Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Responsabilidade Civil e Contratos ALEXANDER DE SALES BERNARDO CONTROVÉRSIAS SOBRE A APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PREVISTA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE BRASÍLIA - DF 2009 2 ALEXANDER DE SALES BERNARDO CONTROVÉRSIAS SOBRE A APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PREVISTA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Especialização em Direito Privado no curso de Pós Graduação Lato Senso de Contratos e Responsabilidade Civil, do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Orientador: Prof. Hércules Alexandre da Costa Benício Brasília - DF 2009 3 ALEXANDER DE SALES BERNARDO CONTROVÉRSIAS SOBRE A APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PREVISTA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Especialização em Direito Privado no curso de Pós Graduação Lato Senso de Contratos e Responsabilidade Civil, do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Orientador: Prof. Hércules Alexandre da Costa Benício Aprovado pelos membros da banca examinadora em __/__/____, com menção _____ (___________________________________________). Banca Examinadora: _____________________________ Presidente: Prof. ____________________________ Integrante: Prof. ____________________________ Integrante: Prof. 4 Dedico esta esposa, que monografia teve a à minha paciência e persistência necessária para me ajudar em sua conclusão. 5 Agradeço ao meu orientador, Dr. Hércules Benício, pois sem a sua ajuda, concluir este curso não seria possível. 6 RESUMO A presente monografia está baseada na premissa de que a relação MédicoPaciente não pode ser regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, pois ainda que esta seja a opinião majoritária da doutrina e jurisprudência no Brasil, sua natureza e tratamento legal são incompatíveis com os conceitos de consumidor, fornecedor e relação de consumo. A relação médico-paciente de natureza terapêutica está baseada na confiança entre as partes e em regras de conduta normatizadas pelo código de ética médica, sendo seus desvios analisados pelos conselhos regionais de medicina. Ademais, há ainda a expressa disposição do novo Código Civil Brasileiro, que traz, em seu artigo 951, regulação específica referente à responsabilidade civil do médico e de outros profissionais de saúde, o que desloca do Código do Consumidor, com vigência a partir de 1990, a competência de manifestação sobre o tema. Assim, entender a relação terapêutica entre médico e paciente como sendo uma relação de consumo regulada pelo Código consumerista causa conflito com a sistemática adotada por este com o Código Civil, cuja vigência teve início em data posterior à daquele, derrogando qualquer normatização que se lhe confronte. Palavras chave: Monografia; Relação médico-paciente; Terapêutica; Código de Defesa do Consumidor; Código Civil; Responsabilidade Civil; Ética Médica; Relação de Consumo. 7 ABSTRACT To present monograph it is based on the premise that the Doctor-patient relationship cannot be regulated by the Code of Defense of the Consumer, because although this is the majority opinion of the doctrine and jurisprudence in Brazil, his/her nature and legal treatment are incompatible with consumer's concepts, supplier and consumption relationship. The doctor-patient relationship of therapeutic nature is based on the trust among the parts and in established rules of conduct for the code of medical ethics, being yours deviations analyzed by the regional pieces of advice of medicine. Besides, there is still the expressed disposition of the new Brazilian Civil Code, that it brings, in article 951, specific regulation regarding the doctor's civil responsibility and of other professionals of health, what moves of the Consumer's Code, with validity starting from 1990, the manifestation competence on the theme. Like this, to understand the therapeutic relationship among doctor and patient as being a consumption relationship regulated by the Code consumerista causes i conflict with the systematic adopted by this with the Civil Code, whose validity had beginning in subsequent date to the one of that, repealing any normatização that if it confronts. Words key: Monograph; Doctor-patient relationship; Therapeutic; Code of Defense of the Consumer; Civil code; Civil responsibility; Medical ethics; Relationship of Consumption. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 09 2 A RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE......................................................... 11 2.1 A Responsabilidade Contratual e Extracontratual..................... 11 2.2 Natureza Jurídica da Relação Médico-Paciente....................... 12 2.3 O Código de Ética Médica........................................................ 16 3 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR....................................... 19 3.1 Conceito de Consumidor ......................................................... 19 3.2 Conceito de Fornecedor de Produtos e Serviços..................... 21 3.3 Profissional Liberal como Fornecedor...................................... 23 3.4 A Relação de Consumo .......................................................... 26 4 INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR À RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE................................................................................ 29 4.1 Relação Comercial e Relação Terapêutica............................. 29 4.2 A relação de consumo na prestação de serviços médicos..... 31 4.2.1 O Código de Ética Médica......................................... 31 4.2.2 A ausência de vulnerabilidade do paciente .............. 36 4.2.3 O conflito legal com o Código Civil............................ 38 5 CONCLUSÃO....................................................................................... 44 6 REFERÊNCIAS................................................................................... 49 9 1 - INTRODUÇÃO O parágrafo 4º do artigo 14 do código de defesa do consumidor dispõe sobre a responsabilidade dos profissionais liberais por danos causados aos consumidores de produtos ou serviços por estes oferecidos, inserindo a prática destes profissionais no contexto da relação de consumo. Ante algumas divergências de entendimento da extensão da adequação da relação entre o médico profissional liberal e seus pacientes, às normas contidas no Código de Defesa do Consumidor, confrontando o entendimento da legislação, doutrina e jurisprudência dos tribunais, estabelece-se no presente trabalho, algumas confrontações da doutrina e legislação pátria, sobre essa aplicação legal. A análise da responsabilidade civil do médico à luz do Código do Consumidor, que deve ser aferida mediante a demonstração da culpa do profissional, será apreciada sob os aspectos das relações destes com seus pacientes; sob as regras que fundamentam as normas de relação de consumo; e enfim, sobre a legislação de regência do tema. A questão colocada no presente trabalho confronta a realização de um contrato profissional – quando ocorre a relação financeira – em cotejo com a relação médico-paciente, que é a atividade médica intrínseca – em um atendimento terapêutico. E neste sentido é adequada a aplicação da lei consumerista para a análise das falhas decorrentes da busca pela cura de um paciente? Apesar de entendida como absoluta por grande parte da doutrina brasileira e corroborada por decisões judiciais das mais diversas cortes, notadamente pela especificidade com que a norma consumerista tratou este tema, a responsabilidade civil do profissional médico precisa ser compreendida em suas características específicas, em que a prestação terapêutica é baseada na ética médica, não possuindo um caráter mercadológico, mas acima de tudo a busca pela melhoria da qualidade de vida do paciente. De outra parte, a analise do conflito legal, trazido com a edição do Código Civil de 2002, onde o artigo 951 trata especificamente da responsabilidade civil dos médicos e outros profissionais de saúde, por erros decorrentes da relação 10 terapêutica entre estes e os pacientes e familiares, deve ser utilizada para mais uma vez cotejar a possibilidade posta em questão. Neste caso, o deslocamento do embasamento legal em casos de processos por erro médico, retirando a fundamentação do Código de Defesa do Consumidor, em nada prejudica a busca pela reparação civil, mas torna a forma processual mais equilibrada, por retirar do médico a onerosa obrigação de fazer defesa em abrangência territorial distinta de onde reside e atua, bem como de, muitas vezes, ter de lidar com o ônus de fazer prova negativa do suposto erro. Tal confronto se dará com base em pesquisas doutrinárias, decisões judiciais e a legislação vigente no país, inclusive o código de ética profissional dos médicos. E é este o objetivo da presente monografia: trazer à tona uma questão considerada pacífica por muitos, mas que encerra em seu contexto dúvidas sobre os limites da legislação consumerista em relação à sua aplicabilidade diante da relação do profissional liberal médico e seu paciente, posta a realidade particular com que este profissional liberal desenvolve sua atividade, a função social da profissão, e o próprio conceito limitador trazido com o Código Civil de 2002. 11 2- A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE Para estabelecer a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, às relações entre médicos e seus pacientes, se faz necessário determinar a natureza jurídica desta relação e a forma como a mesma se dá na prática. O objetivo principal deste capítulo é determinar a forma pela qual a responsabilidade civil se aplica à relação médico-paciente, para em seguida analisála em todos os seus aspectos. 2.1 A Responsabilidade Contratual e Extracontratual Inicialmente é preciso conceituar a responsabilidade civil, trazendo a compreensão doutrinária sobre a mesma, para depois estabelecer qual espécie de responsabilidade civil deve ser aplicada à relação entre médicos e pacientes Sérgio Cavalieri Filho1, define responsabilidade civil da seguinte forma: É aqui que entra a noção de responsabilidade civil. Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a idéia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa idéia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário. Assim, de acordo com a definição acima é a violação de um dever jurídico, que cause prejuízos à outrem o fator gerador de responsabilidade civil . Todavia, para efeitos do presente estudo, a responsabilidade civil pode ser classificada em responsabilidade civil contratual, se for oriunda de relação contratual preexistente, ou extracontratual, se sua causa geradora for de obrigação imposta por norma geral de direito ou ela própria lei. A distinção entre as espécies de responsabilidade civil, é melhor definida FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil – 5ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 24 1 12 nas palavras de Cavalieri Filho2: Em suma: tanto na responsabilidade extracontratual, como na contratual há a violação de um dever jurídico preexistente. A distinção está na sede desse dever. Haverá responsabilidade contratual quando o dever jurídico violado (inadimplemento ou ilícito contratual) estiver previsto no contrato. A norma convencional já define o comportamento dos contratantes e o dever específico a cuja observância ficam adstritos. E como o contrato estabelece um vínculo jurídico entre os contratantes, costuma-se também dizer que na responsabilidade contratual já há uma relação jurídica preexistente entre as partes (relação jurídica, e não dever jurídico, preexistente, porque este sempre se faz presente em qualquer espécie de responsabilidade). Haverá, por seu turno, responsabilidade extracontratual se o dever jurídico violado não estiver previsto no contrato, mas sim na lei ou na ordem jurídica. Definido o fundamento que distingue a responsabilidade civil contratual da extracontratual, cabe definir qual das duas se aplica à relação médico paciente. 