimento, seja ele físico ou moral, é contrário à felicidade e, por conseguinte, à dignidade da pessoa humana. Entendemos já possuir elementos para fixar a extensão da norma jurídica extraída do inciso III do artigo 5o da CF/88, mas, antes, devemos analisar a expressão “tratamento desumano ou degradante”, que compõe a parte final do citado inciso. Não temos dúvida de que a expressão “tratamento desumano ou degradante” significa conjunto de situações fáticas que já se encontram incorporados na classe dos atos de tortura, mas não devemos, de forma alguma, entender que o Constituinte foi prolixo, mas, sim, tomarmos tal repetição como forma de reiterar a necessidade de interpretação ampla do termo “tortura”. Em suma, a “proibição de tortura” tem como extensão a proibição de ato que se qualifica pelos seus efeitos em relação a seu sujeito passivo, efeitos esses que podem ser de natureza física ou psicológica, não possuindo vínculo necessário com específico fim do comportamento ativo de torturar, sendo que tal proibição deverá ter como limites o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da proporcionalidade. Isto é, pelo princípio da proporcionalidade, algumas formas de “tortura” ou “tratamento desumano ou degradante” poderão ser aceitos pelo ordenamento jurídico desde que seja condição sine qua non para a manutenção da sociedade (princípio da proporcionalidade). De outro lado, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, qualquer sofrimento, seja ele físico ou moral, é contrário à felicidade e, por conseguinte, à dignidade da pessoa humana. 3 - A liberdade de crença religiosa A liberdade de crença religiosa é extraída do enunciado constante do inciso VI do artigo 5 o. da CF/88, qual seja : “ é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.” Destaque-se, antes de adentrarmos no processo efetivo de busca da extensão de tal direito, que além do inciso IV do artigo 5o., os enunciados constantes dos incisos VII e VIII do próprio artigo 5o., além do inciso I do artigo 19, da alínea b do inciso VI do artigo 150 e o parágrafo 1o. do artigo 210 compõem o tratamento jurídico apresentado pela Constituição de 1988 ao tema “liberdade de crença religiosa”. Para a verificação do conteúdo da norma jurídica de liberdade de crença religiosa, importante é o estudo quanto ao significado da expressão “crença religiosa”. 22 STRECK, Lenio Luiz. As Interceptações Telefônicas e os Direitos Fundamentais. Porto Alegre : Editora Livraria do Advogado, p. 16 21 Nosso dicionários apresentam que crença é o ato ou efeito de crer, de ter por certo ou verdadeiro alguma coisa e que religioso é a qualidade daquilo ligado à religião, à crença na existência de força ou forças sobrenaturais23. A crença religiosa, em síntese, é a situação fática inerente a determinado indivíduo ou a determinada classe de indivíduos que tomam como verdadeira a existência de determinada força sobrenatural, normalmente denominada “Deus” ou outro termo que remeta ao mesmo significado de onipotência, de sobrenaturalidade). Destaque-se que essa crença não se revela somente do ponto de vista passivo, isto é, na simples situação de entender verdadeira a existência de um “Deus”24, mas também em comportamentos comissivos de “agrado” a essas forças sobrenaturais, comportamentos esses que são denominados ritos ou cultos. Assim, quando se fala em liberdade religiosa, entende-se a amplitude da liberdade tanto quanto ao fator “acreditar ser verdadeira a força sobrenatural” como também o direito de comportar-se de determinada forma em cultos ou ritos de exaltação de tal força sobrenatural acreditada. Essa liberdade religiosa também envolve a permissibilidade de instrumentos inerentes ao seu desenvolvimento, como o ensino religioso e a associação religiosa. A própria composição cultural, a origem e a história da população brasileira gera a existência de pluralidade de formas de desempenho de crenças religiosas, devendo todas serem respeitadas pelo Estado. Agora, é verdadeiro que tal liberdade possui restrições, restrições essas que são impostas por outros direitos e garantias fundamentais, como, por exemplo, a inviolabilidade do direito à vida (no sentido de impedir que os cultos ou os ritos destruam vidas, seja sob a forma de homicídio, seja sob a forma de suicídio), a proibição de tortura (no sentido de impedir que os cultos ou os ritos imponham tratamento de suplício aos cultuadores ou a terceiros) e ao princípio da liberdade de associação para fins lícitos (no sentido de impedir que a associação religiosa se destine à prática de atos ilícitos). Em suma, eis a extensão da “liberdade de crença religiosa” : o Estado não pode impedir ou dificultar a situação fática inerente a determinado indivíduo ou a determinada classe de indivíduos que tomam como verdadeira a existência de determinada força sobrenatural, normalmente denominada “Deus” ou outro termo que remeta ao mesmo significado de onipotência, de sobrenaturalidade), como também o direito de se comportar de determinada forma em cultos ou ritos de exaltação de tal força sobrenatural acreditada, desde que o comportamento religioso não viole o direito à vida (no sentido de impedir que os cultos ou os ritos destruam vidas, seja sob a forma de homicídio, seja sob a forma de suicídio), a proibição de tortura (no sentido de impedir que os cultos ou os ritos imponham tratamento de suplício aos cultuadores ou a terceiros) e o princípio da liberdade de associação para fins lícitos (no sentido de impedir que a associação religiosa se destine à prática de atos ilícitos). 4 - A inviolabidade do domicílio A inviolabilidade do domicílio é extraída do inciso XI do artigo 5o. da CF/88, in verbis : 23 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 3a. edição, revista e ampliada, 12a. impressão, 1993, pp. 152/153 e 471 24 Aqui utilizamos a palavra “Deus” como sinônimo de qualquer força sobrenatural típica de credo religioso 22 “ a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;” O objetivo da norma jurídica extraída do enunciado acima indicado não é, em realidade, uma simples proteção da estrutura física da “casa”, mas da intimidade e da privacidade dos indivíduos que ocupam a casa. É na sua casa, entendido o termo “casa” como todo e qualquer ambiente onde uma pessoa se estabelece, podendo no conceito de casa também se incluírem “a própria residência ou de outrem, seja ela fixa ao solo, estabelecimento rodante ou casa flutuante; ou o aposento de habitação coletiva, em pensões, hotéis, casas de pousada, e, tratando-se de local não acessível ao público em geral, está caracterizado o domicílio, constitucionalmente falando”25, que o indivíduo cultua a sua privacidade, os seus segredos, suas manias, suas conquistas... Nesse sentido, Alexandre de Moraes26 : “ No sentido constitucional, o termo domicílio tem amplitude maior do que no direito privado ou no senso comum, não sendo somente a residência, ou ainda, a habitação com intenção definitiva de estabelecimento. Considera-se, pois, domicílio todo local, delimitado e separado, que alguém ocupa com exclusividade, a qualquer título, inclusive profissionalmente, pois nessa relação entre pessoa e espaço, preservase, mediatamente, a vida privada do sujeito” Não temos dúvida de que, mesmo que não houvesse o enunciado constante do inciso XI do artigo 5o. da CF/88, a norma jurídica de inviolabilidade de domicílio seria extraída do conteúdo do inciso X do mesmo artigo constitucional, onde consta a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. A importância da especificação do inciso XI se deve, no nosso entendimento, da necessidade de reforçar a importância do domicílio como local de gozo da intimidade e da privacidade humana, como também para fixar, expressamente, os limites da inviolabilidade do domicílio. Destacamos que, da leitura dos enunciados que inserem direitos e garantias individuais, percebemos que, em sua maioria, não fixam limites expressos para o gozo das liberdades, cabendo ao intérprete, com base em princípios, como o da proporcionalidade, ponderar os limites e fixar a real extensão de tais direitos. No entanto, o inciso XI do artigo 5o apresenta interessante descrição dos limites do direito individual ali enunciado, descrição essa explícita e que traz claridade para o intérprete. Os limites à inviolabilidade do domicílio são expressos : “salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”. Entendemos que, nesses limites, já se encontra, implicitamente, que o direito à inviolabilidade se curva a outros direitos individuais, como o direito à vida (já que a limitação a casos de desastre ou de prestação de socorro evidenciam a proteção da vida física) e o direito à segurança (“salvo em caso de flagrante delito”) e à tutela jurisdicional (“durante o dia, por determinação judicial”). Esse raciocínio nos leva à conclusão de que : entende-se como “desastre” qualquer fato de destruição, atual ou iminente, movido por forças naturais ou pela voluntariedade humana e que possam colocar em risco a vida humana; como “flagrante delito” o momento de ocorrência de um delito, independentemente de sua gravidade e “durante o dia” como a situação de fato em que há 25 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Inviolabilidade do domicílio na Constituição. São Paulo : Editora Malheiros, 1993, p. 76 26 Op. Cit. p. 75 23 luminosidade natural, sendo que a fixação de horário se torna difícil, do ponto de vista genérico, vez que em cada região do Brasil, há um horário específico para o pôr do sol. Eis a extensão petrificada do direito à inviolabilidade do domicílio : é proibida a entrada não autorizada na residência de outrem, seja ela fixa ao solo, estabelecimento rodante ou casa flutuante; ou o aposento de habitação coletiva, em pensões, hotéis, casas de pousada, em suma, de qualquer de local não acessível ao público em geral, salvo para proteção da inviolabilidade de direitos individuais como : o direito à vida (já que a limitação a casos de desastre ou de prestação de socorro evidenciam a proteção da vida física) e o direito à segurança (“salvo em caso de flagrante delito”) e à tutela jurisdicional (“durante o dia, por determinação judicial). 5 – Da inviolabilidade das comunicações Compreender e fixar a extensão do direito à inviolabilidade das comunicações é interpretar o inciso XII do artigo 5o. da CF/88, in verbis : “ é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelece para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” Interpretaremos o presente enunciado analisando primeiramente a inviolabilidade do sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas e de dados” e a inviolabilidade das comunicações telefônicas para, após, apresentarmos as limitações a tais sigilos. Quanto à inviolabilidade do sigilo de correspondência, devemos compreender como a proibição de interceptação da comunicação (entendida como ato de intercâmbio, de troca de dados) entre duas ou mais pessoas feita através de “correspondência”, isto é, através de cartas, telegramas ou similares. Necessitamos de maior atenção quanto à fixação de um sentido para o termo “correspondência”. O vocábulo ordinário, no seu sentido denotativo, apresenta que “correspondência” é sinônimo de carta, de telegrama27. Tanto o telegrama quanto a carta são documentos onde, através de escrita, manuscrita ou mecânica/eletrônica, duas ou mais pessoas trocam dados. Ora, o que se protege pelo enunciado constitucional em comentário, não é especificamente a carta e/ou o telegrama, mas o conteúdo de qualquer instrumento que, através da escrita, manuscrita ou mecânica/eletrônica, serve para a comunicação entre pessoas, motivo pelo qual entendemos que se incluem no conceito de “correspondência”, entre outros, os e-mails e os fac-similes. Quanto às “comunicações telegráficas”, temos que são trocas de informações feitas entre duas ou mais pessoas através de “processo de transmissão de mensagens a distância mediante um código de sinais”28, nessa modalidade incluindo-se não somente as mensagens via telex, como também as mensagens através de códigos como o “código morse” e, até mesmo o fac-similes. Entendemos que o conceito de comunicações telegráficas juntamente com o conceito de comunicações através de correspondência são indivíduos que compõem, junto com outros indivíduos, a classe das “comunicações através de escrita, manuscrita ou eletrônica/mecânica” 27 28 Conforme Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em obra já citada, página 149 Idem, p. 529 24 E nessa mesma classe das “comunicações através de escrita, manuscrita ou eletrônica/mecânica” encontram-se também os “dados”, termo normalmente utilizado para os meios tecnológicos mais avançados de transmissão de informações, onde se incluem os e-mails (que entendemos se enquadrar também na classe das correspondências) entre outros. As “comunicações telefônicas”, a seu turno, são trocas de informações entre duas ou mais pessoas através de “processo de transmissão de sons a distância, através de cabos, fios” 29, ou qualquer outro meio de transporte de sons”. Vamos à análise dos limites. O enunciado do inciso XII do artigo 5 o fixa limite expresso somente à inviolabilidade do sigilo às comunicações telefônicas, sendo que, já adiantamos, entendemos pela existência de limites à inviolabilidade do sigilo das outras formas de comunicação previstas no inciso em exame, isso em razão da necessidade de harmonia entre os direitos individuais. Citemos como exemplo, se temos fortes indícios que dentro de determinada “carta” há, em depósito, quantidade de pó tóxico capaz de levar o destinatário ou outra pessoa que abra a carta, a óbito, é justo, a contrario sensu do princípio da inviolabilidade da vida, impedir-se a violação de tal carta ? E se numa carta há escritos que são capazes de levar o seu destinatário, pessoa depressiva, a cometer o suicídio, devemos, em nome do sigilo de correspondência, permitir a ocorrência da instigação ao suicídio ? Claro que não. Os limites da inviolabilidade das comunicações em geral existem e se consubstanciam na necessidade de manutenção de outros direitos individuais, com a aplicação do princípio da harmonia, compondo conflitos entre direitos individuais. Assim, apresentamos a extensão do direito à inviolabilidade do sigilo das comunicações : é proibida a violação da troca de informações entre duas ou mais pessoas, seja tal violação procedida via correspondência (qualquer instrumento que, através da escrita, manuscrita ou mecânica/eletrônica, serve para a comunicação entre pessoas), via telegrafia (processo de transmissão de mensagens a distância mediante um código de sinais) ou via telefônica (processo de transmissão de sons a distância, através de cabos, fios”30, ou qualquer outro meio de transporte de sons), desde que tal violação não seja capaz de levar a iminente risco de afronta a outros direitos individuais, como o direito à vida e à segurança, necessitando-se de autorização judicial somente se tal violação for necessária à comunicação telefônica e para fins de investigação criminAl ou instrução processual penal. 6- A liberdade de profissão Enuncia o inciso XIII do artigo 5o. da CF/88 que : “ é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.” Vamos, de início, aos significados de “trabalho”, “ofício” e “profissão”, buscando-os em Aurélio Buarque de Holanda31 : 29 Conforme Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em obra já citada, página 529 30 Conforme Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em obra já citada, página 529 31 Conforme Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em obra já citada, páginas 541, 203 25 “ trabalho sm 1. Aplicação das forças e faculdades humanas para alcançar um determinado fim. 2. Atividade coordenada, de caráter físico e/ou intelectual, necessária à realização de qualquer tarefa, serviço ou empreendimento. 3. Trabalho (2) remunerado ou assalariado; serviço, emprego. 4. Local onde se exerce essa atividade 5. Qualquer obra realizada. 6. Lida, labuta. 7. Brás. V.bruxaria (1)” “ emprego sm 1. ato de empregar; aplicação. 2. cargo ou ocupação em serviçco particular, público, etc; colocação” “ ofício sm 1. Trabalho, ocupação, função, mister. 2. V. profissão(2). 3. Incumbência, missão” Dos significados denotativos acima apresentados, não é difícil concluir que os três termos utilizados no inciso XIII refletem, se não sinônimos, indivíduos de uma mesma classe, espécies de um mesmo gênero, classe ou gênero de prestação de labor (disposição de força de trabalho) com o objetivo de percepção de determinada remuneração. Tal prestação de labor pode ser praticada sob várias formas, em vínculo empregatício (na forma do artigo 3o da CLT), em prestação de serviço autônomo, em prestação de serviço eventual etc, sendo certo que qualquer dessas formas refletem a necessidade do ser humana de, mediante o recebimento de remuneração, ter condições de arcar com o custo financeiro da subsistência sua e de sua família, necessidade essa que se torna ainda mais rígida num mundo capitalista como o em que vivemos. Em suma, o enunciado sob exame defende a liberdade de prestação de labor, sendo, entretanto, uma norma jurídica de eficácia contida “permitindo que lei infraconstitucional venha a limita-la, criando requisitos e qualificações para o exercício de determinadas profissões. Logo, enquanto não existir lei acerca dessa ou daquela profissão, a permissão constitucional tem alcance amplo”32 É importante, para que possamos fixar a extensão do direito de liberdade de profissão, analisemos os limites da lei capaz de limitar a eficácia da norma jurídica em exame. Entendemos que a melhor forma de analisar tal limitação é perguntar : até que ponto a lei pode impedir o exercício de uma profissão ou impor requisitos mínimos para o seu exercício ? Por exemplo, afronta o princípio da liberdade de profissão a determinação legal que somente pessoas formadas em medicina, com tantos anos de residência médica, possam exercer a profissão de médico ? É claro que não, há determinadas profissões que necessitam de qualidades especiais, sejam elas físicas, sejam elas intelectuais, dos indivíduos propostos a exerce-las e é exatamente essa necessidade de qualidades especiais que deve motivar o legislador a reduzir a eficácia da princípio da liberdade de profissão. Assim, a limitação ao exercício de determinada profissão deverá ter nexo de causalidade com as qualidades especiais, sejam elas físicas, sejam intelectuais, impostas, pela própria característica da profissão, para o seu bom desempenho. Qualquer limitação que extrapole essa causalidade afronta a Constituição. Eis a extensão do direito à liberdade de profissão : É proibida a limitação pelo Estado do exercício de qualquer profissão (prestação de labor com objetivos remuneratórios), sendo possível 32 ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 7a. edição, revista e atualizada, 2003, p. 127 26 somente limitação que imponha requisitos especiais, físicos ou intelectuais, para o exercício de determinadas profissões que necessitem características especiais de seus exercentes para o seu desempenho a contento. 7- A limitação da retroatividade da lei Impõe o inciso XXXVI do artigo 5o. da CF/88 que : “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;” Vamos iniciar a interpretação desse inciso apreendendo os conceitos de direito adquirido, de ato jurídico perfeito e de coisa julgada. Apesar de defendermos, em nome na alta constitucionalidade, que não se há de interpretar a constituição com base em conceitos apresentados por legislação infraconstitucional, entendemos que conceitos como os que ora estamos a analisar, advém da própria cultura jurídica nacional, são termos técnicos e que foram utilizados pelo Constituinte Originária com o papel de terem o seu significado técnico utilizado não só pela legislação anterior à CF/88, mas também pela doutrina e pela jurisprudência, motivo pelo qual, nesse caso específico, basearemos a nossa interpretação nos conceitos apresentados pelo Decreto-Lei no. 4.657, de 4 de setembro de 1942, conhecido por “Lei de Introdução ao Código Civil”, que, em seu artigo 6o. enuncia que : “ A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Par. 1o. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou Par. 2o. Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, com o aqueles cujo começo do exercício tenha pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. Par. 3o. caiba recurso.” Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não Quanto à coisa julgada, é necessário diferenciarmos a coisa julgada formal (situação jurídica em que uma decisão é imutável por não lhe caber mais qualquer recurso previsto em lei, mas somente a rescisão mediante ação judicial específica, por motivos específicos, denomina ação rescisória) e a coisa julgada material ( situação jurídica em que uma decisão é imutável por não lhe caber mais qualquer recurso previsto em lei, nem sequer cabe a rescisão mediante ação rescisória, ou porque já extrapolado o prazo legal para a propositura de tal ação rescisórias ou porque a situação da decisão não se enquadra em qualquer das hipóteses legais para a propositura da rescisória), entendemos, entretanto, que somente a coisa julgada material se enquadra no conceito de “coisa julgada” constante do inciso XXXVI do artigo 5o. da CF/88 e, neste ponto, vale transcrevermos os ensinamentos de José Afonso da Silva33 : “ A garantia, aqui, refere-se à coisa julgada material, não à coisa julgada formal. Ficou, pois, superada a definição do art. 6o., parágrafo 3o., da Lei de Introdução ao Código Civil. Prevalece, hoje, o conceito do Código de Processo Civil : Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário(art. 467).” 33 Op. Cit. p. 381 27 Dizemos que o texto constitucional só se refere à coisa julgada material, em oposição à opinião de Pontes de Miranda, porque o que se protege é a prestação jurisdicional definitivamente outorgada” Quanto ao direito adquirido, podemos conceitua-lo como situação fático-jurídica em que estão completos, em concreto, todos os requisitos para o enquadramento de um determinado fato a uma hipótese legal, proporcionando ao detentor de tal direito (sujeito ativo de tal situação fática) a possibilidade do gozo de determinada regalia. Valendo esclarecer que, como bem aponta Celso Bastos34, “toda conceituação é perigosa. A de direito adquirido é, contudo, um permanente desafio. Ouça-se, ainda uma vez, o insigne Vicente Ráo : “Seja qual for a doutrina que se aceite, o que não sofre dúvida é não haverem os juristas, até hoje, encontrado uma fórmula única e geral, aplicável a todos os aspectos do conflito das leis no tempo. E por haver-se, afinal, verificado a impossibilidade da compreensão de toda a disciplina em uma só fórmula, em um só princípio, Roubier, em sua citada exposição de motivos do anteprojeto de reforma do Código Civil Francês, procura apresentar tantos princípios, ou quando menos, tantas regras gerais, quantas se revelarem necessárias”. José Afonso da Silva35 explica que “a doutrina não fixou com precisão o conceito de direito adquirido. É ainda a opinião de Gabba que orienta sua noção, destacando como seus elementos caracterizadores : 1o.) ter sido produzido por um fato idôneo para a sua produção; 2o.) ter se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular. A Lei de Introdução ao Código Civil declara que se consideram adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. “ Já o ato jurídico perfeito tem conceituação que se confundo com a de direito adquirido, sendo que “a diferença entre direito adquirido e ato jurídico perfeito está em que aquele emana diretamente da lei em favor de um titular, enquanto o segundo é negócio fundado na lei “ O ato jurídico perfeito, a que se refere o art. 153, parágrafo 3o. (agora, art. 5o., XXXVI), é o negócio jurídico, ou ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais de vontade como os negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos como as reclamações, interpretações, a fixação de prazo para aceitação de doação, as comunicações, a constituição de domicílio, as notificações, o reconhecimento para interromper a prescrição ou com sua eficácia (ato jurídico stricto sensu). Ato jurídico perfeito, nos termos do art. 153, parágrafo 3o. (art. 5o., XXXVI) “é aquele que sob o regime da lei antiga se tornou apto para produzir os seus efeitos pela verificação de todos os requisitos a isso indispensável36”. 37 Ora, o papel do Direito é estabilizar a sociedade, evitando conflitos, motivo pelo qual as regras aplicáveis em determinado período devem, efetivamente, nortear o comportamento social no período de sua vigência. De outra forma, impossível seria a estabilidade das relações, motivo pelo qual é direito individual previsto na CF/88 que a retroatividade das leis não alcance a coisa julgada material, o direito adquirido (situação fático-jurídica em que estão completos, em concreto, todos os requisitos para o enquadramento de um determinado fato a uma hipótese legal, proporcionando ao detentor de tal direito (sujeito ativo de tal situação fática) a possibilidade do gozo de determinada regalia) e o ato jurídico perfeito (aquele que sob o regime da lei antiga se tornou apto para produzir os seus efeitos pela verificação de todos os requisitos a isso indispensável). 34 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 15a. edição, ampliada e atualizada, 1994, p.199 35 Op. Cit. p. 379 36 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a emenda no. 1, de 1969, t.V/102 37 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo : Malheiros, 10a. edição revista, 1995, p. 381 28 8- O princípio do devido processo legal. Direito à ampla defesa. Direito ao Contraditório. Direito à presunção de inocência. Direito de ser julgado pelo Tribunal do Júri nas hipóteses de crimes dolosos contra a vida O princípio do devido processo legal consta do inciso LIV do artigo 5o. da CF/88, in verbis : “ Ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” O “devido processo legal” é a garantia de que se realize a tutela jurisdicional de acordo com regras previamente definidas e que garantam, se não a justiça da decisão, todas as oportunidades possíveis para as partes defenderem os seus interesses. Luiz Alberto David Araujo38, com base no magistério de Nelson Nery Júnior, afirma que “a doutrina e a jurisprudência brasileiras têm empregado o princípio num sentido eminentemente processual. Neste específico, o devido processo legal traduziria (...) um princípio-mãe, que implicaria a observância estrita das seguintes regras : a) b) c) d) e) f) g) h) direito a prévia citação para conhecimento do teor da acusação; direito a um jus imparcial; direito ao arrolamento de testemunhas e à elaboração de reperguntas; direito ao contraditório (contrariar provas inclusive) direito à defesa técnica direito à igualdade entre acusação e defesa direito de não ser acusado ou processado com base em provas ilícitas privilégio contra a auto-incriminação” Alexandre de Moraes39 comenta que “o devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).” Na esteira do devido processo legal encontram-se outros quatro direitos individuais, constantes dos incisos XXXVIII, LV, LVII e do artigo 5o. da CF/88, in verbis: “ XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados : a) b) c) d) 38 39 plenitude de defesa; o sigilo das votações; a soberania dos verecditos; a competência para o julgamentos dos crimes dolosos contra a vida; “ Op. Cit. p. 149 Op. Cit. p. 117 29 “LV -aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral serão assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” “LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Nesse ponto destaque-se que a “ampla defesa” é a condição que deve ser proporcionada aos acusados em geral, e não somente no campo judicial, de possibilidade de se opor à acusação feita, inclusive apresentando todos os elementos possíveis e lícitos para demonstração da improcedência da acusação, já o contraditório “além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes ao contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório”. Poderíamos entender por “contraditório” a faculdade dada a cada uma das partes combatentes num processo para apresentar as razões de prosperidade do seu interesse, seja acusando, seja defendendo-se. Como presunção de inocência temos a obrigação da Acusação de produzir provas contra o Réu, tratando-se de verdadeira regra de distribuição do ônus probatório. Já o reconhecimento do Tribunal do Júri revela o direito individual dos cidadãos serem julgados, pelo menos nos crimes intencionais contra a vida, sejam consumados, sejam tentados, por seus pares, de forma que a fim de evitar parcialidades no julgamento, é imposta não só a soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, como também o sigilo das votações. Portanto, é direito individual previsto pela Constituição a garantia de que se realize a tutela jurisdicional de acordo com regras previamente definidas e que garantam, se não a justiça da decisão, todas as oportunidades possíveis para as partes defenderem os seus interesses (devido processo judicial), incluindo o amplo direito de defesa (condição que deve ser proporcionada aos acusados em geral, e não somente no campo judicial, de possibilidade de se opor à acusação feita, inclusive apresentando todos os elementos possíveis e lícitos para demonstração da improcedência da acusação), o contraditório (faculdade dada a cada uma das partes combatentes num processo para apresentar as razões de prosperidade do seu interesse, seja acusando, seja defendendo-se) e a presunção de inocência (a obrigação da Acusação de produzir provas contra o Réu, tratando-se de verdadeira regra de distribuição do ônus probatório). 