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DA IMPOSSIBILIDADE DA EQUIPARAÇÃO DO RELACIONAMENTO
HOMOSSEXUAL À UNIÃO ESTÁVEL.
Pedro Fernandes Dubois Mendes
Acadêmico do 5º ano de Direito da Unifacs
Antes de adentrar-se ao cerne da questão, é preciso que se rememore algumas
premissas básicas do Direito, construídas ao longo dos séculos, sem as quais este
não deveria ser levado a sério como ramo científico que é.
Em primeiro lugar, é sabido, por parte de todos os operadores do Direito, que o
Poder Constituinte Originário, juridicamente, pode tudo, absolutamente tudo –
inclusive discriminar. Não há limites jurídicos para essa “manifestação da suprema
vontade política de um povo”1, povo este titular de tal Poder, o qual decorre da
soberania popular formadora dos Estados em sua concepção moderna.
Repetindo à saciedade, o Poder Constituinte Originário, criador da constituição de
um novo Estado, apresenta as características de incondicionado e ilimitado. A
esse propósito, faz-se mister trazer à colação as lições do ilustre Alexandre de
Moraes, que preconiza, in verbis:
O Poder Constituinte caracteriza-se por ser inicial, ilimitado, autônomo e
incondicionado. O Poder Constituinte é inicial, pois sua obra – a
Constituição –, é a base da ordem jurídica. O Poder Constituinte é
ilimitado e autônomo, pois não está de modo algum limitado pelo direito
anterior, não tendo que respeitar os limites postos pelo direito positivo
antecessor. O Poder Constituinte também é incondicionado, pois não
está sujeito a qualquer norma prefixada para manifestar sua vontade;
não tem ela que seguir qualquer procedimento determinado para realizar
sua obra de constitucionalização2.
J.J. Gomes Canotilho, citado pelo referido autor, chega até mesmo a atribuir o
“poder divino” da onipotência jurídica ao Legislador Constituinte Originário, nos
seguintes termos:
O poder constituinte, na teoria de Sieyés, seria um poder inicial,
autônomo e omnipotente. É inicial porque não existe, antes dele, nem de
1
2
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.54.
Idem, ibidem. p.56.
facto nem de direito, qualquer outro poder. É nele que se situa, por
excelência, a vontade do soberano (instância jurídico-política dotada de
autoridade suprema). É um poder autônomo: a ele e só a ele compete
decidir se, como e quando, deve ‘dar-se’ uma constituição à Nação. É
um poder omnipotente, incondicionado: o poder constituinte não está
subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo3.
Concluindo-se, portanto, ser um Poder que não conhece limitações, qualquer
discriminação por ele imposta é juridicamente válida.
Releva destacar, ainda, que, não obstante a obra de Otto Bachof, não há norma
constitucional inconstitucional, se esta advém do Constituinte Originário. Nesse
passo, é de todo oportuno, mais uma vez, transcrever o entendimento do
renomado Alexandre de Moraes, ad litteram:
O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar a incondicional
superioridade normativa da Constituição Federal, portanto, não adota a
teoria
alemã
das
normas
constitucionais
inconstitucionais
(verfassungswidrige Verfassungsnormem), que possibilita a declaração
de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas por
incompatíveis com os princípios constitucionais não escritos e os
postulados da justiça (Grundentscheidungen). Assim, não haverá
possibilidade de declaração de normas constitucionais originárias como
inconstitucionais4.
Dessa forma, não se vislumbrando a possibilidade de norma constitucional
inconstitucional, qualquer norma originária da Lex Legum deve ser interpretada
dentro de um sistema que se pretende harmônico e coerente – sendo, dessarte,
defeso que se expurgue qualquer parte texto normativo inicial.
Secundus, ao contrário do que possa parecer (e do que, muitas vezes, é
erroneamente ensinado na academia), sobreleva pontuar que, diante do confronto
entre uma norma-regra e uma norma-princípio, deve prevalecer a primeira sobre a
segunda, desde que tais regras sejam de mesma hierarquia.
