“Ditando a realidade”: provérbios e o imaginário social contemporâneo “Dizer é agir, e dizer é criar imagens em movimento; é objetivar representações, é esculpir desejos que se transferem infinitamente de um significante para outro, marcados por uma ausência que insistem em suprir”. Tania Navarro Swain Minha pretensão, ao escrever este artigo, é mostrar como os ditados populares (ou provérbios), correntemente denominados também “sabedoria popular”, se articulam às representações sociais, constituindo e atualizando uma imagem essencializada/ essencializante e naturalizada/naturalizante das mulheres, subordinando seus comportamentos e características à constituição biológica de seus corpos. Ao observar a experiência social cotidiana, nota-se claramente a reiteração incessante de determinados “saberes” sobre as mulheres, expressos nos ditados populares. Poucas vezes tais dizeres são questionados; afinal, “a voz do povo é a voz de Deus”. “Na boca do povo” está “a verdade” sobre a mulher: ignorando a pluralidade de possibilidades de vivência, a complexidade das experiências individuais, enfim, as diferenças existentes entre as mulheres, os provérbios evocam uma imagem unívoca Da Mulher, reduzindo todas a apenas uma; ora, “as mulheres são todas iguais” (sedutoras, mães, esposas, frágeis, incapazes intelectualmente, “fáceis”, submissas): todas elas são definidas pela sua mesma única constituição biológica. Possuir um útero fatalmente conduz a um destino inexorável, que escapa às especificidades individuais: simplesmente nasce-se mulher. E essa palavra possui significados de contornos bastante definidos. Pressuponho que a linguagem é um meio privilegiado pelo qual “decodificamos o mundo”. A fala, especialmente, é um dos meios de apropriação/construção dos significados que nos rodeiam. Apenas uma pequena parcela da população está privada totalmente da possibilidade de falar. No entanto, esse “falar” não é simplesmente emitir sons: as palavras carregam sentidos que não são definidos por quem as pronuncia. Seus significados estão circunscritos por coordenadas específicas (tempo/espaço/cultura) que limitarão não somente sua possibilidade de circulação, mas ainda a probabilidade de sua aceitação e a necessidade de sua reiteração. Dessa forma, acredito que os ditados populares, repetidos diariamente (em espaços dos mais variados, por pessoas das mais diversas), podem dizer mais sobre a sociedade que lhes assistiu a emergência do que sobre as mulheres as quais se referem. Meu argumento é que hoje a veiculação constante dos provérbios, relativos às mulheres, não remete a alguma “casualidade”, a um desejo individual, mas responde a uma “economia do discurso”, característica de uma época/sociedade: o dito, assim como o não-dito, fazem parte do complexo jogo de constituição de seres “úteis”, capazes de prosseguir sustentando as normas de conduta características do tempo/espaço em que vivem. Para explicitar a “economia do discurso” a que me referi, é preciso especificar a relação existente entre a concretude da vivência pessoal com o imaginário social contemporâneo e as representações sociais que o constituem. Antes de mais, esclareço minha perspectiva: as representações sociais presentes no imaginário de uma determinada sociedade constróem aquilo que comumente chamamos “realidade”. Assim, argumento que os limites do pensável (bem como do “aceitável” e do “preferível”), em relação às mulheres, são (re)transmitidos cotidianamente, tendo como meio de disseminação a sabedoria popular. E a denominação “sabedoria” evidencia a carga de legitimidade dos provérbios: aceitos (quase) sem restrições, eles seguem moldando corpos, instituindo comportamentos, classificando condutas, distribuindo punições, concretizando as experiências, dizendo “sim” ou “não” às mulheres que não se enquadram em suas definições. “O imaginário seria condição de possibilidade da realidade instituída, solo sobre o qual se instaura (...)” (Swain, 2001: ). Ou seja, condição para a existência de uma experiência concreta. Não é o fluir dos acontecimentos que forja o imaginário; se às representações contidas no imaginário delego o estatuto de “forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, que têm um objetivo prático e concorrem para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (Jodelet, 1989: xx), posso afirmar que imaginário e representações sociais encaminham as vivências para uma série mais (ou menos) provável de acontecimentos. Por que alguns conteúdos/significados estão tão presentes nas representações sociais (re)correntemente citadas nos ditados populares que remetem às mulheres? Como o imaginário de uma determinada sociedade privilegia certas asserções, retirando de outras qualquer legitimidade? Para resumir essa problemática, e transformá-la em pressuposto, lanço mão de Foucault ( Foucault a, 2000: 37): “(...) nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala”. Qual seria o mecanismo/dispositivo que constrói a diferença entre “aquilo que deve ser dito” e “tudo o que não deve ser dito”? Ou como as representações são aceitas/recusadas, selecionadas para serem disseminadas ou silenciadas, dentro de uma determinada formação social? Finalmente, em que termos o imaginário de uma época contribui para cercear a formação da subjetividade das mulheres, levando-as a vivenciar experiências diferenciadas, principalmente em relação aos homens? A minha hipótese repousa em duas categorias forjadas por Foucault: os limites de circulação impostos a um discurso dependerão do regime de verdade e das condições de possibilidade característicos de uma formação social. Vale lembrar que, quando digo “verdade”, não estou me referindo a algo concretamente verdadeiro mas aos enunciados que circulam, em uma determinada sociedade, com valor de verdade. “Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. (Foucault b, 2000: 12) Foucault, no trecho acima, atribui ao regime de verdade a própria construção da verdade: os enunciados que circulam em uma sociedade são produzidos nela (e por ela); “a verdade não emana do universo, a fim de ser descoberta por seus “arautos”. Em sintonia com o regime de verdade de uma formação social estão suas condições de possibilidade: ou seja, sua limitação, imposta pelo regime de verdade vigente, à aceitação de pressupostos, teorias, asserções que não obedeçam à ordem do discurso. Os provérbios participam ativamente desse movimento de (re)criação, (re)atualização, (re)classificação, (re)constituição daquilo que geralmente chamamos de “verdade” (e que Foucault definiu como regime de verdade) sobre as mulheres. Veículos dos mais efetivos e abrangentes para fazer circular e “rememorar” as representações sociais mais intimamente ligadas ao “senso comum” sobre as mulheres, garantem sua legitimidade com o apoio da ancestralidade e da tradição. Basta relembrar a argumentação de quem recorre a um provérbio para notar que a justificativa para seu uso quase nunca está no enunciado do próprio ditado, porém em algum lugar ou pessoa distante do presente: “como meu avô/avó dizia”, “bons tempos aqueles em que a sabedoria popular era respeitada”, “sempre foi assim, e assim será” são palavras mágicas pois tornam os provérbios intocáveis, exatamente por retirarem do tempo presente a possibilidade de julgar/comprovar/reprovar o conteúdo dos ditados. Apoiando-se sobre uma autoridade dada pelo passado (inatingível), os provérbios seguem moldando corpos e condutas, alardeando verdades e mentiras, constituindo funções e papéis diferenciados para as mulheres.