9 – Pressupostos constitucionais para a privação da liberdade Como já exposto quando da análise da “proibição da tortura e de tratamento desumano ou degradante” e do “princípio da dignidade da pessoa humana” que a privação da liberdade do ser humano deve ser tida pelo ordenamento jurídico brasileiro como exceção e conduta extrema com objetivo mor de estabilizar a sociedade, isto é, limitando o comportamento individual em prol da manutenção social. Sendo uma exceção, a privação de liberdade somente será, na forma da lei (legalidade stricto sensu), cabível por comportamento criminal típico (prática de delitos) objeto de condenação criminal irrecorrível ou por medidas, flagrante-delito ou medida cautelar tendente a 30 garantia da investigação penal (prisão temporária) e da execução penal (prisão preventiva). É possível, mas de forma ainda mais restrita e somente nas hipóteses permitidas pela Constituição, a prisão civil. Em suma, a liberdade é regra, a privação da liberdade é exceção e dessa forma deve ser interpretada toda e qualquer regra potencialmente privativa da liberdade, como se verifica no inciso LXVI do artigo 5o. da CF/88, abaixo transcrito: “ ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;” Se do ponto de vista dos delitos a privação da liberdade pode ocorrer em decorrência de sentenças penais condenatórias ou através de prisões cautelares (em flagrante delito, prisão preventiva e prisão temporária), do ponto de vista civil, a Constituição Federal, no seu inciso LXVII do artigo 5o, especifica as hipóteses de prisão civil : “ não haverá prisão por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.” Portanto, em sede de prisão civil, somente 2(duas) são as hipóteses possíveis : o inadimplemento voluntário e injustificado de alimentos e o depósito infiel. Em relação ao depósito infiel, há que se destacar que o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, conforme Decreto no. 678, de 6 de novembro de 1992, de aplicação imediata em razão do parágrafo 2o. do artigo 5o. da CF/88, e que proíbe a prisão por depósito infiel. Reza o artigo 7o. no. 7, do Pacto de São José da Costa Rica que “ Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.Importante ressaltar que entendemos que as normas jurídicas constantes tratados internacionais em que o Brasil é signitário têm natureza jurídica infraconstitucional, não alterando o elenco de hipóteses constitucionalmente previstas de prisão civil, mas revogando a legislação ordinária anterior (princípio cronológico de derrogação) que previa a prisão por depósito infiel. 10 - O Direito de Antena É expressão do direito constitucional português, conforme o artigo 40º (Direitos de antena, de resposta e de réplica) que tem o sentido de direito a meios para veiculação de informações. Na prática, traduz o direito à transmissão gratuita, nos meios de comunicação, especialmente emissoras de rádio e televisão, para a divulgação e a propagação de propostas de partidos políticos, sindicatos, organizações profissionais , doutrinas. No direito constitucional pátrio, o instituto similar é encontrado no artigo 17, parágrafo 3º, o qual tem o objetivo precípuo de garantir aos partidos políticos espaços nos meios de comunicação, no caso rádio e televisão, para a veiculação de suas propostas políticas. Entendo que a norma contida no parágrafo 3º, do artigo 17º é um desdobramento do artigo 1º, inciso V da Constituição, uma vez que, na prática, garante o pluralismo partidário, a diversidade de pensamento e ideologias políticas e o regime democrático. O conteúdo desta norma tem, ainda, a finalidade de igualar os partidos políticos com menor poder econômico. No entanto, tem sido muito mal utilizado no Brasil, devido a péssima legislação 31 partidária, a qual não impõe cláusulas de barreira e o que podemos observar são diversos partidos políticos de aluguel vendendo espaço político, no rádio e na televisão, para candidatos majoritários e com maior poder político e econômico. Todavia, a norma, apesar de não ter eficácia de fato, tem eficácia jurídica. Poderíamos, dizer que a eficácia jurídica é plena e que a eficácia jurídica está contida, mas que poderá se tornar plena, através de uma legislação eleitoral decente. O pluralismo político e a democracia não são fundamentos para proteger os partidos políticos. A sua finalidade é a proteção da pessoa humana para que não fiquem reféns de uma única ideologia política, de um regime ditatorial. Portanto, estes fundamentos visam à proteção da liberdade individual e coletiva das pessoas. Lembramos, também, que somente é possível o voto direto, secreto, universal e periódico dentro de um regime com pluralidade política. Assim, o artigo 17º, 3º da constituição está protegido pelo parágrafo 4º, II,do artigo 60º da Constituição. 11 – O Direito de Informação Jornalística Conforme, nos ensina Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, in Curso de Direito Constitucional , p.112. “A existência de uma opinião livre é um dos primeiros pressupostos de democracia de um país. Só é possível cogitar de opinião pública livre onde existe liberdade de informação jornalística. Por isso, entende-se que esta, mais do que um direito, é uma garantia institucional da democracia.” “...o direito à informação jornalística é um direito preferencial em relação aos demais...” A liberdade de informação jornalística está relacionada ao direito de respostas. Portanto, ao contraditório. Esta liberdade não é absoluta, pois a informação tem de ser verídica, pelo menos sob o enfoque da lógica da opinião de quem é responsável pelo veículo de comunicação.Sendo a informação verídica, o direito de informar é superior ao direito à honra da pessoa atingida pela divulgação da informação jornalística. Todavia, a informação jornalística , mesmo sendo verdadeira, não pode ser de forma abusiva e insidiosa. O artigo 220, parágrafo 1º da Constituição que dispõe sobre a liberdade de informação jornalística ou liberdade de imprensa é extensão da liberdade pensamento : opinião e de expressão ,do artigo 5º, inciso IV e XIV da Constituição. Entendemos que a liberdade de informação jornalística é muito ampla, tendo em vista que não há censura prévia, mas não absoluta. O limite é o artigo 5º, XXXIII; isto é, a divulgação de informações que possam colocar em risco a segurança do Estado e da sociedade ou mesmo das pessoas individualmente, as quais devem ser avaliadas em cada caso concreto, utilizando-se dos princípios da dignidade humana, da razoabilidade e o da proporcionalidade. 32 Logo, o parágrafo 1º do artigo 220 é um direito de liberdade frente ao Estado e, portanto, um direito individual. 12 – O Direito de Resposta O direito de resposta, previsto no artigo 5º, inciso V, da Constituição , está intimamente ligado ao direito de liberdade jornalística. Assim, por um lado é garantido a liberdade de opinião, de expressão, de livre manifestação das idéias e do pensamento, sem censura prévia. Por outro, é garantido o direito de respostas, quando a divulgação e a propagação destas idéias, pensamentos, opiniões e fatos da realidade, via os meios de comunicação social, venham ofender a honra ou a intimidade de alguém. O direito de resposta é uma forma de contraditório e deve ser proporcional ao dano sofrido. Este direito visa, na prática, evitar censura prévia aos meios de comunicação social, uma vez que existe liberdade quase absoluta de divulgação de informações, cujo limite, entendo que sãos os mesmos do artigo 5º, XXXIII da Constituição; isto é, a divulgação de informações sigilosas, definidas em lei, que coloquem em risco a segurança do Estado e da sociedade e, em alguns casos concretos, à pessoa, considerada individualmente, tendo em vista a sua dignidade, a sua vida e a sua segurança pessoal, porém tudo sendo analisado dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, dentro de cada caso concreto, uma vez que em alguns caso o direito de respostas pode não resolver, posteriormente, a reparação do dano sofrido.Aí o juiz deve ponderar qual o direito a ser exercido no caso específico. É possível que o direito de resposta não repare o dano sofrido, assim poderá ser cumulado com o direito à indenização por dano moral, material ou à imagem. 13 - Direito de Certidão O direito de certidão está expressamente garantido no texto do artigo 5º, inciso XXXIV , “b” da Constituição. Este direito é de suma importância para o controle dos atos da administração pública e para o direito de defesa, além de sua importância para o esclarecimento de situações de interesse particular. Com o objetivo de assegurar este direito a todas as pessoas e tendo em vista sua importância para o exercício pleno da cidadania, já que é uma garantia constitucional,o constituinte isentou o seu requerimento do pagamento de taxas. Assim, pelo menos do direito de certidão, todas as pessoas igualam-se de direito e de fato, independentemente, da condição econômica. A parte ativa deste direito são, potencialmente, todas as pessoas e a parte passiva são, potencialmente, todos os órgãos ou repartições públicas, dos três poderes e das três esferas de governo, ou quem faça as suas vezes, como por exemplo um Cartório de Registro de Imóveis. O direito de certidão serve tanto para defesa de interesses individuais, como para a defesa de interesses coletivos da sociedade. É um desdobramento do direito de informação, uma vez que as informações requeridas dos órgãos públicos, conforme assegurado pelo artigo 5º, XXXIII, deve ser respondida em forma de certidão. 33 Entendo que o direito de certidão é uma garantia individual, uma vez que limita o poder do Estado frente à liberdade do cidadão e, no caso, é mais amplo de todas as pessoas,mas pode, também, ser utilizada para a defesa de interesse coletivo. Portanto, é direito individual e coletivo ao mesmo tempo. É fato que a maioria dos requerimentos acabam no Judiciário, via a garantia do Mandado de Segurança, tendo em vista que, não raro, os órgãos e repartições públicas acabam negando esta garantia, expressamente ou por meio do silêncio. Acredito que a extensão do direito de certidão, fora do artigo 5º da Constituição, é o princípio da publicidade expresso no texto do artigo 37º da Constituição, que na verdade é também extensão do direito à informação. 14- Direito de Petição O direito de petição literalmente expresso no texto do artigo 5º, inciso XXXIV, “a”, da Constituição é direito de amplo acesso ao Judiciário, como afirma Celso Ribeiro Bastos, mas entendo que não só ao judiciário, mas também ao Legislativo e ao Executivo. O direito de petição é o direito de pedir algo a alguém. A Constituição não definiu nenhuma forma para o exercício do direito de petição. Assim, a petição poderá ter a forma de requerimento, de ofício, carta etc. No entanto, cada órgão poderá regulamentar a forma para efeitos de praticidade, mas nunca com o intuito de restringir o direito. O pedido poderá ter diversos conteúdos, como o requerimento de uma certidão, o requerimento de informações dos órgãos públicos, a investigação de uma denúncia de irregularidade ou ilegalidade pelo Tribunal de Contas, pelas Comissões dos Legislativos, pelo Judiciário, quando for o caso, às corregedorias das polícias, do Ministério Público, às ouvidorias etc. Historicamente, o direito de petição foi uma luta da humanidade, cuja conquista maior foi o “Petition of Rights” de 1628, o qual , na realidade foi uma meio de transação entre o parlamento inglês e o rei da Inglaterra, tendo como objetivo o cumprimento dos direitos individuais expressos no artigo 39º da Magna Carta. Hoje, no Brasil e na grande maioria dos Estados, qualquer pessoa poderá fazer o pedido ou petição às autoridades, dos três poderes, das três esferas de governo ou a quem faça as suas vezes para o exercício de direitos públicos subjetivos. Portanto, o direito de petição é uma garantia constitucional para o exercício de direitos individuais ou coletivos, com eficácia plena. 15 - O Direito de Informação Pública O direito de informação, previsto no artigo 5º, XXXIII, a exemplo dos direitos de petição, de certidão é instrumento essencial para o controle social do Estado e para a garantia dos direitos cidadãos, ao mesmo tempo individuais e coletivos. O princípio da publicidade disposto no artigo 37º da Constituição é extensão do direito à informação, pois fica claro o dever de transparência dos agentes estatais e que a administração pública não deve ter segredos, a não ser as informações sigilosas que sejam imprescindíveis à segurança do Estado e da sociedade. 34 Observamos, muitas vezes, os agentes públicos não darem respostas , por indeferimento, às informações solicitas dos órgãos públicos com a alegação de tais informações serem sigilosas, utilizando-se de conveniência e oportunidade; isto é, de discricionariedade, como se o exercício da discricionariedade, também, não estivesse dentro dos parâmetros legais. Entendo que não faz parte da discricionariedade dos agentes públicos dizerem se uma informação é ou não é sigilosa. O rol das informações sigilosas deve estar em lei. Não raro, ainda, os agentes públicos não dão as respostas por meio do silêncio, fato que é mais grave ainda, pois sequer se importam com a petição dos cidadãos, num verdadeiro descaso de desrespeito à cidadania. Por último, o direito à informação dos órgãos públicos acaba sendo exercido não pelo direito de petição, mas através do Mandado de Segurança que acaba sendo a garantia da garantia. 16- O Direito à Informação O direito à informação tem dois aspectos: o direito de informar, como aspecto da liberdade de pensamento e o direito de ser informado, cujo objetivo é a formação de uma opinião pública consciente, mas que envolve , também, o direito à critica, à opinião individual sobre aquilo que é informado. Segundo José Afonso da Silva é direito de feições coletiva tendo em vista que se concretiza através dos Meios de Comunicação Social de Massa, porém tem um aspecto da liberdade de manifestação do pensamento e de crítica, neste sentido é, também, direito individual, conforme o artigo 5º, IV (direito individual), XIV (direito coletivo)da Constituição. Entende, ainda, o citado autor que a liberdade de informação não é mera função individual, é função social. O direito à informação está relacionado, também, com o direito à informação pública , com o direito à informação jornalística e com o direito de petição e de certidão e, conseqüente, são meios do exercício da democracia, uma vez que não existe democracia sem informação e sem controle social daquilo que é informado. 17- O Direito de Expressão Os direitos de expressão, de opinião, de pensamento estão interrelacionados e não têm formas exclusivas de manifestação, sendo que uma mesma obra poderá ter a expressão e a opinião ao mesmo tempo. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior, Curso de Direito Constitucional , p.109 “A peculiaridade do direito de expressão reside na ausência de juízo de valor, pois, segundo Husserl, ‘a produtividade se exaure no exprimir e na forma, que sobrevém nova com ele’. ” Segundo os autores citados, “...enquanto a opinião diz respeito a um juízo conceitual, uma afirmação do pensamento, a expressão consiste na sublimação da forma das sensações humanas, ou seja, nas situações em que o indivíduo manifesta seus sentimentos ou sua criatividade, independentmente da formulação de convicções, juízos de valor ou conceitos.” O fundamento específico do direito de opinião ,está no artigo 5º, IV e o de expressão no artigo 5º, IX da Constituição.Porém, os dois são complementares, uma vez que tanto direito de 35 opinião, quanto o direito de expressão trazem, sempre ,um pensamento humano, o qual poderá ter forma abstrata ou concreta.A expressão está mais para o mundo da arte, enquanto a opinião está mais para o mundo da razão. No entanto, é impossível afirmar que a arte não tem razão e que a opinião não poderá ter arte. Por fim, acredito que a definição conceitual destes direitos está no campo da interdicisplinaridade ; ou seja, em outra ciência que não a jurídica. A jurídica diz que eles existem, são direitos individuais, estão garantidos pela liberdade de informação jornalística, de divulgação e propagação das idéias, são direitos subjetivos de todas as pessoas garantidos pela Constitituição e classificados como cláusulas pétreas. Podemos afirmar que a extensão destes direitos está no caput do artigo 37º da Constituição; isto é, no princípio da impessoalidade da administração pública. 18 – O Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição Este princípio tem diversas expressões sinônimas, como princípio da proteção judiciária, princípio do livre acesso ao Poder Judiciário, princípio do controle jurisdicional, princípio da ubiqüidade da justiça. No entanto, o mais utilizado pela doutrina é o princípio da inafastabilidade da jurisdição, decorrente do texto do artigo 5º, inciso XXXV da Constituição “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” O texto constitucional em tela garante o direito de ação para todas as pessoas e o monopólio do Poder Judiciário para julgar em definitivo as controvérsias jurídicas e para declarar direitos; isto é, o monopólio da jurisdição. O judiciário, através de sua atividade jurisdicional, decidirá sobre a forma de reparação do direito lesado, quanto poderá proteger direito passível de lesão, quando este estiver sob ameaça de dano, impedindo que a lesão ocorra. Portanto, o judiciário trem amplo poder de cautela. Existe a exceção prevista no artigo 217, parágrafos 1º e 2º que trata da Justiça Desportiva, onde a parte interessada não pode fazer opção entre uma e outra jurisdição para o contencioso inicial. Todavia, ao final dos recursos dentro da instância desportiva, creio ser possível a instância do judiciário, em existindo direito ou ameaça a direito,considerando que a norma prevista no artigo 5º, parágrafo XXXV prevalece sobre a do artigo 217, parágrafos 1º e 2º. Salientamos, ainda, que o Pacto de São José da Costa Rica, prevê no seu artigo 8º, que o duplo grau de jurisdição é considerado direito humano fundamental, o qual tem plena vigência no Brasil por força do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição. No Brasil, não é possível criar o chamado contencioso administrativo para julgamento com força de coisa julgada de questões referentes à administração pública. No entanto, pode-se criar instâncias administrativas com a finalidade de julgamentos válidos em definitivo no âmbito da administração público, mas sem prejuízo de recurso à instância jurisdicional quando a parte interessada sentir-se com seu direito lesado ou ameaçado. Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, p.214 afirma que: “É certo que a lei poderá criar órgãos administrativos diante dos quais seja possível apresentarem-se reclamações contra decisões administrativas. A lei poderá igualmente prever recursos administrativos para órgãos monocráticos ou colegiados. Mas estes remédios administrativos não passarão nunca de uma mera via opcional...” 36 19- O Direito de Propriedade Este direito talvez seja um dos maiores problemas da humanidade, uma vez que todos o ambicionam e poucos têm o domínio. Alguns autores afirmam que os conflitos jurídicos entre os seres humanos surgiram quando o homem fez a primeira cerca e que, na realidade, o Estado foi construído para garantir a segurança e os direitos dos proprietários contra os não proprietários. Antes o homem lutava contra a opressão da natureza, mas com o desenvolvimento do sistema de propriedade passou a lutar contra a opressão e subordinação do próprio homem. Porém, o intelecto humano acabou criando regras para definir as relações entre o Estado e os proprietários, obrigando-os a exercerem seus direitos de propriedade com obrigações e limitações, apesar de lhes garantir salvaguardas. O direito de propriedade acabou gerando o poder econômico, que acabou definindo o poder político, sendo simbólica a Magna Carta de 1215 e o ápice, a Revolução Francesa de 1789. Nos primórdios, o direito de propriedade era praticamente sinônimo de domínio de terras, glebas e escravos, mas com a evolução da humanidade, temos bens corpóreos e não corpóreos, físicos e não físicos. Tudo que for passível de estar no comércio é passível de ser definido como propriedade, como, por exemplo, a propriedade intelectual. Os direitos de propriedade estão basicamente previstos nos artigos 5º, XXII ao XXIX, 170, II e III, 176, 182, 183, 184, 185, 186, 191. A Constituição regula os direitos e as limitações dos direitos de propriedade. A propriedade pode ser pública ou privada, sendo a que a propriedade territorial poderá ser urbana ou rural.Sendo que para a propriedade ser considerada urbana deverá ter os requisitos definidos em lei e toda propriedade territorial que não for considerada urbana por lei, deve ser conceituada , por exclusão,como rural. As propriedades públicas, segundo sua destinação, podem ser classificadas da seguinte maneira : as de uso comum do povo, as de uso especial e as dominicais. Sendo que as propriedades públicas podem ser alienadas somente por disposição legal específica, são impenhoráveis e impassíveis de usucapião. As terras devolutas, isto é, aquelas que não possuem registro junto aos Cartórios de Registro de Imóveis, são consideradas de propriedade pública. Para Celso Ribeiro Bastos, p.208 o. c., “A propriedade tornou-se... o anteparo constitucional entre o domínio privado e o público. Neste ponto reside a essência da proteção constitucional: é impedir que o Estado, por medida genérica ou abstrata, evite a apropriação particular de bens econômicos ou, já tendo esta ocorrido, venha a sacrifica-lo mediante processo de confisco.” Limitações ao direito de propriedade O direito de propriedade que já foi absoluto, em nossos dias encontra limitações jurídicas, como: 1-a requisição de propriedade particular em caso de eminente perigo público, porém não impede posterior indenização em caso de dano;2- a servidão administrativa; 3-, a limitação 37 administrativa, com a finalidade de atender ao bem comum; 4-a desapropriação para fins de reforma agrária, urbana a pretexto de interesse social ou de utilidade pública ;5-e a expropriação; isto é, retirar a propriedade sem pagamento, sem indenização, quando a gleba for utilizada para o plantio ilegal de planta psicotrópica. A função social da propriedade Segundo Celso Ribeiro Bastos, uma das características da propriedade é o uso econômico dela, uma vez que a propriedade não pode existir apenas por capricho, por egoísmo. Ela deve atingir seu fim social. “é como se a propriedade se apagasse quando a utilização econômica desaparece.” O mesmo autor afirma, ainda, p.210 : “a chamada função social da propriedade nada mais é do que o conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, a recolocar a propriedade na sua trilha normal.” “ O conteúdo da função social das terras urbanas será aquela que derivar do plano diretor”, artigo 182, parágrafo 1º da Constituição e agora o Estatuto das Cidades. O artigo 184 da Constituição prevê a desapropriação de imóveis rurais que não estejam cumprindo suas funções sociais, as chamadas terras improdutivas, portanto, aquelas que não geram economia em decorrência da omissão do proprietário. No entanto, acredito que não basta apenas a produtividade para uma propriedade cumprir a sua função social. Não podemos considerar apenas o requisito econômico, é necessário considerar, também, a proteção ambiental, a dignidade da pessoa humana, a soberania nacional , a segurança pública, o regime democrático e todos os fundamentos do artigo 170 da Constituição ,entre outros fatores. Por fim, o direito de propriedade não existe apenas para proteger a coisa ou o seu proprietário, mas, também, para garantir o direito de todos os seres humanos serem proprietários, especialmente de bens que atendam a sua sobrevivência, como a terra para cultivo. Muitos, entre eles Celso Ribeiro Bastos, importam-se apenas com a função social da propriedade territorial, urbana ou rural. Porém, o conteúdo da norma jurídica expressa no texto do artigo 5º,XXIII, não especifica que tipo de propriedade deve cumprir sua função social.Em a Constituição não distinguindo não compete ao intérprete faze-lo. Conclui-se, assim, que todos os meios de produção, todos as formas de propriedade devem cumprir sua função social, a qual condiciona a livre iniciativa.O inciso XXIII, do artigo 5º é reforçado pelo inciso III, do artigo 170, conforme o pensamento de José Afonso da Silva, Fábio Konder Comparato, Eros Grau. “O poder econômico é uma função social, de serviço à coletividade”, in O Poder de Controle na Sociedade Anônima, Fábio Konder Comparato, p.419, citado na p.683, por José Afonso da Silva, Direito Constitucional Positivo. Eros Grau, Elementos de Direito Econômico, São Paulo, Ed. TR,1981, p.128, citado na p.683, por José Afonso da Silva, Direito Constitucional Positivo. “O princípio da função social da propriedade, para logo se vê, ganha substancialidade precisamente quando aplicado à propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens, implementada sob compromisso com a sua destinação. A propriedade sobre a qual em maior intensidade refletem os efeitos do princípio é justamente a propriedade, dinâmica, dos bens de produção. Na verdade, ao nos referirmos à 38 função social dos bens de produção em dinamismo, estamos a aludir à função social da empresa.” Por fim, o direito à reforma agrária deve ser considerado como extensão do direito de propriedade e de sua função social. 20 – A Dignidade da Pessoa Humana Antes de mais nada, informamos que os conceitos foram retirados da interpretação da excelente obra Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988,, Ingo Wolfgang Sarlet, segunda edição, revista e ampliada, livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002 A dignidade da pessoa humana está expressamente contemplada no artigo 1º, inciso III da Constituição, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. A condição de todos os demais direitos colacionados na Constituição é a supremacia do princípio da dignidade da pessoa humana, considerado o princípio dos princípios de todas as demais normas constitucionais. Kant: “Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio” “O que tem preço pode ser substituído por alguma outra coisa equivalente; o que é superior a qualquer preço, e por isso não permite nenhuma equivalência, tem dignidade.” “A dignidade de um ser racional consiste no fato de ele não obedecer a nenhuma lei que não seja também instituída por ele mesmo” A dignidade da pessoa humana na história A dignidade da pessoa humana já foi relativizada. Para a antiguidade clássica, a dignidade era confundida com a posição social do indivíduo.Existiam pessoas mais dignas e outras menos dignas. Assim, a dignidade podia ser mensurada. Já para os estóicos , a dignidade era uma qualidade inerente ao ser humano e estava ligada à noção de liberdade individual. Santo Tomas de Aquino ( pensamento cirstão), Pico della Mirandola ( a racionalidade é peculiar ao ser humano), Francisco de Vitória (em função do direito natural e da igualdade) foram grandes intelectuais da dignidade da pessoa humana. Samuel Pufendorf afirmou que mesmo o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana e afirmou que o ser humano tinha a liberdade de opção e de agir conforme a razão. Porém, a doutrina jurídica, em especial, buscou seus fundamentos na doutrina de Immanuel Kant, o grande intelectual ,que identificou a dignidade da pessoa humana nos princípios da autonomia ética e da racionalidade do ser humano. Para Kant, “o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade.” 39 Conceito de dignidade da pessoa humana A dignidade da pessoa humana é de categoria axiológica, porém isto não diverge de outros valores e princípios jurídicos e, por isso, não poderá ser conceituada de maneira fixista, em especial, devido e em decorrência da diversidade de valores que se manifesta na sociedade democrática. Assim, o conceito de dignidade é de contornos vago e aberto e está em permanente construção. Mas é certo que a dignidade não pode ser criada, concedida ou retirada, uma vez que é inerente ao ser humano. A dignidade não é inata, porque tem sentido historio-cultural.Portanto, não é algo apriorístico. A liberdade e a garantia a seu direito constituem exigência da dignidade da pessoa humana. Não é mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo seja determinado no contexto da situação concreta da conduta humana. A dignidade da pessoa humana é ao mesmo tempo limite e tarefa dos poderes estatais ( dimensão prestacional e defensiva). A dignidade da pessoa humana não se confunde como os direitos fundamentais, pois a dignidade é o princípio que os rege e os fundamentam e estes são instrumentos de sua concretização. Mas existe um direito fundamental à dignidade da pessoa humana. Ingo Wolfgang Sarlet, assim conceitua a dignidade da pessoa humana: “temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, uma complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” A dignidade da pessoa humana está na condição de princípio(valor) e não faz parte do rol dos direitos e garantias fundamentais e existe, do ponto de vista de sua promoção e proteção,apenas onde for reconhecida pelo direito. Apesar da dignidade não poder ser concedida ou retirada pelo ordenamento jurídico, uma vez que é intrínseca ao ser humano. Ela poderá ser reconhecida para que possa ser promovida e protegida juridicamente pelo Estado. Direito a uma existência digna é diferente de dignidade da pessoa humana. O artigo 1º, II, da Constituição não é uma declaração ética ou moral, mas um princípio constitucional, norma jurídica fundamental da comunidade com eficácia plena e que serve de valor guia não apenas para os direitos fundamentais, mas para todo o ordenamento jurídico, tendo40 se em vista que é o princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa da nossa Constituição. Assim, não resta alternativa, no caso de dúvida, de colisão ou de conflitos de direitos de igual densidade jurídica, sempre deve prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana, no momento da interpretação e da aplicação das normas jurídicas aos casos concretos. 21- O princípio da legalidade O princípio da legalidade, expressão do Estado de Direito, está consagrado na Constituição brasileira especificadamente nos artigos 5º, II, 37 e 84, IV. O art. 5º, inciso II, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O art. 37, em seu caput, determina que a Administração Pública obedeça ao princípio da legalidade. Por fim, o art. 84, inciso IV, prevê como competência do Presidente da República, “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Para poder estabelecer qual é o conteúdo do princípio da legalidade, é necessário primeiramente estudar o que são princípios e compreender o papel que desempenham nos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Ao se constatar a impossibilidade de regulação exaustiva das matérias, recorreu-se aos princípios, os quais apresentam um grau de abstração maior e orientam a conduta de entes públicos e privados. Dentre as diversas definições encontradas na doutrina brasileira, merece destaque a apresentada pelo Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual princípio é “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.”40 O autor, enaltecendo a importância dos princípios, prossegue sua análise dizendo que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos.”41 A importância dos princípios nos ordenamentos jurídicos é também enaltecida por Eduardo García de Enterría. Este autor salienta a função dos princípios especialmente no Direito Administrativo, entendendo que este é o campo mais fértil da legislação contingente e ocasional, e de normas parciais e fugazes. Constata a necessidade de um esqueleto de princípios gerais que permitam inserir e articular as normas. Por fim, conclui que apenas a vinculação a princípios 40 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed., São Paulo: Malheiros Editores Ltda. , 2002, p. 808 e 809. 