Pessoa Natural – Venosa – BAIXAR O ARQUIVO

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Pessoa Natural
Sílvio de Salvo Venosa
Direito Civil – Parte Geral
۩. Introdução
Só o ser humano pode ser titular das relações jurídicas. No estágio atual do Direito,
entendemos por pessoa o ser ao qual se atribuem direitos e obrigações.
A personalidade jurídica é projeção da personalidade íntima, psíquica de cada um; é
projeção social da personalidade psíquica, com conseqüências jurídicas. Dizia o Código
Civil de 1916: “Art. 2o. Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil.”
O novo Código Civil substituiu o termo homem por pessoa. A modificação é apenas de
forma e não altera o fundo. Nada impede, porém, que se continue a referir a Homem
com o sentido de Humanidade. A personalidade, no campo jurídico, é a própria
capacidade jurídica, a possibilidade de figurar nos pólos da relação jurídica.
Como temos no ser humano o sujeito da relação jurídica, dizemos que toda pessoa é
dotada de personalidade.
O Direito também atribui personalidade a entes formados por conjunto de pessoas ou
patrimônio, as pessoas jurídicas ou morais.
Prendemo-nos aqui à idéia de personalidade da pessoa natural, denominada ainda por
alguns pessoa física, cuja compreensão é de uso vulgar.
Os animais e os seres inanimados não podem ser sujeitos de direito. Serão, quando
muito, objetos de direito. As normas que almejam proteger a flora e a fauna o fazem
tendo em mira a atividade do homem. Os animais são levados em consideração tão-só
para sua finalidade social, no sentido protetivo.
No curso da História, nem sempre toda pessoa foi sujeito de direitos. Os escravos,
considerados coisa, estavam fora do alcance da personalidade.
Quando o Código de 1916 dispunha, no art. 2o, que o homem era capaz de direitos e
obrigações, entrosava o conceito de capacidade com o de personalidade. A capacidade é
a medida da personalidade.
Todo ser humano é pessoa na acepção jurídica. A capacidade jurídica, aquela delineada
no art. 2o, e no art. 1o do novo diploma, todos possuem, é a chamada capacidade de
direito. Nem todos os homens, porém, são detentores da capacidade de fato. Essa
capacidade de fato ou de exercício é a aptidão para pessoalmente o indivíduo adquirir
direitos e contrair obrigações. Sob esse aspecto entram em conta diversos fatores
referentes à idade e ao estado de saúde da pessoa.
Assim, ao conjunto de poderes conferidos ao homem para figurar nas relações jurídicas
dá-se o nome de personalidade. A capacidade é elemento desse conceito; ela confere o
limite da personalidade. Se a capacidade é plena, o indivíduo conjuga tanto a
capacidade de direito como a capacidade de fato; se é limitada, o indivíduo tem
capacidade de direito, como todo ser humano, mas sua capacidade de exercício está
mitigada; nesse caso, a lei lhe restringe alguns ou todos os atos da vida civil. Quem não
é plenamente capaz necessita de outra pessoa, isto é, de outra vontade que substitua ou
complete sua própria vontade no campo jurídico.
É importante fixar aqui a noção de direito subjetivo, mais afeta à disciplina de
Introdução ao Estudo do Direito.
O direito dito objetivo é a norma; a lei que vigora em determinado Estado; tem por
escopo regular a sociedade em busca do ordenamento das relações jurídicas e da paz
social. É a norma agendi. Quando o indivíduo se torna titular de um direito, ganha a
facultas agendi, isto é, o ser humano é guindado à posição de sujeito de direito. Daí
falar-se em direito subjetivo. Esse direito subjetivo é estampado nas relações jurídicas
de que todos somos titulares no curso de nossa vida. Na simples compra de um jornal,
junto ao jornaleiro, por exemplo, estamos exercendo nossa titularidade na relação
jurídica: há um relacionamento entre nós, o comprador, e o jornaleiro, o vendedor, cada
um ocupando posição na relação jurídica que se denomina, no caso, contrato de compra
e venda.