2.2 Natureza Jurídica da Relação Médico-Paciente Estabelecida a distinção entre a responsabilidade civil contratual e a extra contratual, cumpre distinguir na prática da medicina, em qual das duas a relação profissional se dá. Sobre o tema, Mariana Massari Rodrigues de Oliveira 3, tece as seguintes considerações: A natureza contratual da responsabilidade médica não mais nos parece hoje duvidosa, eis que a indagação de Josserand, em 1941 – “É lícito perguntar se, um dia, os tribunais não declararão o médico ou cirurgião responsável contratualmente pelos danos causados aos seus clientes por tratamento contra-indicado, por uma intervenção intempestiva ou infeliz? – restou respondida positivamente e acabou por firmar-se definitivamente, na 2 Ibidem OLIVEIRA, Mariana Massara Rodrigues de Oliveira. Responsabilidade Civil dos Médicos, 1ª edição, Curitiba: Editora Juruá, 2008 3 13 França, grande celeiro jurisprudencial, predominando o entendimento de que, em geral, os profissionais liberais estão unidos a seus clientes por um vínculo contratual. No direito brasileiro, onde a responsabilidade médica foi regulada em dispositivo colocado entre os que dizem respeito à responsabilidade aquiliana, conforme anteriormente explicitado, Costa reconhece que a classificação se orientou para a culpa extracontratual. Sua opinião, que se entremostra abalizada, é no sentido de que esse fato não importa para negar a existência de um contrato entre o profissional e o cliente, ponderando que, de qualquer maneira esse contrato existe e pode ser discutido em todos os casos. Explicando que culpa contratual é aquela que determina o dano pela falta de execução de um contrato, enquanto que culpa aquiliana é a que deriva de ato ilícito, sem nexo jurídico a que se refira, argumenta: [...] entre o médico, a parteira, o dentista, de um lado, e, de outro, o cliente, há sempre [...] um contrato de locação de serviços [...] Se os recursos empregados pelo profissional não satisfizerem [...] houve inexecução de uma obrigação preexistente, é, pois, um caso de culpa contratual. Com efeito, na atualidade, podemos afirmar que, via de regra, a responsabilidade civil do médico, sem embargo de ter sido tratada pelo legislador entre os casos de atos ilícitos, é vista unanimemente como responsabilidade contratual, como obtemperam Dias, Kfouri Neto, e Rodrigues, ressalvados alguns casos de responsabilidade civil em sentido estrito (extracontratual), expostos no item subseqüente. Como exposto acima, praticamente toda a doutrina considera a responsabilidade civil ocorrida na relação médico-paciente como sendo de natureza contratual. Considerando que o oficio da medicina, encerra condições de excepcionalidade que nem sempre permitem concretizar o objetivo exposto, teríamos a condenação contumaz do médico, por situações em que a capacidade humana jamais poderia trazer um resultado favorável. Esta situação é resolvida pela aplicação da teoria das obrigações de meio e de resultado. A teoria da obrigação de resultado, ou responsabilidade de fim, Maria Leonor 14 de Souza Kühn4, citando Savatier, conceitua da seguinte forma: Segundo Savatier, nos contratos cuja obrigação é de resultados, antes mesmo que o resultado prometido seja atingido, ele está garantido. As obrigações de resultado são as obrigações de garantia. Os credores de resultado têm, deste modo, muito mais de segurança, pois o devedor só se desincumbe da obrigação de provar um caso de força maior que impossibilite a execução da promessa. Tal questão, porém, foi superada pela teoria de que as obrigações podem ser de meio, que o doutrinador Serpa Lopes atribui ao francês René Demogue. Segundo Serpa Lopes, existe uma obrigação de meios quando só se exige do devedor que sejam empregados determinados meios para atingir o resultado, sem que isso signifique necessariamente que este resultado seja atingido.5 Cavalieri6, comentando a aplicação da responsabilidade civil às obrigações, defende a obrigação de meio como a mais aplicável aos profissionais liberais, em particular os médicos. “De qualquer forma, essa divergência acerca da natureza jurídica do contrato em nada altera a responsabilidade do médico, posto que, tratandose de responsabilidade contratual, o que importa saber é se a obrigação gerada pela avença é de resultado ou de meio. E assim é porque, como já vimos, apenas no primeiro caso – obrigação de resultado – a culpa é presumida, devendo ser provada no segundo caso tal como na responsabilidade delitual (item 103). Nenhum médico, por mais competente que seja, pode assumir a obrigação de curar o doente ou de salvá-lo, mormente quando em estado grave ou terminal. A ciência médica, apesar de todo o seu desenvolvimento, tem inúmeras limitações, que só os poderes divinos poderão suprir. A obrigação que o médico assume, a toda evidência, é a de proporcionar ao paciente todos os cuidados conscienciosos e atentos, de acordo com as aquisições da ciência, para usar-se a fórmula consagrada na escola francesa. Não se compromete a curar, mas a prestar os seus serviços de acordo com as regras e os métodos da profissão, incluindo aí cuidados e conselhos. Logo, a obrigação assumida pelo médico é de meio e não de resultado, de sorte que, se o tratamento realizado não produziu o efeito esperado, não se pode falar, só por isso, em inadimplemento contratual. Esta conclusão, além de lógica, tem o apoio de todos os autores, nacionais e estrangeiros (Aguiar Dias, Caio Mário, Sílvio Rodrigues, Antônio Montenegro), e é também consagrada pela jurisprudência. Disso resulta que a responsabilidade médica, embora contratual, é subjetiva KÜNH, Maria Leonor de Souza. Responsabilidade Civil – a natureza jurídica da relação médico-paciente. 1ª. edição, São Paulo: Editora Manole, 2002, p. 44 5 LOPES, Miguel Maria de Serpa, Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, vol. V, 1961, p. 317 6 FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil – 5ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 24 4 15 e com culpa provada. Não decorre do mero insucesso no diagnóstico ou no tratamento, seja clínico ou cirúrgico. Caberá ao paciente, ou aos seus herdeiros, demonstrar que o resultado funesto do tratamento teve por causa a negligência, imprudência ou imperícia do médico.7 O entendimento acima esposado, sobre a natureza intrinsecamente contratual da relação médico-paciente, repete o entendimento de grande parte da doutrina, mas, apesar disso, não resolve uma questão de fundamental importância para esclarecer a natureza deste tipo de relação: estamos diante de que espécie de contrato? No entendimento de Genival Veloso França, a responsabilidade médica é contratual, sendo sua natureza, a de locação de serviços, ainda que o atendimento seja gratuito, no que concorda Pontes de Miranda, que acrescenta ainda a possibilidade de ser locação de obra ou menos frequentemente de empreitada, admitindo por fim, a gestão de negócios sem outorga de poderes, no caso em que um menor desacompanhado e sem condições de expressar sua vontade, seja o paciente.8 Tereza Ancona Lopez de Magalhães (1984, pp 313-314) confirma este entendimento, afirmando: “Ora, na obrigação de meios o que se exige do devedor é pura e simplesmente o emprego de determinados meios sem ter em vista o resultado. É a própria atividade do devedor que está sendo objeto do contrato. Esse tipo de obrigação é o que aparece em todos os contratos de prestação de serviços, como o de advogados, médicos, publicitários etc.” 9 Enfim, nas obrigações de meio, a reparação do erro médico não se mede pelo resultado, uma vez que este não foi prometido, mas sim pelas conseqüências, caso fique demonstrado ter havido culpa (imprudência, negligência ou imperícia) no atendimento. Essa classificação é fundamental para a compreensão da natureza jurídica contratual, a qual se submetem médicos e pacientes em suas relações. Todavia, não se esgotam aqui os problemas derivados desta relação, pois muito embora a FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil – 5ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 371 8 FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico, 3ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Fundo Editorial Byk-Proscienx, 1982, p. 51. 9 MAGALHÃES, Teresa Ancona Lopez de. Responsabilidade Civil dos Médicos. In CAHALI, Yussef Said (coord.). Responsabilidade Civil: Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1984, pp 313314 7 16 natureza contratual seja reconhecida como a aplicável neste caso, é preciso compreender se tal contrato é abarcado pelo conceito de consumo, que - como já visto anteriormente - necessita da função mercadológica para ser aplicado. Apesar da tese esposada pela maioria dos doutrinadores seguir a linha de que o contrato havido entre médico e paciente é um contrato de prestação ou locação de serviços, há linhas que defendem ser este de mandato, empreitada, multiforme ou inominado, não havendo consenso absoluto, pela característica “sui generis” desta forma de relação. Todavia, independente da forma com que se reveste o contrato, cabe ao destinatário do serviço, provar que este não foi realizado ou foi mal realizado, como bem afirma Serpa Lopes10: “De qualquer modo, pouco importa a natureza do contrato que vincula o profissional e o seu cliente, pouco importa que se trate de uma responsabilidade contratual ou extracontratual, de qualquer modo, em se tratando de uma obrigação de meios, ao prejudicado é que incumbe o ônus probatório da infringência dessas obrigações.” De todos os entendimentos apresentados, podemos afirmar que a relação médico-paciente deve ser compreendida como uma relação contratual, cujo objeto é a prestação de meios adequados para o restabelecimento do paciente, e de prestação de serviços, por ser o que melhor se adapta às características nele desempenhadas. 2.3 O Código de Ética Médica Enquanto a legislação civil busca a reparação do dano material e/ou moral, o Código de Ética Médica, através de processo disciplinar, busca junto ao Conselho Regional de Medicina orientar e fiscalizar a conduta profissional médica frente aos pacientes, ou seja, dentre as recomendações contidas no referido Código, serão analisadas as posturas do profissional de saúde diante dos fatos práticos de sua atividade. 