41 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed., São Paulo: Malheiros Editores Ltda. , 2002, p. 772. 41 jurídicos materiais pode assegurar a liberdade individual e a justiça social, legitimando o Estado como Estado de Direito.42 É preciso também fazer referência ao caráter normativo dos princípios, considerando que atualmente estes, assim como as regras, são considerados espécies do gênero norma. Paulo Bonavides43, em seu livro “Curso de Direito Constitucional” aponta que durante muito tempo os princípios exerceram uma função meramente supletiva e subsidiária. A doutrina positivista compreendia o Direito como um conjunto de leis, excluindo completamente os valores e a dimensão axiológica dos princípios. Entretanto, tal compreensão foi aos poucos se modificando, podendo-se dizer que atualmente os princípios além de terem seu caráter normativo amplamente reconhecido, foram elevados a normas essenciais (normas-chaves) do sistema jurídico. Diferenciando regras e princípios, Robert Alexy salienta que os princípios são normas que ordenam algo a ser realizado da melhor forma possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais. Denomina os princípios de “mandatos de otimização”, podendo eles ser cumpridos em graus diferentes, dependendo das condições reais e jurídicas. As regras, por sua vez, possuem um mecanismo de funcionamento diferente. São normas que, quando válidas, devem ser cumpridas exatamente como prescrito.44 Compreendido o significado do termo “princípio”, é possível então analisar o sentido do princípio da legalidade. Primeiramente é preciso esclarecer que o princípio da legalidade se dirigido à Administração Pública impõe a esta o dever de agir em estrito cumprimento legal, ou seja, só pode atuar quando a lei permitir. Já em relação ao particular, a princípio da legalidade exige apenas que este não afronte os ditames da lei, podendo fazer tudo o que não for proibido. Esta diferença de conteúdo é explicada por Celso Antônio Bandeira de Mello: Enquanto na atividade privada pode-se fazer tudo o que não é proibido, na atividade administrativa só se pode fazer o que é permitido. Em outras palavras, não basta a simples relação de não-contradição, posto que, demais disso, exige-se ainda uma relação de subsunção. Vale dizer, para a legitimidade de um ato administrativo é insuficiente o fato de não ser ofensivo à lei. Cumpre que seja praticado com embasamento em alguma norma permissiva que lhe sirva de supedâneo.45 No que diz respeito ao princípio da legalidade voltado ao particular, percebe-se por meio do art. 5º, inciso II, que só se pode impor uma obrigação ou uma proibição aos indivíduos por meio de lei. Se a conduta não for obrigatória e nem proibida, ela é permitida, seja em razão de lei permissiva ou de ausência de lei regulando a conduta. Ao tratar do princípio da legalidade, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Nunes Serrano Júnior ressaltam que tal princípio além de ser uma garantia ao indivíduo, na medida em que impede que lhe seja imposto um comportamento por meio outro que não o da lei, propicia também o alcance da segurança jurídica. Em relação ao sentido do princípio da legalidade imposto no art. 37 da Constituição Federal, Romeu Felipe Bacellar Filho entende estar este princípio expresso em seu sentido restrito, até por uma questão lógica. Faz esta afirmação constatando que se a Constituição pretendesse abarcar no princípio da legalidade a vinculação da Administração Pública a todo o 46 42 ENTERRÍA, Eduardo García de. La lucha contra las inmunidades del poder. 3. ed., Madrid: Editorial Civitas, 1995. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed., São Paulo: Malheiros, 2001. 44 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 81-115. 45 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed., São Paulo: Malheiros Editores Ltda. , 2002, p. 809. 43 46 42 ordenamento constitucional, seria inútil estabelecer outros princípios constitucionais da Administração. Buscando apreender o significado do princípio da legalidade, Romeu Bacellar Filho observa que: consectário da própria afirmação do Estado de direito – o Estado que se torna, a um só tempo, criador e súdito da norma – o princípio da legalidade, impõe à Administração Pública obediência à lei formal como norte de atuação e limite de garantia ao cidadão. No cumprimento de suas funções, o agente público não tem liberdade ou vontade pessoal. A imperatividade das leis não obriga somente o particular, mas, antes de tudo, a própria Administração ao constituir-lhe poderes-deveres, indisponíveis e irrenunciáveis.47 Ao desenvolver a temática referente ao princípio da legalidade, Romeu Bacellar Filho ressalta que mesmo adotando-se a concepção restrita do princípio da legalidade, isso não significa que o administrador aplique a lei cegamente, desvinculando-a da realidade em que incide. Nas palavras do autor, “a legalidade não tem o condão de transformar o Administrador Público em aplicador cético e desmesurado do texto legal: legalidade não é sinônimo de legalismo (formalismo na aplicação da lei que a desliga da realidade social). O espírito da lei – o conteúdo material – é pressuposto de sua aplicação. O irrestrito cumprimento da norma não significa aplicála fria e descompromissadamente.”48 Ao expor essas idéias observa que a vedação de uma aplicação descomprometida da lei se explica em razão de antes da norma preexistir a finalidade pública. Neste mesmo sentido, Egon Bockmann Moreira ao tratar do princípio da legalidade nega a possibilidade de uma aplicação automática da lei, devendo o administrador estar atento a todo o sistema normativo. Aponta que este princípio tem como função definir os limites da atuação administrativa e impedir que haja influências políticas nesta atuação. Ressalta ainda a importância do princípio ao dizer que “é através da legalidade que se dá exercício concreto do Estado Democrático de Direito. Mediante aplicação formal e substancial da lei, a Administração cumpre a vontade popular e confere vitalidade aos demais preceitos constitucionais.”49 Desenvolvendo estudo sobre o princípio da legalidade, Jorge Manuel Coutinho de Abreu ressalta que tal princípio abarca o princípio da primazia (ou prevalência ou supremacia) e o princípio da reserva legal. Determina o princípio da primazia que os atos de administração devem respeitar as leis, enquanto que o princípio da reserva legal significa que tais atos devem se basear ou fundar em leis. Leila Cuéllar50 também analisa o princípio da legalidade em suas duas dimensões: primazia da lei e reserva legal. Entende a autora que a primazia da lei impõe a obrigatoriedade dos atos infralegais não contrariarem a lei. Já o princípio da reserva legal prescreve que algumas matérias só podem ser reguladas por lei e, portanto, pelo Poder Legislativo. Embora esteja claro que o conteúdo do princípio da legalidade quando relacionado aos particulares é distinto de quando relacionado à Administração Pública, é importante ressaltar que tais conteúdos são complementares, tratado-se do mesmo princípio. “Para que haja respeito ao 47 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar: aplicados ao regime dos servidores públicos civis. Curitiba, 1997. 391 f. Tese (Doutorado em Direito do Estado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. p. 150. 48 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar: aplicados ao regime dos servidores públicos civis. Curitiba, 1997. 391 f. Tese (Doutorado em Direito do Estado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. p. 150-151. 49 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/99. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 67. 50 CUÉLLAR, Leila. As agências reguladoras e seu poder normativo. São Paulo: Dialética, 2001, p. 39 e 40. 43 direito fundamental à legalidade, a Administração não pode agir segundo o critério de seus agentes, coagindo particulares com fundamento meramente na vontade do agente público.”51 22- Direito à vida. Dentre os direitos individuais, o direito à vida mereceu destaque na Constituição Federal que logo no caput do art. 5º garantiu a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade deste direito. Conforme alertam diversos autores52, o direito à vida é o mais fundamental dentre todos os direitos, pois se apresenta como condição necessária para a existência e exercício dos demais direitos. É preciso ressaltar que o direito à vida compreende o direito à existência e o direito a um adequado nível de vida, ou seja, o direito a uma vida digna. Ao explicitar o conteúdo do direito à existência, José Afonso da Silva afirma que este “consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável.”53 O direito à existência traz consigo o direito de não ter o processo vital interrompido por outras causas que não as naturais. Desta forma, mostra-se coerente a Constituição Federal ao prescrever, em seu artigo 5º, inciso XLVII, que “não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. Quanto ao direito a uma vida digna, pode-se afirmar que consiste em assegurar ao homem um nível de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. Para André Ramos Tavares 54, isso implica em assegurar ao indivíduo uma alimentação adequada, vestuário, saúde, moradia, lazer, educação e cultura. Em razão de sua importância, a dignidade da pessoa humana será analisada à parte. O direito à vida traz à discussão duas questões polêmicas enfrentadas pelos aplicadores do direito, que consiste em admitir ou não a possibilidade de aborto e de eutanásia. Em relação ao aborto, a primeira questão a ser superada consiste na determinação de quando deveria iniciar a proteção da vida, ou seja, se o direito à vida inicia com a concepção, com a nidação, com a implementação do sistema nervoso ou ainda com o início da atividade elétrica do cérebro. 51 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 101. 52 Para André Ramos Tavares o direito à vida “é o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito da existência dos demais direitos consagrados constitucionalmente.” (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 387). Também neste sentido enfatiza-se a lição de José Afonso da Silva para quem a vida “constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos.” (Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 195). 53 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 195. 54 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 387. 44 Embora não haja uma previsão legal determinando quando se dá o início da proteção à vida, é possível verificar no ordenamento jurídico um tratamento diferenciado para o ser nascido e o embrião. Essa conclusão se pode tirar, por exemplo, das disposições penais que sancionam a prática do aborto. O direito penal sanciona de forma diferente o crime de aborto e o crime de homicídio, do que decorre uma distinção entre o ser na fase embrionária e o ser nascido. Entretanto, tal constatação não é suficiente para definir o início da proteção da vida. O que importa saber é que o aborto, consistente na expulsão do embrião ou feto, independentemente de se definir se há vida ou não no estágio embrionário, é prática condenada pelo direito penal. Este condena não apenas a gestante que provoca em si mesma ou consente o aborto, como aquele que provoca o aborto na gestante, com ou sem o seu consentimento. André Ramos Tavares55 aponta que a doutrina distingue três espécies de aborto: o eugenésico, o terapêutico, e o sentimental. O primeiro se dá quando se interrompe a gravidez nos casos em que a vida da prole está seriamente comprometida. O aborto terapêutico se realiza quando necessário para salvar a vida da gestante. E por fim, o aborto sentimental se realiza quando a gravidez é resultante de estupro. O Código Penal, em seu artigo 128, estabelece que “não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Como se pode constatar, o Código Penal não faz nenhuma referência à possibilidade de aborto nos casos de impossibilidade do feto nascer com vida, ou nos casos de nascer com grave deformidade, como, por exemplo, a acefalia. O direito à vida implica também, como dito anteriormente, em discutir a possibilidade de eutanásia. Conforme explicação de José Afonso da Silva, hoje se fala em eutanásia para se referir “à morte que alguém provoca em outra pessoa já em estado agônico ou pré-agônico, com o fim de liberá-la de gravíssimo sofrimento, em conseqüência de doença tida como incurável, ou muito penosa, ou tormentosa.”56 Pela definição apresentada, fica evidente que a eutanásia é uma forma não natural de interrupção do processo vital e, por isso, condenável pelo direito, pois conflita diretamente com o direito à vida. Uma polêmica surge quando se questiona a possibilidade de desligamento de aparelhos. No entendimento de André Ramos Tavares, “não se admite a cessação do prolongamento artificial (por aparelhos) da vida de alguém.”57 Em contraposição a este entendimento, encontram-se as considerações de José Afonso da Silva, para quem não “parece caracterizar eutanásia a consumação da morte pelo desligamento de aparelhos que, artificialmente, mantenham vivo o paciente, já clinicamente morto. Pois, em verdade, vida já não existe mais, senão vegetação mecânica.”58 As considerações realizadas apenas reforçam a importância do direito à vida em relação aos demais direitos fundamentais. Em razão desta importância e a partir de uma análise mais acurada do conteúdo do direito à vida, é possível afirmar que é essencial para a efetividade deste direito a declaração também de um direito à saúde. “O Estado deve promover políticas sociais e 55 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 390. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 198. 57 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 391. 58 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 199. 56 45 econômicas destinadas a possibilitar o acesso universal igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde.”59 De nada adianta afirmar o direito à vida, o qual compreende não apenas o direito de existência, de continuar vivo, como também o direito a uma vida digna, sem que o Estado preste serviços destinados à proteção da saúde dos indivíduos. O direito à saúde, embora seja direito social, constitui visivelmente um limite à reforma constitucional. Como se verá adiante, apesar da Constituição Federal , em seu artigo 60, §4, afirmar que é cláusula pétrea apenas os direitos e garantias individuais, verifica-se que os direitos sociais também não podem ser alterados por meio de reforma constitucional nas hipóteses em que tal alteração implique em um prejuízo a direitos individuais. 23- O direito à imagem. Ao analisar o direito à imagem, Celso Ribeiro Bastos60, o define como o direito do indivíduo em não ter seu retrato utilizado, exposto em público, sem o seu consentimento ou de alguma forma distorcido. Com todo o respeito à opinião do referido autor, esse não parece o entendimento mais correto, pois a proteção conferida constitucionalmente é muito mais ampla. Seguindo os ensinamentos de Luiz Alberto David Araujo61, parece mais correto considera estar compreendido no direito à imagem o direito à imagem-retrato e o direito à imagem-atributo. Em relação à imagem-retrato, pode-se dizer que essa se identifica com a imagem visual do indivíduo, que compreende não apenas o seu semblante, mas também seus gestos, sua voz e partes do corpo. No que diz respeito à imagem-atributo, verifica-se que esta se refere ao conjunto de características que identificam uma pessoa, formando sua imagem perante o grupo social. Neste sentido, de grande relevo é a imagem que a coletividade tem de certa pessoa, seja ela física ou jurídica. Ao se proteger esses dois aspectos da imagem, Mônica Castro destaca que “o bem jurídico enfocado não se restringe apenas à representação da fisionomia da pessoa. Ganha uma nova dimensão que advém da inserção do homem na vida em sociedade.”62 Luiz Alberto David Araujo63 observa que a imagem-retrato deve sempre ser utilizada num contexto correto, ou seja, a imagem do indivíduo deve ser utilizada em seu contexto próprio, não sendo admissível alteração no cenário, sob pena de agredir a imagem de alguém. O mesmo autor ressalta ainda que o indivíduo tem o direito de relacionar sua imagem à sua pessoa, sendo, portanto uma forma de identidade. 59 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 570. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 339. 61 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 120. 62 CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 19. 63 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 120. 60 46 De acordo com o entendimento de Mônica Castro64, as pessoas jurídicas não possuem imagem-retrato, isto é, não possuem imagem no sentido de representação visível da figura humana, sendo apenas detentoras de imagem-atributo. É comum uma empresa desenvolver um produto e difundir no mercado a sua imagem, construir na mente dos consumidores uma determinada idéia a respeito de tal produto ou mesmo de sua marca. Na hipótese dessa imagem ser violada, têm a pessoa jurídica direito à indenização. Em relação ao direito à imagem, é preciso ressaltar que somente é conveniente e necessário proteger esse bem jurídico quando uma pessoa reconhece ou é reconhecida pelos outros em uma imagem. Pode-se dizer que somente merece proteção jurídica a imagem que permite identificar determinada pessoa, que se liga a um indivíduo único e individualizado, e que pode ser reconhecido. Finalizando o tema do direito à imagem, é preciso destacar que o direito à imagem, assim como os demais direitos enunciados no art 5, inciso X, da Constituição Federal, em diversas ocasiões conflitam com outros direitos individuais igualmente protegidos constitucionalmente, com por exemplo a liberdade de informação. Em razão dessa freqüente colisão entre tais direitos, essa matéria será tratada isoladamente, buscando-se definir critérios para a solução de conflitos. 24- O direito à vida privada e o direito à intimidade. O direito à vida privada e o direito à intimidade, embora apresentem características similares, não são vocábulos que designam o mesmo direito. Isso se pode constatar pela própria previsão constitucional, que assegura a inviolabilidade tanto da vida privada como da intimidade. Não há uma uniformidade doutrinária na definição desses direitos, sendo necessário abordar o entendimento de diversos autores que trataram da matéria. Para André Ramos Tavares, “a vida privada diz respeito ao modo de ser, de agir, enfim, o modo de viver de cada pessoa. Em poucas palavras, importa em reconhecer que cada um tem direito a seu próprio estilo de vida.”65 No entendimento de Alexandre de Moraes, os conceitos de intimidade e de vida privada se interligam, sendo que o primeiro possui uma amplitude menor do que o segundo, estando inserido no âmbito de incidência da vida privada. Segundo definição apresentada pelo autor, “intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto vida privada envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo etc.”66 Observando as relações travadas entre os indivíduos, Luiz Alberto David Araujo67 constata que esses atuam em dois níveis distintos, um público e outro privado. Dentro da esfera privada, verifica que o indivíduo estabelece relacionamentos sociais que preserva e oculta do público em geral. De acordo com o autor, na esfera privada encontram-se as relações familiares, amorosas, o lazer, os segredos dos negócios, enfim, relações marcadas pela confidencialidade. A partir dessas considerações, o referido autor, percebe que no território da privacidade as relações caracterizam-se por serem interpessoais, ou seja, envolvem outras pessoas. Desta forma, 64 CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 120. 65 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 446 e 447. 66 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2002, p. 80. 67 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 116 e 117. 47 percebe que há um espaço para a violação de direitos, sendo que é nesse espaço que surge a importância da intimidade. No entendimento do autor, a privacidade resguarda o indivíduo da publicidade, enquanto que a intimidade o resguarda de abusos dentro da esfera privada. Luiz Alberto David Araujo conclui então que os indivíduos atuam dentro de uma esfera pública e de uma esfera privada, sendo que nesta estão compreendidas a esfera de privacidade e a esfera de intimidade. Dentro da esfera de privacidade ocorrem as relações interindividuais que são ocultadas do público em geral. Já na esfera de intimidade há uma divisão entre o “eu”e os “outros”, o indivíduo se separa inclusive daquelas pessoas mais próximas, pretendendo manter algumas informações inacessíveis até mesmo à estas pessoas. Em seu livro “Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos”, Mônica Castro empenha-se na tarefa de distinguir os conceitos de vida privada e de intimidade. Nas análises procedidas pela autora, ela destaca que: “Pode o direito à vida privada ser apreendido como sendo a faculdade atribuída às pessoas físicas de excluir do conhecimento dos outros, além da família e amigos íntimos, sentimentos, emoções, pensamentos, orientação sexual, valores espirituais próprios que revelem sua personalidade psíquica. A privacidade é plasmada pelo conjunto de fatores, hereditários ou socialmente adquiridos, que formam a personalidade psíquica do homem e que ele permite seja dividido entre seus familiares e amigos íntimos. Entre esses elementos, é de ser considerada a orientação sexual, as preferências, os apelidos usados somente no seio familiar, especialmente quando revelem certa faceta do indivíduo não conhecida do público.”68 A partir desse conceito a autora analisa quais são as pessoas que participam e que compartilham das informações pessoais do indivíduo, fazendo uma interessante abordagem do conceito atual de família. No entendimento da autora, o simples fato de pertencer à mesma família, no sentido adotado pelo Código Civil, não significa ter acesso às informações pessoais de outros integrantes da família. É preciso, acima de tudo, conviver com o titular do direito, possuir um contato próximo e diário com este, e somente desta forma poderá conhecer as informações privadas do indivíduo. A autora destaca ainda que a privacidade também é compartilhada pelos amigos íntimos. Em relação ao direito à intimidade, Mônica Castro afirma que este é, provavelmente, o mais exclusivo direito da personalidade. “A reserva da intimidade consiste no bem mais restrito, no sentido de maior amplitude da exclusão do outro.”69 Observa a autora que o direito à intimidade é dificilmente violado, em razão do número limitado de pessoas que têm conhecimento dos dados que integram essa esfera. Por fim, a mencionada autora analisa a possibilidade das pessoas jurídicas serem titulares do direito à vida privada e do direito à intimidade. No que diz respeito ao direito à vida privada, conclui a autora que as pessoas jurídicas não o detêm, pois não existem materialmente e, portanto, não são dotadas de pensamentos ou emoções próprias. Em relação ao direito à intimidade, Mônica Castro constata que embora o Constituição Federal não esclareça se tal direito se estende às pessoas jurídicas, verifica-se no ordenamento jurídico diversas leis protegendo aspectos do direito à intimidade, como por exemplo a proteção ao sigilo industrial. 25- O direito à honra. 68 CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 36 e 37. 69 CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 44. 48 A honra, segundo definição apresentada por José Afonso da Silva “é o conjunto de qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa, o respeito dos concidadãos, o bom nome, a reputação. É direito fundamental da pessoa resguardar essas qualidades.”70 A honra também pode ser definida como “bem jurídico imaterial representativo das qualidades morais que o homem detém e pelas quais é reconhecido.”71 Bastante interessante é a consideração realizada por Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior72, ao afirmarem que, embora seja variável o conceito de honra, pois é inevitável a variação do conceito de dignidade, o conteúdo do direito à honra não se modifica. O direito à honra, conforme ressaltado por alguns autores73, apresenta um caráter dúplice: proteção da honra subjetiva e proteção da honra objetiva. A honra subjetiva se refere à concepção que cada indivíduo tem de si, isto é, diz respeito ao modo que o indivíduo se visualiza, a idéia que faz de sim mesmo em relação às suas características. A honra objetiva, por sua vez, está ligada ao juízo que as demais pessoas fazem do indivíduo, à sua reputação na sociedade. Ao se proclamar o direito à honra deve-se conceber instrumentos hábeis que permitam o cidadão se defender de eventuais ofensas. Além disso, é preciso destacar que a Constituição Federal assegura o direito a indenização pelo dano material e moral decorrente da violação à honra, assim como da violação à intimidade, à privacidade e à imagem. Por se entender que o indivíduo tem o direito de preservar a própria dignidade, não se admite ofensas à sua honra mesmo quando as alegações sejam verdadeiras. Por essa razão que o crime de difamação, o qual consiste em imputar a alguém fato ofensivo a sua honra, não admite exceção de verdade. Mesmo que o fato seja verdadeiro, o réu não pode se beneficiar de tal argumento, pois procedeu à ofensa da dignidade da vítima. 26. Colisão entre os direitos à honra, à imagem, à privacidade e os direitos de informação e de expressão. O trabalho realizado por Mônica Neves Aguiar da Silva Castro além de aprofundar o estudo dos direitos à honra, imagem, vida privada e intimidade, estuda os eventuais conflitos entre esses direitos e outros direitos também considerados fundamentais, como por exemplo as liberdades de imprensa, de expressão e de informação. Conforme aponta a autora, “entre a liberdade de imprensa e os bens jurídicos pessoais há uma relação intrinsecamente conflitual na medida em que, embora exista um espaço no qual a pessoa pode representar-se e agir com plena autonomia à margem de qualquer devassa e intromissão, o ser social, atributo do homem, autoriza uma compreensão de que ninguém pode viver como uma unidade isolada.”74 70 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 205. CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 5. 72 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, p. 119 73 Neste sentido, confira-se a obra de Mônica Neves Aguiar da Silva Castro, intitulada “Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos”, mencionada em tópicos anteriores. 74 CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 96. 71 49 Para solucionar a colisão entre tais direitos, a referida autora propõe a aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual será analisado em pontos subseqüentes deste trabalho. Com o intuito de ilustrar a permanente colisão entre os direitos acima mencionados, anexase ao presente trabalho decisões proferidas pelo Poder Judiciário do Estado do Paraná, em que são solucionados litígios envolvendo conflitos entre tais direitos fundamentais.75 Dentre as considerações realizadas nos julgados, destacam-se as ponderações realizadas pelo ilustre Relator da Apelação Cível nº 120.799-0, Dr. Miguel Kfouri Neto, ao afirmar: “Existe, no caso, um conflito de direitos fundamentais, ambos garantidos constitucionalmente: de um lado, o direito de informação e de livre manifestação do pensamento e de outro, o direito à intimidade, e a proteção da honra e reputação da pessoa. O conflito, contudo, é apenas aparente, pois a própria Constituição oferece a solução. Diz o art. 220 da Carta Magna que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Extrai-se, por outro lado, de seu artigo 1º, que um dos fundamentos da República é a dignidade da pessoa humana (inciso III). Ora, parece evidente que uma grave violação à dignidade da pessoa humana justifica a limitação à liberdade de informação.” 27- O direito de locomoção. O direito de locomoção pode ser definido como “o direito que o indivíduo tem de ir, vir, ficar ou permanecer, sem que por essas condutas seja molestado pelo Poder Público. Na verdade, o direito de locomoção tutela a liberdade em sentido estrito, ou seja, a prerrogativa que o indivíduo tem de não ser preso, ou detido, arbitrariamente.”76 Esse direito está consagrado no inciso XV, do artigo 5º da Constituição Federal, o qual estabelece: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Embora o direito de locomoção ocupe lugar de destaque entre os direitos individuais, não pode ser entendido como um direito absoluto, considerando que a Constituição Federal estabelece algumas limitações a esse direito. Dentre as limitações ao direito de locomoção encontra-se o direito de propriedade, e as disposições contidas no artigo 5º, inciso LXI, e no artigo 139 da Lei Maior. Desta forma, o direito de locomoção pode será impedido nos casos de prisão em flagrante ou de prisão resultante de ordem judicial. É possível também, de acordo com a previsão constitucional, que na vigência do estado de sítio se obrigue pessoas a permanecerem em determinado local ou ainda que fiquem detidas “em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns”. Perquirindo outras limitações à liberdade de locomoção, André Ramos Tavares considera que não constitui ofensa a essa liberdade a condução coercitiva de testemunha que se recuse a Anexo I – Sentença da 4ª Vara Cível de Curitiba, proferida nos autos nº 441/2001, de ação de obrigação de não fazer cumulada com indenização por danos morais. Acórdão da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, prolatada nos autos nº 120.799-0, de Apelação Cível. 76 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 127. 75 50 comparecer espontaneamente em juízo, a dispersão de pessoas dos locais em que haja tumulto ou ainda o confinamento de pessoas em um determinado local por motivos sanitários. Entretanto, é necessário que tais medidas estejam reguladas por lei e sejam razoáveis. O referido autor aponta ainda possibilidade de se impor restrições maiores à liberdade de locomoção em tempo de guerra. Em relação ao direito de locomoção é preciso ressaltar ainda que este implica em um direito de circulação. “O direito de circular (ou liberdade de circulação) consiste na faculdade de deslocar-se de um ponto a outro através de uma via pública ou afetada ao uso público.”77 Dentre as discussões judiciais tratando da liberdade de locomoção, destaca-se a polêmica envolvendo a cobrança de pedágio para a utilização de rodovias públicas, quando não houver via alternativa não pedagiada. Conforme se pode verificar nas decisões judiciais anexadas ao presente trabalho78, há argumentos que sustentam a constitucionalidade da cobrança de pedágio, mesmo não havendo via alternativa e outros que sustentam a inconstitucionalidade de tal cobrança, por ofensa à liberdade de locomoção. Para finalizar, merecem ser enaltecidas as considerações de André Ramos Tavares ao elaborar uma interpretação constitucional evolutiva dos direitos fundamentais de liberdade. Constata o mencionado autor que atualmente o Estado deve garantir materialmente a liberdade de locomoção, proporcionando aos indivíduos a utilização de um transporte público eficiente que, embora não precise ser gratuito, deve ser acessível a todas as classes sociais. “A não-existência de formas de transporte sustentadas ou controladas pelo Estado implica, incontestavelmente, uma forma de cerceamento da liberdade de cada um em se locomover livre e amplamente pelo território nacional.”79 Neste sentido, verifica-se que o exercício do direito de locomoção, em muitas ocasiões, está intrinsecamente ligado à existência de transporte público. A inexistência de transporte público, em determinadas hipóteses, além de impedir a liberdade de locomoção, consiste em uma violação à dignidade humana. 