Das relações jurídicas mais simples às mais complexas de nossa vida estamos sempre na
posição de titulares de direitos e obrigações, na posição de sujeitos de direito. Em toda
relação jurídica há um vínculo psicológico que une duas ou mais pessoas. No campo das
obrigações, como exemplificamos com o contrato de compra e venda, há a posição do
vendedor que tem o dever de nos entregar a coisa comprada e o direito de receber o
preço. O comprador, por seu turno, tem o dever de pagar o preço para ter o direito de
receber a coisa. Há um liame psicológico que une as pessoas nas relações jurídicas.
Assim será em todos os campos do Direito.
۩. Direitos da Personalidade
Para a satisfação de suas necessidades, o homem posiciona-se em um dos pólos da
relação jurídica: compra, empresta, vende, contrai matrimônio, faz testamento etc.
Desse modo, em torno de sua pessoa, o homem cria um conjunto de direitos e
obrigações que denominamos patrimônio, que é a projeção econômica da personalidade
(Diniz, 1982:81).
Contudo, há direitos que afetam diretamente a personalidade, que não possuem
conteúdo econômico direto e imediato. A personalidade não é exatamente um direito; é
um conceito básico sobre o qual se apóiam os direitos.
Há direitos denominados personalíssimos porque incidem sobre bens imateriais ou
incorpóreos. A Escola do Direito Natural proclama a existência desses direitos, por
serem inerentes à personalidade. São, fundamentalmente, os direitos à própria vida, à
liberdade, à manifestação do pensamento. A Constituição Brasileira enumera uma série
desses direitos e garantias individuais (art. 5o).
Cada vez mais na sociedade avulta de importância a discussão acerca do direito ao
próprio corpo, sobre a doação e o transplante de órgãos e tecidos, matéria que também
pertence a essa classe de direitos. Da mesma forma se posiciona o direito à natalidade e
a seu controle, temas que tocam tanto o Direito como a Economia, Filosofia, Sociologia
e religião.
Como acentua Antônio Chaves (1982:491), esses direitos da personalidade ou
personalíssimos relacionam-se com o Direito Natural, constituindo o mínimo necessário
do conteúdo da própria personalidade. Diferem dos direitos patrimoniais porque o
sentido econômico desses direitos é absolutamente secundário e somente aflorará
quando transgredidos: então tratar-se-á de pedido substitutivo, qual seja, uma reparação
pecuniária indenizatória, que nunca se colocará no mesmo patamar do direito
violentado.
No dizer de Gilberto Haddad Jabur (2000:28), em excelente monografia sobre o tema,
“os direitos da personalidade são, diante de sua especial natureza, carentes de taxação
exauriente e indefectível. São todos indispensáveis ao desenrolar saudável e pleno das
virtudes psicofísicas que ornamentam a pessoa”.
Desse modo, não há que se entender que nossa lei, ou qualquer lei comparada, apresente
um número fechado para elencar os direitos da personalidade. Terá essa natureza todo o
direito subjetivo pessoal que apresentar as mesmas características.
Aponta Guillermo Borba (1991, v. 1:315) que, pela circunstância de os direitos da
personalidade estarem intimamente ligados à pessoa humana, possuem os seguintes
característicos:
a) São inatos ou originários porque se adquirem ao nascer, independendo de qualquer
vontade;
b) são vitalícios, perenes ou perpétuos, porque perduram por toda a vida. Alguns se
refletem até mesmo após a morte da pessoa. Pela mesma razão são imprescritíveis
porque perduram enquanto perdurar a personalidade, isto é, a vida humana. Na verdade,
transcendem a própria vida, pois são protegidos também após o falecimento; são
também imprescritíveis;
c) são inalienáveis, ou, mais propriamente, relativamente indisponíveis, porque, em
princípio, estão fora do comércio e não possuem valor econômico imediato;
d) são absolutos, no sentido de que podem ser opostos erga omnes.
Os direitos da personalidade são, portanto, direitos subjetivos de natureza privada.
Diz-se que os direitos da personalidade são extrapatrimoniais porque inadmitem
avaliação pecuniária, estando fora do patrimônio econômico. As indenizações que
ataques a eles podem motivar, de índole moral, são substitutivo de um desconforto, mas
não se equiparam à remuneração. Apenas no sentido metafórico e poético podemos
afirmar que pertencem ao patrimônio moral de uma pessoa. São irrenunciáveis porque
pertencem à própria vida, da qual se projeta a personalidade.
