Eles renunciaram ao ilusório conforto das metrópoles e embrenharam sua sensibilidade em regiões à margem das luzes mais imediatas, um pouco distantes do sucesso fácil, preferindo olhar para dentro que olhar para fora. E olhando para dentro, encontraram um Brasil diferente, de lendas e mitos, de culturas seculares, ao mesmo tempo pequeno e gigantesco, preocupado com as venturas do ser em conformidade com a natureza. Eles, Marlui Miranda e Humberto Espíndola, cada qual em sua arte, insistindo sempre, a exemplo de outros artistas que trilham caminhos, paralelos. Marlui, que veio do Ceará, passou pelo jazz e bossa nova, e hoje desenvolve Intenso trabalho musical calcado nas verdades da terra, como aquela Madeira-Mamoré que sepulta em cada dormente uma vida, a MadeiraMamoré de "Revivencia", seu novo disco. Espíndola, do Mato Grosso, que já. realizou uma vanguarda deliberada e hoje descobriu a pintura, atuando em sua terra natal, ao lado da cultura do boi que pasta em seus quadros, a exemplo daqueles que expôs recentemente em São Paulo e dos que mostrará em Porto Alegre, em setembro. Já se disse que o universal está na aldeia, Marlui Miranda e Humberto Espíndola entendem assim, procuram o mundo através do regional, pois entendem que tudo está no homem, no homem-amazônico, no homem-boi. Porém, perseverar numa linha de trabalho implica muitas vezes em uma certa marginalidade, como se a fidelidade ao eu significasse um atentado à ordem estética definida. Mas é isso mesmo? Marlui e Espíndola falam de seu trabalho... O BOI E SEU AUTOR: HUMBERTO ESPÍNDOLA Jornal O Estado de São Paulo - São Paulo / SP – 21 de agosto de 1983 Por Federico Mengozzi Humberto Espíndola, artista do boi. Uma definição temerária, que pode ou não agradar, dependendo das relações que se estabelecem entre o criador e seu tema. É, Espíndola não aceita o cárcere de artista do boi enquanto elemento concreto, matéria-prima para o almoço, item importante na pauta de exportações. O boi é só isso? Não. E tanto não é, que um outro lado do boi preenche as telas do pintor — mais pintor do que nunca —, o animal que vai além da carcaça bovina e se torna o símbolo de uma cultura, participante de um universo filosófico, em harmonia total com a natureza. "Ele é um motivo recorrente na história da arte, sempre ligado a terra, símbolo da ecologia, um animal em meditação transcendental. Sem ele, o homem não teria perdido sua condição de nômade, não se fixaria ao solo. Ele é a força que arroteia o chão duro, que multiplica a capacidade de trabalho de quem o conduz. Antes de um artista do boi, sou um pesquisador de sua cultura, que acho da maior importância. E essa preocupação vai para a tela, com todas as correlações que surgem. Existe uma civilização do boi. Em nome dela posso — e tenho a intenção de ser — até aceitar a definição: artista do boi”. Como o animal está em sua pauta artística, como não se sente repetitivo, como sempre aparece alguma coisa nova, Espíndola pinta. Ele veio a São Paulo e expôs na Paulo Figueiredo Galeria de Arte. Ele irá a Porto Alegre e exporá na galeria Modus Vivendi, a partir de 13 de setembro. Depois, como sempre acontece, retornará a seu chão, à Campo Grande onde nasceu — onde mora —, Mato Grosso do Sul, terra da bovinocultura. O espaço para suas investigações, para suas realizações e iniciativas, já que Espíndola e sua mulher, Aline Figueiredo, desenvolvem intensa atividade cultural, defendendo a descentralização da arte brasileira Durante dez anos atua ram juntos na Universidade de Cuiabá, uma entidade educacional da região para a região, uma universidade da selva, como explica. Plantaram. Os frutos estão surgindo na figura de jovens artistas que já caminham por si. A universidade cresceu muito, o trabalho se tornava cada vez mais quixotesco, sem apoio. A missão estava cumprida e eles retornaram a Campo Grande, para trabalhar. O projeto é ambicioso: transformar uma cocheira num espaço cultural de 2.800 metros quadrados, abrigando a Humberto Espíndola & Aline Figueiredo Casa de Arte e o Centro de Referência Cultural de Mato Grosso do Sul, com sala de exposições, ateliê livre, carpintaria, para atividades visuais e até mesmo musicais. A inauguração será em novembro e atenderá à necessidade premente da cidade, carente de instalações culturais. Como