28- O princípio do juiz natural O princípio do juiz natural decorre de dois dispositivos constitucionais, os quais estabelecem que “não haverá juízo ou tribunal de exceção” (art. 5º, inciso XXXVII) e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. O princípio do juiz natural, também denominado de princípio do juiz legal, consiste em determinar previamente o juiz competente para solucionar determinado litígio, ou seja, tal princípio exige a pré-existência de normas que estabeleçam a competência dos órgãos jurisdicionais. “Veda-se, portanto, que surjam tribunais ou juízos singulares, ou quaisquer outros órgãos julgadores, após a ocorrência dos fatos a serem apreciados. Também fica proscrita a indicação de órgãos para o julgamento de casos determinados.”80 Percebe-se facilmente que o princípio do juiz natural é decorrência do princípio da igualdade, pois seu objetivo é evitar que determinadas pessoas ou casos sejam julgados por outros 77 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 232. Anexo II – Sentença da 3ª Vara Federal de Curitiba, proferida nos autos nº 99.0027243-9, de Ação Civil Pública. Acórdão da Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, prolatado nos autos nº 2002.04.01.017045-2, de Apelação Cível. 79 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 424. 80 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 484. 78 51 órgãos que não aqueles determinados para as demais pessoas ou casos, isto é, impõe um tratamento igual para hipóteses iguais. Entretanto, é preciso ressaltar que o princípio do juiz natural não veda a existência de juízos especializados, sendo necessário apenas que as normas que os criem sejam gerais e não tenham como intuito submeter pessoas ou casos predeterminados a estes juízos. Para Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, para que o princípio do juiz natural seja respeitado é preciso que apenas os juízos e tribunais que integram o Poder Judiciário tenham função jurisdicional; é preciso também que existam critérios que permitam determinar o juízo ou tribunal competente; e, por fim, é necessário observar as normas regimentais de distribuição do processo.81 29. O princípio da não-extradição. O instituto da extradição recebeu tratamento constitucional no artigo 5º, incisos LI e LII. A regra contida no inciso LI prescreve que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma de lei”. Por sua vez, a regra prevista no inciso LII, do referido artigo, estabelece que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”. Para que se possa analisar as regras acima mencionadas, é preciso primeiramente compreender em que consiste a extradição. Para tanto, se recorre às lições de Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior, os quais afirmam que “a extradição tem lugar nas situações em que o estrangeiro, ou excepcionalmente o brasileiro naturalizado, comete crime no exterior. Nesse caso, com fundamento em tratado ou compromisso de reciprocidade, o respectivo país pode pedir a extradição do indivíduo ao Estado brasileiro, que, por decisão do Supremo Tribunal Federal, poderá acolher, ou não, o pedido.”82 Existem duas espécies de extradição: a ativa e a passiva. A extradição ativa é aquela requerida pelo Brasil a um país estrangeiro, enquanto que a extradição passiva é aquela em que um país estrangeiro solicita ao Brasil a extradição de um indivíduo. Analisando os dispositivos constitucionais, constata-se que os mesmos se referem à extradição passiva, ou seja, impõem o preenchimento de requisitos para que o Brasil possa atender a solicitação de extradição feita por um país estrangeiro. O tratamento constitucional dado aos brasileiros natos, aos brasileiros naturalizados e aos estrangeiros é bastante diverso em relação à admissibilidade de extradição. Em relação ao brasileiro nato é possível afirmar que está vedada a sua extradição. Quanto ao brasileiro naturalizado e o português equiparado, a regra contida no artigo 5º, inciso LI, admite duas hipóteses de extradição: a) por crime comum, praticado antes da naturalização; b) quando ficar comprovado seu envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, independentemente deste fato ter ocorrido antes ou depois da naturalização. 81 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 147. 82 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 153. 52 No que diz respeito ao tratamento destinado aos estrangeiros, o constituinte se preocupou apenas em limitar as hipóteses de sua extradição, vedando esta nos casos de crime político ou de opinião. Além da vedação acima referida, para que o Estado brasileiro conceda a extradição de estrangeiro, muitos outros requisitos devem ser preenchidos. Exemplificativamente pode-se citar a necessidade de existir tratado internacional ou compromisso de reciprocidade e a necessidade do fato ser considerado crime tanto no país que solicita a extradição como no Brasil. 30. As ações constitucionais (remédios constitucionais) como espécies das garantias individuais. Ao lado dos direitos individuais, a Constituição Federal consagra inúmeras garantias individuais que, como visto anteriormente, são instrumentos assecuratórios dos direitos individuais. Dentre as garantias individuais destacam-se as ações constitucionais, também denominadas de remédios constitucionais. É importante notar que garantias constitucionais e remédios constitucionais não são sinônimos, sendo que estes estão compreendidos nas garantias constitucionais, havendo outras normas assecuratórias que prevêem outras garantias que não se constituem em ações. As ações constitucionais são capazes de defender e de tornar eficazes direitos fundamentais. Dentre as garantias constitucionais encontram-se o mandado de segurança, o habeas corpus, o mandado de injunção e o habeas data, os quais serão abordados individualmente. É inegável a relevante função desempenhada pelas garantias constitucionais, tendo em vista que "os direitos fundamentais do homem, ao receberem positivação no Direito Constitucional, passam a desfrutar de uma posição de relevo, no que toca ao ordenamento jurídico interno. Mas a mera declaração ou reconhecimento de um direito não é suficiente, não bastando para sua plena eficácia, porque se torna necessário tutelar esse direito nas situações em que seja violado."83 Analisando o controle da constitucionalidade no Brasil, Keith Rosenn descreve o aparecimento dos instrumentos processuais aptos a proteger direitos constitucionais. Segundo o autor: "Historicamente, a proteção judicial dos direitos constitucionais no Brasil, assim como em outros países da América Latina, tem sido ineficaz por causa da ausência de mecanismos processuais rápidos e efetivos. As ações ordinárias normalmente demoram muitos anos, em parte por causa de um sistema de recursos contra decisões interlocutórias. Por isso os juristas, já há algum tempo, têm procurado remédios especiais para assegurar rápida proteção de certos direitos constitucionais. Durante o século XIX, os tribunais brasileiros expandiram o conceito da ordem de habeas corpus muito além da concepção original que o instituto tinha e tem entre os anglo-saxões. Durante o século XX, o Brasil desenvolveu uma variedade de mecanismos processuais, os quais têm facilitado o controle da constitucionalidade incidental e tornado a proteção judicial das garantias individuais mais efetiva."84 A Constituição ao reconhecer inúmeros direitos fundamentais precisa, em contrapartida, criar instrumentos capazes de protegê-los. As ações constitucionais, adiante especificadas, são 83 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 601. ROSENN, Keith. O controle da constitucionalidade no Brasil: desenvolvimentos recentes. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 227, p. 1 – 30, jan./mar. 2002, p. 5. 84 53 instrumentos hábeis a provocar o Poder Judiciário com o objetivo de impedir ou reparar violações a direitos e valores constitucionais de suma importância. 31- Mandado de segurança individual. O mandado de segurança é ação constitucional cabível para proteger direito líquido e certo, ameaçado ou lesado por ato ilegal ou cometido com abuso de poder por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. A Constituição Federal de 1988 estabelece ainda que tal ação só é cabível nas hipóteses em que o direito não seja amparado por habeas corpus ou habeas data. Buscando o significado da expressão legal "direito líquido e certo", Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que "considera-se 'líquido e certo' o direito, 'independentemente de sua complexidade', quando os fatos a que se deva aplicá-lo sejam demonstráveis 'de plano'; é dizer, quando independam de instrução probatória (…)."85 Embora a Constituição estabeleça o cabimento do mandado de segurança na ocorrência de "ilegalidade ou abuso de poder", a expressão ilegalidade deve ser entendida no seu sentido amplo, ou seja, deve-se admitir a referida ação nos casos em que o ato da autoridade pública for contrário à lei ou à Constituição. Conforme ensinamentos de Carlos Alberto Lúcio Bittencourt "a ilegalidade a que se refere o texto constitucional há de ser entendida no seu mais amplo conceito, para que não seja frustrado o objetivo mesmo da garantia que a Constituição visou estabelecer."86 A partir dessas considerações mostra-se evidente a importância do mandado de segurança no controle da constitucionalidade dos atos do poder público. A parte que sentir violado ou ameaçado direito individual assegurado pela Constituição, e não amparado por habeas corpus ou habeas data, poderá recorrer ao Judiciário para obter a proteção de seu direito. O mandado de segurança é instrumento apto para a proteção de inúmeros direitos individuais. Acrescente-se ainda que o interessado pode impetrar tal medida contra diversos atos do poder público considerados inconstitucionais, em sua maioria atos administrativos. Aliás, em relação ao mandado de segurança, Hely Lopes Meirelles afirma que seu objeto normal “é o ato administrativo específico, mas por exceção presta-se a atacar as leis e decretos de efeitos concretos, as deliberações legislativas e as decisões judiciais para as quais não haja recurso capaz de impedir a lesão ao direito subjetivo do impetrante.”87 É preciso esclarecer ainda que, conforme já sumulado pelo Supremo Tribunal Federal (Súmula 266), não é cabível mandado de segurança contra lei em tese. Tal entendimento foi fixado com o intuito de impedir que esta ação fosse utilizada como instrumento do controle abstrato da constitucionalidade. A este respeito assevera Hely Lopes Meirelles que não se pode atacar a lei em tese por meio do mandado de segurança porque a lei, por si só, não lesa direito individual. Apenas quando 85 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 803 e 804. BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da Constitucionalidade das leis. 2. ed., Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 109. 87 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, “Habeas data”, Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 40. 86 54 a norma abstrata é convertida em ato concreto, atingindo direito individual, é que o titular do direito poderá impetrar mandado de segurança. Na verdade o impetrante ataca os efeitos concretos da lei que atinge seu direito. Não lhe interessa a declaração de inconstitucionalidade da norma, mas apenas afastar naquele caso concreto a sua aplicação, deixando intacto o seu direito. É importante observar também que o mandado de segurança pode ter um caráter preventivo, quando impede lesão contra direitos subjetivos individuais, ou um caráter repressivo, quando corrige ilegalidades já cometidas. Outra questão polêmica em torno do mandado de segurança refere-se à constitucionalidade do artigo 1º, da Lei 1.533/51, o qual estipula o prazo de 120 dias para a sua impetração. Embora a Constituição Federal não tenha previsto nenhum prazo para o exercício da ação, a jurisprudência tem entendido pela constitucionalidade do prazo, pois a parte lesada teria ainda, após decorrido o prazo legal, outros instrumentos a sua disposição. Quanto à decisão proferida no mandado de segurança, destaca-se que esta surte efeitos apenas para aquele caso. Neste sentido brilhante a observação de Hely Lopes Meirelles ao dizer que: “A Justiça Comum não dispõe do poder de fixar normas de conduta, nem lhe é permitido estender a casos futuros a decisão proferida no caso presente, ainda que ocorra a mesma razão de decidir em ambas as hipóteses. Embora se reitere a ilegalidade em casos idênticos, haverá sempre necessidade de uma decisão para cada caso, sem que os efeitos da sentença anterior se convertam em regra para as situações futuras. E assim é porque a sentença concessiva da segurança apenas invalida o ato impugnado, deixando intacta a norma tida por ilegal ou inconstitucional até que outra norma de categoria igual ou superior a revogue, ou o Senado Federal suspenda sua execução em face da inconstitucionalidade declarada pelo STF.”88 Por fim, ressalta-se que o mandado de segurança tem se mostrado mecanismo eficiente de controle difuso da constitucionalidade, principalmente no que se refere aos atos administrativos. O cidadão, ao ter direito fundamental ameaçado ou violado por atos inconstitucionais de autoridade, recorre ao Poder Judiciário, exigindo a proteção dos seus direitos. 32- Mandado de injunção. O mandado de injunção é ação constitucional utilizada no combate à inconstitucionalidade por omissão. Está disciplinado no artigo 5º, inciso LXXI da Constituição Federal, o qual estabelece que será concedido “mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.” Por meio da definição legal, é possível perceber que através do mandado de injunção o Poder Judiciário verifica, no caso concreto, se omissões do poder público estão atingindo direito constitucionais. Para que esta ação constitucional seja cabível, é preciso que haja norma constitucional, de eficácia limitada, prevendo um direito que não está sendo exercido em razão da falta de norma regulamentadora. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, “Habeas data”, Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 96. 88 55 A controvérsia sobre a matéria instaura-se quando são questionados o objeto do mandado de injunção e a natureza de sua decisão. Sobre este tema, pondera Luis Roberto Barroso que a melhor interpretação seria considerar o mandado de injunção “um instrumento de tutela efetiva de direitos que, por não terem sido suficiente ou adequadamente regulamentados, careçam de um tratamento excepcional” 89. Para o autor, o Judiciário, para garantir o exercício do direito ou liberdade constitucional inviabilizados por falta de norma regulamentadora, deveria criar uma norma para o caso concreto, cujos efeitos restringir-se-iam às partes envolvidas no processo. Em conformidade com este posicionamento está a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello ao dizer que o mandado de injunção “é medida hábil para que o postulante obtenha, em um específico caso concreto (e estritamente para ele), mediante suprimento judicial, a disciplina necessária indispensável ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais ou das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, frustrados pela ausência de norma regulamentadora, cuja falta esteja a inviabilizar-lhes o exercício.”90 Acatado o posicionamento acima apresentado, a decisão do mandado de injunção teria natureza constitutiva, uma vez que o juiz criaria uma norma para tornar eficaz determinado direito constitucional. Entretanto, esse não tem sido o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal. Relata André Ramos Tavares91 que o Supremo Tribunal concedeu ao mandado de injunção contornos bastante limitados. Conforme descreve o referido autor, o Supremo Tribunal Federal entendeu inicialmente que a decisão de procedência proferida em mandado de injunção teria o condão de permitir apenas uma comunicação ao Poder omisso, para que expedisse a regulamentação necessária. Percebe-se, portanto, que o mandado de injunção, neste sentido, foi equiparado à ação direta de inconstitucional por omissão. De acordo com relatos de André Tavares, a Suprema Corte, recentemente, entendeu que em alguns casos o Poder Judiciário poderia dizer qual o Direito a ser aplicado no caso concreto ou, ainda, fixar prazo para que o Poder responsável pela omissão expedisse o ato necessário para tornar viável o exercício do direito e, no caso de não o fazendo, teria o interessado direito à indenização, por não lhe ter sido assegurado o exercício de direito ou liberdade constitucional. Em razão da polêmica desenvolvida em torno do mandado de injunção, Luís Roberto Barroso entende que “mais simples, célere e prática se afigura a atribuição, ao juiz natural do caso, da competência para a integração da ordem jurídica, quando necessária para a efetivação de um direito subjetivo constitucional submetido à sua apreciação.”92 Diante do exposto, constata-se que o mandado de injunção ingressou no ordenamento jurídico com um imenso potencial para a efetivação dos direitos e liberdades constitucionais, mas aos poucos teve sua atuação limitada, inclusive no que se refere ao combate direto à inconstitucionalidade por omissão. 89 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 252. 90 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 804 e 805. 91 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 716. 92 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 270. 56 Merece também destaque entendimentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal no que diz respeito ao pólo passivo do mandado de injunção. Segundo decisões analisadas por Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior93, o STF considerou inadmissível mandado de injunção contra pessoa privada, pois esta não tem competência para elaborar norma regulamentadora. Também em relação ao pólo passivo do mandado de injunção, entendeu o STF que quando a norma regulamentadora é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, este é que deve integrar o pólo passivo da relação, e não o Congresso Nacional. Para finalizar o tema referente ao mandado de injunção, ressalta-se o relevante estudo elaborado por Luiz Alberto David Araujo a respeito da proteção das pessoas portadoras de deficiência. No desenvolvimento de seu trabalho, o autor realiza uma acurada análise procurando identificar quais instrumentos processuais podem ser utilizados para a proteção judicial dos direitos das pessoas portadoras de deficiência, concluindo que o mandado de injunção é um importante instrumento na realização desta tarefa. Conforme destacado pelo referido autor, “a Constituição Federal vigente cuidou de elencar várias normas de proteção às pessoas portadoras de deficiência. As normas, no entanto, salvo as regras isonômicas constantes do artigo 5º e do inciso XXXI do artigo 7º dependem de integração legislativa infraconstitucional.”94 Desta forma, é possível perceber que o mandado de injunção pode ser utilizado para tornar efetivos direitos constitucionais como a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo, permitindo o acesso das pessoas portadoras de deficiência (artigo 227, §2º e artigo 244 da CF). O mandado de injunção pode ser utilizado também para garantir um salário mínimo mensal ao portador de deficiência, conforme estabelece o artigo 203, V, da Lei Maior. 33- Habeas corpus. Entre todos os remédios constitucionais, o habeas corpus destaca-se por proteger um dos mais importantes direitos dos homens: a liberdade de locomoção. Ensina o memorável professor, Celso Ribeiro Bastos, que "o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de locomover-se em razão de violência ou coação ilegal."95 A origem deste instituto remete-se à Magna Carta de 1215, a qual protegia a liberdade de locomoção impondo a necessidade de um devido processo legal e do julgamento por órgão competente para que se pudesse prender qualquer cidadão. No Brasil, verifica-se que a Constituição de 1824 não previu o instituto do habeas corpus, embora limitasse a possibilidade de prisão dos cidadãos. Enquanto vigorava esta Constituição, o Código de Processo Criminal de 1832 consagrou e disciplinou o habeas corpus. Constata-se também que já a partir da Constituição de 1891 esta ação recebeu tratamento constitucional. Atualmente este remédio constitucional está previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, o qual prescreve que "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém 93 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 168. 94 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 3. ed., disponível no site www.mj.gov.br/sedh/dpdh/corde/protecao_const.htm 95 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 395. 57 sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". O dispositivo constitucional permite constatar a existência de duas espécies de habeas corpus: o habeas corpus preventivo e o habeas corpus liberatório. Será preventivo quando a violência ou coação à liberdade de locomoção não tiver se consumado, ou seja, quando houver apenas ameaça à liberdade de locomoção. Nesta hipótese, o juiz deverá expedir salvo-conduto em favor do paciente, com o intuito de evitar violência ou coação ilegal (art. 660, §4º, do Código de Processo Penal). Por sua vez, o habeas corpus será liberatório quando a violação ou coação à liberdade de locomoção já tiver sido efetivada. Neste caso, o objetivo da medida será fazer cessar o ato ilegal ou abusivo de poder, concedendo liberdade ao paciente. Em relação às partes envolvidas nesta ação constitucional, é possível identificar: o impetrante, o qual pede a expedição da ordem em benefício próprio ou de outrem; o impetrado, autoridade que atua ilegalmente ou com abuso de poder violando ou coagindo a liberdade de locomoção de outrem; e o paciente, pessoa física que tem sua liberdade de locomoção ameaçada ou violada. Para que seja cabível a ação de habeas corpus é preciso que o ato lesivo à liberdade de locomoção seja emanado de autoridade pública, pois ato de particular constrangendo o direito de ir e vir de outro cidadão caracteriza-se crime de cárcere privado, comportando atuação imediata da polícia. Característica importante do habeas corpus é o fato de não exigir nenhuma formalidade para a sua impetração. Finalizando, é preciso apontar ainda as ressalvas constitucionais ao cabimento do habeas corpus. Estabelece a Constituição Federal de 1988 que a ordem não pode ser impetrada durante o estado de sítio. Além disso, a Carta Magna prescreve ainda, em seu artigo 142 §2º, que “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”. Interpretando este dispositivo legal, Alexandre de Moraes96 afirma que a Constituição Federal está a impedir habeas corpus para analisar o mérito das punições disciplinares militares, mas isso não significa que o Poder Judiciário não possa apreciar os pressupostos de legalidade do ato, como por exemplo a existência de hierarquia entre a autoridade sancionadora e a sancionada, a existência de poder disciplinar, ou ainda se há relação entre o ato sancionado e a função. 34. Habeas data. Durante a vigência dos governos ditatoriais, informações a respeito da vida dos cidadãos eram coletadas e armazenadas secretamente, e muitas vezes eram utilizadas para fundamentar perseguições. Como reação aos abusos daquela época, o atual texto constitucional contemplou a ação de habeas data. Conforme previsão constitucional, a finalidade dessa ação é assegurar ao impetrante o direito de conhecer as informações, que digam respeito a sua pessoa, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público. Outra finalidade que pode ser alcançada por meio desta ação é a retificação (correção) de dados. 96 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2002, p. 152. 58 A Lei 9.507/97, que disciplina a ação de habeas data, contempla em seu artigo 7º mais uma finalidade que consiste na “anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável.” No que diz respeito às partes envolvidas na ação de habeas data, considera-se parte legítima para impetrá-la qualquer pessoa física ou jurídica que tenha interesse no acesso, retificação ou complementação de informações que digam respeito à sua pessoa. Por sua vez, são legitimados passivos os órgãos da Administração direta e indireta, as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos e as que prestam serviço ao público, ou seja, pessoas de direito privado que possuem informações a respeito dos indivíduos e as fornecem para terceiros. “Logo, o habeas data pode ser requerido para obtenção de informações constantes tanto de registros ou bancos de dados públicos como os de natureza privada, desde que tenham caráter público.”97 A Lei 9.507/97, recepcionando entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, determina o cabimento de habeas data apenas quando o acesso às informações tiver sido recusado pelo órgão que as detêm. A lei infraconstitucional regula também os efeitos da sentença que julga procedente o habeas data. Se o objetivo do impetrante era ter acesso às informações a seu respeito, o juiz marcará data e horário para o coator apresenta-las ao impetrante. Se o objetivo era conseguir a retificação ou anotação em registro ou banco de dados, o juiz marcará data e horário para o coator apresentar em juízo prova da retificação ou anotação feita no cadastro do impetrante. Por meio de habeas data o cidadão tem acesso às informações que lhe digam respeito, podendo requerer a sua retificação, quando incorretas, ou sua complementação. Esse instrumento garante ao cidadão a veracidade das informações que são fornecidas a seu respeito, além de preservar a sua intimidade, uma vez que controla as informações constantes nos registros e bancos de dados. Só se pode admitir que a Administração ou as pessoas jurídicas de direito privado possuam informações a respeito dos indivíduos quando estritamente necessário, caso contrário estará sendo lesionado o direito à intimidade. 97 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 277. 59 V – CONCEITO DE CLÁUSULA PÉTREA Nosso objetivo no presente capítulo deste trabalho é exatamente apresentar um conceito de “cláusula pétrea”, tendo como prisma o Direito Constitucional visto de uma forma geral, e não vinculado exclusivamente ao tratamento apresentado pela Constituição Federal Brasileira de 1988. Com o objetivo de se alcançar o conceito de cláusula pétrea, percorreremos os seguintes pontos : análise semântica da expressão e localização do instituto da cláusula pétrea no Constitucionalismo. a) Análise semântica da expressão “cláusula pétrea” A compreensão do significado de determinado instituto jurídico deve ser feito à luz dos métodos e técnicas utilizados pela ciência do direito, o que não impede, de forma alguma, que a investigação se inicie pela compreensão laica da expressão, isto é, pelo tratamento semântico dado pela linguagem ordinária à expressão. A linguagem científica, a despeito de ser fruto de uma filtragem da linguagem ordinária, parte desta para o alcance da sua especificidade, motivo pelo qual apresentamos abaixo os significados de “cláusula” e de “pétrea” apresentados pelos principais dicionários da língua portuguesa. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira98 aponta que : “cláusula sf. Cada uma das disposições dum contrato ou de documento semelhante, público ou privado.” “ pétreo [Do lat. Petreu] adj. 1. De pedra, petroso, 2. com aparência ou resistência de pedra, petroso. 3. relativo a pedra, pedernal 4. Fig. Insensível,duro, desumano.” 98 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da língua portuguesa. Versão informatizada e disponibilizada na internet no site “www.uol.com.br “ 60 “ petrificar vt e p. 1. converter(-se) em pedra; empedrar(-se). 2. Tornar(-se) duro, desumano.3. Assombrar(-se), assustar(-se)” Francisco da Silveira Bueno99 também aponta o significado ordinário de tais expressões : “ CLÁUSULA, s.f. Condição que faz parte de um contrato ou documento; artigo, preceito, disposição.” “ PÉTREO, adj. De pedra, duro como pedra; o mesmo que petroso; (fig) insensível; desumano” Do colhido dos significados acima colhidos, poderíamos, em linguagem ordinária, seria a parte de um todo (artigo, preceito ou disposição) que tem como característica a aparência de pedra ou a resistência dura de uma pedra. b) O significado de cláusula pétrea segundo a ciência do direito Se a análise semântica segundo a linguagem ordinária nos parece de suma importância para um início de investigação sobre o conceito de determinado instituto jurídico, não o é suficiente, cabendo ao cientista do direito buscar o seu significado para a ciência do direito, mais especificamente, no presente caso, para a ciência do direito constitucional. Uma boa análise do significado do termo “cláusula pétrea” para o direito constitucional necessita de uma prévia apresentação do conceito de constituição, da apresentação do movimento denominado “constitucionalismo” e dos limites possíveis à reforma constitucional. b.1) Dos conceitos de constituição e poderes constituintes originário e derivado e da classificação das constituições Em qualquer iniciação ao estudo de qualquer ciência é necessário um conhecimento, ainda que superficial, sobre o objeto dessa ciência, isto porque, se a ciência é uma linguagem de sobrenível, uma metalinguagem, o desconhecimento sobre o objeto levaria à total ineficiência do estudo científico. Assim, num estudo sobre direito constitucional, independentemente do enfoque dado (direito constitucional positivo, direito constitucional comparado) é imprescindível conhecer o que vem a ser uma constituição, as suas características, as suas espécies e o poder que a institui. E, com o objetivo de completar tais requisitos iniciais para o estudo do direito constitucional é que traçamos leituras no sentido de fixar o conceito de constituição e conhecer as peculiaridade de tal instituto, sendo que das referidas leituras extraímos os conhecimentos que são expostos no presente texto. 