Geralmente, os direitos da personalidade decompõem-se em direito à vida, à própria
imagem, ao nome e à privacidade. Os direitos de família puros, como, por exemplo, o
direito ao reconhecimento da paternidade e o direito a alimentos, também se inserem
nessa categoria. Não é possível, como apontamos, esgotar seu elenco.
A matéria não é tratada sistematicamente na maioria dos códigos civis, e nosso vestuto
Código de 1916 não era exceção, embora a doutrina mais recente já com ela se
preocupasse. Somente nas últimas décadas do século XX o direito privado passou a
ocupar-se dos direitos da personalidade mais detidamente, talvez porque o centro de
proteção dos direitos individuais situa-se no Direito Público, no plano constitucional.
O atual Código Civil trata desses direitos no Capítulo II (arts. 11 a 21). Esses princípios
devem orientar a doutrina e o julgador, pois pertencem, em síntese, aos princípios gerais
de direito. No sentido do que expusemos neste tópico, o art. 11 abre o tema: “Com
exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e
irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” A lei refere-se
apenas a três características desses direitos, entre as apontadas: intransmissibilidade,
irrenunciabilidade e indisponibilidade.
Os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade humana. Desse modo,
ninguém pode, por ato voluntário, dispor de sua privacidade, renunciar à liberdade,
ceder seu nome de registro para utilização por outrem, renunciar ao direito de pedir
alimentos no campo de família, por exemplo. Há, porém, situações na sociedade atual
que tangenciam a proibição.
Na busca de audiência e sensacionalismo, já vimos exemplos de programas televisivos
nos quais pessoas autorizam que sua vida seja monitorada e divulgada
permanentemente; que sua liberdade seja cerceada e sua integridade física seja colocada
em situações de extremo limite de resistência etc. Ora, não resta dúvida de que, nesses
casos, os envolvidos renunciam negocialmente a direitos em tese irrenunciáveis.
A situação retratada é contratual, nada tendo a ver com cessão de direitos da
personalidade, tal como é conceituado. Cuida-se de uma representação cênica ou
artística, nada mais que isso. A sociedade e a tecnologia, mais uma vez, estão à frente da
lei mais moderna. Não há notícia de que se tenha discutido eventual irregularidade sob o
prisma enfocado nessas contratações. De qualquer modo, cumpre ao legislador
regulamentar as situações semelhantes, no intuito de evitar abusos que ordinariamente
podem ocorrer nesse campo, uma vez que ele próprio previu, no art. 11 do novo Código,
a “exceção dos casos previstos em lei”. Evidente, porém, que nunca haverá de se
admitir invasão da privacidade de alguém, utilização de sua imagem ou de seu nome
sem sua expressa autorização.
Aquele que for ameaçado ou lesado em seus direitos da personalidade poderá exigir que
cesse a ameaça ou lesão e reclamar perdas e danos, sem prejuízos de outras sanções,
como dispõe o art. 12. Nesse prisma, a indenização por danos morais assume grande
relevância.
O Código de Processo Civil fornece instrumentos eficazes para que a vítima obtenha
celeremente provimento jurisdicional que faça cessar a ameaça ou lesão a direito
personalíssimo. Afora os princípios gerais que disciplinaram a ação cautelar que podem
ser utilizados conforme a utilidade e conveniência, consoante o art. 461 do CPC, “na
ação que tenha por objetivo o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz
concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará
providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”.
Esse instrumento é importante meio para que não se concretize a ameaça ou para que se
estanque a lesão aos direitos da personalidade. Assim, o juiz pode conceder essa
modalidade de tutela liminarmente ou após justificação prévia, “sendo relevante o
fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final”
(art. 461, § 3o, do CPC).