10 LOPES, Op. cit., pp. 264-265 17 O médico ao contratar com um paciente, antes de estabelecer uma relação comercial, assume a condição de prestar toda a assistência e diligência exigidas de sua condição profissional, sendo observado, em relação a esta conduta por seus pares, tendo o Código de Ética como parâmetro. O processo ético é de natureza moral com cunho administrativo, mas pode, em última instância, ser contestado juridicamente, pois a Constituição Federal garante isso em seu artigo 5o, inciso XXXV: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"11. A lei 3.268/57 que dispõe sobre os Conselhos de Medicina, em seu artigo 22, § 5o, também confirma a possibilidade de recurso à justiça comum: "além do recurso previsto no parágrafo anterior, não caberá qualquer outro de natureza administrativa, salvo aos interessados a via judiciária para as ações que forem devidas" O Código de Ética Médica é uma resolução do Conselho Federal de Medicina12, sem força de lei, mas suas sanções, no entanto, estão previstas na Lei 3.268/5713, que dispõe sobre os conselhos de medicina em seu artigo 22, e isso lhes dá força impositiva com caráter jurídico: "Art. 22 As penas disciplinares aplicáveis pelos Conselhos Regionais aos seus membros são as seguintes: a) advertência confidencial em aviso reservado; b) censura confidencial em aviso reservado; c) censura pública em publicação oficial; d) suspensão do exercício profissional até 30 dias; e) cassação do exercício profissional, ad referendum do Conselho Federal". Essa mesma lei, em seu artigo 21, parágrafo único, confirma ainda o óbvio: "O poder de disciplinar e aplicar penalidades aos médicos compete exclusivamente ao Conselho Regional, em que estavam inscritos ao tempo do fato punível em que ocorreu, nos termos do art. 18 § único - § único: a jurisdição disciplinar estabelecida BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Org. Editoria Jurídica da Editora Manole, 6ª edição, ed. Jurídica Manole, 2009 12 Resolução CFM nº 1.246/88, DE 08.01.88 13 Lei no 3.268, de 30 de setembro de 1957. 11 18 neste artigo não derroga a jurisdição comum quando o fato constitua crime punido em lei".14 Nesse sentido, é incontestável que o profissional médico está submetido a um código de conduta que lhe dita regras de convivência com seus pacientes. Esta norma é cogente e, portanto, obriga ao profissional médico sua observância sob pena de sofrer as repreensões ali tipificadas. 14 ibidem 19 3- O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR O Código de Defesa do Consumidor é um instrumento desenvolvido pelo Estado com o objetivo de controlar as relações negociais privadas, em particular das ações de mercado, visando suprir a vulnerabilidade do consumidor diante da força preponderante do fornecedor nesta relação. É, portanto, o regramento legal que visa coibir ou minorar os efeitos de uma relação desequilibrada em sua origem entre os personagens de uma relação comercial, em que o consumidor assume o papel mais frágil da relação, diante do fornecedor. Neste sentido, as relações paritárias ou “intuito personae”, não devem, por conseguinte, ser abrangidas por esta codificação, tendo o Código Civil de 2002 a incumbência de regular as hipóteses excluídas da relação de consumo. 3.1 Conceito de Consumidor Antes de examinar especificamente o tema da aplicação da responsabilidade civil nas relações entre médicos e seus pacientes à luz do Código de Defesa do Consumidor, necessário se faz estabelecer os conceitos presentes na própria norma consumerista. O artigo 2º do Código Consumerista, traz a definição de consumidor: Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Além do disposto no Código de Defesa do Consumidor, diversos doutrinadores expuseram suas definições pessoais sobre este conceito. 20 Segundo ensina Rizzatto Nunes (2004, p. 79) “... toda vez que o produto e/ou serviço puderem ser utilizados como bem de consumo, incide as regras do Código de Defesa do Consumidor”15. Othon Guido Sidou, citado por José Geraldo Brito Filomeno (1993), define consumidor como "aquele que compra para gastar em uso próprio", concluindo que "consumidor é qualquer pessoa, física ou jurídica, que isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de um serviço"16. Com isso, temos que o conceito de consumidor, muito embora bem definido no Código de Defesa do Consumidor, inspira cuidados na sua interpretação de forma a captar singelas situações em que o senso comum aponta para uma relação de consumo, mas que a doutrina e prática jurídicas não podem permitir confundir, aceitando a aplicação do referido código. Para FILOMENO, que foi um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, o fator econômico foi o que determinou o conceito de consumidor, conforme dispõe abaixo: (...) o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial. 17 Nos seus dizeres, o Código estabeleceu que a conceituação de consumidor deve ser feita sob a ótica econômica, da relação mercadológica, excluindo dos seus limites todas as relações estranhas às lei de mercado. Tal entendimento deverá ser lembrado no momento em que for discutida a natureza da prestação terapêutica do médico ao seu paciente, cujas características destoam completamente do conceito comercial de prestação de serviços. NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 1ª. edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 79 16 FILOMENO, José Geraldo Brito. Responsabilidade Civil: atividade médico-hospitalar. Rio de Janeiro: Esplanada, 1993, p. 26 17 GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos Autores do Anteprojeto. 7ª edição, revista e atualizada, Rio de Janeiro, Forense Uniersitária, 2001. 15 21 3.2 Conceito de Fornecedor, Produtos e Serviços Em relação ao conceito de fornecedor, o artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor traz uma conceituação bem complexa e por vezes controvertida, iniciando-se no art. 3º daquele código e se estendendo por diversos outros. O artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor traz o seguinte texto: Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Como se percebe, os parágrafos que acompanham a definição de fornecedor trazem ainda definições sobre produtos e serviços, essenciais para a verificação da real aplicabilidade do termo fornecedor ao que atua no comércio de bens ou serviços. Cavalieri em comentário sobre o tema, afirma: Como se vê, enquanto o produto tem por essência um bem – uma obrigação de dar, de transferir a propriedade ou a posse de coisa móvel ou imóvel, material ou imaterial, serviço diz respeito a uma atividade prestada mediante remuneração – uma obrigação de fazer, de realizar uma conduta que beneficie o consumidor.18 A conceituação de fornecedor, muito embora tenha sido bem completa na dicção da lei, encontra em José Geraldo Brito Filomeno, a seguinte forma: Nesse sentido, por conseguinte, é que são considerados todos quanto propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender às necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título, sendo relevante, isto sim, a distinção que se deve fazer entre as várias espécies de fornecedor nos casos de responsabilização por danos causados aos consumidores, ou então para que os próprios fornecedores atuem na via regressiva e em cadeia da FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil – 5ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2004 18 22 mesma responsabilização, visto que vital a solidariedade para a obtenção efetiva de proteção que se visa a oferecer aos mesmos consumidores.19 Todavia, este entendimento deve ser encarado com reservas, notadamente quando aplicável aos profissionais liberais. A conceituação de fornecedor, nem sempre é de fácil aplicação à realidade dos fatos, pois a observação da realidade da prestação dos serviços, ou comércio de bens, pode alterar o uso ou não da aplicação do Código às relações entre os indivíduos, como demonstra Rizzato Nunes no texto a seguir: É importante centrar a atenção no conceito de atividade, porque, de um lado, ele designará se num dos pólos da relação jurídica está o fornecedor, com o que se poderá definir se há ou não relação de consumo (para tanto, terá de existir no outro pólo o consumidor). E isto porque será possível que a relação de venda de um produto, ainda que feita por um comerciante, não implique estar-se diante de uma relação de consumo regulada pelo código de defesa do consumidor. (...) A simples venda de ativos sem caráter de atividade regular ou eventual não transforma a relação jurídica em relação jurídica de consumo. Será um ato jurídico regulado pela legislação comum civil ou comercial. (...) É por isso que a definição da relação de consumo é fundamental para se descobrir se é aplicável ou não o código de defesa do consumidor.20 Como bem explicitado, não basta a simples relação entre as partes, mas sim que à tal relação, possa ser atribuído caráter de relação de mercado, com objetivos próprio de consumo. O plenário do Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a inaplicabilidade do CDC em relação comercial, onde não se demonstrou que a pessoa que adquiriu ou utilizou produto ou serviço como destinatário final. Homologação de laudo arbitral estrangeiro. Requisitos formais: comprovação. Caução: desnecessidade. Incidência imediata da Lei nº 9.307/96. Contrato de adesão: inexistência de características próprias. Inaplicação do Código de Defesa do Consumidor. 1. Hipótese em que restaram comprovados os requisitos formais para a homologação (RISTF, artigo 217). 2. O Supremo Tribunal Federal entende desnecessária a caução em homologação de sentença estrangeira (SE nº 3.407, Rel. Min. Oscar Corrêa, DJ DE 07.12.84). 3. As disposições processuais da Lei nº 9.307/96 têm incidência imediata nos casos pendentes de julgamento (RE nº 91.839/GO, Rafael Mayer, DJ de 15.05.81). 4. Não é contrato de adesão aquele em que as cláusulas são modificáveis por acordo das partes. 5. O FILOMENO, José Geraldo Brito. Responsabilidade Civil: atividade médico-hospitalar. Rio de Janeiro: Esplanada, 1993 20 NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 1ª. edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 87 19 23 Código de Proteção e Defesa do Consumidor, conforme dispõe seu artigo 2º, aplica-se somente a "pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". Pedido de homologação deferido.21 Neste mesmo sentido, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça, considerando a forma de prestação de serviços, como a definidora da existência de relação de consumo e, por conseguinte, caracterizando o prestador como fornecedor: Processual civil. Recurso especial. Sociedade civil sem fins lucrativos de caráter beneficente e filantrópico. Prestação de serviços médicos, hospitalares, odontológicos e jurídicos a seus associados. Relação de consumo caracterizada. Possibilidade de aplicação do código de defesa do consumidor. - Para o fim de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o reconhecimento de uma pessoa física ou jurídica ou de um ente despersonalizado como fornecedor de serviços atende aos critérios puramente objetivos, sendo irrelevantes a sua natureza jurídica, a espécie dos serviços que prestam e até mesmo o fato de se tratar de uma sociedade civil, sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico, bastando que desempenhem determinada atividade no mercado de consumo mediante remuneração. Recurso especial conhecido e provido. 