Sobre tal aspecto, merece ser trazido à baila o magistério do ínclito Humberto
Ávila:
Como já mencionado, as regras possuem uma rigidez maior, na medida
em que a sua superação só é admissível se houver razões
suficientemente fortes para tanto, quer na própria finalidade subjacente à
regra, quer nos princípios superiores a ela.
3
4
Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p.94.
Direito ... Op. Cit. p. 610.
[...]
Esse é o motivo pelo qual, se houver um conflito real entre um princípio
e uma regra de mesmo nível hierárquico, deverá prevalecer a regra e,
não, o princípio, dada a função decisiva que qualifica a primeira. A regra
consiste numa espécie de decisão parlamentar preliminar acerca de um
conflito de interesses e, por isso mesmo, deve prevalecer em caso de
conflito com uma norma imediatamente complementar, como é o caso
dos princípios.
[...]
A esse respeito, convém registrar a importância de rever a concepção
largamente difundida na doutrina juspublicista no sentido de que a
violação de um princípio seria muito mais grave do que a transgressão
de uma regra, pois implicaria violar vários comandos e subverter valores
fundamentais do sistema jurídico. Essa concepção parte de dois
pressupostos: primeiro, de que um princípio vale mais do que uma regra,
quando, na verdade, eles possuem diferentes funções e finalidades;
segundo, de que a regra não incorpora valores, quando, em verdade, ela
os cristaliza. Além disso, a idéia subjacente de reprovabilidade deve ser
repensada. Como as regras possuem um caráter descritivo imediato, o
conteúdo do seu comando é muito mais inteligível do que o comando
dos princípios, cujo caráter imediato é apenas a realização de
determinado estado de coisas. Sendo assim, mais reprovável é
descumprir aquilo que “se sabia” dever cumprir. Quanto maior for o grau
de conhecimento prévio do dever, tanto maior a reprovabilidade da
transgressão. De outro turno, é mais reprovável violar a concretização
definitória do valor na regra do que o valor pendente de definição e
complementação de outros, como ocorre no caso dos princípios.
Como se vê, a reprovabilidade deve estar associada, em primeiro lugar,
ao grau de conhecimento do comando e, em segundo lugar, ao grau de
pretensão de pretensão de decidibilidade. Ora, no caso das regras, o
grau de conhecimento do dever a ser cumprido é muito maior do que
aquele presente no caso dos princípios, devido ao caráter
imediatamente descritivo e comportamental das regras. Veja-se que
conhecer o conteúdo da norma que se deve cumprir é algo valorizado
pelo próprio ordenamento jurídico por meio dos princípios da legalidade
e da publicidade, por exemplo. Descumprir o que se sabe dever cumprir
é mais grave do que descumprir uma norma cujo conteúdo ainda carecia
de maior complementação. Ou dito diretamente: descumprir uma regra é
mais grave do que descumprir um princípio5.
Dessume-se, pois, que as regras, por terem um caráter descritivo-imediato, têm
primazia na aplicação quando confrontadas com um princípio – norma de caráter
eminentemente valorativo-finalístico, com função de complementaridade, e que
busca um estado ideal de coisas. Se o princípio tem hierarquia superior à
determinada regra, obviamente este “vence” o conflito. Contudo, tratando-se de
igual patamar hierárquico, a regra subjuga o princípio.
5
Teoria dos princípios. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.83 e 84.
Por derradeiro, não se olvide que a melhor técnica de hermenêutica pugna pela
inexistência de palavras inúteis nos textos legais. Nessa linha de intelecção,
propugna Carlos Maximiliano:
Verba cum effectu, sunt accipienda: Não se presumem, na lei, palavras
inúteis. Literalmente: Devem-se compreender as palavras como tendo
alguma eficácia.
As expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem
frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis.
Pode uma palavra ter mais de um sentido e ser apurado o adaptável à
espécie, por meio do exame do contexto ou por outro processo; porém a
verdade é que sempre se deve atribuir a cada uma a sua razão de ser, o
seu papel, o seu significado, a sua contribuição para precisar o alcance
da regra positiva. Este conceito tanto se aplica ao Direito escrito, como
aos atos jurídicos em geral, sobretudo aos contratos, que são leis entre
as partes.
Dá-se valor a todos os vocábulos e, principalmente, a todas as frases,
para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este dever deve ser
entendido de modo que tenham efeito todas as suas provisões,
nenhuma parte resulte inoperativa ou supérflua, nula ou sem significação
alguma6.
Dito isso, passa-se ao exame da questão em si.
À míngua de legislação que os ampare de forma específica, os que militam em
favor da possibilidade de equiparação da união homossexual à união estável
invocam a aplicação de princípios constitucionais. Há, inclusive, diversos julgados
nesse sentido, como, verbi gratia:
AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL.
CASAL HOMOSSEXUAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS.
CABIMENTO. A ação declaratória é o instrumento jurídico adequado
para reconhecimento da existência de união estável entre parceria
homoerótica, desde que afirmados e provados os pressupostos próprios
daquela entidade familiar. A sociedade moderna, mercê da evolução dos
costumes e apanágio das decisões judiciais, sintoniza com a intenção
dos casais homoafetivos em abandonar os nichos da segregação e
repúdio, em busca da normalização de seu estado e igualdade às
parelhas matrimoniadas. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS,
POR MAIORIA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Embargos Infringentes Nº
70011120573, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 10/06/2005).
Não é o entendimento juridicamente mais acertado, conforme sobejará explicitado
doravante.
Com efeito, dispõe a Lei Maior:
6
Hermenêutica a Aplicação do Direito. 16.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p.250.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar
a sua conversão em casamento.
[...]
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
O Constituinte, nesse particular, apenas reconheceu a união estável entre o
homem e a mulher. Por qualquer motivo, a união homossexual não foi alçada à
condição de base da sociedade, sendo, portanto, requisito indispensável à
caracterização da entidade familiar, na modalidade união estável, a diversidade de
sexos.
Caso o Legislador Constituinte admitisse a possibilidade de se reconhecer como
união estável também a união homossexual, certamente não teria restringido
expressamente àquela união entre homem e mulher, nem recomendaria sua
conversão em casamento7. Admitir-se o contrário traduz vício de insanável
inconstitucionalidade.
Não há palavras inúteis na lei (Verba cum effectu, sunt accipienda). Aceitar a
união estável entre pessoas do mesmo sexo implica emprestar absoluta
inutilidade, completa ineficácia à expressão “entre o homem e a mulher”. A
acepção contrária, consoante já visto anteriormente, atenta contra princípios
básicos de hermenêutica, devendo ser enjeitada.
A equiparação não foi vontade do Constituinte Originário (que representa a
soberania popular) e, igualmente, ainda não é anseio do povo, pois, se fosse, já
haveria emenda constitucional alterando o dispositivo – uma vez que, em tese, a
representação da vontade popular encontra-se no Congresso Nacional, encarnada
nos parlamentares eleitos.
E nem se invoque os princípios da igualdade, dignidade, fraternidade, pluralidade
etc. para perfilhar a possibilidade da equiparação à união estável.
7
Nesse sentido, Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves nos autos dos Embargos
Infringentes nº 70011120573 do Tribunal de Justiça de do Rio Grande do Sul.
O Constituinte Originário, mesmo estabelecendo o princípio da igualdade, pode
discriminar como bem quiser, uma vez que este concentrou em suas mãos
absoluto poder. Em outras palavras, em que pese a dignidade e a igualdade, o
Constituinte pode se excepcionar, visto que, calha repetir, Ele pode tudo –
juridicamente falando.