Desse modo, o provimento jurisdicional antecipatório pode, por exemplo, determinar
que o réu cesse a utilização indevida de um nome, paralise a divulgação de um fato
desabonador ou impeça que se concretize invasão de privacidade. Para que se assegure a
eficácia da tutela antecipatória, o juiz poderá impor multa diária ao réu
(tradicionalmente denominada astreinte), suficientemente constrangedora, a fim de que
a decisão seja cumprida, na forma do art. 461, § 4o.
Essa multa é de cunho processual e não se confunde, antes se adiciona, com a
indenização por perdas e danos que ordinariamente faz parte do pedido, a ser concedida
na sentença. Ainda, acrescenta o § 5o desse artigo que, para efetivação da tutela
específica ou para obtenção de resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou
a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por
tempo de atraso, a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de
obras, impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
“de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e
apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de
atividade nociva, além de requisição de força policial”.
Esses dispositivos processuais, introduzidos mais recentemente no CPC (Lei no
8.952/94) e Lei no 10.044/2002, constituem verdadeiro divisor de águas em nosso
direito processual, com importantes reflexos no direito material, pois fazem atuar mais
eficazmente as disposições deste último. Destarte, com muita freqüência faremos
menção aos princípios do art. 461 no decorrer de toda esta obra.
Trata-se de importante instrumento colocado à disposição da parte e facultado ao juiz, o
qual, é evidente, deve usar de toda cautela e prudência em sua utilização, não
permitindo que o instituto se converta em instrumento de retaliação ou vingança privada
ou panacéia para todos os males da sociedade. A Lei no 10.044/2002 ampliou ainda
mais o poder discricionário do juiz, que poderá impor a medida necessária para o
cumprimento de obrigação ou preceito. Poderá o magistrado, por exemplo, de ofício,
aumentar ou diminuir a periodicidade ou o valor da multa, se entender que este se
tornou insuficiente ou excessivo (§ 6o).
Por outro lado, é certo que os direitos da personalidade extinguem-se com a morte, mas
há resquícios que podem a ela se sobrepor. A ofensa à honra dos mortos pode atingir
seus familiares, ou, como assevera Larenz (1978:163), pode ocorrer que certos
familiares próximos estejam legitimados a defender a honra pessoal da pessoa falecida
atingida, por serem “fiduciários” dessa faculdade.
Nesse diapasão, o art. 12, parágrafo único do atual Código dispõe: “Em se tratando de
morto, terá legitimação para requerer a medida prevista nesse artigo o cônjuge
sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.”
Não se pode negar, contudo, ao companheiro ou companheira, na união estável, o
direito de defender a honra do morto. Nesses casos, no entanto, e em outros que a
riqueza da vida em sociedade faz brotar, a legitimidade para a causa deve ser examinada
no caso concreto, evitando-se abusos e o alargamento da legitimidade para extensão não
colimada pelo legislador.
Na repressão às ofensas aos direitos da personalidade, cabe importante papel à
jurisprudência, que não pode agir com timidez, mormente nos tempos hodiernos,
quando as comunicações tornam cada vez mais fácil difundir transgressões a essa classe
de direitos.
Além dos danos materiais e morais que podem ser concedidos, há todo um sistema
penal repressivo em torno desses direitos.
O capítulo do atual Código tocante aos direitos da personalidade, afora os princípios
gerais mencionados, refere-se especificamente ao direito e proteção à integridade do
corpo da pessoa, a seu nome e imagem e à inviolabilidade da vida privada da pessoa
natural. Não é exaustiva a enumeração legal, pois a ofensa a qualquer modalidade de
direito da personalidade, dentro da variedade que a matéria propõe, pode ser coibida,
segundo o caso concreto.
O art. 20 faculta ao interessado pleitear a proibição da divulgação de escritos, a
transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma
pessoa, sem prejuízo de indenização que couber, se for atingida a honra, a boa fama ou
a respeitabilidade ou se se destinarem a fins comerciais.
O mesmo dispositivo estatui que essa proibição não vingará, quando esses
comportamentos forem autorizados ou a divulgação ou atividade semelhante for
necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública. O princípio
geral é no sentido de que qualquer pessoa pode impedir tais formas de divulgação. A
matéria entrosa-se também com os direitos intelectuais e direitos de autor. Em qualquer
caso, porém, deve ser comprovado o legítimo interesse. Nem sempre esse legítimo
interesse saltará à evidência à primeira vista. O prudente critério, em síntese, será do
juiz ao analisar o caso concreto.