22 Tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Superior Tribunal de Justiça, é uníssono o entendimento de que a condição em que a relação jurídica entre as partes aconteceu, é que definirá se esta é uma relação de consumo ou não. Neste mesmo sentido, é a análise da situação do profissional liberal frente ao caso concreto, que irá demonstrar se este ao contratar com o seu cliente – no caso em tela, o médico e o paciente – estará firmando uma relação própria de consumo, ou outra relação contratual submetida às regras do Código Civil e Código de Ética Médica. 3.3 Profissional Liberal como Fornecedor Delimitado o alcance do conceito de fornecedor, faz-se necessário analisar a situação prevista no artigo 14, § 4º do Código de Defesa do Consumidor, onde o profissional liberal é enquadrado como fornecedor de serviços ou produtos. 21 22 BRASIL. STF. Tribunal Pleno. SEC 5847/IN. Rel. Min. Maurício Corrêa. j. 01/12/1999 BRASIL. STJ. 3ª Turma. RESP 519.310/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 20/04/2004 24 Diz o artigo 14 do Código consumerista, especificamente no seu § 4º: Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. Sobre o tema, Rizzato Nunes caracteriza da seguinte forma o profissional liberal: Os profissionais liberais clássicos são bem conhecidos: o advogado, o médico, o dentista, o contador, o psicólogo etc. As características do trabalho desse profissional são: autonomia profissional, com decisões tomadas por conta própria, sem subordinação; prestação do serviço feita pessoalmente, pelo menos nos seus aspectos mais relevantes e principais; feitura das próprias regras de atendimento profissional, o que ele repassa ao cliente, tudo dentro do permitido pelas leis e em especial da legislação de sua categoria profissional. (...) Para fins de avaliação da responsabilidade pelos danos causados ao consumidor e enquadramento na hipótese do § 4º do artigo 14, parece que o melhor caminho é definir o profissional liberal pelas características de sua prestação de serviço e não pelo enquadramento legal. 23 Importante notar que na conceituação acima, de Rizzatto Nunes, os profissionais liberais são referidos de forma genérica, sem distinção da espécie de prestação feita e suas peculiaridades, ou mesmo quais profissões liberais o código abrange, e uma vez que este não delimitou as condições em que o profissional liberal age como prestador de serviços com fins intrinsecamente mercantis, a sua aplicação ficou estendida a toda esta categoria de profissionais. Esse entendimento denota um supremo esforço por parte dos doutrinadores consumeristas, para enquadrar toda a sorte de profissionais liberais no conceito de NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 1ª. edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. 23 25 fornecedor de serviços, ante a inadequação do serviço prestado por aqueles com o conceito de relação de consumo. Ainda que defendendo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos profissionais liberais, Zelmo Denari, não deixa passar em branco a estranheza da relação: Nem se deve deslembrar que o dispositivo excepcional supõe a contratação de um profissional liberal que, autonomamente, desempenha seu ofício no mercado de trabalho. Trata-se, portanto, de disciplina dos contratos negociados, e não dos contratos de adesão a condições gerais. Essa afirmação comporta algumas considerações relacionadas com a teoria geral das relações de consumo. No que tange aos contratos de prestação de serviços firmados com os profissionais liberais, muito importa distinguir os contratos negociados, previstos neste parágrafo, dos contratos de adesão, que costumam ser firmados com sociedades civis ou associações profissionais. Esses últimos – derivados da especial relação que se estabelece entre o fornecedor de bens ou serviços ofertados ao público e seus eventuais adquirentes ou utentes, designados consumidores – retratam, com tipicidade, as verdadeiras relações de consumo. A relação derivada dos contratos de adesão e condições gerais se caracteriza pela ostensiva tutela jurídica de uma das partes, o consumidor, que o Código de Defesa do Consumidor presume necessária, diante de sua manifesta fragilidade no embate com o poder contratual dos fornecedores. Por sua vez, os contratos ditos negociados, nas relações consumeristas, estão muito próximos dos contratos estritamente privados, nos quais prevalece a regra do pacta sunt servanda, que supõe a igualdade dos poderes contratuais das partes, em obséquio ao pensamento liberal, que sempre repudiou a tutela dos hipossuficientes. 24 Como restou claro, a própria doutrina partidária da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos profissionais liberais, aponta essa situação como limítrofe aos conceitos discutidos, o que ainda se acentua se considerarmos a relação entre médicos e pacientes, que além de totalmente sinalagmática, é baseada na confiança entre as partes. GRINOVER, Ada Pelegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos Autores do Anteprojeto. 7ª edição, revista e atualizada, Rio de Janeiro, Forense Uniersitária, 2001, p. 176. 24 26 Particularmente o médico possui condições excepcionais de exercício da profissão, que excluem a aplicação do parágrafo 4º do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, de forma que sua prestação de serviços não possa ser igualada a uma atividade comercial, seja pela realidade com que esta se dá, seja pelas regras estabelecidas no Código de Ética profissional. 3.4 Relação de Consumo Na esteira dos conceitos de fornecedor e consumidor, faz-se necessária a definição de relação de consumo, que muito embora esteja diretamente associada às figuras de seus agentes, traz informações úteis para o discernimento de sua ocorrência. Cavalieri Filho (2004, p. 468), definiu relação de consumo, da seguinte forma: E, relação de consumo é a relação jurídica, contratual ou extracontratual, que tem numa ponta o fornecedor de produtos e serviços e na outra o consumidor; é aquela realizada entre o fornecedor e o consumidor tendo por objeto a circulação de produtos e serviços. Havendo circulação de produtos e serviços entre o consumidor e o fornecedor, teremos relação de consumo regulada pelo Código de Defesa do Consumidor. Ainda conceituando relação de consumo, Bacellar Fernandes expõe assim seu ponto de vista: As relações de consumo são relações jurídicas cujo caráter legal é preponderantemente instrumental e não finalístico. Assim, embora atendam a finalidades diversas, geralmente econômicas, as relações de consumo têm inegavelmente caráter jurídico instrumental, na medida em que são vínculos intersubjetivos reconhecidos e tutelados pelo ordenamento jurídico, que os provê de segurança e estabilidade.25 Em outras palavras, relação de consumo é a relação existente entre o consumidor e o fornecedor na compra e venda de um produto ou na prestação de um serviço. FERNANDES, Daniela Bacellar. Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor – Em face das Mensagens Subliminares. 1ª. edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2006, p. 113. 25 27 Daí se conclui que para ser protegida pelo Código de Defesa do Consumidor, a relação deverá possuir todos os aspectos citados acima, ou seja, deve existir uma relação de negócios que visa a transação de produtos e/ou serviços, feita entre um fornecedor e um consumidor. Se evitarmos o senso comum e a simplificação do conceito adotado pelo Código de Defesa do Consumidor, a definição de quem deve ser chamado a responder, como fornecedor de serviços deve atentar para as particularidades das atividades desempenhadas. Embora minoritária, parte da doutrina não concorda que as regras legais das relações de consumo sejam aplicadas aos profissionais liberais, justificando este entendimento pela lógica de que se trata de um trabalho autônomo e criativo. Além disso, tais profissionais liberais, são regulados por entidades de controle profissional, com códigos e regulamentos próprios de suas categorias, como nos casos da OAB, CNM, CREA etc. Neste ponto, vale questionar: a prestação de serviço médico terapêutico a um paciente pode ser considerada como uma relação mercadológica defendida pelo Código de Defesa do Consumidor? Aparentemente não. A relação médico-paciente não pode ser considerada mera relação de consumo, pois possui uma função social ímpar, incomparável com qualquer outra, sendo necessário fazer a reflexão de que o serviço de saúde é sui generis, quando nos referimos a mercado, pois a vida e a saúde não são bens de consumo e não pode ser comparada a um produto qualquer. Neste sentido, pode ser exemplificada a situação, da seguinte forma: caso um médico cometa um erro no atendimento a um indivíduo, seja em seu consultório particular, ou nas dependências de hospital em que atua como empregado, ou ainda em prestação de socorro a um indivíduo no meio da rua, ele será sempre um prestador de serviços. Neste caso, a relação médico-paciente se configurou e a responsabilidade civil se aplica ao caso. Então como discriminar a condição do médico diante do paciente, como sendo de fornecedor em um momento, ou de mero ato de gentileza em outro, ou ainda de subordinação que afaste a lógica consumerista? Impossível. A mera argumentação de que é preciso haver uma relação contratual, mesmo que verbal, para concretizar a relação de prestação de serviços não pode ser aceita. 28 Se adotarmos a regra do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, combinada com a obrigação inerente à profissão médica de assumir a responsabilidade sob a saúde do seu paciente, mesmo que não tenha sido avençado um contrato para consulta ou atendimento emergencial, essa relação casual, se consolidaria como uma relação de consumo na forma do Código de Defesa do Consumidor. Isso decorre do fato de que o profissional liberal médico, diferentemente do profissional liberal de um modo geral, tem em sua profissão uma necessidade de atuação especial: ao prestar de alguma forma seu conhecimento a terceiro, o médico já assume a responsabilidade pelo resultado do seu ato, enquanto que nas demais prestações de serviços de profissionais liberais, a prestação só decorre da confirmação da contratação do profissional. E muito embora a prestação de serviços médicos seja intuito personae, em casos de urgência e assistência humanitária, o médico não pode escolher seus pacientes, o que torna mais uma vez distinta, a natureza da relação do médico com seu paciente, quando confrontado com a prestação de serviços de outros profissionais liberais. Assim, opera-se uma situação em que o profissional médico é apenado sob toda e qualquer ótica que se vislumbra: de um lado, está sujeito às regras impostas pelo Código de Ética profissional; e de outro, é submetido às regras do Código de Defesa do Consumidor. Se o Código de Ética Profissinal e o Código de Defesa do Consumidor, são aparentemente complementares, na prática, são insociáveis, e até mesmo contraditórios, pois a relação médico-paciente prevista no código de Ética Médica, impede a comercialização de serviços de saúde, por parte de seus profissionais. Assim, o conceito de prestador de serviços, quando direcionado à atividade do médico, deve ser analisado também sob as características de excepcionalidade da função desempenhada por este profissional, motivo pelo qual, o abrangente conceito de fornecedor, onde o médico profissional liberal é inserido na sistemática do Código Consumerista se confronta objetivamente com o Código de Ética Médica, que veda a prática profissional, por razões puramente comerciais. 