1 UFRJ - Centro de Ciências da Saúde Faculdade de Medicina

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UFRJ - Centro de Ciências da Saúde
Faculdade de Medicina
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal
Disciplina: Psicologia Médica
O MÉDICO, SEU PACIENTE E A DOENÇA – MICHAEL BALINT
1ª parte
Durante vários anos organizou-se na Clínica Tavistock seminários de pesquisa
destinados a estudar as implicações psicológicas na prática médica. Aconteceu que o
primeiro tópico escolhido como tema de discussão em um desses seminários foi o de
substâncias que habitualmente são prescritas pelos clínicos gerais. A discussão revelou
rapidamente - com certeza não é a primeira vez que isso ocorre na história da medicina que a droga mais freqüentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico, isso é, que
não apenas importavam o frasco de remédio ou a caixa de pílulas, mas o modo como o
médico os oferecia ao paciente - em suma toda a atmosfera na qual a substância era
administrada e recebida.
No momento, esse fato nos pareceu uma descoberta muito importante e todos nós
sentimos orgulhosos e valorosos frente à idéia. Entretanto, o seminário percebeu desde logo
que ainda não existe nenhum tipo de farmacologia a respeito de tão importante substância.
Para descrever esta segunda descoberta em termos familiares aos médicos, em nenhum
tipo de manual se encontrarão referências quanto a em que dosagem o médico deve
prescrever a si mesmo, em que apresentação e posologia, qual suas doses de cura e
manutenção, etc. Ainda mais inquietante é a falta de literatura sobre os possíveis riscos
deste tipo de medicação, sobre as diversas condições alérgicas observadas em pacientes
diferentes, as quais devem ser cuidadosamente observadas, ou sobre os efeitos
secundários indesejáveis da substância. Na realidade, a escassez de informação sobre esta
substância, a de emprego mais freqüente, é desconcertante e inquietante, sobretudo
quando se considera a riqueza de informação disponível em torno de outros medicamentos,
mesmo aqueles que acabam de ser incorporados à prática clínica. Responde-se geralmente
que a experiência e o senso comum ajudarão ao médico a adquirir a habilidade necessária
para receitar-se a si mesmo. A insuficiência deste reconfortante auto conselho resulta
evidente quando se o compara com as detalhadas instruções baseadas em experiências
cuidadosamente controladas que acompanham a introdução de cada nova droga na prática
clínica.
Quando o seminário percebeu tão inquietante estado de coisas, nossa atitude mudou
e decidimos imediatamente que um dos objetivos – talvez o principal – de nossa
investigação seria começar a elaboração desta nova farmacologia.
A importância de um estudo desta natureza é talvez muito maior hoje que em
qualquer período anterior; porém a razão de que assim seja apenas em parte se relaciona
com a medicina. Sobretudo como resultado da urbanização, grande número de pessoas
perdeu suas raízes e conexões, as famílias numerosas com suas complicações e íntimas
inter-relações tendem a desaparecer, e o indivíduo se separa cada vez mais e se isola.
Quando se encontra em dificuldade, praticamente não tem a quem recorrer em busca de
conselho, de consolo, ou talvez simplesmente de oportunidade para desabafar. Cada vez
mais acentuadamente se vê reduzido a seus próprios recursos. Sabemos que em várias
pessoas, talvez em todos nós, toda tensão ou esforço excessivo, de caráter mental ou
emocional, acompanha-se de diversas sensações físicas, ou se reflete nelas. Em tais
estados de perturbação, especialmente se a tensão aumenta, uma possível e muito
freqüentemente usada válvula de escape consiste em consultar seu médico e queixar.
Deliberadamente deixei o verbo sem objeto, porque nessa etapa inicial não sabemos o que
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é mais importante, se o ato de queixar-se ou o conteúdo da queixa. Precisamente aqui,
nesta fase inicial ainda “não organizada” de uma doença, é decisiva a capacidade do
médico para prescrever sua própria pessoa. Discutiremos em seguida as possíveis
conseqüências inesperadas da reação do médico frente às queixas do seu paciente.