Sem dúvida, a imagem da pessoa é uma das principais projeções de nossa personalidade
e atributo fundamental dos direitos ditos personalíssimos. O uso indevido da imagem
traz, de fato, situações de prejuízo e constrangimento. No entanto, em cada situação é
preciso avaliar se, de fato, há abuso na divulgação da imagem.
Nesse sentido: “É inquestionável direito da pessoa, posto que respeitante à
personalidade, em não ter divulgada a sua imagem, tenha ou não a divulgação fins
lucrativos. Caso em que a autora, em logradouro público, se viu enredada em cena de
cunho constrangedor e que, posto solicitada, desautorizou fosse reproduzida em
programa de televisão, o que, no entanto, não impediu a emissora de fazê-lo, o que,
segundo alega, causou-lhes situações embaraçosas e conseqüências negativas para o
meio social em que vive” (TJRJ – 10a Câm. Cível; Ac no 987/2000-RJ; Rel. Des. Jayro
dos Santos Ferreira; j. 4-4-2000; v.u.).
Há aspectos objetivos e subjetivos nesse campo que devem ser analisados. A exposição
da nudez é tolerada em nosso país, por exemplo, em um desfile carnavalesco, mas não o
será em outras situações. Não há abuso e não deve ferir suscetibilidade, por exemplo, a
divulgação de imagem de alguém pela imprensa, com mero cunho jornalístico. Essa
mesma divulgação pode ser prejudicial, por exemplo, se se trata de pessoa protegida
pelo programa de assistência a vítimas e a testemunhas ameaçadas (Lei no 9.807/99),
podendo gerar direito a indenização se o divulgador era sabedor do fato. Da mesma
forma, é abusiva objetivamente a divulgação de imagem da pessoa em sua vida íntima,
no recôndito de seu lar.
De outro lado, a divulgação da imagem pode atender a interesse de administração da
justiça e manutenção de ordem pública, como excepciona o dispositivo citado. Não
pode insurgir-se contra a divulgação de sua imagem o indivíduo condenado
criminalmente, pernicioso à sociedade e inserido nos cartazes de “procurados” ou em
programas televisivos.
Em cada caso dessas hipóteses, para fins de indenização, deve ser avaliado se a
divulgação atingiu a honra, a boa fama ou a respeitabilidade da pessoa envolvida. Se a
manifestação teve finalidades comerciais, aflora diretamente o dever de indenizar. Nem
sempre, no entanto, a proteção objetiva a imagem da pessoa e direitos da personalidade
correlatos implicarão dever de indenizar.
O parágrafo único do art. 20, do vigente ordenamento, aduz que, se a pessoa atingida é
morto ou ausente, são partes legítimas para requerer a proteção o cônjuge, os
ascendentes ou os descendentes. Nessa hipótese, também se avaliará se há prejuízo
avaliável e indenizável.
A divulgação de escritos, gravações de voz ou outras manifestações que a tecnologia
permite esbarra na proteção aos direitos intelectuais e gera direito à indenização,
mormente se utilizados com fins comerciais.
O art. 21 dessa lei reporta-se à tutela da privacidade, ao direito de estar só: “A vida
privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará
as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.”
A tutela da intimidade torna-se cada vez mais preocupação de todos e não afeta
unicamente pessoas que se destacam na sociedade. A notoriedade, é verdade, traz um
preço social. Caberá, porém, ser estabelecido um limite no qual se proteja a vida íntima
das pessoas notórias. Em matéria de direito matrimonial, nesse mesmo campo da
personalidade, o legislador do atual Código preocupou-se com a proteção da intimidade
do casamento, estatuindo no art. 1.513: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público
ou privado, interferir na comunhão de vida constituída pela família.”
Deve haver sempre posição firme do jurista no sentido de defender a preservação da
intimidade, tantos são os ataques que sofre modernamente. Não se pode permitir que a
tecnologia, os meios de comunicação e a própria atividade do Estado invadam um dos
bens mais valiosos do ser humano, que é seu direito à intimidade, direito de estar só ou
somente na companhia dos que lhe são próximos e caros.