29 4 INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR À RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE 4.1 Relação Comercial e Relação Terapêutica Como visto anteriormente, as relações havidas entre médico e paciente, por ocasião de um tratamento de saúde, são entendidas por grande parte da doutrina brasileira como sendo uma relação contratual de prestação de serviços. Por este motivo, esses mesmos doutrinadores entendem como correta a aplicação do Código de Defesa do Consumidor a esta relação, pois, uma vez que é contratual e prestada, em regra, mediante pagamento (muito embora a onerosidade não seja fundamental), estaria concretizada uma relação de mercado, e por conseqüência, de consumo. Mas esta posição apenas reflete parte do problema, pois na verdade a relação médico-paciente é de confiança e pessoal, onde as regras comerciais são postas de lado, muito embora haja pagamento ao profissional de saúde. Para se entender com mais especificidade a relação entre médico e paciente, devemos antes de tudo apresentar uma distinção clara sobre as duas formas em que essa relação se dá: na primeira, o paciente busca a ajuda de um profissional de saúde para lhe prestar auxílio frente à uma necessidade relacionada à sua saúde; na segunda, em caso de emergência ou incapacidade de eleição, o paciente é levado aos cuidados do médico que lhe atenderá por exigência da sua profissão. Em ambos os casos, independente da onerosidade ou não da relação, configura-se um contrato de prestação de serviços, onde o médico, salvo raras exceções, não pode se negar a atender o paciente. Considerando em primeiro lugar o caso em que o paciente escolhe o médico que irá lhe atender, temos a formalização de um contrato totalmente sinalagmático. Não se pode, neste caso, afirmar que o paciente é incapaz ou tecnicamente inferiorizado na relação. Isso ocorre porque cabe ao paciente exigir do médico todas as informações e circunstâncias que envolvem seu caso, e se não ficar satisfeito, 30 simplesmente buscar uma segunda opinião, sem que ao médico caiba discutir essa conduta. Ainda que consideremos que o médico é responsável por prestar informações claras e precisas ao seu paciente, por ser o detentor do conhecimento para tratar a doença ou problema que aflige o paciente esta é antes de tudo uma obrigação ético-profissional, e a falha nesta conduta, uma infração ao código profissional. Em todo caso, a vulnerabilidade do paciente, neste caso, decorreria de uma desequilíbrio nas informações a respeito dos meios de cura ou alívio do seu problema. Também aqui, o médico estaria sujeito à uma obrigação de princípio, regulada pelas normas de conduta éticas da profissão. No segundo caso, quando o médico recebe um paciente ou seu responsável, em situação em que se encontre impossibilitado de firmar objetivamente a relação contratual, e esta é feita pelo simples aceite da incumbência, mais explícito fica que estamos diante de um contrato de prestação de serviço diferenciado daquele em que normalmente atribuímos a característica de consumerista. Se por um lado nesta situação não ocorre o sinalagma, por outro, o médico não pode rejeitar o atendimento do paciente. E este é um dos exemplos mais claros a demonstrar que a relação médicopaciente não pode ser enquadrada como comercial e de consumo, haja vista que o profissional da medicina está permanentemente vinculado às regras de conduta determinada no seu Código de Ética profissional, que, como já visto anteriormente, não permite a comercialização do seu ofício, sob pena de punição. Neste sentido, os médicos são impedidos de fazer propaganda, prometer resultados, cobrar honorários exorbitantes ou vis, sendo limitados pelo bom senso e pelo próprio Código de Ética. A regulação da profissão médica retira muito da capacidade que estes dispõem de se inserir no mercado consumidor através dos instrumentos tradicionais de disputa, ante as limitações impostas pela própria condição da profissão. A competição entre os profissionais da medicina, só podem se dar mediante a observância das regras de conduta estabelecidas no Código de Ética profissional, o que retira mais uma vez da atuação médica, a visão de mercado. 31 Frise-se que ao médico não cabe tabelar a capacidade com que atuará no caso. Não pode estabelecer contratos com maior ou menor abrangência de sua capacitação. Ao médico é imposto que todo e qualquer paciente, independente do quanto pague ou possa pagar, receba o máximo de seus esforços para amenizar-lhe a dor. É sem dúvida uma relação sui generis, que só com muito esforço e ignorando algumas regras sociais, pode ser incluída no rol de atividade de mercado. Não se trata, portanto, de uma relação comercial propriamente dita, pois o fundamento que estabelece o liame jurídico entre as partes, em caso de falha no atendimento, não é o pagamento nem são as condições mercadológicas envolvidas, mas sim a confiança e a ética profissional a serem despendidas pelo médico. Kfouri Neto26, citando Gustavo Lopez-Muñoz Y Larraz, afirma que o paciente deve ter clara consciência de que não está subordinado ao médico; que o médico é um profissional que recebe compensação econômica para servi-lo; que o médico não faz nenhum ‘favor’ ao paciente, apenas cumpre sua compensação profissional. 4.2 Inexistência de Relação de Consumo na Relação MédicoPaciente 4.2.1 O Código de Ética Médica A relação médico paciente, sob a ótica dos procedimentos terapêuticos, enseja uma visão distinta daquela a que atribuímos convencionalmente às relações mercadológicas passíveis da análise do Código de Defesa do Consumidor. Como citado anteriormente, o Código de Ética Médica em seu artigo 9º, veda, em qualquer hipótese, o exercício da medicina como comércio. O artigo 9º do Código de Ética Médica, dispõe o seguinte: NETO, Miguel Kfouri Neto. Responsabilidade Civil do Médico. 6ª. edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 31-32 26 32 Art. 9° - A Medicina não pode, em qualquer circunstância, ou de qualquer forma, ser exercida como comércio.27 Isso significa que se a atividade médica é enquadrada por um lado como atividade comercial, passível de controle pelo Código de Defesa do Consumidor, por outro lado, está submetida à regra mais específica que afirma que sua conduta não pode ser pautada pela relação de comércio propriamente dita. Apenas como exemplificação da situação exposta abaixo, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, em parecer dado sobre a Consulta nº 34.163/93, trata especificamente do artigo 9º do Código de Ética Médica, acima transcrito, da seguinte forma: Consulta nº 34.163/93 Assunto: Obtenção de lucro através do exercício da profissão Relator: Adriana C. Turri Joubert - Advogada Uma UNIMED do Estado de São Paulo, indaga ao CREMESP o conceito de mercantilização da medicina à luz dos preceitos éticos. Parecer: Diante da solicitação em tela, vale esclarecer que inexiste uma definição específica e determinada de mercantilização da medicina. Entretanto, referida prática, proibida pelo Código de Ética Médica, envolve a obtenção de lucro através do exercício da profissão. Esta é, pois, a conduta anti-ética vedada aqueles que prestam serviços médicos, nos termos, como anteriormente mencionado, do Código de Ética Médica, senão vejamos: No capítulo I do citado Código, como princípio irradiador, fundamental, portanto, verifica-se no art. 9º que “a medicina não pode, em qualquer circunstância ou de qualquer forma, ser exercida como comércio.” Também o capítulo VIII, sob a rubrica “Remuneração Profissional”, estabelece claramente nos artigos 98 e 99 a incompatibilidade entre a medicina e a prática de atos de comércio, a saber: É vedado ao médico: “art. 98 - Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, laboratório farmacêutico, ótica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação ou comercialização de produtos de prescrição médica de qualquer natureza, exceto quando se tratar de exercício da Medicina do Trabalho.” “art. 99 - Exercer simultaneamente a Medicina e a Farmácia, bem como obter vantagem pela comercialização de medicamentos, órteses ou próteses, cuja compra decorra de influência direta em virtude da sua atividade profissional.” Fica claro nos três artigos que o que se veda é a prática da medicina visando o lucro e a obtenção de vantagens econômicas, a despeito da saúde humana. É o que diz Léo Meyer Coutinho, ao comentar os artigos e princípios acima transcritos oferecendo até exemplos que ilustram essa proibição, a saber: “art. 9º - ... No meu entender o real significado desse artigo está consubstanciado na prática anti-ética prevista no art. 60, onde comentarei o 27 Resolução CFM nº 1.246/88, DE 08.01.88 33 assunto com mais amplitude. Apenas adianto que este princípio, expresso na forma negativa, significa que a medicina não deve ser exercida como “artigo de consumo”. Que o comércio faça propaganda para vender tal ou qual artigo, de pouca ou nenhuma serventia, e mesmo assim consiga vender pela habilidade promocional, é válido. O trabalho médico, não.” “art. 98 – Não há dificuldade no entendimento dessa proibição. O médico não pode instalar seu consultório nas dependências onde sejam exercidas as outras atividades mencionadas. Podemos ter a seguinte situação: uma fábrica, para melhorar a assistência médica aos funcionários e familiares, monta pequena farmácia e consultório médico. Contrata farmacêutico e um ou mais médicos para prestarem essa assistência. O consultório pode estar, num mesmo corredor, ao lado da farmácia. Desde que sejam atendidos só os funcionários e seus dependentes, não há infração ao artigo.” “art. 99 - O exercício simultâneo de Medicina e Farmácia não há dificuldade em compreender sua incompatibilidade. A segunda parte complementa a proibição contida no artigo anterior. Exemplos: oftalmologista que recebe comissões da ótica que avia suas receitas, o ortopedista que recebe comissão do fornecedor dos aparelhos que prescreve ou aplica em seus pacientes, o cardiologista que recebe comissões do vendedor de marcapassos que utiliza em seus pacientes, o clínico que recebe comissões do laboratório farmacêutico que produz os medicamentos por ele receitados, e assim por diante. São práticas anti-éticas que podem também ser caracterizadas como delitos penais, suborno, crime de concorrência desleal praticado pelas firmas, e eventualmente, conforme as circunstâncias, crime contra a economia popular.” Muitas outras situações poderiam ser exemplificadas, mas, reiterando-se, é a realização do lucro em decorrência da prática da medicina que se proíbe. Portanto, todos os atos que tiverem essa finalidade serão considerados contrários à ética médica. É nesse momento que a mercantilização da medicina é flagrada. São Paulo, 1 de dezembro de 1994. Aprovada na 1.638ª RP em 03/01/95 Apesar da aparência de utopia ou anacronismo frente ao atual desenvolvimento do mercado de consumo, vedar a prática da medicina por razões meramente comerciais tem um motivo razoável: a relação de confiança existente entre as partes, não pode ser sobreposta pelo comércio da saúde. Nestes casos, imperam a relação de confiança entre médico e paciente e a atividade médica intrínseca, ou seja, o diagnóstico, prognóstico, procedimento técnico-terapêutico, a condução de determinado tratamento etc. E isso decorre dos princípios a que todos os profissionais médicos estão submetidos por força do seu Código de Ética Profissional, que assim como o Código de Defesa do Consumidor foi instituído através de Lei Federal. Mas esta limitação, não se dá apenas em razão da relação pessoal entre o médico e seu paciente, mas também pelas vedações e independência próprias da profissão do médico, que não podem ser submetidas às convenções comerciais e por conseqüência não admitindo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. 