... não é raro que a relação entre o paciente e seu médico seja tensa, incomoda, e
mesmo desagradável. É nesses casos que a substância "médico" não produz os efeitos
esperados. Estas situações são muito freqüentemente trágicas; o paciente tem verdadeira
necessidade de ajuda, o médico tenta honestamente tudo que pode - e, entretanto, apesar
dos esforços de ambas as partes, as coisas tendem obstinadamente a andar mal. Nossos ...
casos ilustrarão esse tipo de situação.
Caso 1:
Sra. C., 32 anos; casada, sem filhos... Queixava-se então de dores torácicas e
epigástricas... um eminente especialista... informou: "Alegra-me informar-lhe que a
radiografia de tórax desta paciente é absolutamente normal. Parece muito alegre com isso e
acho que a maioria de seus sintomas é funcional; espero que o apoio que dei a ela tenha
sido de algum valor."
Pouco depois a paciente voltou a se queixar de dores torácicas e foi enviada a uma
clínica especializada para que fizesse uma radiografia de tórax. O médico da clínica
informou... "Apraz-me comunicar-lhe que não há indícios de tuberculose pulmonar ou
pleural. Creio que a dor epigástrica origina-se na parede abdominal, isto é, de origem
provavelmente muscular...". Era uma cliente assídua... Pensei então que seus sintomas
poderiam ser conseqüência de uma "apendicite crônica". Primeiro, enviei-a a um
ginecologista... “Esta senhora é desconcertante. Foi vista pelo Dr. L., que realizou um
exame completo sem nada encontrar, e devo admitir que não posso descobrir nada de
anormal, não tendo encontrado o menor indício do ponto de vista ginecológico. É difícil dizer
se, dado as dores constantes no lado direito e à constipação crônica, existe a possibilidade
de apendicite, porém, se desejar, falarei com um de nossos cirurgiões..." Solicitou-se o
parecer de um cirurgião e este declarou..." ...aconselhei-a a internar-se no hospital a fim de
que se procedesse à extirpação do apêndice"... efetuou-se a apendicectomia. Desde então
veio ver-me quase todas as semanas; queixava-se de uma variedade de dores, às vezes na
fossa ilíaca direita, às vezes nas costas, e me irritava com sua conversa aparentemente
irrelevante e sua resistência a se retirar quando eu estava assoberbado de trabalho. Envieia a um cirurgião ortopédico famoso, devido a sua persistente lombalgia. Este me
comunicou..."... existe certa flacidez na musculatura lombar. Estou providenciando
tratamento no departamento de fisioterapia".
A Sra. C. compareceu regularmente todas as semanas a meu consultório, queixouse dos mesmos sintomas anteriores e começou, para surpresa minha, a flertar
agressivamente comigo. Certo dia lhe comuniquei, de maneira bastante abrupta, que era
muito pouco o que eu podia fazer por ela e que era melhor que regressasse a seu trabalho
de vendedora, e não voltasse a ver-me durante algum tempo. Não voltou até...
(aproximadamente dois anos depois). Insistiu novamente em suas antigas dores e queixas,
e em atitude de criança submissa ("sentiu saudades de mim?" e "Espero que não volte a
aborrecer-se comigo"). Continuou a comparecer semanalmente, tornou a mostrar-se
sedutora e tentou colocar seu pé sobre o meu e um dia sua mão sobre a minha. Rechacei-a
e ela chorou; retirou-se, porém para retornar na semana seguinte e durante as semanas
posteriores. Em cada ocasião recebeu de cinco a dez minutos de conversação e um vidro
de remédios.
Desde então, devido a ter compreendido melhor a existência das alterações de
personalidade, concedi a ela uma entrevista de uma hora, durante a qual, inter alia, falou de
sua infância, do pai que estava na Marinha, quase sempre fora de casa, de um irmão mais
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jovem muito querido, cujo falecimento coincidiu com o início dos sintomas, de sua
dispareunia desde o princípio de seu matrimônio e de sua total incapacidade de manter
relações sexuais desde a morte do irmão. Maiores investigações estão sendo feitas. Desde
esta entrevista sua atitude em relação a mim mudou muito, não há mais tentativas de
sedução e seus sintomas melhoraram. Porém foram necessários quatro anos e uma
apendicectomia para chegar a essa conclusão. Mea culpa!