99 BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. Rio de Janeiro : FAE, 1986, 11a. edição, 10a. tiragem 61 Pretende-se, neste item, apresentar o conceito de constituição, mediante uma leitura que evolui da noção de Estado e de Direito, até alcançar-se o conceito de constituição. b.1.1) Conhecimento breve de “Estado” Aristóteles já afirmava que o homem é um “animal político”, isto é, que a convivência em sociedade faz parte da essência humana, motivo pelo qual o Homem, ao longo da história, partiu de uma vivência isolada, individualizada, para um conviver em sociedade, passando pelos vários estágios de formação da vida em comunidade, partindo-se de grupos familiares para a formação de grupos sociais mais complexos. Mas, se de um lado o Homem tem uma natureza social, de outro lado, como bem apresenta Thomas Hobbies em O Leviatã, “o Homem é Lobo do Homem”, no sentido de que é natural do Homem a ambição, levando até mesmo a destruição do próximo na defesa de seu espaço e de suas convicções, havendo a necessidade da organização da sociedade, com o traço de limites nos comportamentos intersubjetivos. A evolução na organização da sociedade é bem demonstrada no magistério de Emmanuel Sieyès em sua obra “O que é o terceiro Estado ?, onde aponta que o Homem passou por 3(três) momentos na história (Emmanuel Sieyès, Que es el Tercer Estado? ) : No primeiro, há uma quantidade de indivíduos isolados que, pelo só fato de quererem reunir-se, têm todos os direitos de uma nação, bastando exercê-los No segundo, os Homens reúnem-se para deliberar sobre as necessidades públicas e os meios de provê-las No terceiro, surge o governo exercido por procuração – ESTADO - : os associados “separam tudo o que é necessário para velar e prover as atenções públicas, e confiam o exercício desta porção de vontade nacional, e por conseguinte de poder, a alguns deles”. Aqui já não atua uma vontade comum real, mas sim uma vontade comum representativa. A lição de Sieyès é muito importante para se apresentar uma definição de Estado, vez que diferencia a simples organização da sociedade da organização através do Estado, caracterizandose este pela transferência das decisões inerentes à coordenação social à uma pessoa, que passa a deter o “poder político”, isto é, a faculdade de impor aos demais a sua vontade, ou melhor, a vontade o governo em relação ao controle da sociedade. Como ensina Celso Ribeiro Bastos em seu Curso de Direito Constitucional, “o Estado – entendido portanto como uma forma específica da sociedade política – é o resultado de uma longa evolução na maneira de organização do poder. (...) Surge com as transformações por que passa a sociedade política por volta do século XVI. Nessa altura, uma série de fatores, que vinham amadurecendo ao longo dos últimos séculos do período medieval, torna possível – e mesmo necessária – a concentração do poder numa única pessoa. É esta característica a principal nota formadora do Estado moderno. O poder torna-se mais abrangente. Atividades que outrora comportavam um exercício difuso pela sociedade são concentradas nas mãos do poder monárquico, que assim passa a ser aquele que resolve em última instância os problemas atinentes aos rumos e aos fins a serem impressos no próprio Estado.” 62 Apresentada uma breve conceituação de Estado, interessante é uma análise dos clássicos elementos do Estado : território, população, poder e finalidade. O território como o espaço físico onde habita o grupo humano (população) a ser organizado, exercendo o aparelho governamental o poder político (faculdade de impor a vontade do governo aos governados), com o objetivo de alcançar o bem comum de toda a população (finalidade). Interessantíssimo o questionamento feito por Celso Ribeiro Bastos100 sobre a real condição desses clássicos elementos estatais no sentido de serem estes pressupostos para a existência estatal ou simples elementos nem sempre necessários à existência do Estado. Analisando-se um a um os clássicos elementos, entendemos que o território individualizado nem sempre é necessário ante a existência de povos, que constituem verdadeiras nações, sem a existência de um território próprio. Agora, a população é conditio sine qua non para a existência do Estado, por motivos óbvios, vez que é a sua própria razão de ser. A finalidade também é imprescindível, vez que sem a finalidade não haveria sentido a existência da organização estatal e, por fim, o poder é inerente ao próprio funcionamento do Estado para o alcance de seus objetivos. Isto é, fora o território (que entendemos ser simples elemento não necessário de Estado), os demais “clássicos elementos” são todos pressupostos de existência do ente estatal. A questão do poder é de extrema relevância, sendo importante algumas palavras a respeito. Como realça Celso Bastos101, se perguntamo-nos qual o objeto fundamental com que se defronta uma Constituição, vamos encontrar uma só resposta : a regulação jurídica do poder. É a configuração que vier a ser imprimida ao poder, a sua afetação a estes ou àqueles detentores, sua maior ou menor concentração, os controles de que é passível, assim como as garantias dos destinatários do poder que acabam por conformar o Estado e a Sociedade O Poder é faculdade de alguém impor a sua vontade a outrem. O Poder político, a seu turno, não é outro senão aquele exercido no Estado e pelo Estado. A criação do Estado não implica a eliminação dos outros poderes sociais : o poder econômico, o poder religioso, o poder sindical.... esses todos continuam vivos na organização política. Acontece, entretanto, que esses poderes não podem exercer a coerção máxima, vale dizer, a invocação da força física por autoridade própria. Eles terão, sempre, de chamar em seu socorro o Estado. Nessa medida são poderes subordinados Conforme Mario Stoppino102 : - “ Em seu significado mais geral, a palavra poder designa a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos e a fenômenos naturais.... Se a entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a vida do homem em sociedade, o poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceitual pode ir desde a capacidade do homem em determinar o comportamento do homem : poder do homem sobre o homem. O homem é não só o sujeito mas também o objeto do poder social. É poder social a capacidade que um pai tem para dar ordens aos seus filhos ou a capacidade de um governo de dar ordens aos cidadãos.” 100 101 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo : Saraiva, 15a edição, ampliada e atualizada, p. 5 idem 102 O Poder, Jornal da Tarde, 14 jan.1975 63 Assim, o papel do direito de regular o poder é uma forma de manter não só a coletividade, como também preservar a individualidade de cada um dos membros da sociedade. b.1.2) O Direito como forma de regulação do poder político Se o Direito é a forma escolhida para a regulação do poder político, devemos traçar algumas palavras sobre o fenômeno jurídico. É papel do Direito a regulação do comportamento humano intersubjetivo através de normas jurídicas que são, como bem evidencia Paulo de Barros Carvalho103 é a proposição oriunda de enunciados prescritivos criados pelo Estado o objetivo do alcance de sua finalidade, que é o bem comum, motivo pelo qual se diz que o Direito é o instrumento no alcance da Justiça. Tal regulação do comportamento humano enseja a existência da figura da Autoridade, que tangencia não somente a produção de normas jurídicas, como também a fiscalização do cumprimento das mesmas. Ora, não se tem dúvida de que, buscando-se uma sociedade livre e democrática, não se pode cogitar na existência de Autoridade ilimitada, havendo a necessidade de serem fixados limites ao poder exercido pela Autoridade, isto é, limites ao poder político. E é nesse cenário que começa a ser introduzida a noção de Constituição. b.1.3) Noção de constituição Como ensina Celso Ribeiro Bastos104, o vocábulo “Constituição” é de difícil conceituação.É um termo equívoco que se presta a diversos significados. Conforme se faça variar a sua abrangência, para abarcar este ou aquele campo da realidade, assim também variará a área de estudo do direito constitucional Num sentido amplo, a palavra constituição tem o significado de “particular estrutura de alguma coisa”, a forma como alguma coisa é composta ou estruturada. Trata-se de utilização semântica afastada de qualquer técnica ou ciência, típica de linguagem ordinária. Já iniciando uma aproximação ao direito, constituição material pode ser entendida como um conjuntos de forças políticas, econômicas ideológicas que configuram a forma de ser de um determinado Estado. Tal significado está mais próximo da situação de fato (ser) em que o direito é criado e/ou aplicado do que, efetivamente, à própria estrutura da norma jurídica (dever-ser). Em sentido substancial, constituição pode ser conceituada como um conjunto de normas estruturais de uma sociedade política, ou, melhor esclarecendo, a classe das normas jurídicas que têm por objetivo não só a formação do Estado, mas também a fixação de suas características básicas de funcionamento. Nesse sentido substancial, define-se se uma dada norma é ou não constitucional através da verificação de seu conteúdo. Como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho105, “ o termo “Constituição” é mais freqüentemente usado para designar a organização 103 BARROS CARVALHO, Paulo de . Curso de Direito Tributário. São Paulo : Saraiva, 7a. edição atualizada, 1995 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 15a. edição, ampliada e atualizada, 1994, pp. 39-47 104 105 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 18a. edição, revista e atualizada, 1990, p. 10 64 jurídica fundamental (...). Por organização jurídica fundamental, por Constituição em sentido jurídico, entende-se, segundo a lição de Kelsen, o conjunto das normas positivas que regem a produção do direito. Isto significa, mais explicitamente, o conjunto de regras concernentes à forma do Estado, à forma do governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos, aos limites de sua ação”. Adotando-se um sentido formal para constituição, podemos afirmar que constituição é um conjunto de enunciados prescritivos106 (textos normativos) produzidos através de um procedimento mais difícil e mais solene do que o procedimento utilizado para a inserção de enunciados prescritivos ordinários. Na forma do pensamento de Celso Bastos107, das duas conceituações jurídicas de Constituição (substancial e formal), a mais relevante para o direito é aquela calcada no critério formal. Isto porque as classificações, as categorizações ou as conceituações apenas apresentam relevância diante do direito na medida em que a elas se faça corresponder um regime jurídico próprio, vale dizer, um feixe de normas pertinentes. E será exatamente no sentido formal que se tratará o termo “Constituição” na presente monografia, sem, entretanto, deixar de utilizar a visão “material” de Constituição, especificamente quando tratamos da razão de ser das “cláusulas pétreas”. b.1.4) Dos poderes constituintes originário e derivado Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior108 afirmam que “o ato de criação da Constituição é produto da manifestação do chamado Poder Constituinte Originário. Como inaugura uma ordem jurídica, atribuem-se ao Poder Constituinte Originário algumas características que demarcariam seu perfil” e, prosseguindo, os autores destacam as seguintes características do poder constituinte originário : é inicial (já que inaugura uma nova ordem jurídica), é autônomo (no sentido de que, por ser inicial, só ao seu exercente cabe determinar quais os termos em que a nova Constituição deve ser estruturada), é ilimitado (não se reportando à ordem jurídica anterior, compõe o novo arcabouço jurídico, sem limites para a criação da sua obra) e é incondicionado (não se submetendo a qualquer procedimento predeterminado para a sua elaboração). Em suma, o Poder Constituinte Originário é aquele capaz de fazer a “enunciação constitucional original”, isto é, de criar a constituição em sua redação original, de compor os enunciados prescritivos que formam o conjunto normativo denominado Constituição. É importante, de outro lado, destacar que o texto constitucional, pela necessidade do direito acompanhar a evolução e as transformações da sociedade, precisa, muitas Importante ressaltar que utilizamos a expressão “enunciado prescritivo” como texto normativo do qual se extraem normas jurídicas. Utilizamos a expressão norma jurídica como o proposição, isto é, o produto resultante do Juízo de valor em relação a determinado enunciado prescritivo. A norma jurídica, sem embargo de sua estrutura lógica [antecedente(hipótese) e conseqüente (tese) ligados sob uma relação de implicação, qualificada pelo modal “dever ser”) é o produto final do trabalho interpretativo 106 107 Ob. cit. p. 45 108 ARAUJO, Luiz Alberto David et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 7a. edição, revista e atualizada, 2003, pp. 9-10 65 vezes ser modificado, denominando-se tal fenômeno de “reforma constitucional”. Tais modificações se tornam importantes a partir do momento que, dos enunciados prescritivos constitucionais, não é possível extrair normas jurídicas que se compatibilizem com as necessidades da sociedade atual. Nesse ponto, cabe transcrição do magistério de José Afonso da Silva109 : “ A estabilidade das constituições não deve ser absoluta, não pode significar imutabilidade. Não há constituição imutável diante da realidade social cambiante, pois não é ela apenas um instrumento de ordem, mas deverá sê-lo também, de progresso social. Deve-se assegurar certa estabilidade constitucional, certa permanência e durabilidade das instituições, mas sem prejuízo da constante, tanto quanto possível, perfeita adaptação das constituições às exigências do progresso, da evolução e do bem-estar social.” Ora, terminado o trabalho constituinte original, resta finda a missão do Poder Constituinte Originário, sendo certo que, para que se procedam as reformas constitucionais necessárias, o próprio Poder Originário, no corpo da Constituição, já fixa a existência do Poder Constituinte Derivado (poder constituído pelo Poder Constituinte Originário), a quem caberá, através de procedimentos fixados também no corpo constitucional, alterar, seja sob a forma de revisão, seja sob a forma de emenda, enunciados prescritivos constitucionais. E nesse ponto de análise do Poder Constituinte Derivado, interessante é a transcrição do magistério de Alexandre de Moraes110 : “ O Poder Constituinte Originário está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra jurídica de autenticidade constitucional, portanto, conhece limitações constitucionais expressas e implícitas e é passível de controle de constiticionalidade. Apresenta as características de derivado, subordinado e condicionado. É derivado porque retira sua força do Poder Constituinte originário; subordinado porque se encontra limitado pelas normas expressas e implícitas do texto constitucional, às quais não poderá contrariar, sob pena de inconstitucionalidade e, por fim, condicionado porque seu exercício deve seguir as regras previamente estabelecidas no texto da Constituição Federal.” Para os fins desta monografia, há de se ter em mente não só que o texto constitucional pode sofrer alterações através da reforma, como também que o poder de reformar os enunciados constitucionais cabe a um poder que é diverso do poder constituinte originário, isto é, cabe a um poder derivado, constituído pelo poder constituinte originário no próprio corpo da constituição. Esse poder derivado, no exercício de suas atividades de reforma, deve, necessariamente, ater-se a todos os limites fixados pelo poder originário, limites esses que podem ser formais, circunstanciais, temporais e material, como será detalhadamente tratado no momento oportuno nessa monografia. b.1.5) Da classificação das constituições 109 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo : Editora Malheiros, 9a. edição revista e ampliada de acordo com a nova constituição, 4a. tiragem, 1994, p.44 110 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo : Atlas Jurídica, 9a. edição atualizada com a EC no. 31/00, pp. 54/55 66 Existem inúmeras formas de classificar as constituições. Essas espécies de classificação diferem-se em razão das características levadas em consideração para o agrupamento das Constituições111. José Afonso da Silva112 indica as seguintes formas de classificação das Constituições : quanto ao conteúdo (materiais ou formais), quanto à forma (escritas ou não escritas), quanto ao modo de elaboração (dogmáticas ou históricas), quanto à origem (populares ou outorgadas), quanto à estabilidade (rígidas, flexíveis ou semi-rígidas). Em razão do objeto de nosso estudo, vamos limitar o estudo da classificação das Constituições quanto à estabilidade, forma de classificação essa que leva em consideração à forma de realização da reforma dos enunciados constitucionais. Voltando a citar José Afonso da Silva 113, “Rígida é a constituição somente alterável mediante processos, solenidades e exigências formais especiais, diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou complementares. Ao contrário, a constituição é flexível quando pode ser livremente modificada pelo legislador segundo o mesmo processo de elaboração das leis ordinárias. Na verdade, a própria lei ordinária contrastante muda o texto constitucional. Semi-rígida é a constituição que contém uma parte rígida e outra flexível, como fora a Constituição do Império do Brasil, à vista de seu art. 178.” Luiz Alberto David Araujo114 apresenta a mesma classificação sob o nome de “quanto à mutabilidade”, esclarecendo que : “ Flexível – a Constituição que não exige, para sua alteração, qualquer processo mais solene, tendo-se em vista o critério da lei ordinária. Rígida – a Constituição que exige para sua alteração um critério mais solene e difícil do que o processo de elaboração da lei ordinária. Exemplo de Constituição rígida é a brasileira. Essa rigidez pode ser verificada pelo contrate entre o processo legislativo da lei ordinária e o da emenda constitucional. Enquanto aquela se submete às regras da iniciativa geral (art. 61 da CF) e à aprovação por maioria simples, a outra reclamada iniciativa restrita (art. 60 da CF) e aprovação por maioria qualificada de três quintos. Vê-se, por esse e por outros aspectos, que é muito mais fácil aprovar uma lei ordinária do que uma emenda constitucional. Semi-rígida ou semiflexível – é a Constituição que apresenta uma parte que exige a mutação por processo mais difícil e solene do que o da lei ordinária (rígida) e outra parte sem tal exigência, podendo ser alterada pelo sistema previsto para a lei ordinária. Exemplo desse tipo é a Constituição do Império de 1824.” E, na esteira da discussão quanto à caracterização de determinada constituição como “rígida”, Luiz Alberto Araujo introduz a existência de instituto jurídico denominado “cláusula pétrea” : “ Há Constituições que têm um núcleo material imutável, vale dizer, que não pode ser alterado mesmo por emendas constitucionais, composto pelas chamadas cláusulas pétreas. Utilizamos o termo “ agrupamento” em razão de entendermos que “classificar” significa reunir indivíduos que apresentam determinadas características idênticas, possuindo, pois, um caráter de reunião, de agrupamento, e não de divisão. 111 112 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo : Editora Malheiros, 9a. edição revista e ampliada de acordo com a nova constituição, 4a. tiragem, 1994, p.42 113 Op. Cit. Pp. 43-44 114 ARAUJO, Luiz Alberto David et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 7a. edição, revista e atualizada, 2003, p.4 67 Alguns autores entendem que esse núcleo material imutável traduziria um grau máximo de rigidez.” Se a introdução acima é inicial para que possamos conceituar, com o detalhamento necessário, o conceito de “cláusula pétrea”, ela é importante para localizar a “cláusula pétrea” no ato de reforma constitucional, mais especificamente nos limites materiais de reforma. b.2) Das formas de modificação dos enunciados prescritivos constitucionais Na doutrina encontramos as seguintes denominações para o ato do Poder Derivado de modificação de texto constitucional : reforma, revisão, emenda e mutação constitucional. Ora, se o nosso objeto de estudo está centralizado, como concluímos acima, na forma em que uma constituição pode ter seus enunciados prescritivos modificados, é importante que sejamos capazes de diferenciar cada um desses institutos. Pinto Ferreira115 ensina que “ a reforma é qualquer alteração do texto constitucional, é o caso genérico, de que são subtipos a emenda e a revisão. A emenda é a modificação de certos pontos, cuja estabilidade o legislador constituinte não considerou tão grande como outros mais valiosos, se bem que submetida a obstáculos e formalidades mais difíceis que os exigidos para a alteração das leis ordinárias. Já a revisão seria uma alteração anexável, exigindo formalidades e processos mais lentos e dificultados que a emenda, a fim de garantir uma suprema estabilidade do texto constitucional”. Diogo de Figueiredo Moreira Neto116 pensa da mesma forma que Pinto Ferreira doutrinando que : “ o instituto da reforma, que aqui nos interessa, se desdobra, por sua vez, em duas espécies : a revisão e a emenda. São ambas técnicas jurídicas que o constituinte originário cria para conciliar o princípio da permanência, intrínseco às constituições, com o consentimento do povo, como origem da própria constituição e, assim, para garantir-lhe a continuidade”. Já Manoel Gonçalves Ferreira Filho117 entende pela sinonímia entre revisão e emenda constitucional : “ O processo de modificação da Constituição costuma ser chamado de processo de revisão da Constituição. Assim sempre o fiz, como prova o livro O Poder Constituinte, cuja primeira edição é de 1974. Mas a polêmica do art. 3o. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias exige uma digressão terminológica. De fato, este refere-se a “revisão”, enquanto, no corpo da Constituição, o art. 60 usa do termo “emenda”. Do que houve quem tirasse profundas ilações sobre a diferença entre uma e outra, bem como entre elas e “reforma” constitucional. Mas o simples bom senso já previne que quem emenda um texto, o revisa, como quem o revisa, emenda.” José Afonso da Silva118 apresenta o panorama da discussão entre o emprego dos termos reforma, revisão e emenda : 115 FERREIRA, Pinto. Da constituição. Rio de janeiro : José Konfino, 2a edição, 1956, p.102 116 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A revisão constitucional brasileira. Rio de Janeiro : Editora Lúmen Juris, 1993, p. 14 117 118 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. São Paulo : Saraiva, 3a. edição, 1995, p.280 Op. Cit. p. 56 68 “ A doutrina brasileira ainda vacila no emprego dos termos reforma, emenda e revisão constitucional. Ainda que haja alguma tendência em considerar o termo reforma como gênero, para englobar todos os métodos de mudança formal das constituições, que se revelam especialmente mediante o procedimento de emenda e o procedimento de revisão, a maioria dos autores, contudo, em face de constituições anteriores, empregou diferentemente os três termos.” Feitas as exposições da doutrina, é necessário que afirmemos que a nossa opinião é pela diversidade semântica dos termos reforma, revisão e emenda. E tal conclusão de diversidade semântica se faz, inclusive, sob o espírito científico, vez que não há como se conceber a existência de dois institutos jurídico, apresentados com nomem juris diferentes, significarem a mesma coisa. Aceitarmos a identidade semântica seria o mesmo que afastar a linguagem científica e nos limitarmos a utilizar uma linguagem ordinária, informal. Entendemos que, enquanto revisão é classe que possui como indivíduos todas as formas de modificação de enunciados prescritivos constitucionais, tanto a emenda quanto a revisão são indivíduos da classe “revisão”. A diferença entre emenda e revisão, está centrada no fato de que enquanto a emenda é modificação pontual de enunciado prescritivo constitucional, a revisão é modificação “anexável”, envolvendo um grupo de enunciados prescritivos. Por fim, é necessário diferenciar a “mutação constitucional” da “reforma constitucional”. A mutação constitucional é modificação da norma jurídica constitucional119 em razão de interpretação adotada sobre determinado enunciado prescritivo constitucional, sem qualquer modificação do texto constitucional. Assim, enquanto na reforma constitucional ocorre a modificação da norma jurídica constitucional em razão da alteração do enunciado prescritivo constitucional (texto constitucional), na mutação a modificação da norma está centrada na interpretação e não alteração textual. b.3) Dos limites à reforma constitucional Afirmamos que a Constituição é o conjunto de enunciados prescritivos que forma a estrutura do ordenamento jurídico, possuindo, por razões lógicas, a supremacia sobre toda a legislação infraconstitucional e também sobre qualquer poder político. Esse papel estrutural e a característica de supremacia fazem com que o texto constitucional, em especial aqueles de característica rígida, limite a possibilidade de sua alteração, apresentando limites dos mais diversos, que podem ser reunidos em 4(quatro) grupos : limites formais, limites circunstanciais, limites temporais e limites materiais. Luís Rodolfo Ararigboia de Souza Dantas, em dissertação cujo tema é “Limitações Materiais ao Poder de Reforma Constitucional”, apresentada, em 2002, como exigência parcial Importante ressaltar que utilizamos a expressão “enunciado prescritivo” como texto normativo do qual se extraem normas jurídicas. Utilizamos a expressão norma jurídica como o proposição, isto é, o produto resultante do Juízo de valor em relação a determinado enunciado prescritivo. A norma jurídica, sem embargo de sua estrutura lógica [antecedente(hipótese) e conseqüente (tese) ligados sob uma relação de implicação, qualificada pelo modal “dever ser”) é o produto final do trabalho interpretativo 119 69 para a obtenção do título de Mestre pela Universidade de São Paulo, apresente interessante narrativa sobre os limites à reforma constitucional : “ Sendo muitas e bastantes díspares as tipologias que as doutrinas nacional e estrangeira oferecem com relação ao tema dos limites à reforma constitucional, cumpre destacar que o direito positivo de inúmeras constituições mundiais contém exemplos que apontam para a existência de, pelo menos, quatro importantes espécies de limitações postas pelo Poder Constituinte ao Poder de Reforma. São elas : limitações procedimentais (também denominadas processuais ou formais), temporais, circunstanciais e materiais”120 E, continua Luís Ararigboia apresentando cada uma dessas limitações : “ As limitações procedimentais, também chamadas de limitações processuais ou formais, referem-se às disposições especiais, em relação ao processo legislativo ordinário, que o legislador constituinte estabeleceu para permitir a alteração da Constituição Federal”121 Sobre as limitações temporais, afirma Ararigboia que “ a maioria das constituições pode ser reformada a qualquer tempo, muito embora nada obste que se estabeleça um período inicial de imodificabilidade ou, ao contrário, uma previsão de reforma a termo certo, ou ainda uma combinação de ambas as hipóteses com previsão de revisões periódicas.”122 Quanto às limitações circunstanciais, Manoel Gonçalves Ferreira Filho doutrina que “são aquelas que buscam, como o próprio nome sugere, impedir a modificação da constituição em certas circunstâncias especiais, diríamos até em circunstâncias anormais, pelo motivo óbvio de que essas anormalidades poderiam perturbar a livre manifestação dos órgãos incumbidos de revisão”123 Em relação aos limites materiais, Luís Ararigboia disserta que “...várias constituições fazem imutáveis certas matérias, certos dispositivos tidos como fundamentais. Para resguardar a sua obra, o constituinte originário freqüentemente consagra, de maneira expressa, cláusulas de irreformabilidade total ou parcial da Constituição. Desta maneira, por meio delas, determinados preceitos passa a ser irremovíveis. Traduzindo um esforço para assegurar a integridade da Constituição, obstam que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profundas mudanças de identidade”124 Ante o objeto de nosso estudo, importante é centralizarmos a nossa atenção, nesse momento, às limitações materiais ao poder de reforma, vez que é aqui que encontraremos os subsídios finais para a conceituação de “cláusula pétrea”. 120 DANTAS, Luís Rodolfo Ararigboia de Souza. Limites materiais ao poder de reforma constitucional. Dissertação apresentada à Banca Examinadora da USP – Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de mestre em Direito, p. 109 Ob. cit. p. 110 que, em realidade, é transcrição da obra “Direito Constitucional”, de Alexandre de Morais, São Paulo : Atlas Jurídico, 7a edição, 2000, p. 526 121 122 123 124 Ob. cit. p. 114 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. São Paulo : Saraiva, 1995, p. 135 Ob. cit. p. 120 70 Sobre a matéria, vale transcrição da obra de José Afonso da Silva125 em que revela a discussão sobre limites materiais explícitos e limites materiais implícitos : “ A controvésia sobre o tema mais se aguça, quanto a saber quais os limites materiais do poder de reforma constitucional. Trata-se de responder à seguinte questão : o poder de reforma pode atingir qualquer dispositivo da Constituição ou há certos dispositivos que não podem ser objeto de emenda ou revisão ? Para solucionar a questão, a doutrina distingue entre limitações materiais explícitas e limitações materiais implícitas. Quanto às primeiras, compreende-se facilmente que o constituinte originário poderá, expressamente, excluir determinadas matérias ou conteúdos da incidência do poder de reforma.