34 Não se fala aqui também, em distinção de forma quanto ao atendimento, pois independente da origem do paciente, seja em contrato particular ou por via de plano de saúde por exemplo, a atuação do médico será uma só. Seria uma explícita afronta ao código de ética médica o profissional de saúde atuar com conduta terapêutica diferenciada de acordo com o valor do contrato ou da origem do paciente. Neste sentido, em julgado em que o profissional liberal citado é um operador do direito, o Ministro César Asfor Rocha, do Superior Tribunal de Justiça, se manifestou com propriedade sobre o tema: PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE CONHECIMENTO PROPOSTA POR DETENTOR DE TÍTULO EXECUTIVO. ADMISSIBILIDADE. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. O detentor de título executivo extrajudicial tem interesse para cobrá-lo pela via ordinária, o que enseja até situação menos gravosa para o devedor, pois dispensada a penhora, além de sua defesa poder ser exercida com maior amplitude. Não há relação de consumo nos serviços prestados por advogados, seja por incidência de norma específica, no caso a Lei n° 8.906/94, seja por não ser atividade fornecida no mercado de consumo. As prerrogativas e obrigações impostas aos advogados - como, v. g., a necessidade de manter sua independência em qualquer circunstância e a vedação à captação de causas ou à utilização de agenciador (arts. 31/ § 1° e 34/III e IV, da Lei n° 8.906/94) - evidenciam natureza incompatível com a atividade de consumo. Recurso não conhecido. (REsp 532377/RJ, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 21/08/2003, DJ 13/10/2003 p. 373) Como visto, o Superior Tribunal de Justiça, em situação análoga, se manifestou pela não aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor em relação advogado-cliente, por entender que na espécie, a relação ali existente não configuraria relação de consumo. Da mesma forma se dá com o médico e seu paciente. Em trecho desta mesma decisão, o Excelentíssimo Ministro suscita a mesma tese ora defendida em relação aos médicos. Vejamos: [...] 02. Relativamente à alegada ofensa ao art. 3° do Código de Defesa do Consumidor, melhor sorte não socorre a recorrente. De fato, não há relação de consumo nos serviços prestados por advogados, seja por incidência de norma específica, no caso a Lei n° 8.906/94, seja por não ser atividade fornecida no mercado de consumo. Isto é, ainda que o exercício da nobre profissão de advogado possa importar, eventualmente e em certo aspecto, espécie do gênero prestação 35 de serviço, é ele regido por norma especial, que regula a relação entre cliente e advogado, além de dispor sobre os respectivos honorários, afastando a incidência de norma geral. De outra sorte, conforme explicitado pelo v. acórdão atacado, os serviços advocatícios não estão abrangidos pelo disposto no art. 3°, § 2°, do Código de Defesa do Consumidor, mesmo porque não se trata de atividade fornecida no mercado de consumo. As prerrogativas e obrigações impostas aos advogados - como, v. g., a necessidade de manter sua independência em qualquer circunstância e a vedação à captação de causas ou à utilização de agenciador (arts. 31, § 1°, e 34, III e IV, da Lei n° 8.906/94) evidenciam natureza incompatível com a atividade de consumo. Dessa forma, não configurada violação do mencionado dispositivo da Lei n° 8.078/90. (REsp 532377/RJ, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 21/08/2003, DJ 13/10/2003 p. 373) Esta decisão, portanto, demonstra entendimento avalizado sobre a inadequação da aplicação do Código de Defesa do Consumidor quando da relação havida entre médicos e seus pacientes, notadamente quando revestidas do caráter terapêutico. Mas essa não é a única contrariedade que se pode apontar. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, VI, veda ao prestador de serviço "executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvados os decorrentes de práticas anteriores entre as partes". Já o artigo 40 afirma que "o fornecedor de serviços será obrigado entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços". É evidente que o início e o término da prestação de serviços não podem ser cogitados numa atividade tão imprevisível como a medicina. No tocante à prévia elaboração de orçamento, não há o que estranhar, pois o próprio Código de Ética Médica, em seu artigo 90, diz textualmente que é vedado ao médico "deixar de ajustar previamente com o paciente o custo provável dos procedimentos propostos, quando solicitados". Caso venha o profissional executar serviços sem a elaboração orçamentária e autorização expressa ou tácita do usuário, em casos de não urgência ou emergência, tal descumprimento, poderá ser sancionado diretamente pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, assegurada ampla defesa, além da faculdade do paciente em buscar a justa reparação pelos atos equivocadamente praticados pelo médico. 36 4.2.2 A ausência de vulnerabilidade do paciente A doutrina, em sua tentativa de tornar mais didático e compreensível a abrangência do conceito de consumidor, já apresentado na Lei consumerista, extraiu de seu conteúdo, características inerentes à condição de consumidor. Neste sentido, parte da doutrina aponta a vulnerabilidade como uma dessas características, uma vez que nas relações comerciais os consumidores carecem, em regra, das mesmas condições de discernimento que o fornecedor, posto que essa seja uma das características comerciais: aquele que detém conhecimento, o oferece a outro por pagamento. Este conceito, presente no artigo 4º, I do Código de Defesa do Consumidor, dispõe: A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (...) Assim, podemos conceituar vulnerabilidade como sendo a ausência de conhecimentos específicos, do consumidor, em relação ao produto ou serviço prestado, ou ainda ao conhecimento dos direitos e mecanismos jurídicos para resolver problemas nas relações contratuais. Esta vulnerabilidade é a característica predominante quando tratamos da relação médico-paciente, no momento em que esta é desenvolvida pelo primeiro face ao segundo, para justificar que estamos diante de um consumidor recebendo a prestação de um serviço. Isto significaria dizer que em face da vulnerabilidade, o médico que recebe pagamento para prestar atendimento médico, atuaria em meio à uma relação de consumo, pois seu paciente pela falta de conhecimentos técnicos, não estaria em uma relação contratual paritária. O médico, porém, ao realizar um procedimento especializado, passa a estar sujeito à regras específicas de sua profissão, onde o fator comercial não pode exercer qualquer influência, sob pena de infração disciplinar. 37 Miguel Kfouri Neto28 afirma que: “De lege lata, por conseguinte, os médicos, enquanto profissionais liberais, não se sujeitam às normas do Código de Defesa do Consumidor, em relação aos atos terapêuticos”. Isso significa dizer que ao atender um paciente, diagnosticar seu problema de saúde, prescrever-lhe um remédio, fazer um procedimento cirúrgico, ou qualquer outro ato que signifique a aplicação de seus conhecimentos de técnica médica ao estado de saúde precário do paciente, não significará uma relação de consumo, mas relação ético-profissional, regido pelas normas de direito privado previstas no Código Civil. Apenas ilustrando a situação, a relação terapêutica entre o médico e seu paciente não pode ser limitada sob hipótese alguma pela falta de informações entre os pólos citados sob pena mais uma vez de infração ética. No capítulo sobre os Direitos Humanos do Código de Ética Médica, mais uma vez, encontramos entendimento que contrapõe o exercício da medicina com as regras comerciais e, por conseguinte, afastando do Código de Defesa do consumidor a competência para analisá-lo: Capítulo IV - Direitos Humanos É vedado ao médico: Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida.29 Mais uma vez o conceito de vulnerabilidade não pode ser aplicado à relação terapêutica entre médica, pois se tal situação ocorre, não é por força da ética relação entre médico e paciente, devendo ser reprimida e condenada no âmbito da própria corporação. Assim, a vida e a saúde não são meros bens de consumo. Não se pode admitir a comparação do atendimento médico com a venda de um produto exposto em uma vitrine. Também por este motivo, não podem ser vistos como relação de NETO, Miguel Kfouri Neto. Responsabilidade Civil do Médico. 6ª. edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 202 29 Resolução CFM nº 1.246/88, DE 08.01.88 28 38 consumo, aqueles serviços prestados no curso da relação terapêutica entre o médico e seu paciente, até porque nesta relação não são oferecidos bens de consumo, mas uma relação ética onde uma das partes se compromete a atuar com o melhor da sua capacitação para trazer melhora à outra. 