Caso 2:
Sra. A. e seu filho recém-nascido... Desde que nasceu, a criança tem estado
freqüentemente doente e com má saúde; tosse, resfriado, amigdalite, anorexia, crises de
choro, prolapso retal, etc. investigações hospitalares todas negativas. A mãe sempre muito
preocupada com a criança, e descontente frente a sua falta de progresso. Más condições
domésticas. A família vivia no andar superior de uma velha casa tipo sobrado, sem
nenhuma comodidade... Apartamento térreo ocupado por um homem de 84 anos, com
esposa de 44. Até a idade de 80 anos, muito viril. Aproximadamente nesta idade tornou-se
adoentado, reclamando muito pela perda de sua virilidade. Mais ou menos na época em que
nasceu a criança da Sra. A., a saúde do ancião havia começado. a decair "iniciando-se a
enfermidade final, que durou cerca de 9 meses. Era um inválido pouco agradável, e
constituiu uma sobrecarga para sua esposa, para o médico e para todos os vizinhos. A
esposa tornou-se angustiada e emocionalmente abalada, o que se refletiu sobre a família do
andar superior. (A família do 1º andar olhava com respeito àquela que ocupava o andar
inferior e se esforçava para submeter-se as suas normas). As queixas provocadas pelo
choro da criança, etc., acarretaram muitos conflitos, os quais se refletiam na ansiedade da
mãe e nas doenças da criança. Desde a morte do ancião, a viúva voltou a trabalhar; sua
saúde mental melhorou, bem como as relações com a família do apartamento de cima.
Como conseqüência disso, melhorou a saúde da Sra. A. e também a de sua criança. Agora
a criança comparece raramente ao consultório - até o ponto em que chama a atenção,
quando o faz - embora ainda apresente prolapsos ocasionais.
Estas... histórias clínicas ilustram convincentemente a nossa primeira tese...
Pensamos que algumas das pessoas que, por uma razão ou por outra, acham difícil lidar
com os problemas de suas vidas, apelam para o recurso de adoecer. Se o médico tem
oportunidade de vê-los nas primeiras fases de seu tornar-se doente, isto é, antes que se
acomodem numa doença definitivamente "organizada", ele pode observar que esses
pacientes, por assim dizer, oferecem ou propõem várias doenças, e que eles precisam
continuar oferecendo novas doenças até que entre o médico e o paciente possa ser
alcançado um acordo, que resulte na aceitação por ambos de uma das doenças como bem
fundamentada. Em algumas pessoas este estado "não organizado" é de curta duração e
elas rapidamente se acomodam, "organizando" suas doenças; outras parecem perseverar
nele e, embora tenham organizado parcialmente suas doenças, continuam oferecendo
outras novas para seu médico. A variedade de doenças disponíveis para qualquer pessoa é
limitada pela sua constituição, educação, posição social. seus medos conscientes ou
inconscientes e fantasias acerca das doenças, etc. Mesmo assim, como nestes... casos, a
despeito dessas limitações, há sempre várias ofertas e proposições. Um dos mais
importantes efeitos colaterais – se não o principal efeito - da substância "médico" é suas
respostas às ofertas do paciente...
No Caso 1 o clínico, por assim dizer, aceitou todas as várias doenças que lhe foram
oferecidas pelo paciente e o encaminhou a eminentes especialistas, correspondentes a
cada uma das "doenças" propostas. Os especialistas, por sua vez, fizeram seu trabalho
como devia ser feito; relataram corretamente que nada pode ser encontrado, ou propuseram
uma terapia racional quando havia alguma justificação para ela. Mesmo assim, todo este
procedimento foi ineficaz, uma vez que o paciente precisava de alguma coisa
completamente diferente, e apenas quando o médico conscientizou-se do que lhe era
solicitado, e permitiu e ajudou o paciente a conscientizar e expressar seus problemas reais,
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foi que toda a situação - tanto os insucessos passados, quanto os sofrimentos presentes se tornou inteligível.
