Ciência alerta para riscos da tecnologia irresponsável O saber não é culpado pelo orgulho demoníaco com o qual caminhamos para a possível destruição UMBERTO ECO Especial Muitos leitores não sabem exatamente o que são os buracos negros e, sinceramente, só consigo imaginá-lo como aquele grande bicho do desenho Yellow Submarine que devorava tudo ao redor dele e, no fim, engolia a si próprio. Mas, para entender a idéia que pretendo passar, não é preciso saber mais, a não ser que se trata de um dos problemas mais polêmicos e apaixonantes da astrofísica contemporânea. Os jornais noticiaram agora que o célebre cientista Stephen Hawking (talvez mais conhecido pelo grande público não tanto pelas suas descobertas quanto pela força e determinação com que trabalhou toda a vida, apesar de uma terrível doença que teria reduzido qualquer outro a um vegetal) fez um anúncio no mínimo sensacional. Alega ter cometido um erro ao enunciar, nos anos 1970, a sua teoria dos buracos negros e se prepara para apresentar-se diante de uma comissão científica para fazer as devidas correções. Quem pratica a ciência não vê nada de excepcional nesse comportamento, a não ser pela fama de Hawking, mas acho que o episódio deveria ser levado ao conhecimento dos jovens de todas as escolas não-fundamentalistas e não-confessionais para que possam refletir sobre quais seriam os princípios da ciência moderna. Os meios de comunicação freqüentemente colocam no banco dos réus a ciência, considerada responsável pelo orgulho demoníaco com o qual a humanidade caminha em direção a sua possível destruição e, ao fazer isso, evidentemente, confunde ciência com tecnologia. A ciência não é responsável pelos armamentos atômicos, pelo buraco de ozônio, pelo derretimento da calota polar e assim por diante: a ciência talvez seja ainda a única coisa capaz de nos alertar dos riscos que corremos quando, ao usar o que acreditamos ser os seus princípios, confiamos em tecnologias irresponsáveis. Mas nas críticas que se ouvem ou se lêem freqüentemente sobre as ideologias do progresso (ou o chamado espírito do iluminismo) indentifica-se freqüentemente o espírito da ciência com o de certas filosofias idealistas do século 19, o que leva à conclusão de que a História caminha sempre em direção ao melhor e à realização triunfante de si própria, do Espírito ou de qualquer outro motor propulsor que marcha sempre em direção a fins otimistas. E, no fundo, quantos (da minha geração, pelo menos) continuavam sempre em dúvida lendo manuais idealistas de filosofia, dos quais se concluía que todo pensador que vinha depois entendeu melhor (ou, melhor, entendeu aperfeiçoado) o pouco descoberto pelos que vieram antes (mais ou menos como dizer que Aristóteles era mais inteligente que Platão). É contra essa concepção da história que se lançava Leopardi quando ironizava sobre "os surtos magníficos e progressivos". Em contrapartida, e em especial ultimamente, para substituir tantas ideologias em crise, flerta-se cada vez mais com o que se chama o pensamento da Tradição, segundo o qual nós, no curso da História, não nos aproximamos cada vez mais da Verdade, mas o contrário: tudo aquilo que havia para se entender, as antigas civilizações, já desaparecidas, entenderam antes, e só vamos nos reconciliar conosco e com o nosso destino voltando humildemente àquele tesouro tradicional e imutável. Nas versões mais avassaladoramente ocultistas do pensamento tradicional, a Verdade era a repositória da civilização sobre a qual nada mais sabemos, da Atlântida engolida pelo mar, da raça hiperbórea de arianos puríssimos que viviam sobre uma calota polar eternamente temperada, dos sábios de uma Índia perdida e outras graças que, não sendo demonstráveis, permitem a filósofos de araque e romancistas fajutos refazer sempre o mesmo pacote hermético para o sol das férias de verão. Mas a ciência moderna não acredita que só o Novo tenha razão sempre. Ao contrário, se funda sobre o princípio da falibilidade (já enunciado por Peirce, retomado por Popper e por vários outros teóricos, e colocado em prática pelos especialistas), segundo o qual a ciência avança corrigindo a si mesma, falsificando as suas hipóteses, por tentativa e erro, admitindo os próprios erros e considerando que uma experiência que não deu certo não seja um fracasso, mas valha tanto quanto uma experiência que deu certo, porque prova que um certo caminho que estava sendo tentado era errado e se fazia necessário corrigi- lo ou começar do zero. Que é o que sustentava séculos atrás a Academia do Cimento, cuja palavra de ordem era "provando e riprovando" (testando e reprovando) - e "riprovare" não significava testar (provar) de novo, que seria o de menos, mas recusar (no sentido de reprovar) o que não podia ser sustentado à luz da razão e da experiência. Este modo de pensar se opõe, como dizia, a qualquer fundamentalismo, a qualquer interpretação literal dos textos sagrados - esses também continuamente passíveis de releitura -, a toda segurança dogmática das próprias idéias. Esta é a boa filosofia, no sentido cotidiano e socrático do termo, que a escola deveria ensinar.