4.2.3 O conflito legal com o Código Civil O Código de Defesa do Consumidor é uma Lei Principiológica, ou seja, nas palavras de Rizzatto Nunes, é: “[...] aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do Código de Defesa do Consumidor, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional”.30 Das palavras do doutrinador, inferimos que a Constituição Federal remeteu ao Código de Defesa do Consumidor todas as relações mercadológicas, havidas entre consumidor e fornecedor, ante a necessidade de interpretar o sistema jurídico brasileiro, a partir do disposto na Constituição Federal, o que colocaria o referido microssistema consumerista em realce diante do Código Civil. Neste tocante, corresponde a alicerçar esta parte do Direito Civil, ao chamado Direito Civil Constitucional, ora representado pela materialização trazida com o Código do Consumidor. Com isso, podemos entender que o sistema jurídico no Código de Defesa do Consumidor esvaziou todos os demais dispositivos legais no tocante às relações de consumo, notadamente o Código Civil. Mas cumpre notar que o Código Civil Brasileiro, foi promulgado em 2002, tendo sua vigência iniciado em janeiro de 2003, e, portanto, já adequado às diretrizes da Constituição Federal. NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 1ª. edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 66 30 39 Com a edição desta norma civil, o cotejo com o previsto na lei do consumidor torna indelével o conflito entre as normas: de um lado o Código do Consumidor, que trouxe a constituição para a prática da defesa das partes menos favorecidas em uma relação de consumo, fortalecendo o princípio jurídico do “Rebus Sic Stantibus” em detrimento do “pacta sunt servanda”, consagrado no Código Civil. São requisitos subjetivos a manifestação de vontades, a capacidade genérica e específica dos contraentes e o consentimento. Os requisitos objetivos são a licitude do objeto, a possibilidade física e jurídica, a determinação e a economicidade. E os formais são a forma legalmente exigida ou não vedada e a prova admissível. De maneira genérica tais requisitos são elencados no artigo 104 do Código Civil, segundo o qual a validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. Desde que atendidos esses pressupostos de validade, o contrato obriga as partes de forma quase absoluta, pois ainda há a possibilidade de eventos alheios à vontade das partes, estranhos à formação do contrato, e que importam exceções, onde o princípio do “rebus sic stantibus” é aplicado. Apesar das relações jurídicas no Código Civil compreenderem também a teoria da imprevisibilidade, inserta em razão do princípio da boa fé objetiva, é no Código de Defesa do Consumidor, que este princípio encontra sua mais acabada função. Além de dispor sobre as cláusulas abusivas, o Código do Consumidor traz no artigo 47 o princípio da interpretação pró-consumidor, pelo qual o ônus da dúvida recai sobre o predisponente. Aqui o bônus será sempre do aderente, no caso consumidor. Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor. A necessidade da revisão de cláusulas contratuais decorre do desequilíbrio entre os direitos das partes, tendo o Código de Defesa do Consumidor surgido com o objetivo de impedir que os abusos continuassem a se camuflar pela presumida intangibilidade da vontade contratual, o pacta sunt servanda. 40 Como visto, a relação de consumo em sua origem, busca de forma incondicional, reequilibrar relações que de outra forma, seriam prejudiciais à uma das partes, face sua incapacidade técnico financeira diante da outra. Complementando o que foi dito, Alberto do Amaral Júnior (19) assevera que: (...) o controle das cláusulas contratuais abusivas, tal como instituído pelo Código de Defesa do Consumidor, em absoluto se choca com o princípio da liberdade contratual, pela simples razão de que este princípio não pode ser invocado pela parte que se encontra em condições de exercer o monopólio de produção das cláusulas contratuais, a ponto de tornar difícil ou mesmo impossível a liberdade contratual do aderente. 31 Enfim, sempre que há manifesta desproporção entre a prestação e a contraprestação, o que se tem é uma onerosidade excessiva que a lei não permite seja suportada por uma parte em benefício do enriquecimento fácil da outra. Tecidas todas essas considerações sobre a relação de consumo, e o objetivo precípuo do código a agir em defesa da parte mais fraca da relação, surge o incontestado questionamento: o que levou o legislador a colocar no Código Civil de 2002, artigos regulatórios da relação entre médicos e seus pacientes? O Código Civil é posterior ao Código de Defesa do Consumidor e à própria Constituição Federal, e inquestionável é a sua aplicabilidade ao profissional da medicina, que no exercício de sua atividade profissional, causa dano ao paciente. O artigo 951 do Código Civil Brasileiro, afirma: Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.32 Evidente que outros profissionais de saúde estão insertos nesta regra, mas o médico, por definição da profissão, não lhe escaparia em nenhuma circunstância do seu atuar profissional, pois a relação então havida seria regulada pela norma acima citada. Comentando o artigo 951 do Código Civil, Maria Helena Diniz, afirma: AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor; 1ª ed., Saraiva, SP,1991, p. 184 32 DINIZ. Maria Helena. Código Civil Anotado. 11ª ed. ver. aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil, São Paulo : Saraiva, 2005. 31 41 O erro profissional poderá constituir ato ilícito. Por isso, a lei obriga médico, cirurgião, bioquímico, enfermeiro, farmacêutico, parteira e dentista a reparar dano patrimonial e/ou moral que, no exercício da profissão, resulte morte, agravação do mal, inabilitação ao trabalho, lesão corporal ou ferimento, em razão de imprudência, negligência (RT, 723:435) ou imperícia (RT, 785:237). O profissional da saúde tem responsabilidade civil subjetiva pelos danos causados a paciente, por ato comissivo ou omissivo que praticar no exercício de sua atividade, devendo pagar, conforme o caso, as indenizações previstas nos arts. 948,949, 950, por isso deverá atuar com zelo, esforçando-se para o bom êxito do tratamento, evitando empregar técnicas lesivas ou ultrapassadas ou ter conduta culposa que possa agravar o mal ou inabilitar o paciente para o trabalho. Deve agir com diligência e cuidado, empregando métodos de qualidade e seguindo as regras técnicas da profissão.33 Além das razões acima expostas, há outra de cunho formal a justificar a permanência da responsabilidade do médico, sob a influência do Código Civil, como é muito bem descrito por J. Miguel Lobato Gomes, em artigo veiculado na internet: Na verdade, as regras gerais sobre responsabilidade por prestação defeituosa de serviços aos consumidores estão incluídas em uma lei especial ou, se preferir, específica, como o CDC, porém não podem ser objeto de uma interpretação extensiva ou analógica que tenha como conseqüência derrogar uma disposição legal anterior expressa, clara e concreta, sobre a mesma matéria, ainda que esteja contida em uma lei de caráter geral como o Código Civil. Lembre-se que o efeito derrogatório da lei posterior sobre a lei anterior não se produz em bloco, senão só naquilo referido às normas anteriores contraditórias ou incompatíveis com as novas. Portanto, a lei nova, que estabelece disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior, a não ser que o declare expressamente, seja com ela incompatível ou regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (art. 2º da Lei de Introdução ao CC). Como o CDC não regula inteiramente a responsabilidade do médico, nem declara derrogado o artigo 1.545 do Código Civil, e como não existe incompatibilidade entre as regras gerais do CDC em matéria de responsabilidade por prestação de serviços defeituosos e a responsabilidade do médico estabelecida claramente na Lei civil, é muito razoável pensar que, ainda outra possa ser a opinião comum, a lei protetora dos consumidores não derroga o artigo 1.545 do velho Código Civil de 1916. Além disso, embora produzido tal efeito derrogatório, com a entrada em vigor do novo Código Civil de 2002, posteriormente ao CDC, fixa-se novamente, e de forma expressa, uma regra especial sobre a responsabilidade profissional do médico e dos outros profissionais da saúde no artigo 951. Portanto, caso estiver derrogado o velho artigo 1.545 pelo 33 Id.ibid., p.740 42 CDC, a responsabilidade civil do médico teria saído novamente do âmbito do direito específico do consumidor para retornar ao Código Civil. 34 O mesmo autor, com a lógica peculiar com que desenvolve seu raciocínio, complementa a idéia, demonstrando que o Código de Defesa do Consumidor, não traz nenhuma referência específica à atuação do profissional médico: Mas se por acaso isso não bastasse, até um observador pouco atento pode indicar outra importante razão formal que aconselha que a relação do medico com o paciente, particularmente a responsabilidade civil por mala pratica, fique fora do âmbito do CDC. Com efeito, é evidente que, por mais que o CDC regule com grande amplitude e generalidade a responsabilidade pela prestação de serviços, este diploma legal evitou qualquer referência expressa aos serviços médicos e hospitalares. O CDC não tem norma alguma que coloque a responsabilidade civil decorrente da prestação dos serviços médicos no âmbito da proteção dos consumidores, como, pelo contrario, tem norma expressa em relação com outros serviços de menor importância social, não mencionados no Código Civil, cuja inclusão no âmbito da proteção legal dos consumidores poderia gerar alguma duvida. Tal é o caso, por exemplo, dos serviços bancários, financeiros ou de crédito, ou, até mesmo, dos serviços securitários.35 De outro lado, o artigo 951 do Código Civil, trata especificamente das ações do profissional médico, e como bem atenta para o fato Mariana Massara Rodrigues de Oliveira: Assim, o novo Diploma Civil surge para regulamentar diversas situações referentes à responsabilidade civil, que vinham sendo tratadas de maneira não autorizada por uma lei vetusta, que já não mais atendia aos anseios de uma sociedade que se mostra inserida em contextos econômicos e sociais completamente diversificados daqueles vigentes nos séculos anteriores. 36 Assim, o profissional da medicina, por vontade expressa do legislador, está submetido às regras contidas no Código Civil. Isso significa dizer que se o GOMEZ, J. Miguel Lobato. A aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao contrato de serviços médicos e à responsabilidade civil dele decorrente.maio de 2004. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5507, acesso em 22.10.2007 35 Id. ibid. 36 OLIVEIRA, Mariana Massara Rodrigues de Oliveira. Responsabilidade Civil dos Médicos, 1ª edição, Curitiba: Editora Juruá, 2008, p. 45. 34 43 Código do Consumidor, norma principiológica que é, não abarca a relação do médico com seu paciente, esta não é relação de consumo, como anteriormente já foi amplamente debatido. A anterior análise do princípio da vulnerabilidade como sendo um dos responsáveis pela caracterização de uma pessoa – seja ela física ou jurídica – como consumidora, complementa o entendimento da legislação sobre o tema. O Código Civil, ao prever a responsabilização do médico, aponta a regra da responsabilidade subjetiva para sua comprovação visto que a relação entre o médico e seu paciente, não demanda desequilíbrio técnico ou financeiro apto a justificar que esta seja uma relação de consumo. Por este motivo, a flagrante contradição entre o Código de Defesa do Consumidor com o Código Civil, não é fruto de falha na concepção da lei, mas sim de uma opção legislativa de remeter as relações havidas entre médicos e seus pacientes à tutela do Código Civil e por conseguinte da forma processual disposta na regra geral do Código de Processo Civil. 