Como voltaremos ao Caso 2 ... desejo apenas ressaltar que durante todo o período
de observação este clínico aceitou todas as doenças oferecidas pelo paciente como bem
fundamentadas, prescreveu uma terapia correta a curto prazo para cada uma delas,
obtendo como resultado sucesso a curto prazo, mas não pode contribuir em nada para a
cura real. A cura final deveu-se a eventualidades externas...
Como deve o médico "responder" às "ofertas” do paciente de maneira a evitar um
desfecho indesejável como os descritos nos... casos clínicos precedentes? Esta questão
implica em que as respostas do médico podem e freqüentemente contribuem
consideravelmente para a última e definitiva forma de doença a qual o paciente se
acomodará.
... praticamente sempre este é o principal e mais imediato problema: a necessidade
de um nome para a doença, um diagnóstico. É apenas na segunda instância que o paciente
pede por terapia, isto é, o que pode ser feito para aliviar seus sofrimentos por um lado e as
restrições privações provocadas pela doença por outro.
O não prestar atenção a esta ordem de importância é a causa uma forma muito
freqüente de irritação e de amargo desapontamento na relação médico-paciente - outro
efeito colateral indesejável da substância "médico". Quando um paciente, após uma série de
cuidadosos e conscienciosos exames, recebe a notícia de que nada foi encontrado de
errado nele, os médicos esperam que ele se sinta .aliviado e mesmo que melhore.
Certamente isso acontece com muita freqüência, mas em numerosos casos ocorre
exatamente o oposto, sendo que a reação habitual do médico a este - a despeito de sua
freqüência inesperada - evento é dolorosa e cheia de surpresa e de indignação. Isso talvez
pudesse ser evitado se os médicos tivessem em mente, que encontrar "nada de errado" não
é resposta para a pergunta mais crucial do paciente, um nome para sua doença. Além do
temor quase universal de que aquilo que encontramos é tão assustador que não contaremos
para ele, ele sente que “nada de errado” significa apenas que não encontramos e, portanto,
não podemos dizer a ele o que o assusta ou aterroriza e provoca-lhe dores. Desta forca ele
se sente abatido, incapaz de explicar e aceitar suas dores, medos e privações. Com toda
certeza não consistiria nenhuma ajuda para ele saber que suas suspeitas são justificadas;
que a declaração "nada de errado” algumas vezes significa que a medicina não sabe o que
há de errado em seu caso particular... Os problemas cruciais do paciente permanecem sem
resposta, seu pedido de um nome para sua doença inominada e assustadora é deixado
frustrado, isto é, sua "oferta" é rejeitada. Além disso, não se dá a ele a oportunidade de
liberdade para exprimir seus medos e desapontamentos com franqueza. Pelo contrário,
tenta-se transmitir urna confiança questionável de que não há nada de errado com ele...
Assim ocorre uma perigosa confusão de línguas, cada parte falando em uma língua não
entendida e aparentemente não entendível pela outra. Esta situação é capaz de provocar
discussões, desapontamentos e freqüentemente mesmo controvérsias abertas e batalhas...
Existem vários casos nos quais - se bem que os sinais de confusão de línguas entre
o paciente e seu médico estejam dolorosamente presentes - não há aparentemente
controvérsia aberta. Alguns desses casos demonstram o trabalho de dois outros fatores,
freqüentemente interligados. Um é constituído pela crescente ansiedade e desespero do
paciente, resultando em queixas clamorosas mais e mais ferventes por ajuda.
Freqüentemente a reação do médico consiste em sentimento de culpa e ~desespero de que
seus exames, feitos da forma a mais conscienciosa e mais cuidadosa, não tenham
esclarecido corretamente a "doença" do paciente, que sua terapia a mais erudita, a mais
moderna e a mais circunspecta não provoca alívio real.