Exempli gratia, o Constituinte negou o direito à vida (apesar de este ser
considerado por muitos como um sobreprincípio) quando positivou a possibilidade
de pena de morte em tempos de guerra8. Trata-se de uma exceção estabelecida
pelo mesmo que consagrou o direito à vida (e vida digna). Nem por isso tem-se a
pena de morte como inconstitucional.
O princípio do direito à vida não é capaz de prevalecer sobre a regra específica da
pena de morte. Da mesma forma, não é inconstitucional o fato de o Constituinte
ter excepcionado e discriminado no sentido de que a união homossexual não pode
ser considerada união estável. Primus, frise-se, por ter absoluto poder, e, em
segundo lugar, por não haver norma constitucional inconstitucional, se originária.
Por último, repita-se à exaustão, não se pode invocar argumentos de ordem
principiológica para negar o acima exposto. As normas-regra de mesma hierarquia
prevalecem sobre as normas-princípio, conforme observado alhures. In casu, o
dispositivo que define a união estável como aquela formada por homem e mulher
(art. 226, § 3º da Lex Fundamentallis) mais se aproxima de uma regra do que de
um princípio, por sua maior especificidade. Assim, um princípio, ainda que seja o
da dignidade da pessoa humana, não tem o condão de invalidar o referido artigo.
Somente poderia prevalecer o princípio se a regra fosse de hierarquia inferior (ou
seja, infraconstitucional), o que não ocorre na espécie.
Rasgar a expressão “entre o homem e uma mulher” utilizando como pretexto o
princípio da dignidade da pessoa humana, ou qualquer outro princípio, é o mesmo
que, absurdamente, admitir uma norma constitucional inconstitucional! Pois, se
“entre o homem e a mulher” não quer dizer que a união estável é restrita aos
heterossexuais, que função teria no texto mencionado? Nenhuma. Se deve ser
8
Art. 5º, XLVII, a.
atribuída alguma eficácia à referida expressão, a única possibilidade plausível é
que a Constituição, felizmente para uns e infelizmente para outros, reservou a
união estável apenas aos heterossexuais.
Nesse contexto, é altamente ilustrativo transcrever a respeitável ementa da
judiciosa decisão proferida pelo STJ:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE
SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. HOMOLOGAÇÃO DE
ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE
UMA
DAS
PARTES.
GUARDA
E
RESPONSABILIDADE.
IRRELEVÂNCIA.
1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a
dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não
existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode
configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos
econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com
incidência do Direito das Obrigações.
2. A existência de filho de uma das integrantes da sociedade
amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o
âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e responsabilidade
pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o
termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele munus,
sem questionamento por parte dos familiares.
3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados - arts. 1º e
9º da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à
vara de família.
4. Recurso especial não conhecido.
Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: RESP RECURSO ESPECIAL – 502995 Processo: 200201745035 UF: RN
Órgão Julgador: QUARTA TURMA Data da decisão: 26/04/2005
Documento: STJ000611158
Ex positis¸ infere-se que a equiparação da união homossexual à união estável é
impossível de acordo com a ordem jurídica atual, sendo necessário emenda à
Constituição para que se permita o contrário. Hodiernamente permanece, pois, a
diversidade de sexos como condição de existência para tanto. Em arremate,
assevera-se que a família, como base da sociedade (art. 226, caput, CF88), não
pode se apartar da estrutura formal concebida pelo Legislador Constituinte.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Embargos
Infringentes nº 70011120573. Quarto grupo de câmaras cíveis, Relator Des. José
Carlos Teixeira Giorgis, DJ de 10/06/2005. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>.
Acesso em: 12.ago.2006.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 502995. Quarta
Turma, processo nº 200201745035 RN, documento nº STJ000611158, DJ de
26/04/2005. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 12.ago.2006.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica a Aplicação do Direito. 16.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1996.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2003.
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