As fotografias e imagens obtidas à socapa, de pessoas dentro de seu lar, em atividades
essencialmente privadas, são exemplo claro dessa invasão de privacidade, que deve ser
coibida e pode gerar direito à indenização. Os fatos comezinhos da vida privada de cada
um não devem interessar a terceiros. Tanto mais será danosa a atividade quanto mais
renomada e conhecida socialmente for a vítima, mas todos, independentemente de seu
nível de projeção social ou cultural, gozam da proteção. Como instrumento para
operacionalizá-la, recorde-se do que mencionamos anteriormente acerca do art. 461 do
CPC.
۩. Direito ao Próprio Corpo
A Medicina alcançou avanços consideráveis na técnica de transplantes no último século,
desde quando se tornou possível, há muitas décadas, o transplante cardíaco. A questão
dos transplantes continua a levantar dúvidas éticas, morais, religiosas e jurídicas.
O princípio geral é que ninguém pode ser constrangido a invasão de seu corpo contra
sua vontade. Quanto aos atos de disposição do próprio corpo, há limites morais e éticos
que são recepcionados pelo direito. Nesse sentido, dispõe o art. 13 do vigente Código
Civil: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,
quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons
costumes.”
“Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na
forma estabelecida em lei especial.”
A Lei no 9.434, de 4-2-97, dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo
humano para fins de transplante e tratamento. Esse diploma especifica que não estão
compreendidos em seu âmbito, entre os tecidos, o sangue, o esperma e o óvulo, pois são
em tese renováveis no corpo humano. A respeito de biogenética e de fertilização
assistida.
De outro lado, o art. 14 do atual ordenamento faculta a disposição gratuita do próprio
corpo, no todo ou em parte, para depois da morte, com objetivo científico ou altruísta.
Trata-se de situação incentivada pelo Estado, a fim de propiciar a vida com órgãos dos
que já se foram. A doação de órgãos post mortem não deve ter qualquer cunho
pecuniário porque imoral e contrário aos bons costumes. Nula, por ausência de objeto
lícito, será qualquer disposição nesse sentido. O cunho da disposição deverá ser
exclusivamente científico e altruístico. Cabe ao legislador coibir, inclusive penalmente,
o desvio de finalidade nesse campo. A faculdade de doar órgãos após a morte é direito
potestativo da pessoa, podendo a decisão nesse sentido, por essa razão, ser revogada a
qualquer tempo (art. 14, parágrafo único).
O art. 3o da Lei no 9.434/97 disciplina que retirada post mortem de tecidos, órgãos ou
partes do corpo humano destinados a transplante deverá ser precedida de diagnóstico de
morte encefálica, constatada por dois médicos não participantes da equipe de remoção e
transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por
resolução do Conselho Federal de Medicina.
De outro lado, o art. 4o desse diploma dispõe que a retirada de órgãos e tecidos de
pessoas falecidas dependerá de autorização de seus parentes maiores, na linha reta ou
colateral, até o segundo grau inclusive, ou do cônjuge, firmada em documento subscrito
por duas testemunhas presentes à verificação. O texto anterior desse artigo trouxe
celeuma e enorme resistência da sociedade, tanto que foi substituído pela atual redação,
pela Lei no 10.211, de 23-3-2001.
No texto original, presumia-se que toda pessoa era doador, salvo manifestação em
contrário, e a expressão não doador de órgãos e tecidos deveria ser gravada na carteira
de Identidade ou na Carteira Nacional de Habilitação de quem fizera essa opção.
Evidentemente que a resistência à lei que fizera de todos os brasileiros doadores, em
face de constrangimento a direito personalíssimo que criava, exigiu pronta revogação. O
ato de doar, pela própria conotação semântica, é o ato voluntário. Não pode ser imposto
pelo Estado, o qual deve, isto sim, realizar campanhas de conscientização nacional
nesse campo, sem a menor imposição.