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... uma forma especial deste "oferecer doenças" ao clínico... é a forma que
denominamos "a criança como o sintoma de apresentação". Todos os participantes de
nosso curso concordaram que em um grande número de casos, quando crianças,
principalmente recém-nascidos, são trazidas, com freqüência ao consultório, a pessoa
realmente doente é a mãe (mais raramente o pai, muito freqüentemente os pais).
Geralmente a doença particular do recém-nascido pode ser tratada com facilidade, mas
apenas para dar lugar a uma outra... O caso 2 é uma boa ilustração destas nossas
proposições.
... discutiremos um aspecto das respostas do médico às propostas do paciente, o
aspecto que em medicina é tradicionalmente chamado diagnóstico.
Permitam-me lembrar o caso do recém-nascido do sexo masculino (Caso 2) que foi
levado ao médico por sua mãe uma ou duas vezes por semana praticamente durante um
ano. O médico muito propriamente diagnosticou as várias doenças de menor importância
presentes, tais como amigdalite, resfriado, gripe, tosse, bronquite, acessos de choro, etc.
Muito conscienciosamente ele registrou todos esses rótulos de diagnóstico em suas
anotações, prescreveu o tratamento apropriado para o caso em particular, e no papel o caso
estava encerrado para ele. Ele sabia que a causa real da doença não residia na criança mas
na relação mãe-filho, a qual não podia desenvolver-se livremente porque, em sua
insegurança ansiosa, a mãe sobrecarregava de tensão a relação, restringindo a liberdade da
criança além do ponto tolerável para uma criança sadia. Mas esse diagnóstico, o real,
estava apenas na mente do médico e, embora ele estivesse consciente de sua importância
e ele mesmo trouxesse o problema para discussão, foi necessário algum tempo e esforço
para convencer tanto a ele quanto ao grupo de clínicos que compareciam ao seminário que
todos os outros diagnósticos eram de certa forma superficiais e incompletos, talvez
meramente uma forma de conveniência de curta duração.
... o diagnóstico "amigdalite folicular" estava correto até determinado ponto, da
mesma forma o estavam os outros. Cada um deles descreveu adequadamente o estado do
paciente, levou o médico a prescrever uma terapia eficaz, e permitiu-lhe prever com
considerável precisão o curso desta doença em particular sob seu tratamento. Este é um
dos possíveis níveis de diagnóstico. O que todos esses diagnósticos não fizeram foi
capacitar o médico quanto a formar uma visão geral da situação, prever que o menino não
se desenvolveria bem, padeceria de todos os tipos de enfermidades de menor importância,
e – mais importante que tudo – eles não capacitaram o médico para prescrever um
tratamento mais amplo que curaria não apenas a doença presente, mas preveniria o
desenvolvimento de qualquer outra doença futura. Este tipo de diagnóstico obviamente
pertence a um nível diferente, mais profundo, ou mais amplo.
A cura mais completa, correspondente a este nível mais profundo de diagnóstico, foi
obtida neste caso através de acontecimentos externos que removeram alguns dos medos
da mãe e facilitaram o seu modo ansioso e restritivo de lidar com seu filho. Todos
conhecemos tais alterações bruscas, para melhor ou para pior, em nossos pacientes;
geralmente não são compreendidas. O que eleva esse caso acima de tais experiências é
que aqui o médico estava capacitado e teve a coragem para fazer um completo ou mais
profundo diagnóstico ex-juventivus.
Entretanto, a despeito de sua coragem e perspicácia, mesmo depois de chegar a
este diagnóstico mais completo e mais profundo, ele não se preocupou em mudar ou corrigir
em suas fichas seus diagnósticos anteriores, considerados superficiais e incompletos. Além
disso, mesmo quando na discussão perguntamos se alteraria ou os corrigiria, ele se recusou
enfaticamente e, o que foi igualmente interessante, foi calorosamente apoiado em sua
recusa por todo o grupo de clínicos.