a atividade desenvolvida em Cuiabá, um trabalho de abertura, estimulando a participação de outros setores, privados ou públicos. Mas além das exterioridades de um animador cultural, o que se esconde? No caso de Espíndola, o artista inquieto, que formou com a vanguarda do final da década de 60 e inícios de 70, que viu o tempo passar e se descobriu pintor. "Comecei há 16 anos e passei por diversas abordagens do ofício artístico. No final dos anos 60, ignorava a tela e falava do boi-dinheiro, criticava, denunciava. Acusava o poder econômico e político. Depois de tanto experimentalismo, tantos ismos, a pintura me parece vitoriosa, marcando também o amadurecimento da técnica, da plástica. Fui-me tornando cada vez mais apto para a pintura, mais expressionista e ainda afinado com a vanguarda. Afinal, a pintura e o expressionismo não estão voltando com força total? Porém, cheguei a esse estágio através de um processo particular. E depois de outras fases retorno ao boi, mostro outros ângulos de sua presença milenar." Nos últimos anos, Espíndola começou a se interessar pelo pensamento oriental, percebeu a penetração desse pensamento no Ocidente, povoou suas obras com um animal zen, o boi. Telas de grande formato, alternando tons claros e escuros, o boi preso num pavilhão imaginário, a padronização da arte dos índios kadiwéu, remanescentes dos cavaleiros guaicurus, pioneiros do pastoreio no Mato Grosso. Por trás da inspiração, o trabalho intelectual, ambos caminhando em trilhas próprias, sem que um atrapalhe o outro. "Minha curiosidade em torno das coisas da bovinocultura não tira a espontaneidade do ato de pintar, que é sobretudo gesto, formas e símbolos compondo-se. Eu me solto e procuro passar à tela somente a emoção, a sensibilidade, de tal maneira que o espectador possa também captá-la, sentir que além da mera representação está a própria vida." Todos reagem assim? Alguns. Outros não, enxergam apenas o boi-boi, um animal que, ainda que pintado, poderia ser uma ameaça à higiene de suas salas. "O mercado de arte está preso a um certo ascetismo. As pessoas estão a fim de curtir um trabalho geométrico, que não incomoda. Para essas pessoas, acostumadas a coisas suaves, meus bois são agressivos, incomodam. Mas eu luto por eles, entendendo que uma obra tem de circular, chegar às pessoas." O público natural da arte de Humberto Espíndola é o pecuarista, o homem do boi. Para promover esse encontro e romper um certo conformismo estético, em 1982, durante a exposição agropecuária de Campo Grande, Espíndola colocou o público do boi diante da pintura do boi, experiência que depois se transportou para sua obra. Já se foram os tempos em que ele se preocupava apenas com o boi de corte, ao qual prestou homenagem na Bienal de São Paulo de 1971, com grande repercussão junto ao público e à crítica. "No momento, não é essa a minha preocupação. Agora busco o boi e a filosofia, uma pintura de valores plásticos universais, a consciência do que seja uma boa pintura. O aprofundamento na bovinocultura — não se pode esquecer que ele esteve presente em todos os ciclos econômicos brasileiros — só poderá resultar num melhor arquivo de símbolos, mais recurso de associações. E é tanto o meu interesse que vou à índia para entender o seu mito, por que ele é sagrado, a razão dessa presença religiosa. Enquanto eu tiver algo a desvendar sobre o boi, estarei fazendo isso, fiel à criança de Campo Grande que via passarem boiadas, percebia que tudo girava em torno de pecuária, até hoje com amigos que trabalham nesse ramo." Humberto Espíndola não está distante do que se passa nas metrópoles, não se pode confundir opção pela cultura regional com ausência do movimento artístico contemporâneo. Está sintonizado, sabe o que está acontecendo. O que já realizou, não pretende repetir, embora o depois seja muitas vezes uma reflexão sobre o antes, o amanhã saltando do ontem. Como artista, assimila ou não os elementos que o cercam. "Uma idéia nasce de outra. A invenção é fruto da reflexão. Atualmente, penso na polemica que gira em torno á raça bovina, o zebu e o nelore de carne rosa. Em arte, quero o regional indo ao mundo, ao universo, em consonância com a inquietação que caracteriza o ser humano." O boi filósofo, a exemplo de Guimarães Rosa na literatura, encontrou um novo autor.