(...) Quanto às limitações materiais implícitas ou inerentes, a doutrina brasileira as vinha admitindo, em termos que foram bem expostos por Nelson de Souza Sampaio. Há, no entanto, uma tendência a ampliar as hipóteses de limitações materiais expressas que, por certo, tem a conseqüência de não mais reconhecer-se a possibilidade de limitações materiais implícitas.” Se quanto às limitações materiais explícitas não se tem dúvida da sua existência, vez que transcritas expressamente no corpo da constituição, quanto às limitações materiais implícitas, necessário é apontar-se uma razão lógica para a sua existência, motivo pelo qual prosseguimos o estudo quanto às limitações materiais implícitas. Os limites materiais implícitos decorrem dos fundamentos, dos princípios, do espírito da Constituição. Não podemos pensar que tais limites implícitos surgem a partir de um caráter simplesmente subjetivo do intérprete. Em realidade, eles advêm da própria análise lógica dos preceitos constitucionais. Por exemplo, os enunciados constitucionais sobre os limites da reforma constitucional não estão expressamente citados no rol do parágrafo 4 o. do artigo 71 da CF/88, no entanto, trata-se de uma conclusão lógica a inalterabilidade das limitações materiais fixadas no parágrafo 4o. do artigo 60 da Lei Maior Brasileira. Ademais, ainda no exemplo citado, permitir que o Poder Derivado modifique a cláusula que não só o instituiu, como também aponta, como requisito sine qua non para sua atuação válida, limitações específicas é o mesmo que transformar em Poder Originário o Poder Constituinte Derivado. b.4) Conclusão. A apresentação do conceito de Cláusulas pétreas Completado o estudo preliminar e que serviu para bem fundamentarmos a nossa conclusão sobre o conceito de cláusula pétrea, importante é destacarmos o raciocínio que nos levou à conclusão ao final apontada : - A Constituição é o conjunto de norma jurídicas que estrutura todo o ordenamento jurídico. - A Constituição, por seu caráter estruturante, mantém situação hierarquicamente superior à legislação infraconstitucional - A partir da interpretação dos enunciados prescritivos constitucionais, obtemos as normas jurídicas constitucionais 125 Ob.cit. p. 61 71 - As normas jurídicas constitucionais necessitam, sob pena de perda de sua eficácia social, acompanhar as mudanças sociais, alterando-se. - A alteração das normas constitucionais pode ocorrer através da interpretação (mutações constitucionais - sendo que a interpretação não poderá extrapolar o limite semântico do texto constitucional interpretado) ou através de alteração dos enunciados prescritivos (= textos constitucionais, através da reforma constitucional, que se instrumentaliza através de revisão ou de emenda) - A fim de nortear a reforma constitucional (delimitando o poder constituinte derivado), o poder constituinte originário fixa limitações ao poder de reforma, limitações essas que podem ser limitações formais (previsão de processo específico para proposta de reforma constitucional, mais difícil e solene do que os previstos para a legislação ordinária), limitações temporais (impedindo que a constituição seja reformada antes de um determinado tempo ou prevendo que a reforma constitucional somente ocorrerá num período específico), limitações circunstanciais (impedindo a reforma da constituição em períodos de crise institucional que possam prejudicar a livre manifestação de vontade do povo e/ou de seus manifestantes) e limitações materiais (prevendo um elenco de enunciados constitucionais que são imodificáveis pelo poder constituinte originário). - As limitações materiais podem ser explícitas (o texto constitucional expressamente aponta os enunciados constitucionais imodificáveis) ou implícitas (a análise lógica do sistema constitucional leva à conclusão de que determinado enunciado constitucional não pode ser modificável, sob pena de destruição do espírito da constituição, de sua estrutura fundamental) Ante o todo exposto entendemos que “cláusulas pétreas” é a classe formada pelo rol de enunciados prescritivos que, em razão de expressa previsão do Poder Constituinte Originário ou de raciocínio lógico tendo como finalidade a manutenção do espírito, da estrutura básica da Constituição, não podem ser objeto de modificação pelo Poder Constituinte Originário. Interessante esclarecer que, para compor a classe das “cláusulas pétreas”, o indivíduo126 deve preencher o seguinte requisito : estar previsto expressamente de norma jurídica que impeça a reforma constitucional ou ser tão importante para a estrutura constitucional que a sua reforma levaria à decomposição do Poder Constituinte Originário, levaria à perda do “espírito” da Constituição. O termo “indivíduo” é aqui utilizado como parte pertencente a uma classe. Trata-se de termo precisamente utilizado pela Teoria das Classes 126 72 VI – INTERPRETAÇÃO DO PARÁGRAFO 4o DO ARTIGO 60 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 O nosso objetivo neste capítulo é, partindo do conceito genérico de “cláusulas pétreas” obtido no capítulo anterior, desenvolvermos um procedimento para a verificação de quais os requisitos para que um determinado enunciado constitucional se enquadre no rol das cláusulas pétreas instrumentalizado pela adequação à hipótese abstrata prevista no inciso IV do parágrafo 4o. do artigo 60 da Constituição Federal de 1988. Melhor esclarecendo, no capítulo anterior concluímos que “cláusulas pétreas” é a classe formada pelo rol de enunciados prescritivos que, em razão de expressa previsão do Poder Constituinte Originário ou de raciocínio lógico tendo como finalidade a manutenção do espírito, da estrutura básica da Constituição, não podem ser objeto de modificação pelo Poder Constituinte Originário. Concluímos também que, para compor a classe das “cláusulas pétreas”, o indivíduo127 deve preencher o seguinte requisito : estar previsto expressamente de norma jurídica que impeça a reforma constitucional ou ser tão importante para a estrutura constitucional que a sua reforma levaria à decomposição do Poder Constituinte Originário, levaria à perda do “espírito” da Constituição. Ora, o objetivo da presente monografia é a especificação de quais os enunciados constitucionais estão enquadrados na hipótese do inciso IV do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88. Isto é, o objetivo é apresentar quais os indivíduos que fazem parte da classe das cláusulas pétreas em razão de seu enquadramento explícito na hipótese do inciso IV do parágrafo constitucional acima indicado, não sendo, pois, objeto desta monografia apresentarmos quais os indivíduos que, por implicitude ou através do enquadramento nos demais incisos do parágrafo 4 o. do artigo 60 da CF/88 fazem parte da classe “cláusulas pétreas”. Nesse capítulo teremos como conclusão um procedimento que, uma vez aplicado, nos levará à conclusão quanto ao enquadramento ou não de determinado enunciado constitucional na hipótese do inciso IV do parágrafo 4o. da Constituição Federal. O termo “indivíduo” é aqui utilizado como parte pertencente a uma classe. Trata-se de termo precisamente utilizado pela Teoria das Classes 127 73 Para que alcancemos o nosso desiderato será necessária a interpretação não só do parágrafo 4 . do artigo 60 da CF/88, como também do seu inciso IV. Assim, nesse capítulo desenvolveremos os seguintes assuntos : interpretação de enunciados constitucionais que inserem limites materiais à reforma constitucional, interpretação do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88 (“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:”) e interpretação do inciso IV do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88 (“ os direitos e garantias individuais”) o a) Da interpretação dos enunciados constitucionais que limitam materialmente a reforma constitucional a.1) Da interpretação jurídica em geral É necessário partirmos de um conceito de interpretação, vez que de tal conceito extrairemos o método e as ferramentas necessários ao encontro da interpretação do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88. Desde já fixamos a premissa de que se interpretam os enunciados prescritivos (leis) e não o Direito ! Luís Roberto Barroso apresenta a sua definição de interpretação : “ A interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto.”128 Das simples, porém relevantes, palavras de Barroso, atentamo-nos para a finalidade da interpretação no Direito que é “fazer incidir em um caso concreto” a norma jurídica. Portanto, se, como ensina Jakobson, a interpretação atua “promovendo a interação do instrumento de observação e da coisa observada”, temos que, para o Direito, o “instrumento de observação” é o enunciado prescritivo e a “coisa observada” o caso concreto em análise jurídica. Vicente Ráo afirma que : “ a hermenêutica tem por objeto investigar e coordenar por modo sistemático dos princípios científicos e leis decorrentes, que disciplinam a apuração do conteúdo do sentido e dos fins das normas jurídicas e a restauração do conceito orgânico do direito, para efeito de sua aplicação e interpretação; por meio de regras e processos especiais procura realizar, praticamente, este princípios e estas leis científicas; a aplicação das normas jurídicas consiste na técnica de adaptação dos preceitos nelas contidos assim interpretados, às situações de fato que se lhe subordinam” 129 Do todo exposto, podemos concluir, como nossa definição de “interpretação de lei” o procedimento de obtenção do significado de um determinado enunciado prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação(o texto legal) e a coisa 128 129 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 97 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Max Limonad 74 observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo como finalidade a prática do Direito. Nessa maturação de pensamento, importante é a exposição dos ensinamentos de Tercio Sampaio Ferraz Júnior130, que investigando os objetivos e o funcionamento da ciência do direito, relata que : “ A captação da norma na sua situação concreta faria então da Ciência Jurídica uma ciência interpretativa. A ciência do Direito teria, neste sentido, por tarefa interpretar textos e situações a ela referidos, tendo em vista uma finalidade prática. A finalidade prática domina aí a tarefa interpretativa, que se distinguiria de atividades semelhantes das demais ciências humanas, à medida que a intenção básica do jurista não é simplesmente compreender um texto, como faz, por exemplo, um historiador que estabelece o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe “a força e o alcance, pondo-o em presença dos dados atuais de um problema.” Importante destacar que tal trecho de Ferraz Júnior não reflete a integralidade da sua opinião sobre o “ser” da ciência do direito, o que é mais detalhadamente estudado na sua obra, no entanto, é importante para fundamentarmos a nossa opinião de que a ciência do direito, mesmo que não integralmente, tem a sua faceta interpretativa. Ora, se a ciência do direito também uma ciência interpretativa, captando a norma na sua situação concreta, então é importante que saibamos quais os instrumentais, ou melhor, quais as técnicas que devem ser utilizadas para a realização da ciência jurídica interpretativa. E nesse ponto é importante retornarmos aos ensinamentos de Ferraz Júnior : “ Sendo vista como uma atividade interpretativa normativa, o jurista se obrigaria ao uso de variadas técnicas. Fala-se em interpretação gramatical, lógica, sistemática, teleológica, sociológica, histórico evolutiva etc.” Nós propomos, calcados no material colhido até agora e em estudos anteriores, um procedimento interpretativo que partiria das seguintes premissas: a) Interpretação de lei é o procedimento de obtenção do significado de um determinado enunciado prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação(o texto legal) e a coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo como finalidade a prática do Direito. b) A “produção”, “complementariedade” e “interação” são condições necessárias para o desenvolvimento da verdadeira interpretação. c) Num Estado Democrático de Direito, que tem, entre seus vários objetivos “construir uma sociedade livre, justa e solidária”(art. 3º, II, CF/88), dirigido pelo princípio da legalidade (inciso II do artigo 5o. da Constituição Federal), realiza-se o Direito quando se aplica, a um caso concreto, uma norma jurídica que é produto de interpretação de enunciados prescritivos, 130 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Samapio. A ciência do direito. São Paulo : Editora Atlas, 2a. edição, 1980, pp. 14/15 75 interpretação essa que levou em consideração os valores adotados pela sociedade e buscou a justiça para o caso concreto. d) O instrumento de formação da norma jurídica é exatamente a interpretação que é “o procedimento de obtenção do significado de um determinado enunciado prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação(o texto legal) e a coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo como finalidade a prática do Direito” e) A “interpretação” atual e usualmente utilizada na comunidade jurídica brasileira, que trata o Direito como algo abstrato e exclusivamente sistêmico, debruça-se numa “normatividade abstrata” que gera prejuízos não só ao próprio Direito (que acaba não cumprindo o seu desiderato), mas, também e principalmente, à sociedade, que não vê o Estado cumprindo o seu papel de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, com a promoção do “bem de todos”(incisos I e IV do artigo 3º da Constituição Federal de 1988), sendo mero “processo reprodutivo”, mera ação de “traduzir para a sua própria linguagem objetificações da mente”. f) A “Escola da Exegese”, a “Escola Histórica”, a “Teoria do Direito Vivo”, a “Teoria Pura de Hans Kelsen” e a “Interpretação Sociológica” apresentam procedimentos interpretativos que não são capazes de alcançar os fins do Direito aplicável a um Estado Democrático de Direito como o Brasil, onde se objetiva “construir uma sociedade livre, justa e solidária”(art. 3º, II, CF/88) e “promover o bem de todos”(art. 3º, IV, CF/88), sob a égide do “princípio da legalidade”(art. 5º, II, CF/88) O procedimento interpretativo que entendemos capaz de realizar o Direito no Brasil seria o seguinte : - da polissemia da palavra à fixação de seu significado contextual. É esse o papel do intérprete, fixando-se como “contexto” o caso concreto em análise e, como fim dessa fixação, a formação de uma norma jurídica que alie o enunciado prescritivo e a busca da forma mais justa e compatível com os valores atuais da sociedade, de regular determinado comportamento intersubjetivo - se a multiplicidade potencial de significados das palavras que constituem o(s) enunciado(s) prescritivo(s) em processo de interpretação é o “objeto” sobre o qual vai incidir os valores sociais e o valor de justiça, o método para o alcance desse objetivo (da formação da norma jurídica) deve ser o dialético. - no processo dialético temos 2(dois) momentos, um primeiro momento de “abertura da virtualidade”, isto é, o procedimento de se elencar o maior número possível de formas de solução do caso e um segundo momento que é de apreciação das hipóteses levantadas (virtualidade) a fim se apontar aquela que mais se compatibiliza com os “requisitos selecionadores”, que, no caso da interpretação jurídica são : os valores cultuados pela sociedade no momento da interpretação e o justo. A seleção da melhor das hipóteses levantadas é feita, dialeticamente, através do questionamento de cada uma das hipóteses, através do sistema de “perguntas e respostas”. 76 - o procedimento interpretativo não poderá exorbitar a capacidade polissêmica das palavras constantes do enunciado prescritivo em interpretação. - há possibilidade de composição entre a adoção de uma atividade dialética na interpretação e o respeito aos limites semânticos do texto legal em interpretação. Tal possibilidade é a seleção das “tópoi”, isto é, a seleção das hipóteses que compõem a virtualidade (através das análises gramatical e lógico-sistemática) sobre a qual recairá o trabalho de seleção (segundo momento da atividade dialética). - para uma perfeita análise do “segundo momento dialético”, é necessária a fixação de dois pontos, quais sejam : Como apontar o “valor predominante na sociedade no momento da interpretação”? Como apontar se há ou não correspondência à justiça ? - quanto ao “valor predominante”, o intérprete, se não é, deve se comportar como um “indivíduo-membro” da sociedade, buscando na própria sociedade a resposta para a sua pergunta (qual é o valor dominante). Características externas da própria sociedade, pesquisas de opinião, entrevistas, reação da sociedade em relação a determinados acontecimentos, aceitação da sociedade em relação a certas ocorrências são elementos muito valioso, cabendo ao intérprete a utilização deste material, juntamente com aquilo que ele próprio sente como membro da sociedade, para o apontamento axiológico final. - na apreciação da hipótese “mais justa”, caberá ao intérprete, analisando a situação de cada uma das partes na relação jurídica concreta em análise, o que cada uma “deu, fez ou é”, apontar a solução que melhor compatibilize as vontades das partes, que melhor as satisfaça, retribuindo a cada uma de acordo com o seu merecimento. - como resultado de todo o procedimento interpretativo, chegaremos à estrutura lógica da norma jurídica específica para aplicação no caso concreto em análise. a.2) Da interpretação constitucional Trata-se, o procedimento acima apontado, de procedimento interpretativo para enunciados prescritivos legais em geral, cabendo-nos, entretanto, para a realização de nosso objetivo, atentarmos para uma faceta ainda mais específica da interpretação jurídica, que é a interpretação jurídica constitucional, que, já adiantando, deverá levar em consideração o que representa a Constituição para o ordenamento jurídico nacional e para a sociedade a que se destina a sociedade. Alexandre de Moraes131 aponta que “a Constituição Federal há de sempre ser interpretada, pois somente por meio da conjugação da letra do texto com as características históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido de norma jurídica, em confronto com a realidade sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.” É preciso que voltemos a algumas conclusões já por nós extraídas neste trabalho quanto ao conceito de Constituição. Sem embargo de outros prismas de análise que, obviamente, levam a conclusões diferentes quanto ao conceito de Constituição, entendemos que Constituição é um conjunto de normas jurídicas, de grau hierarquicamente superior ao das demais normas jurídicas, e que têm por objetivo não só a fixação dos modelos de Estado e de Governo adotados no país, mas também a criação da estrutura do ordenamento jurídico desse país. Em suma, a Constituição no seu objetivo de traçar um retrato do Estado a ser implantado (ou já implantado) num país, fixa as bases do ordenamento jurídico, ordenamento jurídico esse 131 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo : Atlas, 2001, 9a. edição, pp.42/42 77 que irá, na prática, levar a sociedade a se comportar de forma que o retrato, isto é, o modelo de Estado adotado se consolide. E é com base nessas características que Gomes Canotilho, citado por Alexandre de Moraes132, enumera princípios e regras interpretativas das normas constitucionais, quais sejam : da unidade da constituição : a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas; do efeito integrador : na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deverá ser dada maior primazia aos critérios favorecedores da integração política e social, bem como ao reforço da unidade política; da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda; da justeza ou da conformidade funcional : os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poder não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário; da concordância prática ou da harmonização : exige-se a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros; da força normativa da constituição : entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais. Continuamos a nossa reflexão o tema traçando o campo de atuação da interpretação constitucional. Afinal, qual o objeto da interpretação constitucional ? Seriam tão somente os enunciados contidos no corpo da Constituição ? Seria dos enunciados contidos na legislação infraconstitucional frente ao conteúdo da constituição ? E já apresentamos a nossa primeira conclusão. Entendemos que na classe “interpretação constitucional” enquadram-se não só a interpretação dos enunciados constitucionais, como também dos enunciados infraconstitucionais conforme a Constituição. Tal conclusão se faz em razão da supremacia da Constituição, o que somente se alcança com a interpretação de toda a legislação (dos enunciados prescritivos constantes em toda a legislação) frente aos termos constitucionais. Segundo passo, o procedimento de interpretação por nós proposto na primeira parte deste trabalho pode também ser aplicado na interpretação constitucional ? Entendemos que sim. O procedimento “dialético” de interpretação proposto se dirige à realização do Direito num Estado Democrático de Direito como o é o Brasil, por expressa disposição constitucional, com o objetivo de construir uma “sociedade livre, justa e solidária”. Ora, na interpretação constitucional não temos dúvida de que buscamos, efetivamente, a realização do Direito, motivo pelo qual não há razão para não se aplicar o procedimento proposto, necessitando-se, entretanto, a análise de eventual necessidade de adequação. 132 Ob. cit. p. 42 78 Passamos a apontar, já no processo de subsunção do referido procedimento à interpretação constitucional, alguns pontos que entendemos relevantes : a) Assim como qualquer enunciado prescritivo, as palavras contidas nos textos constitucionais são polissêmicas e, portanto, com multiplicidade de significados (semântica), permitindo-nos a formação da virtualidade, isto é, a estruturação do conjunto de hipóteses possíveis de compreensão do texto (enunciado). Não podemos deixar de ressaltar que, ante o objetivo “estruturante do ordenamento jurídico”, os textos constitucionais são caracterizados por uma ampla possibilidade de significação, com a utilização de palavras de capacidade polissêmica elevada. Assim, não visualizamos qualquer necessária adaptação para a realização do “primeiro momento dialético” do procedimento interpretativo que adotamos na primeira parte do trabalho. b) Por ter o objetivo “estruturante” de todo o sistema jurídico, o texto constitucional é recheado de valores, que são introduzidos sob a forma de princípios. Ora, tais valores, com já refletimos no capítulo 3 desta segunda parte do trabalho devem compor o requisito axiológico social de seleção das hipóteses levantadas no “primeiro momento dialético”(formação da virtualidade). Assim, aos princípios constitucionais (e mais especificamente dos valores neles ínsitos) caberá a tarefa de formar o conteúdo necessário para a resposta da pergunta “qual é o valor dominante na sociedade?”, valendo, entretanto, levantar 3(três) pontos : a estruturação da resposta não deverá “somente” se basear nos valores contidos na Constituição, mas “também”com base neles, além dos demais valores dominantes na sociedade no momento da interpretação; os valores ínsitos nos princípios constitucionais são aqueles valores tidos como “básico” para que se construa uma “sociedade livre, justa e solidária”, não se fechando as portas para outros valores que também sejam cultuados pela sociedade no momento da interpretação; é possível a colidência de valores extraídos de princípios constitucionais, sendo que na solução de tal conflite cabe a adoção do princípio da proporcionalidade (como estudado no capítulo anterior), no sentido de “ponderar”, de “harmonizar” tais valores sob o raciocínio de que o Estado somente pode limitar com legitimidade a liberdade do indivíduo na medida em que isso for necessário à liberdade e à segurança de todos. Em suma, em relação ao procedimento interpretativo “geral” apontado na primeira parte deste trabalho, devemos, para a interpretação constitucional, somente levar em consideração as peculiaridades quanto aos “valores”, na forma detalhadamente analisada nos 3(três) pontos acima, esclarecendo-se que, quanto à análise da “justiça”, não há qualquer diferença em relação à interpretação jurídica “geral”. a.3) Da intepretação dos enunciados constitucionais que fixam cláusulas pétreas Feita essa breve, porém importante análise das características da interpretação constitucional, necessário é, por finalmente, fixarmos as premissas para a interpretação de parte 79 específica da Constituição, isto é, da parte da Constituição (vista como documento escrito) que contém o conjunto de enunciados prescritivos que fixam as cláusulas pétreas. Voltemos, inicialmente, ao conceito de “cláusula pétrea” já por nós estudado em capítulo anterior desse trabalho : “Cláusulas pétreas” é a classe formada pelo rol de enunciados prescritivos que, em razão de expressa previsão do Poder Constituinte Originário ou de raciocínio lógico tendo como finalidade a manutenção do espírito, da estrutura básica da Constituição, não podem ser objeto de modificação pelo Poder Constituinte Originário. Interessante esclarecer que, para compor a classe das “cláusulas pétreas”, o indivíduo133 deve preencher o seguinte requisito : estar previsto expressamente de norma jurídica que impeça a reforma constitucional ou ser tão importante para a estrutura constitucional que a sua reforma levaria à decomposição do Poder Constituinte Originário, levaria à perda do “espírito” da Constituição. Em relação às cláusulas pétreas há, basicamente, 3(três) correntes quanto aos seus limites : a da intransponibilidade das cláusulas pétreas, a da transponibilidade e a da relevância relativa das cláusulas pétreas. Sendo que entendemos importante uma análise, ainda que superficial, dessas correntes, vez que, da corrente que adotarmos, decorrerá, sob pena de incoerência, a nossa conclusão sobre o modo de interpretação dos enunciados constitucionais introdutores de cláusulas pétreas. Quanto à corrente da instransponibilidade dos limites materiais à reforma constitucional, defensores dessa corrente, sob o fundamento de que, com as cláusulas pétreas foram produzidas pelo Poder Constituinte Originário, sendo manifestação deste, não poderia o Poder Derivado, como órgão constituído e não constituinte, ultrapassar tais limites. São defensores dessa corrente Carl Schmitt, Joseph Story, Thomas Cooley, Willian Marbury e Gomes Canotilho, valendo destaque o pensamento de Carl Schmitt no sentido de que a possibilidade de reformar não é faculdade de dar uma nova constituição, vez que, como a Constituição é a decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política, o Poder Derivado não poderia modificar os núcleos essenciais da Constituição. A corrente da transponibilidade dos limites materiais entende que os limites materiais não têm qualquer valor, quando muito teriam mera eficácia jurídica. Para os que pensam assim, o Poder Constituinte Originário não poderia impor limites materiais ao Poder Derivado, mas tão somente limites formais. O fundamento dos defensores dessa corrente é no sentido de que as gerações futuras não deveriam ficar obrigadas pelas concepções do mundo e valorações da geração que exercera o Poder Constituinte. São defensores dessa corrente, entre outros, Georges Vedel, Ferdinand Lassale e Karl Lowenstein. Lassale defende que os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder, estabelecendo o antagonismo entre a Constituição verdadeira ou real, que exprime a correlação de forças reais do país e a Constituição escrita ou formal, qualificada por ele de “folha de papel”, sendo que a Constituição real prima sobre a Constituição positiva ou jurídica O termo “indivíduo” é aqui utilizado como parte pertencente a uma classe. Trata-se de termo precisamente utilizado pela Teoria das Classes 133 80 Ainda na transponibilidade, Karl Lowenstein afirma que “em um desenvolvimento normal da dinâmica política, pode ser que até certo ponto se mantenham firmes (as cláusula pétreas), mas em épocas de crise são tão só pedaços de papel varridos pelo vento da realidade política”134. Por fim, a corrente da relevância relativa das normas sobre limites materiais sustenta que devem ser respeitados os limites materiais à reforma constitucional enquanto estiverem (tais limites) em vigor, nada impedindo que os mesmos sejam alterados como quaisquer outras normas jurídicas. Pela relevância relativa, a modificação de enunciados integrantes da classe das cláusulas pétreas poderia ocorrer através de dois momentos: numa primeira revisão constitucional alterarse-ia a norma relativa ao limite material e, numa segunda revisão, modificar-se-ia a norma constitucional antes protegida. São defensores dessa corrente, entre outros, Jorge Miranda e Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Apresentadas as características básicas de cada uma dessas correntes, cabe-nos apresentar a nossa posição em relação a elas. Entendemos que Constituição é um conjunto de normas jurídicas, de grau hierarquicamente superior ao das demais normas jurídicas, e que têm por objetivo não só a fixação dos modelos de Estado e de Governo adotados no país, mas também a criação da estrutura do ordenamento jurídico desse país. Assim, a Constituição no seu objetivo de traçar um retrato do Estado a ser implantado (ou já implantado) num país, fixa as bases do ordenamento jurídico, ordenamento jurídico esse que irá, na prática, levar a sociedade a se comportar de forma que o retrato, isto é, o modelo de Estado adotado se consolide. Ora, não se tem dúvida de que para se atingir um determinado objetivo é necessário transpor vários obstáculos e, mais especificamente, para a consolidação de um modelo estatal (e, conseqüentemente, de sociedade) fixado por uma Constituição, tais obstáculos envolvem forças políticas contrárias, muitas vezes movidas por interesses de grupos específicos e que não refletem a vontade majoritária do povo. Isto é, para nós, uma Constituição, para realizar o seu objetivo de fixação de um modelo estatal, deve ser munida de força suficiente para resistir às forças políticas contrárias. É importante que esclareçamos que não defendemos a impossibilidade de modificação do modelo estatal, mas entendemos que tal somente pode ser procedido por “revolução” que institua nova Constituição. E é por tal motivo que, a priori, tendemos à filiação à corrente da instransponibilidade, mas com o realce de que, para possibilitar a sobrevivência da Constituição (e do modelo estatal por ela adotado), é possível a alteração de determinada cláusula pétrea desde que tal modificação seja condição sine qua non para a manutenção do modelo estatal, para a manutenção da estrutura constitucional e até mesmo para a eficácia do próprio direito petrificado. Luís Rodolfo Ararigboia de Souza Dantas, na dissertação “Limites Materiais ao Poder de Reforma Constitucional” apresentada junto à Universidade de São Paulo no ano de 2002, apresenta posição que se compatibiliza com a nossa : “...qualquer purismo jurídico que pretenda ver nas cláusulas pétreas uma barreira absoluta e definitiva ao Poder de reforma, sem que se leve em conta a relevância maior ou 134 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Barcelona : Ariel, 1965, p. 191 81 menor daquilo que se petrificou, será sempre um fator de instigação de um colapso constitucional...” “ Na realidade, devemos admitir, nenhum poder é totalmente jurisfeito, mantendo-se sempre