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Indubitavelmente, confrontamo-nos aqui com uma divergência importante. Um
médico geralmente sente-se embaraçado, mesmo envergonhado, se seu diagnóstico é
considerado errado, não completamente correto ou mesmo apenas incompleto, e
certamente não hesitaria em registrar o diagnóstico correto em suas fichas, fosse como uma
correção ou como um adendo. Aqui, por consenso comum, tudo isso foi recusado. Uma
razão apresentada consistiu nos aspectos profissionais; suponha que o médico tenha que
fornecer um certificado, ou encaminhar o garoto a um especialista, ou - na eventualidade de
o paciente se mudar para outro distrito - entregar suas fichas a outro clínico, etc.; em
qualquer dessas situações seria fácil para ele, e seria entendido por seus colegas, falar ou
escrever amigdalite, bronquite, etc., mas seria considerado bastante estranho, impróprio, se
usasse as longas descrições psicológicas. O desejo de ser compreendido e aceito por
nossos colegas é uma das razões que fazem com que nos mantenhamos presos a esses
diagnósticos físicos incompletos.
Esta atitude respeitosa frente aos rótulos de diagnósticos é, claro, também um
legado de nosso treinamento. Os clínicos gerais tem sido treinados em hospitais por
especialistas. Os especialistas sabem como curar doenças que pertençam a seu campo
especial, se elas forem curáveis, e conhecem também as limitações de suas especialidades;
mas, no que diz respeito à personalidade total do paciente, eles têm contato bem menor
com ela, sendo que se pode mesmo suspeitar que não conhecem nada a respeito.
Precisamos ter em mente que na clínica geral o problema real é freqüentemente a doença
da pessoa como um todo - como tantas vezes foi pregado a todos os estudantes de
medicina. A conseqüência inevitável deste ensino, entretanto, é raramente mencionada, isto
é, que as doenças descritas pelos rótulos hospitalares são apenas sintomas superficiais, e
que os próprios rótulos, como aprendido nos hospitais-escola, são de pouco valor para a
compreensão dos problemas reais com que se defronta o médico.
... Nós psiquiatras ainda não podemos dar aos clínicos gerais o muito necessário
conjunto de termos técnicos que possam por eles ser usados com confiança e que os
ajudará a compreender os problemas mais profundos da personalidade de seus pacientes.
Até o momento, nossas descrições de estados patológicos são vagas, complicadas,
exaustivamente longas, facilmente confundidas quando não precedidas por longas
explanações, e, o que é pior, qualquer clínico geral que as usa sente-se pouco à vontade
por estar-se comportando como um intelectual, recherché e excessivamente consciente da
própria importância. Desenvolver um grupo de termos para a discussão dos envolvimentos
patológicos de uma pessoa como um todo, um grupo de termos tão bom como aqueles dos
especialistas de hospital para descrever doenças específicas, será uma tarefa difícil que
levará muito tempo para ser atingida. Será necessária uma estreita colaboração entre as
duas especialidades primariamente envolvidas – a clínica geral e a psiquiatria. Um dos
objetivos deste livro é assinalar esta necessidade e talvez contribuir um pouco para que nos
aproximemos de alcançá-Ia.
Qual, então, é a função deste nível de diagnóstico, para o médico por um lado e para
o paciente, por outro? Para o paciente, a doença é sempre uma doença desagradável. Ele
sente que algo não está correndo bem com ele, algo que pode vir a prejudicá-Io, ou que
certamente o prejudicará, a menos que seja tratado com propriedade e rapidez. O que “este
algo" é, é difícil saber. Freqüentemente "este algo" torna-se idêntico a seu nome, e para o
paciente a função do diagnóstico é a de suprir o nome pelo qual este algo desagradável,
malevolente e assustador possa ser chamado, pensado e talvez elaborado... Em outras
palavras, estar doente é ainda freqüentemente pensado, e certamente sentido, como ser
possuído por algum demônio, e é crença geral, não apenas entre os pacientes, que o
demônio possa ser expulso apenas pelo fato de se conhecer seu nome. Todos nós sabemos
que isso está longe de ser sempre verdadeiro.