Tendo em vista o teor do art. 14 mencionado, temos que concluir, mesmo perante o
sistema atual, que, enquanto não regulamentada diferentemente a disposição, será
idônea qualquer manifestação de vontade escrita do doador a respeito da disposição de
seus órgãos e tecidos após sua morte, devendo os parentes ou o cônjuge autorizar
somente perante a omissão da pessoa falecida. Tratando-se de disposição não
patrimonial, a doação de órgãos após a morte tanto poderá ser inserida pelo doador em
testamento como em outro documento idôneo.
Quanto à disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo para fins de
transplante ou tratamento, dispõe o art. 9o da Lei no 9.434/97, com redação determinada
pela Lei no 10.211, de 23-3-2001: “É permitido à pessoa juridicamente capaz dispor
gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos
ou para transplantes em cônjuge ou consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na
forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer pessoa, mediante autorização judicial,
dispensada esta em relação à medula óssea.”
O § 4o especifica que o doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante
de testemunhas, especificamente tecido, órgão ou parte do corpo objeto da disposição.
O § 3o ressalva que essa doação somente pode ter por objeto órgãos duplos ou partes de
órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de
continuar sua existência sem risco, nem represente comprometimento para suas
aptidões. Não admite a lei que a doação cause mutilação ou deformação inaceitável,
devendo corresponder a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à
pessoa receptora. O incapaz com compatibilidade imunológica poderá fazer doação para
transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus
responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para sua saúde (§
6o).
Entre as disposições complementares dessa lei, destaca-se a proibição de publicidade
para a atividade de transplantes, apelo público para doação a pessoa determinada e apelo
público para arrecadação de fundos para financiamento de transplante ou enxerto, em
benefício de particulares (art. 11). Deve ser afastado todo e qualquer sentido
mercantilista nesse campo.
Sob a mesma filosofia, o art. 15 do atual Código especifica que “ninguém pode ser
constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção
cirúrgica”. Esse singelo artigo traz toda uma gigantesca problemática sobre a Ética
Médica, o dever de informação do paciente e a responsabilidade civil dos médicos.
Levando em conta que qualquer cirurgia apresenta maior ou menor risco de vida,
sempre haverá, em tese, necessidade de autorização do paciente ou de alguém por ele.
No mesmo sentido, situam-se tratamentos e medicamentos experimentais, ainda não
aprovados pela comunidade médica. A matéria requer, como percebemos,
aprofundamento monográfico.
۩. Começo da Personalidade Natural
Dispõe o art. 2o do Código Civil (antigo, art. 4o): “A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos
do nascituro.” O atual Código refere-se à personalidade civil da “pessoa” nessa
disposição. Em razão dos novos horizontes da ciência genética, procura-se proteger
também o embrião, segundo projeto que pretende já alterar essa dicção da nova lei. A
questão é polêmica, ainda porque o embrião não se apresenta de per si como uma forma
de vida sempre viável.
A questão do início da personalidade tem relevância porque, com a personalidade, o
homem se torna sujeito de direitos.
O ordenamento brasileiro poderia ter seguido a orientação do Código francês que
estabelece começar a personalidade com a concepção. Em nosso Código, contudo,
predominou a teoria do nascimento com vida para ter início a personalidade.
Verificamos o nascimento com vida por meio da respiração. Se comprovarmos que a
criança respirou, então houve nascimento com vida. Nesse campo, o Direito vale-se dos
ensinamentos da Medicina.
Nosso estatuto contentou-se, portanto, com o nascimento com vida. Não exige que a
vida seja viável, como o Código Napoleônico.
Dá-se o nascimento com a positiva separação da criança das vísceras maternas, pouco
importando que isso decorra de operação natural ou artificial. A prova inequívoca de o
ser ter respirado pertence à Medicina.
Se a criança nascer com vida e logo depois vier a falecer, será considerada sujeito de
direitos. Tal prova, portanto, é importante, mormente para o direito sucessório, pois a
partir desse fato pode receber herança e transmiti-la a seus sucessores.