44 5 CONCLUSÃO Conforme o exposto em todas as linhas anteriores, não há como duvidar que o entendimento predominante da doutrina e jurisprudência brasileira, acerca da aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação terapêutica entre médico e paciente, muito embora respeitável, deve ser problematizado com mais atenção pelos aplicadores do direito. Cotejadas todas as características da relação de consumo, ficou demonstrado que quase a totalidade da doutrina compreende a relação entre médico e paciente como uma relação de consumo, sendo o paciente consumidor dos serviços prestados pelos médicos, os quais têm sua figura de profissional liberal prevista no artigo 14 do Código do Consumidor. Tal relação, como vista, é tida quase que unanimemente como contratual, derivando daí a forçosa compreensão de que suas regras são afeitas à comercialização de serviços, onde a parte consumidora, é tida por mais fraca, ante sua vulnerabilidade técnica, diante do médico que lhe examina. Essa relação, independente da forma como se dá, seja através de um contrato direto, ou pela contratação de um plano de saúde, ou pelo uso de serviço público, ou ainda ante uma emergência ocorrida em plena rua, vincula o médico a uma prestação de serviços de meio, mas ainda assim – sustenta a maior parte de nossos doutrinadores – em uma relação de consumo. Apesar de tais considerações serem presentes em quase todos os textos sobre o tema, é inegável que, sob um olhar mais detalhado, tais asserções só ocorrem com base em uma única premissa, que empurra as demais como se a uma bola ladeira abaixo: O artigo 14, § 4º do Código de Defesa do Consumidor, prevê que a responsabilidade do profissional liberal será analisada sob o aspecto subjetivo, ou seja, mediante culpa. Por mais simples que pareça, se essa regra jurídica não fosse ali colocada, os argumentos utilizados para referendar a aplicabilidade do Código do Consumidor à relação entre médicos e pacientes, restariam bastante enfraquecidos, pois o sistema jurídico no qual se insere o código, não é adequado para analisar as questões oriundas desta relação. 45 Dessa forma, é preciso admitir que apenas a presença deste artigo no ordenamento pátrio, é responsável pelo problema que vem sendo trazido à defesa do profissional médico. Em primeiro lugar, temos que a relação terapêutica entre o médico e seu paciente ocorre em uma esfera de relação em que não há espaço para a sujeição de uma parte à outra. Ao paciente não é dado o direito de impor ao médico conduta que considere a mais apropriada, visto que este é o detentor da responsabilidade técnica pelo tratamento desenvolvido. O paciente pode, e deve, questionar, opinar e obter o compromisso do médico que tudo será feito conforme discutido entre as partes. Já ao médico é também vedado obrigar o paciente a qualquer tratamento que não seja de sua vontade, interesse e discricionariedade. O médico é ainda obrigado pelas regras de sua profissão, a manter o paciente o mais informado possível e sempre ciente das circunstâncias que cercam seu caso. A omissão, antes de ser uma quebra contratual, é um desvio ético, repreensível pelo Código de Ética Médica e da qual o profissional não pode se afastar. Poderia se argumentar que, ainda assim, o paciente é vulnerável na relação, mas como visto anteriormente, não é este o caso. A falta de conhecimento técnico acerca de sua condição de saúde, nos dias atuais, não pode ser invocada ante a quantidade de informações acessíveis a quem as busca, além da possibilidade de o paciente poder a qualquer tempo exigir do profissional de saúde que lhe preste todo e qualquer esclarecimento que julgue devido, para que possa inclusive, decidir pela continuidade do tratamento com este profissional. Entre os fatores que corroboram este entendimento, está a obrigatoriedade de o médico fornecer mediante solicitação do paciente, o prontuário onde o acompanhamento está sendo realizado, o que em última análise demonstra que o paciente é o verdadeiro proprietário dessas informações. As investigações da conduta médica, realizadas nos conselhos regionais de medicina, demonstram também a submissão do médico às regras de conduta de sua profissão, inclusive a que veda a publicidade. Assim, uma vez submetido a regras éticas e de conduta, com inúmeras vedações e restrições passíveis de punição em caso de descumprimento, o médico diante de seu paciente não pode ser equiparado a um comerciante, e a relação 46 havida entre ambos não pode ser tida como desequilibrada, colocando-se o paciente como parte fragilizada. O segundo argumento que aponta em sentido contrário ao exposto na doutrina é a própria natureza da relação médico-paciente, uma vez que nem o médico é fornecedor de serviços em sentido estrito, abarcado pelo Código consumerista, nem o paciente pode ser tido como consumidor, pois a sua condição na relação não ocupa posição tão desvantajosa. O médico, ao atender um paciente, formaliza um contrato de prestação de serviços, que, ressalvadas as posições em contrário, vincula sua conduta ao resultado que dela se espera, ou seja, o emprego das técnicas e esforços mais adequados e que estejam ao alcance do profissional, para diminuir ou cessar o problema de saúde porque está passando o paciente. Nesta condição, o médico não tem a escolha que é dada ao prestador stricto sensu, que se submete ao Código do Consumidor. Ao médico só é dado o direito de não atender um paciente, na eventualidade de ocorrer um conflito pessoal que lhe impeça de manter a relação de confiança com o paciente. Como se viu, a relação de confiança, a relação intuito personae, é a pedra fundamental da relação entre um médico e seu paciente. Por ser uma relação de confiança, em que as partes estão em igualdade de condições para exigir e cobrar o cumprimento do acordado, sob pena de imediato distrato, não há como aplicar uma norma, que, em sua essência, busca equilibrar a relação entre partes desiguais, que na maioria das vezes sequer têm contato pessoal específico, ou seja, onde a relação se dá de forma massiva e automática, sem discussão prévia ou ajustes legais para realização do contrato. Por outro lado, o paciente também não pode em hipótese alguma ser confundido com o consumidor defendido pelo Código Consumerista. Se assim fosse, seria preciso admitir a fragilidade do paciente, a ponto de ver interrompida a prestação de serviços, mediante o interesse unilateral do profissional, sem que isso gerasse obrigação maior que a da multa contratual, que em regra inexiste para os fornecedores abarcados pelo Código do Consumidor. Relação de consumo pressupõe a impessoalidade, a impossibilidade de negociar, a submissão às regras de mercado e, por fim, às condições de desequilíbrio técnico financeiro que levem a parte mais forte, a utilizar desta condição para tirar vantagem sobre o mais fraco. Em suma, o Código do 47 Consumidor foi criado para fazer valer o principio da dignidade humana trazido na Constituição de 1988. A relação médico paciente passa longe de todas essas características, pois como visto tal relação é pessoalíssima e baseada na confiança; ao médico é vedado agir em dissonância com seu código de ética e portanto fazer uso do seu conhecimento para agir dentro de regras comerciais de mercado, o que torna inaceitável a categorização desta relação nos moldes do preconizado pelo Código do consumidor. Por fim, temos o verdadeiro conflito instalado pela legislação, quanto à responsabilização do médico por falha em sua atuação profissional. O Código do Consumidor em seu artigo 14, § 4º, inclui os profissionais liberais entre os prestadores de serviços abarcados por suas normas. Todavia não faz qualquer menção específica sobre as categorias de profissionais liberais citados, o que leva à compreensão de que todos os que atuam nesta condição, estão submetidos à sua norma. Isso leva ao início desta conclusão, em que foi apontado que o único argumento que justifica a conceituação da relação médico-paciente como sendo relação de consumo é o próprio artigo acima referido. Se considerarmos este um artigo genérico, em que a aplicabilidade se resume aos casos não abarcados por outra norma jurídica, facilmente deslocaremos a relação havida entre médicos e seus pacientes, para o contexto do Código Civil, que apropriadamente regula as relações nos contratos paritários e intuitu personae. Como já dito, a relação consumerista tem, entre suas características, a responsabilização objetiva; a impessoalidade na relação; a falta de sinalagma; os contratos de massa; a busca de proteção à parte mais fraca da relação; e a regulação do mercado, retirando força dos mais poderosos economicamente na hora de contratar. Nenhuma dessas características se aplica ao contrato entre médico e paciente. Além dessa constatação, temos que o Código Civil, ao contrário do Código do Consumidor, traz dispositivos que regem especificamente a relação entre os médicos – profissionais de saúde, em geral – e seus pacientes. 48 O artigo 951 é a mais acabada comprovação de que o Código Civil, por absoluta vontade do legislador, arrasta para si a competência para aplicação das normas, às ações dos médicos. Some-se a isso o fato de que o Código Civil é de edição posterior ao código consumerista, o que remete ao entendimento de que aquele, e não este Código, é o escolhido para regular juridicamente as relações entre médicos e seus pacientes. Por fim, resta a constatação de que o Código do Consumidor, respeitada sua enorme importância para a regulação das relações sociais atuais, em que grandes corporações e empresas, sobrepõem sua força a favor do consumidor que por meio de tal norma pode fazer para se defender, ainda assim não pode ser indiscriminadamente utilizado para toda e qualquer relação contratual, sob pena de desequilibrar as relações mais pessoais e revestidas de paridade em seu nascimento. A relação contratual firmada entre o médico e seus pacientes, deve ser respeitada como paritária, sob pena de prejuízos crescentes à defesa e garantias dos profissionais médicos, pois apesar de a lei civil e o Código do Consumidor não trazerem grandes variações na sua aplicação, a forma pela qual ambas são aplicadas, diferem profundamente, sendo as regras processuais do Código do Consumidor, muito mais amplas que as previstas no Código de Processo Civil, tornando a defesa do médico em juízo, mais complexa e difícil, como por exemplo no caso do decurso temporal, onde as ações praticadas são passíveis de responsabilização por um prazo mais longo. Nos diversos pontos abordados neste trabalho, ficou demonstrado que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos casos de responsabilidade civil decorrentes da relação médico paciente é penalizadora do profissional de saúde, por exigir deste maior dispêndio de energia e tempo para a defesa, bem como contém impropriedades técnico-jurídicas que levam ao entendimento mais adequado de que é o Código Civil, a norma jurídica mais adequada para a regulação das relações entre médicos e pacientes. 49 6 REFERÊNCIAS Código de Ética Médica, Resolução CFM 1246/88, de 08.01.88 AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor; 1ª ed., Saraiva, SP,1991 DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. O exercício da medicina e o Código de Defesa do Consumidor – Aspectos atuais do direito brasileiro e espanhol. Texto extraído do sítio http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3902 FERNANDES, Daniela Bacellar. 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