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O diagnóstico tem um efeito reconfortador para o médico e seu paciente. A atitude
atual em medicina é que o tratamento não deve ser iniciado antes que se tenha chegado a
um diagnóstico. Essa atitude é justificada e frutífera se o diagnóstico realmente descreve o
processo patológico, isso é, se fornece muito mais do que apenas um nome nas mãos do
médico.
O diagnóstico "neurose" ou "neurótico" pode, como todos nós sabemos, ser feito por
qualquer um, mas dificilmente indica ao médico qual o próximo passo a ser dado. É apenas
uma espécie de nome mágico, e não diagnóstico no senso próprio. Se somos sinceros,
devemos acrescentar que "neurose" é mesmo menos um diagnóstico do que dores,
vertigem, constipação, cefaléias, etc. etc., os quais são muito justamente detestados por
qualquer professor de medicina. Talvez possamos também acrescentar, muito
humildemente, que na clínica geral temos não raramente que nos contentar com tais
diagnósticos inferiores.
Além disso, os médicos, condicionados por seu treinamento, geralmente pensam
primeiro no diagnóstico "físico". As razões geralmente apresentadas são as de que as
doenças físicas são mais graves e mais perigosas do que as doenças funcionais, isto é, que
maior dano pode ser feito por não se diagnosticar uma doença física do que por não se
diagnosticar uma doença funcional. Esta é uma meia verdade perigosa; em alguns casos as
doenças físicas representam de fato uma ameaça mais séria ao bem-estar do paciente, mas
em outros as doenças funcionais são sem dúvida as mais perigosas,... Como conseqüência
desta meia verdade, os médicos clínicos geralmente sentem-se muito envergonhados
quando deixam escapar mesmo um pequeno ou extremamente irrelevante diagnóstico
físico. (Uma boa ilustração é o Caso 2). Outra razão para essa preferência pelo diagnóstico
físico é que tal doença tem algo de mais definido e manifesto do que as funcionais.
Parcialmente devido ao estado de nosso conhecimento, mas parcialmente também devido
as falhas de nosso treinamento, os médicos sabem mais a respeito das doenças físicas, e
seu melhor conhecimento faz com que eles se sintam mais seguros e em terreno mais firme
do que quando têm que lidar com doenças funcionais ou neuróticas. Além do mais, e talvez
este seja o fator mais importante, se o médico chega a um diagnóstico físico correto, mesmo
se seu esforço terapêutico não obtém sucesso ou se não existe uma terapia apropriada para
esta doença em particular, ele se sente reconfortado porque os sofrimentos do paciente
podem ser debitados, explicados, o que por sua vez significa que podem ser aceitos pelo
médico sem sentimentos de culpa. Ele sentirá, e estará certo, que fez um bom trabalho; ele
encontrou a causa verdadeira do sofrimento. Pelo resto, ele não é responsável, mesmo se
não há muito que ele possa fazer. Qualquer falha no sucesso terapêutico pode ser
justificada pelo "presente estágio de nosso conhecimento".
Este tipo de pensamento compele o médico, quando diagnosticando uma doença, a
seguir uma seqüência de etapas curiosa e quase obrigatória, uma seqüência que é
mecanicamente obedecida sem que ao menos sejam examinadas suas vantagens ou suas
desvantagens. (Ver Caso 1). Nós chamamos esta seqüência de acontecimentos, com
discreto exagero, "eliminação pelos exames físicos apropriados". Isto significa que as
doenças são agrupadas em um tipo de ordem hierárquica grosseiramente correspondente À
gravidade das alterações anatômicas que podem ser demonstradas ou presumidas nelas.
Infelizmente, não apenas às doenças se aplica esse tipo de ordem mas também aos
pacientes, por assim dizer, presos a elas. Os pacientes cujas queixas possam ser
acompanhadas de alterações anatômicas ou fisiológicas demonstráveis ou presumíveis têm
lugar de destaque nessa escala hierárquica, sendo que os neuróticos ocupam os lugares
deixados vagos depois de que todas as demais doenças tenham sido classificadas. Assim, é
compreensível que cada médico. quando confrontado com um novo paciente, tente dar a
este paciente um bom lugar na escala, relegando o paciente para a classe dos neuróticos
apenas se não puder encontrar nenhuma justificativa para conferir-lhe um status respeitável.