A matéria deverá ganhar novos contornos e estudos em futuro não muito distante, pois a
possibilidade de reprodução humana assistida, com o nascimento do filho tempos após a
morte do pai ou da mãe obrigará, certamente, uma revisão de conceitos, inclusive para
fins de direito hereditário. Veja o que examinamos a respeito em nossa obra de direito
de família. O seres gerados pela inseminação artificial com o sêmen preservado do
marido ou do companheiro e aqueles gerados de embriões congelados obrigarão novos
estudos, que terão implicações éticas e religiosas, além de uma profunda reformulação
jurídica.
۩. Condição do Nascituro
O Código tem várias disposições a respeito do nascituro, embora não o conceba como
personalidade. Já vimos que o art. 2o (antigo, art. 4o) põe a salvo seus direitos.
O nascituro é um ente já concebido que se distingue de todo aquele que não foi ainda
concebido e que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo do nascimento,
tratando-se de uma prole eventual; isso faz pensar na noção de direito eventual, isto é,
um direito em mera situação de potencialidade para quem nem ainda foi concebido. É
possível ser beneficiado em testamento o ainda não concebido. Por isso, entendemos
que a condição de nascituro extrapola a simples situação de expectativa de direito. Sob
o prisma do direito eventual, os direitos do nascituro ficam sob condição suspensiva. A
questão está longe de estar pacífica na doutrina, como apontam Stolze Gagliano e
Pamplona Filho (2002:91).
A posição do nascituro é peculiar, pois o nascituro possui um regime protetivo tanto no
Direito Civil como no Direito Penal, entre nós, embora não tenha ainda todos os
requisitos da personalidade. Desse modo, de acordo com nossa legislação, inclusive o
Código de 2002, embora o nascituro não seja considerado pessoa, tem a proteção legal
de seus direitos desde a concepção.
O nascituro pode ser objeto de reconhecimento voluntário de filiação (art. 1.609,
parágrafo único; art. 357, parágrafo único, do Código Civil de 1916); deve-se-lhe
nomear curador se o pai vier a falecer estando a mulher grávida e não tiver o pátrio
poder (art. 1.779; antigo, art. 462); pode ser beneficiário de uma doação feita pelos pais
(art. 542; antigo, art. 1.168), bem como adquirir bens por testamento, princípios que se
mantêm no novo Código. Esses direitos outorgados ao nascituro ficam sob condição
suspensiva, isto é, ganharão forma se houver nascimento com vida.
O fato de o nascituro ter proteção legal não deve levar a imaginar que tenha ele
personalidade tal como a concebe o ordenamento. O fato de ter ele capacidade para
alguns atos não significa que o ordenamento lhe atribuiu personalidade. Embora haja
quem sufrague o contrário, trata-se de uma situação que somente se aproxima da
personalidade. Esta só advém do nascimento com vida. Trata-se de uma expectativa de
direito.
Silmara Chinelato e Almeida, em estudo profundo sobre a matéria, conclui, contudo,
que a personalidade do nascituro é inafastável (2000:160). Para efeitos práticos, porém,
o ordenamento pátrio atribui os necessários instrumentos para a proteção do patrimônio
do nascituro. Há tentativas legislativas no sentido de ampliar essa proteção ao próprio
embrião, o que alargaria em demasia essa “quase personalidade”. Aguardemos o futuro
e o que a ciência genética nos reserva.
Stolze Gagliano e Pamplona Filho aduzem ainda que o nascituro deve fazer jus a
alimentos, “por não ser justo que a genitora suporte todos os encargos da gestação sem a
colaboração econômica do seu companheiro reconhecido” (2002:93). Corretíssima a
afirmação. Os alimentos são devidos não apenas pelo companheiro reconhecido, mas
por qualquer um que tenha concebido o nascituro.
Antônio Chaves (1982:316) apresenta o aspecto do nascimento de gêmeos. Nosso
ordenamento não atenta para a situação, mas esse autor lembra o dispositivo do Código
Civil argentino que dispõe, no caso de mais de um nascimento no mesmo parto, que os
nascidos são considerados de igual idade e com iguais direitos para os casos de
instituição ou substituição dos filhos maiores (art. 88). A questão pode ter interesse no
caso, por exemplo, de o primeiro filho ser beneficiado em um testamento…
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