como potencial ameaça àquilo que se petrifica, do mesmo modo que nenhum limite material é totalmente inabalável ao ponto de suscitar, em vez de harmonia, instabilidade” “ As cláusulas pétreas podem e devem ser fator de manutenção e aumento de estima constitucional, mas é também imprescindível detectar o que merece efetivamente ser considerado pétreo.” Em suma, a interpretação dos enunciados constitucionais que inserem hipóteses de cláusulas pétreas deve levar em consideração, além das técnicas normalmente utilizadas para a interpretação dos enunciados constitucionais em geral (critérios gramatical, lógico-sistemático, histórico), deverá desvendar especial atenção para o critério axiológico, que deverá se instrumentalizar, nos seguintes pontos : - deve-se alcançar a melhor forma de composição da vida social (justiça) - deve alcançar a maior rigidez possível, o que significa envolver o maior número de hipóteses possíveis extraídas da possibilidade semântica do enunciado (texto) - a necessidade de manutenção da eficácia social (real) do direito petrificado e a manutenção dos modelos estatal e social fixados pelo Poder Constituinte Originário são os pontos capazes de amenizar a rigidez das normas petrificantes, permitindo a sua relatividade (restrita a tais pontos) Sobre a interpretação dos limites materiais à reforma constitucional, Miguel Reale135, defendendo que o não-pagamento da contribuição previdenciária pelo servidor não constitui um direito adquirido de maneira definitiva, mas antes uma situação jurídica suscetível de ser alterada em razão de impostergáveis exigências de ordem financeiro, doutrina no sentido da possibilidade de extrapolação dos limites materiais de reforma constitucional, desde que tal extrapolação seja necessária para a “salvaguarda da ordem jurídica” : “... a interpretação de um texto constitucional distingue-se da pertinente às regras ordinárias pelo seu sentido eminentemente político, em virtude do qual seu texto deve ser compreendido como destinado tanto à salvaguarda da ordem jurídica quanto de sua alteração em razão das necessidades sociais, econômicas, financeiras, etc. Pensar de outra forma é conceber a Carta Magna como um sistema engessado de preceitos sem levar em conta as mutações que se operam no processo histórico” b) A interpretação do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88 Entendemos já possuir elementos teóricos suficientes para interpretar o parágrafo 4 .do artigo 60 da CF/88, que é, em realidade, o enunciado constitucional que insere hipóteses de limites materiais ao poder de reforma da dita Carta Maior. o 135 No texto Contrastes e confrontos constitucionais, publicado no jornal O Estado de São Paulo, publicado em 13/11/1999, citado por Luís Rodolfo Arrarigboia de Souza Dantas na sua dissertação “ Limites materiais ao poder de reforma constitucional” 82 Nesse trabalho interpretativo procuraremos aplicar o procedimento de interpretação constitucional, com todas as suas nuances, por nós fixados na letra “a” desse trabalho, procedendo-se da seguinte forma : Primeiro momento dialético de interpretação Início de construção da virtualidade Método gramatical e sistemático Hipóteses finais que compõem a Virtualidade (término do primeiro momento dialético de interpretação) Segundo momento dialético de interpretação Adequação aos valores cultuados na sociedade Verificação da hipótese mais justa Norma jurídica como resultado final b.1) Aplicação do método gramatical. Início da construção das hipóteses que compõem a virtualidade interpretativa É sabido que os textos legais em geral, inclusive e em especial o texto constitucional, são construídos por legisladores que, regra geral, utiliza-se de linguagem ordinária, comum, linguagem essa que, diferentemente das linguagens científica e formalizada, caracterizam-se pela vaguidade e ambigüidade. Paulo de Barros Carvalho136 bem descreve a linguagem natural (também chamada de comum ou ordinária), descrição essa que é importante para que nós percebamos a relatividade de tal linguagem : 136 BARROS CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila de autoria do Professor Paulo de Barros Carvalho para o módulo “Lógica Jurídica”, ministrado no programa de mestrado em direito da PUC/SP, item “5” do Capítulo II – “Língua e Linguagem – signos Lingüísticos – Funções – Formas e Tipos de Linguagem – Hierarquia de Linguagens” 83 “ A linguagem natural aparece como instrumento por excelência da comunicação entre pessoas. Espontaneamente desenvolvida, não encontra limitações rígidas, vindo fortemente acompanhada de outros sistemas de significação coadjuvantes, entre os quais, quando falada, a mímica. Entre suas múltiplas características figura o descomprometimento com aspectos demarcatórios do assunto sobre que se fala ou escreve: flui com ampla liberdade e corresponde, por isso, à reivindicação própria da comunicação cotidiana. Sobremais, lida com significações muitas vezes imprecisas, não se prendendo a esquemas rígidos de formação sintática de enunciados. A combinação desses fatores prejudica a economia do discurso, acentuando a dependência das mensagens à boa compreensão da conjuntura contextual. De outra parte, sua dimensão pragmática é riquíssima, evoluindo soltamente entre emissor e destinatário. Nela, percebem-se com clareza as pautas valorativas e as inclinações ideológicas dos interlocutores que, em manifestações despreocupadas, exibem suas intenções, dando a conhecer os vínculos psicológicos e sociais que entre eles se estabelecem.” Se de um lado, pelo exposto, é certo que o método gramatical não é suficiente para a interpretação de enunciados jurídicos, de outro lado, como a interpretação, como por nós já apontado, não pode extrapolar o limite semântico dos termos utilizados nos enunciados prescritivos (sob pena de afronta ao Estado Democrático de Direito e, mais especificamente, ao princípio da legalidade), há a necessidade de verificação das possibilidades semânticas do texto para, após, através dos outros métodos interpretativos (sistemático, histórico e axiológico), finalizarmos o trabalho interpretativo com o apontamento do sentido e alcance da norma jurídica. Vamos então à verificação das hipóteses semânticas extraíveis do texto do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88, cujo conteúdo é o seguinte : “ Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir : “ Constatamos que as expressões-chave para a construção das hipóteses semânticas de tal texto normativo são : “deliberação”, “proposta de emenda”, “tendente a abolir”. Analisemos cada uma delas : b.1.1) Análise das possibilidades semânticas do termo “deliberação” Aurélio Buarque de Holanda137 aponta os seguintes significados para a expressão “deliberação” : “deliberação [Do lat. deliberatione.] S. f. 1. Ação de deliberar; discussão para se estudar ou resolver um assunto, um problema, ou tomar uma decisão: O conselho está em deliberação. 2. Exame interior; reflexão, meditação. 3. Resolução, decisão: tomar uma deliberação. 4. Capacidade de resolver, decidir, deliberar; decisão, resolução: Resolvem tudo por ele: não tem deliberação.” Em seu “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, edição informatizada oferecida pelo site www.uol.com.br, editora Nova Fronteira 137 84 Luiz Emilio A. Montera e Sandra Amendola Barbosa Lima 138 apresentam os seguintes significados : “ Deliberação, s.f. Ato de deliberar, resolução, decisão (Lat. Deliberatione).” “ Deliberar, v.t. Decidir; resolver depois de exame, assentar; int. refletir, consultar, meditar no que se há de fazer; pron. resolver-se, determinar-se” De tais dicionários já podemos extrair que “deliberação” é sinônimo de trabalho de discussão, de reflexão, sobre determinado assunto com o fim de decisão. É importante, entretanto, termos consciência de que o termo “deliberação”, sem fugir totalmente dos significados acima especificados, tem um tratamento específico na Constituição de 1988, especificamente no que tange ao processo legislativo. A estrutura do processo legislativo brasileiro é a seguinte : propositura dos projetos de lei, deliberação, votação, promulgação/sanção (no caso das emendas à constituição não há possibilidade de sanção pelo Presidente da República) e publicação. Como ensina Alexandre de Moraes139, no processo legislativo brasileiro há 2(duas) espécies de deliberações : a deliberação parlamentar e a deliberação executiva. Entende-se por deliberação parlamentar a discussão sobre determinado projeto de lei por Comissões Parlamentares, sendo que, aprovado pelas comissões, o projeto volta a ser discutido em plenário nas casas do congresso. Exceção à regra de prévia deliberação por comissões parlamentares consta da parte final do inciso I do parágrafo 2o. do artigo 58 da CF/88. Já na deliberação executiva, após o término da deliberação parlamentar, o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional é remetido à deliberação executiva, onde será analisado pelo Presidente da República, podendo este vetá-lo ou sanciona-lo. Assim, chegamos aos seguintes significados para o termo “deliberação” : - trabalho de discussão, de reflexão, sobre determinado assunto com o fim de decisão (significado comum, constante de dicionários) parcial) discussão de projetos de lei em comissões parlamentares (deliberação parlamentar - discussão de projetos de lei no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar) - discussão de projetos de lei nas comissões parlamentares e, após aprovação pro essas, discussão no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar total) - discussão de projetos de lei, após aprovação pelo plenário das casas do congresso, pelo Poder Executivo, mais especificamente pelo Presidente da República, que poderá sancionar ou vetar 138 139 “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, São Paulo : Editora Mundo Musical, 1975 Ob. cit. pp.518/522 85 b.1.2) Análise das possibilidades semânticas do termo “proposta de emenda” Procederemos a nossa investigação semântica pela verificação dos significados possíveis para a palavra “proposta” e para a palavra “emenda” Por “proposta”, Aurélio Buarque de Holanda140 entende : proposta . [F. subst. do adj. proposto.] S. f. 1. Ato ou efeito de propor. 2. Aquilo que se propõe, se apresenta; proposição: Sua proposta de aumento de salário foi recusada. 3. Plano ou projeto proposto: A firma perdeu a concorrência por ser a sua proposta onerosa demais. 4. Oferecimento, oferta. 5. Moção (3). 6. Determinação, resolução. propor . [Do lat. proponere.] V. t. d. 1. Oferecer a exame; submeter a apreciação; apresentar: Três deputados propuseram projetos conflitantes. 2. Fazer sugestão de; lembrar, sugerir, alvitrar: As crianças propuseram um passeio. 3. Requerer em juízo; intentar: propor uma ação criminal. 4. Fazer propósito de; prometer: O criminoso propôs emendar-se. 5. Fazer conhecer; expor, apresentar: Ninguém propôs uma dúvida sequer. 6. Dispor, ordenar, determinar: A jovem esposa cumpria tudo que o marido propunha. 7. Oferecer à vista; mostrar, apresentar: O presidente propôs oficialmente os candidatos. T. d. e c. T. c. 8. Oferecer como preço: O comprador propôs 100.000 reais pelo terreno; Gostou da peça leiloada, mas propôs apenas 100 reais. T. d. e i. 9. Submeter a exame, ou a apreciação; apresentar: O deputado propôs uma lei ao Congresso. 10. Referir, relatar, expor: A mãe propôs histórias ao filhinho para adormecê-lo. 11. Oferecer, endereçar, dirigir: O escritor propôs seu livro a todos os jovens; "Na segunda-feira da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema." (Machado de Assis, A Semana, I, p. 13) 12. Propor (8): "Na véspera do dia em que ele devia ser queimado, os juízes propuseram-lhe o perdão a troco do simples depoimento de que não era legítima a sua mulher." (Ramalho Ortigão, As Farpas, p. 318.) 13. Ordenar, fixar, determinar: A lei propõe aos cidadãos numerosas obrigações. 14. Apresentar como sugestão; lembrar, sugerir: O irmão mais velho propôs aos demais uma tarefa. 15. Requerer em juízo; intentar: O locador propôs uma ação de despejo contra o inquilino. Transobj. 16. Apresentar como: Propôs secretário do clube o velho amigo. T. i. 17. Tomar intento; fazer propósito: Os atletas propuseram de vencer a partida. Int. 18. Apresentar proposição; fazer alvitres: A princípio os cidadãos atenienses votavam proposições, mas não podiam propor. P. 19. Ter em vista; tencionar, planear: Esta escola propõe-se formar técnicos de nível médio; "Vestiu de livros as paredes do seu gabinete, propondo-se o recreio do estudo" (Camilo Castelo Branco, Amor de Salvação, p. 131); "Propunha-me dormir no teu regaço / as quentes horas da comprida sesta" (Tomás Antônio Gonzaga, Marília de Dirceu, p. 107); "tal o material de que necessitamos, sempre que nos proponhamos a examinar, expor e criticar o sistema jurídico de um povo." (Pontes de Miranda, Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, p. 1) 20. Destinar-se, dispor-se a: Os segredos só podem ser revelados àqueles que se proponham abraçar a doutrina; "Propôs-se a ajudar-me nos estudos com o seu próprio ensino, latim, francês, inglês, história..." (Machado de Assis, Páginas Recolhidas, pp. 30-31) 21. Apresentar-se como candidato: Propôs-se a deputado. [Irreg. Conjug.: v. pôr. Cf. prepor.] Em seu “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, edição informatizada oferecida pelo site www.uol.com.br, editora Nova Fronteira 140 86 Luiz Emilio A. Montera e Sandra Amendola Barbosa Lima 141 apresentam os seguintes significados : “ Proposta.s.f. Proposição; oferecimento; projeto; argumento, asserção.” Importante destacar que na Constituição Federal de 1988, o termo “proposta” é utilizado para representar o ato de exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extraparlamentar142). Do ponto de vista jurídico-constitucional, pode-se entender por “proposta” também o documento escrito que consubstancia o exercício da iniciativa de lei. Alcançamos, pois, aos seguintes significados para o termo “proposta” : - aquilo que se propõe, que se oferece a exame - o ato de exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extraparlamentar143). - documento escrito que consubstancia o exercício da iniciativa de lei Vamos agora à análise do termo “emenda”. Por “emenda”, Aurélio Buarque de Holanda144 entende : emenda . [Dev. de emendar.] S. f. 1. Ato de emendar, de corrigir falta ou defeito; correção: emenda de um texto; Saiu a emenda pior que o soneto. 2. Ato ou efeito de emendar-se, de melhorar a própria conduta, de corrigir-se; regeneração: Apesar das promessas de emenda, comete os mesmos erros. 3. Ato de ligar uma peça a outra: Fez emenda da tábua com uma ensambladura. 4. Peça que se junta a outra para aumentarlhe as dimensões, corrigir defeito, etc.: O fio precisou de uma emenda para atingir a tomada. 5. Lugar onde se ligam ou juntam duas peças ou dois objetos, ou parte deles: A emenda do tecido ficou malfeita. 6. Numa assembléia, alteração proposta para um texto submetido à discussão ou votação: Os deputados apresentaram diversas emendas à lei de incentivos fiscais. 7. Tip. Correção na fôrma dos erros assinalados na revisão. 8. Tip. Cada um dos erros indicados na prova pelo revisor; correção. Sob emenda. 1. Salvo emenda; com dependência de emenda. emendar . [Do lat. emendare.] V. t. d. 1. Alterar, modificar: Cumpria emendar tudo quanto escrevera. 2. Tirar defeito(s) a; melhorar; corrigir; rever: Não cessava de emendar a própria obra. 3. Reparar, indenizar: Urge emendar as injustiças. 4. Acrescentar, ajuntar, para formar um todo: Emendou os retalhos e fez uma colcha. P. 5. Arrepender-se; corrigir-se: Era um glutão, mas, com a idade, emendou-se. [Pret. imperf. ind.: emendava, .... emendáveis, emendavam. Cf. emendáveis, pl. de emendável.] “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, São Paulo : Editora Mundo Musical, 1975 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 143 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 144 Em seu “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, edição informatizada oferecida pelo site www.uol.com.br, editora Nova Fronteira 141 142 87 Luiz Emilio A. Montera e Sandra Amendola Barbosa Lima 145 apresentam os seguintes significados : “emenda, s.f. Correção de falta, erro ou defeito; ato de melhorar, lugar onde duas peças se unem; ato de unir uma peça a outra, sambladura.” “ emendar, v.t. Melhorar; corrigir; acrescentar; tornar mais comprido por meio de emenda; pron. tornar-se melhor; arrepender-se;” Destacamos que a Constituição Federal de 1988, utiliza a palavra “emenda” para representar uma das espécies normativas constitucionalmente previstas, espécie normativa essa que é reflexo do exercício do Poder Constituinte Derivado e tem como resultado o acréscimo, o decréscimo ou a modificação de enunciados (textos) constantes da Constituição Extraímos, assim, as seguintes possibilidades de significado para o termo emendar : - ato de alterar, modificar, corrigir algo - resultado do exercício do ato de alterar, modificar ou corrigir algo, isto é, a modificação, a alteração, a correção de algo - ato de unir um objeto a outro - resultado do exercício do ato de unir um objeto a outro - representação de uma das espécies normativas constitucionalmente previstas, espécie normativa essa que é reflexo do exercício do Poder Constituinte Derivado e tem como resultado o acréscimo, o decréscimo ou a modificação de enunciados (textos) constantes da Constituição Necessário é, agora, procedermos a conjunção entre os significados possíveis dos termos “proposta” e “emenda” para que possamos alcançar o significado da expressão “proposta de emenda”. Encontramos, nesse processo de conjunção dos termos, os seguintes significados para “proposta de emenda” : - ato de oferecer a exame a modificação de algo - o instrumento escrito onde se consubstancia o oferecimento da modificação de algo - o ato de exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extraparlamentar146) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional 145 146 “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, São Paulo : Editora Mundo Musical, 1975 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 88 - documento escrito que consubstancia o exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extra-parlamentar147) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional b.1.3) Análise das possibilidades semânticas do termo “tendente a abolir” Da mesma forma que tratamos da expressão “proposta de emenda”, trataremos da expressão “tendente a abolir”, isto é, analisaremos inicialmente os significados individuais de cada uma das palavras que compõe a expressão - “tendente” e “abolir”- e, após, procederemos a conjunção dos significados montando as hipóteses de significação da expressão “tendente a abolir” A fim de manter a coerência do procedimento de pesquisa, iniciaremos pela significação apresentada por Aurélio Buarque de Holanda148: tendente . [Do lat. tendente.] Adj. 2 g. 1. Que tende: "Os mais extravagantes critérios eram adotados, as mais estranhas normas se exigiam, todas tendentes a dificultar o aparecimento de novos escritores." (Guilherme Figueiredo, Cobras & Lagartos, p. 45); "O instinto sexual, normalmente tendente para o sexo oposto, é o mais rudimentar dos instintos morais." (Fernando Pessoa, Páginas de Doutrina Estética, p. 72) 2. Que se inclina. 3. Que tem vocação. tender . [Do lat. tendere.] V. t. d. 1. Estirar; estender: tender a mão. 2. Encher, enfunar: "As galés de Castela, havia meses ancoradas no Tejo, sarparam, tenderam velas e demandaram a barra" (Antero de Figueiredo, Leonor Teles, p. 229) 3. Desfraldar, hastear: tender a bandeira. 4. Bater e arredondar na masseira, etc. (o pão que se vai cozer). T. i. 5. Ter vocação; inclinar-se; propender: Desde criança tende para a advocacia. 6. Dirigir-se, encaminhar-se; propender: Vai mal de negócios, tende para a falência. 7. Visar, ter em vista ou por fim; dispor-se, destinar-se: As conversações tendiam a apaziguar os ânimos. 8. Apresentar tendência, inclinação ou disposição para algo: "Toda contemplação tende a formar em nós um composto de representações característico, afim com a coisa contemplada." (Rosário Fusco, Introdução à Experiência Estética, p. 37); "Já no tempo de Plauto .... tendia o dativo a expressar-se pelo acusativo com ad." (Carlos Henrique da Rocha Lima, Uma Preposição Portuguesa, p. 15); "Tendem para a poesia, segundo creio, todos os gêneros literários." (Henriqueta Lisboa, Vigília Poética, p. 33) 9. Aproximar-se, acercar-se: A cor dos seus olhos tende para o verde. 10. Aspirar, pretender: O bom artista tende para o domínio técnico de sua arte. T. c. 11. Inclinar-se, voltar-se: O navio tendeu para a esquerda. P. 12. Alargar-se, estender-se. [Inf. pess.: tender, tenderes, etc. Cf. tênder e pl. tênderes.] Luiz Emilio A. Montera e Sandra Amendola Barbosa Lima 149 apresentam os seguintes significados : 147 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 Em seu “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, edição informatizada oferecida pelo site www.uol.com.br, editora Nova Fronteira 148 149 “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, São Paulo : Editora Mundo Musical, 1975 89 “ Tendência, s.f. Propensão, disposição. Intenção, força que determina o movimento do corpo” Com base nos significados acima, podemos extrair as seguintes hipóteses de interpretação do termo “tendente” constante do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88 : - disposição, aptidão, que tem a função de - propensão, inclinação, que tem a inclinação a - intenção, que tem a intenção de Vamos ao termo “abolir “. Consta do “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, de Aurélio Buarque de Holanda 150 os seguintes significados para a palavra “abolir”: abolir [Do lat. abolere.] V. t. d. 1. Acabar com (instituições, leis, usos, etc.); extinguir. 2. Fazer desaparecer; eliminar, suprimir. 3. Deixar de usar; largar: Aboliu o cigarro e recuperou a saúde. T. d. e c. 4. Eliminar, banir, suprimir. [Defect. Não tem as f. em que ao l da raiz se seguiria a ou o: a 1ª pess. sing. do pres. ind., todo o pres. subj. e o imperat. neg. Imperf. ind.: abolia, etc. Cf. abulia.] Luiz Emilio A. Montera e Sandra Amendola Barbosa Lima 151 apresentam os seguintes significados : Abolição, s.f. Ato de abolir, extinção Do acima exposto, podemos constatarr as seguintes hipóteses de interpretação do termo “abolir” : - acabar com algo, eliminar - suprimir algo Possível é, nesse momento, efetuarmos a conjunção entre os significados possíveis dos termos “tendente” e “abolir” para que possamos alcançar o significado da expressão “tendente a abolir”. Encontramos, nesse processo de conjunção dos termos, os seguintes significados para “proposta de emenda” : 1) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para acabar com algo; 2) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável Em seu “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, edição informatizada oferecida pelo site www.uol.com.br, editora Nova Fronteira 150 151 “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, São Paulo : Editora Mundo Musical, 1975 90 (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando ou reduzindo o seu campo de atuação 3) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando o seu campo de atuação 4) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação 5) intenção (conduta dolosa) de suprimir algo, entendendo-se “suprimir” como o afastamento total de norma jurídica constitucional considerada imutável (objeto passa a não mais existir) 6) intenção (conduta dolosa) de suprimir a forma original de de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando ou reduzindo o seu campo de atuação 7) intenção (conduta dolosa) de suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando o seu campo de atuação 8) intenção (conduta dolosa) de suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação 9) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo). Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação 10) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), aumentando ou reduzindo o seu campo de atuação. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído 11) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável 91 (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação e/ou utilidade. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído 12) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), aumentando o seu campo de atuação e/ou utilidade. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído b.2) Análise lógico-sistemática dos termos constituintes da expressão “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” Nos itens anteriores trabalhamos no sentido de verificar a amplitude de significações (amplitude semântica) dos termos que compõe a expressão “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir”, constante do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88. É necessário agora procedermos a compatibilização dos significados apontados com os significados apontados aos mesmos termos em outros artigos da citada Constituição. Isto é, entende-se, para os fins do presente trabalho, análise lógico-sistemática como a integração total da Constituição Federal de 1988, partindo-se do princípio lógico de que os mesmos termos são utilizados com o mesmos significados em todas as vezes que são utilizados no corpo da Constituição. Trata-se de um raciocínio lógico do qual não podemos nos afastar. Através dessa análise lógico-sistemática, não modificaremos a estrutura interna da hipóteses semânticas por nós levantadas no item anterior (vez que o significado lógicosistemático já esta constante numa das hipóteses levantadas, mesmo porque pretendemos na análise gramatical-semântica, levantar todas as hipóteses de significação dos termos), mas, sim, excluir alguma(s) hipótese(s) que não se compatibilizam com os significados utilizados em outras partes da Constituição. Essa análise significa para nós a aplicação do princípio da UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO, na forma apontada por Gomes Canotilho, citado por Alexandre de Moraes152,: “a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas”153. b.2.1) Análise lógico-sistemática do termo “deliberação” Extraímos no item “b.1.1” os seguintes significados para o termo “deliberação” : 152 Ob. cit. p. 42 153 92 1) trabalho de discussão, de reflexão, sobre determinado assunto com o fim de decisão (significado comum, constante de dicionários) 2) discussão de projetos de lei em comissões parlamentares (deliberação parlamentar parcial) 3) discussão de projetos de lei no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar) 4) discussão de projetos de lei nas comissões parlamentares e, após aprovação pro essas, discussão no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar total) 5) discussão de projetos de lei, após aprovação pelo plenário das casas do congresso, pelo Poder Executivo, mais especificamente pelo Presidente da República, que poderá sancionar ou vetar Desde já podemos, para os objetivos desse trabalho (interpretação jurídica do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88), excluir a hipótese semântica “1” (“trabalho de discussão, de reflexão, sobre determinado assunto com o fim de decisão (significado comum, constante de dicionários”), vez tratar-se de um significado “lato”, afastado da específica significação científica-jurídica. Não podemos, entretanto, deixar de ressaltar que as demais hipóteses semânticas foram alcançadas também levando em consideração a amplitude inicial da hipótese “1”, destacando-se, assim, a necessidade da sua análise para fins de investigação. Estamos tratando de interpretação de enunciado prescritivo que tem por objetivo fixar limites materiais às emendas constitucionais. Melhor dizendo, o nosso foco são as emendas constitucionais e não as demais espécies normativas. Ora, conforme procedimento constante no artigo 60 da CF/88, o processo legislativo da emenda constitucional não inclui a deliberação executiva, vez que o Presidente da República não possui o direito de veto em relação as propostas de emenda constitucional aprovadas pelo Poder Constituinte Derivado, motivo pelo qual fica afastada a hipótese semântica “5” (“discussão de projetos de lei, após aprovação pelo plenário das casas do congresso, pelo Poder Executivo, mais especificamente pelo Presidente da República, que poderá sancionar ou vetar”). Assim, descartando-se as hipóteses semânticas incompatíveis com o “sistema constitucional brasileiro”, limitamos a nossa interpretação somente as seguintes hipóteses : 2) discussão de projetos de lei em comissões parlamentares (deliberação parlamentar parcial) 3) discussão de projetos de lei no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar) 4) discussão de projetos de lei nas comissões parlamentares e, após aprovação pro essas, discussão no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar total) Essas hipóteses restantes serão objeto de análise de outras técnicas interpretativas, quais sejam, a histórica e a axiológica. b.2.2) Análise lógico-sistemática do termo “proposta de emenda” 93 No item “b.1.2” (análise gramatical), extraímos os seguintes significados para o termo “proposta de emenda” : 1) ato de oferecer a exame a modificação de algo 2) o instrumento escrito onde se consubstancia o oferecimento da modificação de algo 3) o ato de exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extraparlamentar154) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional 4) documento escrito que consubstancia o exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extra-parlamentar155) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional Da mesma forma como já ocorrera no item anterior, desde já podemos, para os objetivos desse trabalho (interpretação jurídica do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88), excluir as hipóteses semânticas “1” e “2” ( “ato de oferecer a exame a modificação de algo” e “o instrumento escrito onde se consubstancia o oferecimento da modificação de algo”), vez tratar-se de significados “lato”, afastados da específica significação científica-jurídica. Não podemos, entretanto, deixar de ressaltar que as demais hipóteses semânticas foram alcançadas também levando em consideração a amplitude inicial das hipóteses “1” e “2”, destacando-se, assim, a necessidade da sua análise para fins de investigação. De outro lado, os trabalhos legislativos são devidamente formalizados na forma determinada pela Constituição, como também pela Lei Complementar 95/98 (que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis) e pelo Regimento Interno das Casas do Congresso, motivo pelo qual o simples comportamento não formalizado não gera efeitos em termos de processo legislativo. Melhor esclarecendo, uma simples intenção de proposta de emenda constitucional não gera reflexo, mas uma proposta formalizada (escrita) de emenda constitucional proposta por quem tem competência para tal ato possui, sim, efetivos efeitos. Por tal razão, resta excluída também a hipótese semântica “3” (“o ato de exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extra-parlamentar156) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional”). Descartando-se as hipóteses incompatíveis com o sistema constitucional, mantém-se tão somente a hipótese “4” (“documento escrito que consubstancia o exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extraparlamentar157) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional”) 154 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 156 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 157 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 155 94 b.2.3) Análise lógico-sistemática do termo “tendente a abolir” No item “b.1.3” (análise gramatical), extraímos os seguintes significados para o termo “proposta de emenda” : 1) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para acabar com algo; 2) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando ou reduzindo o seu campo de atuação 3) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando o seu campo de atuação 4) disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação 5) intenção (conduta dolosa) de suprimir algo, entendendo-se “suprimir” como o afastamento total de norma jurídica constitucional considerada imutável (objeto passa a não mais existir) 6) intenção (conduta dolosa) de suprimir a forma original de de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando ou reduzindo o seu campo de atuação 7) intenção (conduta dolosa) de suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), aumentando o seu campo de atuação 8) intenção (conduta dolosa) de suprimir a forma original de norma jurídica constitucional considerada imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição, isto é, na Constituinte que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação 9) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo). Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação 10) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma 95 original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), aumentando ou reduzindo o seu campo de atuação. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído 11) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação e/ou utilidade. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído 12) processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), aumentando o seu campo de atuação e/ou utilidade. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído De todas as hipóteses acima apontadas, entendemos que a única que não mantém compatibilidade lógica com a CF/88 é a hipótese “1” (disposição, aptidão, intencional ou não, de algo ou de algum instrumento para acabar com algo), vez tratar-se de significado “lato”, afastado da específica significação científica-jurídica. Destaque-se que as demais hipóteses semântica não encontram incompatibilidade com eventuais significados dirigidos aos mesmos termos em outros artigos da CF/88, sendo certo que as técnicas histórica e axiológica serão determinantes na análise de tais hipóteses semânticas restantes. b.3) Análise histórica da expressão “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” Numa Constituição todos os enunciados introduzidos pelo Poder Constituinte Originária têm uma razão de ser, tem um fundamento histórico que levou o Constituinte a cercar a matéria. Sobre a interpretação histórica, interessante é citar Maria Helena Diniz158 : 158 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo : Saraiva, 7a. edição, atualizada, 1995, p.391 96 “ A técnica interpretativa histórica, oriunda das obras de Savigny e Puchta, cujas idéias foram compartilhadas por Espínola, Gabba e Holder, Biermann, Cimbali, Wach, Alípio Silveira, Cosak, Salvioli, Endemann, Bufnoir, Bekker etc, baseia-se na averiguação dos antecedentes da norma. Refere-se ao histórico do processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, emendas, aprovação e promulgação, ou às circunstâncias fáticas que precederam e que lhe deram origem, às causas ou necessidades que induziram o órgão a elabora-la, ou seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (ocasio legis). Como a maior parte das normas constitui a continuidade ou modificação das disposições precedentes, é bastante útil que o aplicador investigue o desenvolvimento histórico das instituições jurídicas, a fim de captar o exato significado das normas, tendo sempre em vista a razão delas (ratio legis), ou seja, os resultados que visam atingir.” Já adentrando no mérito histórico do texto do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88, vale citar Luís Rodolfo Ararigboia de Souza Dantas em sua dissertação “Limites Materiais ao Poder de Reforma Constitucional”159: “ Primeiramente, lembremos que a fórmula “tendente a abolir” está presente em todas as nossas Constituições que instituíram limites à reforma constitucional, desde a Constituição de 1891, e a sua presença no atual texto constitucional pode ser explicada por esta tradição” Se de um lado o Brasil já possuía uma tradição constitucional em fixação de cláusulas pétreas em suas Cartas Políticas, de outro lado há que se destacar o movimento político-social contemporâneo à Assembléia Constituinte que deu origem à Constituição de 1988.Trata-se de um período de tentativa de redemocratização do país após longo período de ditadura e esse contexto histórico não pode ser afastado do procedimento interpretativo do campo de abrangência das cláusulas pétreas e, por conseguinte, da interpretação do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88. De importante destaque que, à exceção da forma federativa de Estado (inciso I do parágrafo 4 . do artigo 60 da CF/88), todas as demais previsões de conteúdo de limites materiais à reforma constitucional, isto é, “o voto direto, secreto, universal e periódico”(inciso II), “a separação dos Poderes” (inciso III) e “os direitos e garantias individuais” (inciso IV), têm como objetivo impedir a volta de um regime ditatorial, a volta de um regime que impeça a liberdade dos cidadãos e é com esse objetivo de natureza histórica, de manutenção de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (trecho do preâmbulo da Constituição de 1988) e que “tem como fundamentos a I-soberania, II – a cidadania, III- a dignidade da pessoa humana, IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e V- o pluralismo jurídico” (trecho do artigo 1o. da CF/88). o E, por esses motivos, defendemos que o parágrafo constitucional em exame seja interpretado de forma a conservar esses valores históricos, que deram origem às características de petrificação de algumas normas constitucionais b.4) Análise axiológica da expressão “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” 159 Ob. cit. p. 207 97 Ab initio, interessante é comentar que apesar das doutrinas muito falarem sobre os princípios, suas classificações e seus objetivos, poucos autores apresentam uma definição satisfatória para esse instituto. Ora, cabe-nos, pois, interpretar o que vem a ser um “princípio” e iniciamos através de uma análise semântica, vez que princípio é sinônimo de começo, de primeiro, de inaugural. No entanto, para uma perfeita interpretação de tal instituto, é necessária, além de uma análise sintática, uma análise semântica e pragmática. Se princípio é o começo, início, necessário é perguntar : início do que ? E nesse ponto é necessário introduzirmos o significado de sistema, que é um conjunto harmônico e coordenados de elementos segundo uma referência, um valor, para que possamos afirmar que princípio significa um valor que tem por objetivo harmonizar e coordenar os diversos elementos de um sistema. É a referência que correlaciona e integra os elementos de um sistema e, por conseguinte, não há como afastar o tratamento de princípios do estudo do sistema a que ele se referem. Como ensina Paulo César Conrado160, “o termo princípio é utilizado, no campo da Ciência do Direito, para denotar as diretrizes que iluminam a compreensão de setores normativos (mais ou menos abrangentes, segundo o caso), imprimindo-lhes caráter de unidade e servindo, em virtude dessa mesma unidade, de fator de agregação das normas integrantes dos apontados setores”. E a definição do Professor Conrado, a despeito de tratar especificamente de princípios jurídicos, compatibiliza-se, em seu âmago, com a definição genérica de princípio, por nós apontada acima. Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior161 apontam que “os princípios são regras-mestras dentro do sistema positivo. Devem ser identificados dentro da Constituição de cada Estado as estruturas básicas, os fundamentos e os alicerces desse sistema. Fazendo isso estaremos identificando os princípios constitucionais”. Carlos Ari Sandfeld162, por sua vez, ente que “os princípios são idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-se. “ As citações anteriores confirmam a definição de “princípio” por nós apontada, qual seja : “conjunto harmônico e coordenados de elementos segundo uma referência, um valor, para que possamos afirmar que princípio significa um valor que tem por objetivo harmonizar e coordenar os diversos elementos de um sistema”. Já partindo para a espécie “constitucional” do gênero “princípio”, citamos Celso Ribeiro Bastos apresenta a sua visão : 163 “ Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam os princípios esta meta à proporção que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade 160 CONRADO, Paulo César. Introdução à Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo: Max Limonad ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Editora Saraiva, 7ª edição, revista e atualizada, 2003, p.59 162 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo : Malheiros, 1992, p. 137 163 Ob. cit. p. 143 161 98 semântica, eles ascendem a uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma estabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas” Luiz Alberto David Araújo, em seu estudo a respeito da proteção constitucional do transexual, cita Luís Roberto Barroso, para quem “os princípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos valores principais da ordem jurídica”, são “as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo um sistema . Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos.”164 Fixado está que os princípios constitucionais, se não são os próprios principais valores da ordem jurídica, são os instrumentos pelos quais os mesmos são apresentados no Direito Posto. No entanto, entendemos que a simples vinculação dos valores à ordem jurídica não é suficiente para a perfeita compreensão dos princípios. Necessário é a vinculação de tais valores à sociedade, no sentido de serem valores cultuados pela sociedade no momento da análise constitucional, como aponta David Araújo : “ ... a atualidade guarda relação com a necessidade de manter a coerência entre os princípios constitucionais, firmados no sistema fundamental, e os projetos e ideais do povo, estabelecidos no ordenamento jurídico, no presente momento.”165 Pela necessidade de compatibilidade entre os valores fixados através de princípios constitucionais e os valores dominantes na sociedade no momento da aplicação do Direito é que os valores inseridos pelos princípios constitucionais são, caracteristicamente, valores profundos, fortemente inerentes à sociedade a que se refere, e não valores transitórios, voláteis, facilmente esquecidos. Para demonstração, perguntamos : há alguma perspectiva na sociedade brasileira para que a mesma rejeite valores como o da igualdade, da proteção da intimidade e da vida privada, da inviolabilidade da vida ...? Claro que não. A rejeição da sociedade a valores fixados em princípios constitucionais reflete uma mudança de rumo da sociedade, ensejando “revolução” que dá origem a Poder Constituinte Originário. Assim, por entendermos que princípios constitucionais são instrumentos de exibição de valores cultuados pela sociedade a que se referem, é que estamos certos que a apreciação dos princípios constitucionais é de relevância sem igual para o que fixamos ser a interpretação axiológica do parágrafo 4o.do artigo 60 da CF/88. E entendemos que, fora o próprio histórico de introdução de cláusulas pétreas nas Constituições Brasileiras e o momento social e político enfrentados pelo Constituinte de 1988, o que já foi analisado quando da “interpretação histórica”, o parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88, bem como os seus incisos, devem ser interpretados levando em consideração o constante do preâmbulo e do artigo 1o. da CF/88, abaixo transcritos : “ Preâmbulo 164 165 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional do Transexual. São Paulo : Saraiva, 2000, p. 80 Ob.cit.p. 92 99 Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.” “ Artigo 1o. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de direito e tem como fundamentos : I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. “ Ora, à exceção da forma federativa de Estado (inciso I do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88), todas as demais previsões de conteúdo de limites materiais à reforma constitucional, isto é, “o voto direto, secreto, universal e periódico”(inciso II), “a separação dos Poderes” (inciso III) e “os direitos e garantias individuais” (inciso IV), têm como objetivo impedir a volta de um regime ditatorial, a volta de um regime que impeça a liberdade dos cidadãos e é com esse objetivo de natureza histórica, de manutenção de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (trecho do preâmbulo da Constituição de 1988) e que “tem como fundamentos a I-soberania, II – a cidadania, III- a dignidade da pessoa humana, IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e V- o pluralismo jurídico” (trecho do artigo 1o. da CF/88). Em suma, quando tratamos de voto secreto e universal, de separação de poderes e de direitos e garantias individuais, estamos tratando de bases para que se atinja em plenitude o modelo de Estado Democrático de direito que cumpra o seu papel de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” Antes de adentrarmos mais especificamente no campo do inciso IV do parágrafo em comentários, importante fundamentarmos o porquê apontamos a “forma federativa de Estado” como exceção à regra de que todo o conteúdo do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88, inclusive seus incisos, é condição para a existência de um Estado Democrático de Direito, e fazemos tal fundamentação citando Oscar Vilhena Vieira166 : “ Isto não significa que todos os princípios e valores protegidos como cláusulas superconstitucionais tenham valor ético transcendente. O princípio da Federação, por exemplo, 166 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça. São Paulo : Malheiros, 1999, p. 241 100 prima facie, não possui valor moral em si. Diversas são as nações que se organizam de maneira unitária sem que isso signifique uma ordem injusta ou autoritária. Pode-se argumentar, no entanto, que uma nação de vasto território e com forte tradição de centralização do poder na esfera do governo central, o estabelecimento do princípio federativo tem importância significativa para o desenvolvimento da democracia. “ Outro ponto a destacar. Os direitos petrificados o foram com o efetivos objetivos, isto é, no sentido não só da sua existência teórica, mas na sua existência prática. Em termos da ciência do direito, o que se busca não é somente uma eficácia jurídica das normas jurídicas que inserem os direitos tidos como invioláveis pela reforma constitucional, mas também a sua eficácia social. Importante, nesse ponto, a distinção entre eficácia jurídica e eficácia social. Sendo que, para diferenciar dois institutos é necessário, inicialmente, que os conheçamos, ou melhor, que saibamos os seus respectivos significados, quais sejam : Eficácia jurídica : é o mecanismo de incidência, o processo pelo qual, efetivando-se o fato relatado no antecedente, projetam-se os efeitos prescritos no conseqüente. É característica do fato juridicizado (fato previsto pela norma), e não da norma. Eficácia social : é a produção concreta dos fatos na ordem dos fatos sociais, ou seja, é a característica de cumprimento da norma pelo seu destinatário. É uma característica da norma. Assim : a) quanto ao objeto a que se refere : enquanto a eficácia jurídica é uma característica do fato juridicizado (fato previsto na norma), a eficácia social é uma característica da própria norma. b) quanto ao momento de ocorrência : a eficácia jurídica é apontada quando do mecanismo de subsunção, sendo que a eficácia social é apontada em momento posterior, relacionado à efetivação da previsão abstrata da norma c) quanto ao estudo : a eficácia jurídica é conceito da dogmática jurídica, enquanto que a eficácia social é conceito da sociologia, mais precisamente da sociologia jurídica. Assim, o que interessa não é somente estar prevista na constituição norma jurídica de direito à igualdade, mas que sejam apresentados a favor da sociedade instrumentos para o alcance de tais direitos. Isto é, quando tratamos, por exemplo, da petrificação dos direitos e garantias individuais, estamos incluindo no campo da impossibilidade de modificação outras normas jurídicas constitucionais necessárias à “eficácia social” de determinado direito ou garantia individual. Após esse esforço teórico, cabe a nós, agora, aplicando a técnica axiológica de interpretação apontarmos, finalizando esse capítulo do trabalho, a interpretação do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88. b.4.1) Interpretação axiológica da expressão “deliberação” 101 Ao final da interpretação sistemática, chegamos às seguintes hipóteses semânticas possíveis (já excluídas aquelas incompatíveis sistematicamente com a unidade constitucional): 2) discussão de projetos de lei em comissões parlamentares (deliberação parlamentar parcial) 3) discussão de projetos de lei no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar) 4) discussão de projetos de lei nas comissões parlamentares e, após aprovação pro essas, discussão no plenário das casas do congresso (deliberação parlamentar total) Ora, se o objetivo do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88, como já apontado anteriormente, é impedir que sejam suprimidas normas jurídicas petrificadas seja através de supressão, seja através da introdução de novas normas jurídicas constitucionais que afastem a existência ou a eficácia social de normas jurídicas incluídas no rol do parágrafo em exame, outra não deve ser a interpretação do termo “deliberação” senão a mais ampla possível, incluindo não só as discussões nas comissões parlamentares de projeto de emenda que tenda a abolir direitos petrificados, como também as discussões no plenário das casas do congresso, motivo pelo qual prospera a hipótese semântica “4” (“discussão de projetos de emendas consticicuonais nas comissões parlamentares e, após aprovação pro essas, discussão no plenário das casas do congresso”), isto é, a deliberação parlamentar total. b.4.2) Interpretação axiológica da expressão “proposta de emenda” Através das técnicas anteriores de interpretação (gramatical e sistemática) restou-nos somente a interpretação de “proposta de emenda” como documento escrito que consubstancia o exercício da iniciativa de lei (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extra-parlamentar167) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional. Tendo restado somente uma hipótese, resta afastada a necessidade do crivo da interpretação axiológica nesse ponto. b.4.3) Interpretação axiológica da expressão “tendente a abolir” Entendemos que a expressão “tendente a abolir” é a mais importante de todo o parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88, sendo a que impõe maior acuidade na utilização da interpretação axiológica. Se o objetivo é a manutenção de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (trecho do preâmbulo da Constituição de 1988) e que “tem como fundamentos a I-soberania, II – a cidadania, III- a dignidade da pessoa humana, IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e V- o pluralismo jurídico” (trecho do artigo 1o. da CF/88) e, como já visto, o conteúdo do parágrafo 4o. do artigo 60 é considerado pelo Poder Constituinte Originário como requisito sine qua non para que se atinja tal modelo estatal, 167 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 102 entendemos que deve ser feita a interpretação que mais zele por tal conteúdo, sendo, pois, necessária uma interpretação ampla. Assim, ante o acima exposto, entendemos que a melhor interpretação para a expressão “ tendente a abolir” é “processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação e/ou utilidade. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído”. Perceba-se que, pela nossa conclusão, não é proibido o aumento de eficácia jurídica e/ou eficácia social às normas jurídicas enquadradas como pétreas, mas tão somente a sua redação. b.5) O raciocíonio desenvolvido por Gustavo Just da Costa Silva Abordando tema semelhante ao que se propõe nessa monografia, Gustavo Just da Costa e Silva identifica os limites explícitos e os limites implícitos da reforma constitucional. Em relação aos limites explícitos é evidente que esses correspondem aos limites previstos no artigo 60, §4º da Constituição Federal. A dificuldade, segundo o autor, está em identificar quais seriam os limites implícitos ao poder de reforma. 168 Ao enfrentar a questão dos limites da reforma constitucional, o referido autor, em relação ao tema que interessa ao presente trabalho, primeiramente interpreta o dispositivo constitucional que veda emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, inciso IV). No entendimento de Gustavo Silva, embora diversos doutrinadores propugnem por uma interpretação extensiva do termo “direitos e garantias individuais”, buscando incluir neste o rol os direitos sociais, considera tal interpretação equivocada. Isso porque o termo “individual” não se refere à titularidade do direito, mas sim a um determinado “estágio do ethos do Estado constitucional”. Conforme explicita o autor, os direitos individuais (direitos de liberdade) assim foram denominados porque caracterizaram as constituições liberais destacando a marca do individualismo, fixando uma relação entre o Estado e o indivíduo e estabelecendo uma determinada autonomia deste em relação àquele. Além disso, destaca que o constituinte não utiliza as expressões aleatoriamente, havendo um sentido na qualificação dos direitos fundamentais em individuais, sociais e políticos. A partir destas constatações, Gustavo Silva conclui que está errado dizer que os direitos sociais são limites ao poder de reforma constitucional por estarem abrigados na expressão “direitos e garantias individuais”. Sendo assim, desenvolve seu trabalho buscando identificar justificativas que impedem a reforma dos direitos sociais. Primeiramente, observa o autor que os direitos sociais são imprescindíveis para a ordem constitucional, uma vez que a incorporação dos direitos sociais às constituições não significou apenas uma agregação de uma ética solidária, baseada no valor igualdade, à ética individualista, baseada no valor liberdade. Considera o autor que “o significado profundo da incorporação dos direitos sociais ao constitucionalismo foi o de uma redefinição da liberdade e dos sues direitos. E 168 SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 124 e seguintes. 103 é em favor dos direitos de liberdade redefinidos que aparecem os direitos sociais, formando assim um horizonte legitimador unitário, em que são incindíveis os direitos de liberdade e os direitos sociais.”169 Explicando a passagem do Estado Liberal ao Estado Social e os motivos que justificaram o aparecimento dos direitos sociais, Gustavo Silva relata que em determinado estágio de desenvolvimento da sociedade percebeu-se que não bastava impor ao Estado um dever de não violar os direitos de liberdade dos indivíduos, sendo necessário remover os obstáculos, permitindo o efetivo exercício de tais direitos. “Os direitos sociais surgem porque os direitos de liberdade não são mais concebidos simplesmente como expressão da prerrogativa jurídica de viver ou de pensar e agir livremente, mas como direito às condições materiais de efetivamente viver ou escolher entre diferentes formas de crer, de pensar, de se manifestar ou de agir.”170 Merece respaldo a tese defendida por Gustavo Silva ao afirmar que a proteção dos direitos sociais é imprescindível na medida em que permitem a efetivação dos direitos de liberdade, pois de nada adianta assegurar o direito à vida, à liberdade, à igualdade, etc., sem dar as condições sociais de efetivo exercício daqueles direitos. Partindo desse entendimento, o autor constata que os direitos individuais e os direitos sociais distinguem-se principalmente no que diz respeito à estrutura normativa. Entretanto, em relação ao conteúdo legitimador das constituições contemporâneas, a diferença entre tais direitos é relativa, pois a existência de uns implica na existência de outros. Diante da relevância dos direitos sociais nas constituições contemporâneas e da impossibilidade de fundamentar a sua inclusão na expressão “direitos e garantias individuais”, Gustavo Silva conclui que os direitos sociais constituem uma limitação implícita da reforma constitucional. De acordo com o posicionamento do autor, “a expressão ‘direitos e garantias individuais’, o §4º do art. 60 em seu conjunto, além de outros dispositivos ‘identificadores’ da ordem constitucional, apontam para um conteúdo irredutível da Constituição do qual fazem parte os direitos sociais.”171 Estabelecido o entendimento de que os direitos sociais são limites implícitos à reforma constitucional, Gustavo Silva levanta hipóteses sobre as razões que justificam a ausência dos direitos sociais do rol dos limites expressos. A respeito desse tema, por fugir do objeto do presente trabalho, destaca-se apenas a observação do autor ao afirmar que a inclusão dos direitos sociais no artigo 60, §4§, e, portanto, a sua petrificação, poderia dificultar o desenvolvimento constitucional. Trata-se de opinião relevante e que fora considerada para efeito de reflexão sobre o tema da presente monografia, sendo certo que, como se verifica do constante do presente estudo, em especial da conclusão do presente capítulo, os membros do grupo que desenvolve esta monografia não concordam in totum com a visão de Gustavo Just. b.6) Interpretação final do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88 169 170 171 SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 131. SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 132. SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 134. 104 Assim, o enunciado “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir “ gera, através de interpretação, a seguinte norma jurídica : “ É proibida discussão de projetos de emendas constitucionais nas comissões parlamentares e ou no plenário do Congresso Nacional, isto é, a deliberação parlamentar em geral (deliberação) de documento escrito que consubstancia o exercício da iniciativa legistiva (que é faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extraparlamentar172) em relação a uma alteração, acréscimo ou decréscimo de enunciado (texto) constitucional (proposta de emenda), que signifique processo de extinção (processo entendido como fenômeno que se protrai no tempo e que tem, ou pode ter, por aptidão, intencional ou não, extinguir algo) da forma original de determinado objeto tratado pela Constituição Federal de 1988 como imutável (características que foram aderidas ao objeto no momento de sua constituição pelo Poder Constituinte Originário que deu origem à CF/88), reduzindo o seu campo de atuação e/ou utilidade. Nesse sentido a operação de redução do conteúdo ou da eficácia de um objeto já pode ser entendido como uma tendência a sua eliminação e se tem como base para a noção de redução de conteúdo e eficácia as características inerentes ao objeto quando constituído.” b.7) Conclusão deste capítulo Esmiuçando a norma jurídica acima apontada, temos que : - são petrificados não somente os enunciados constitucionais que se enquadram a um dos incisos do parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88, mas também outros enunciados constitucionais que servem como instrumento “sine qua non”(imprescindíveis) para a eficácia social dos enunciados constitucionais constantes dos incisos do parágrafo acima citado - não só as emendas que são abolicionistas de direitos petrificados, mas também aquelas que reduzem o seu conceito ou o seu campo de eficácia, modificando o texto original em desprestígio da executividade das normas petrificadas são também proibidas pelo parágrafo 4o. do artigo 60 da CF/88 E, quanto à possibilidade extraordinária de redução do conceito e da executividade do garantido nos incisos do parágrafo 4o. da CF/88, temos que, fundamentado e concluído no item “a.3” desse capítulo : - tendemos à filiação à corrente da instransponibilidade dos limites materiais à emenda constitucional, mas com o realce de que, para possibilitar a sobrevivência da Constituição (e do modelo estatal por ela adotado), é possível a alteração de determinada cláusula pétrea desde que tal modificação seja condição sine qua non para a manutenção do modelo estatal, para a manutenção da estrutura constitucional e até mesmo para a eficácia do próprio direito petrificado - assim podem ser reduzido o conceito e/ou eficácia de determinada norma jurídica petrificada, desde que tal redução seja condição sine qua non para a sobrevivência da própria norma petrificada ou para a sobrevivência de outra norma petrificada - o “termômetro” mensurador da possibilidade de redução acima indicada será o princípio da proporcionalidade, no sentido de que, a restrição da liberdade do indivíduo somente deve ser considerada como forma necessária para a liberdade e segurança da sociedade. Isto é, a regra é pela liberdade de comportamento, e a exceção é gerada pela necessidade de preservação da sociedade. 172 Definição apresentada por Alexandre de Moraes, em obra já citada, página 513 105 VIII - BIBLIOGRAFIA ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo : Martins Fontes, 2000, 4ª edição ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Editora Saraiva, 7ª edição, revista e atualizada, 2003 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional do Transexual. São Paulo : Saraiva, 2000 _________________________. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília : Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE, 1994 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. 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