Um corolário desse estado de coisas é o fato de que cada médico orgulha-se de
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diagnosticar uma doença orgânica mas confessa com dificuldade o diagnóstico de neurose.
Isto, também, é compreensível se lembrarmos que o diagnóstico "neurose" pode ser feito
por qualquer um, enquanto que diagnosticar a doença física requer competência profissional
especializada, permitindo ao médico sentir um orgulho justificável de seu diagnóstico.
Outro corolário, ... que como resultado dessa atitude todos os nossos pacientes são
treinados desde a infância para esperar um exame físico mais ou menos completo. Eles não
são treinados para esperar qualquer exame psicológico e muito freqüentemente pode tornarse amedrontado, desconcertado, ou mesmo ofendido frente a qualquer sugestão ou
tentativa desse tipo. A atitude de alguns médicos a esse respeito é reminiscente de meus
dias de estudante, quando tínhamos que aprender a auscultar ou percurtir, especialmente
mulheres, através da vestimenta ou de uma toalha, porque nenhuma mulher bem educada
exporia, sem necessidade imperiosa, seus seios, mesmo para seu médico particular.
Há outra falácia no enfoque da "eliminação por exames científicos apropriados". Está
implícito, se bem que não determinado, que o paciente não é alterado ou influenciado pelo
processo de "eliminação”... A atitude do paciente em relação a sua doença é em geral
consideravelmente alterada durante e pelas séries de exames físicos. Estas alterações, que
podem influenciar profundamente o desenvolvimento de uma doença crônica, não são
encaradas seriamente pela medicina e, embora ocasionalmente mencionadas, nunca foram
objeto de investigação científica apropriada. De qualquer maneira, eu não conheço nenhum
hospital no qual se dê tanta atenção de rotina às necessidades psicológicas de um paciente
quanto àquela que é dada, por exemplo, ao funcionamento regular ele seus intestinos. O
máximo que o paciente pode esperar é apoio - rotina, bem intencionada, geralmente
indiscriminada e freqüentemente ineficaz.
Para resumir, geralmente os médicos clínicos preferem diagnosticar doenças físicas
usando os rótulos aprendidos com seus professores especialistas, a diagnosticar problemas
da personalidade como um todo. Como vimos, há várias razões para esta preferência.
Primeiro não há na verdade um conjunto utilizável de termos para descrever o problema de
personalidade de um paciente não psicótico; na prática aqueles que são disponíveis são
pouco mais longe do que um punhado, tais como histeria, obsessão, neurose, ansiedade,
depressão, etc. Quase não é necessário possuir-se experiência profissional para chegar a
um diagnóstico desse tipo; ou, em outras palavras, neste campo o homem das ruas é quase
tão bom quanto o médico treinado. Enquanto um diagnóstico real conduz o médico
diretamente a uma terapia mais ou menos racional. o diagnóstico de problema da
personalidade raramente o faz. Logo, há uma crença, absolutamente infundada, de que as
doenças físicas são mais importantes que os problemas da personalidade. O resultado
deste modo de pensar é o que chamei de “eliminação pelos exames físicos apropriados" e a
"ordem hierárquica" de doenças e pacientes...
Além de proporcionar uma compreensão inegavelmente melhor do paciente, o
diagnóstico "mais profundo" desempenha outra função. Consiste na redução do número de
casos em que o médico se vê obrigado a tomar uma decisão às cegas, fundamentado
exclusivamente no diagnóstico físico. Estas decisões às cegas, pouco influenciadas pela
situação emocional do paciente e pelo controle adequado da relação médico-paciente,
permite o livre jogo das inclinações pessoais, sentimentos inconscientes, convicções e
preconceitos do médico, isto é, do que denominamos sua “função apostólica”.
... A missão ou função apostólica significa em primeiro lugar que todo médico tem
uma vaga, mas quase inabalável idéia sobre o modo como deve se comportar o paciente
quando está doente.
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