1 ORIENTAÇÃO PARA AS QUESTÕES SOBRE O TEXTO DE GALLO “DELEUZE E A FILOSOFIA” 1. O que significa afirmar que Deleuze é um filósofo-historiador? Qual é a relação entre tradição filosófica e a atividade do filosofar? Como é possível afirmar que “Deleuze é um historiador da filosofia” e está, portanto, preocupado com o pensamento passado dos filósofos e, ao mesmo tempo, dizer que sua filosofia “é uma constante atenção ao mundo e ao tempo presente”? A primeira questão surge de uma aparente contradição que se expressa no texto de Gallo. Em primeiro lugar, ao mapear a filosofia francesa contemporânea, o autor afirma que, diferente das outras filosofias européias, ela é marcada indelevelmente pela história da filosofia. Assim, uma grande parte dos filósofos franceses do século XX concebe, segundo Gallo, o fazer filosófico a partir de um retorno ao pensamento elaborado por outros pensadores no passado. Filosofia é, nesse caso, indissociável da história da filosofia. Por outro lado, Gallo afirma que “a filosofia de Deleuze é uma constante atenção ao mundo e ao tempo presente”. Como é possível que, ao mesmo tempo, Deleuze seja um filósofo-historiador e esteja, por conseguinte, preocupado com o passado e, de outro lado, tenha uma constante atenção ao mundo e ao tempo presente? Essas afirmações não implicam a contradição entre preocupar-se principalmente com o passado e preocupar-se principalmente com o presente? Qual é, enfim, a principal preocupação de Deleuze: a história da filosofia ou a “filosofia atual”? A questão é interessante aos professores da Rede Pública Estadual de Ensino em função da concepção de filosofia que predomina nas Diretrizes Curriculares Estaduais. Segundo esse documento, a disciplina de filosofia deve mobilizar e problematizar os conteúdos filosóficos a partir do contexto presente dos alunos do Ensino Médio. Os problemas filosóficos investigados estão, portanto, ligados ao momento presente. As Diretrizes Curriculares afirmam, contudo, que a investigação desencadeadas por estes problemas devem ser conduzidas pelo professor e pelos alunos aos momentos clássicos da história da filosofia. Os conteúdos filosóficos são importantes, segundo o documento, “[...] desde que atualizem os diversos problemas filosóficos que podem ser trabalhados a partir da realidade dos estudantes” (p. 53). A questão oriunda da leitura de Gallo do texto de Deleuze é, na verdade, a mesma questão que surge da leitura das Diretrizes Curriculares. Em suma, qual é o foco do fazer 2 filosófico: o presente ou o passado? 2. Por que, segundo Gallo, Deleuze quer inverter o platonismo? Qual é a diferença entre a perspectiva filosófica tradicional do conceito e a perspectiva deleuziana? De que forma deve se entender a afirmação de que “um conceito é absoluto e relativo ao mesmo tempo”? Gallo concebe a proposta de filosofia de Deleuze como inversão do platonismo e a explica a partir da comparação com a Alegoria da Caverna. Ao passo que Platão está preocupado com a unicidade do Sol, Deleuze quer concentrar a filosofia no mundo interior da caverna. Enquanto primeiro pretende um tratamento do conceito como um universal absoluto, o outro o trata segundo os critérios da particularidade e da relatividade. A perspectiva tradicional do conceito espera encontrar algo que universalmente explique um múltiplo oferecido pela experiência cotidiana. Assim, diante de vários exemplos de atos de coragem, e apesar de suas diferenças, o Sócrates platônico pergunta por aquilo que os determina essencialmente, isto é, a idéia de coragem. Ela constitui, segundo a visão de Gallo, a perspectiva tradicional do conceito. A coragem em si é um conceito universal e absoluto que explica uma multiplicidade de atos que percebemos entre os homens. Para Deleuze, pelo contrário, o conceito não é descoberto ou contemplado, ele é criado pelo filósofo. Os conceitos são, desse modo, determinados pelas circunstâncias particulares em que foram produzidos e não constituem, por esse motivo, universais absolutos. Eles são particulares e relativos ao contexto de sua geração. Se Platão, segundo Gallo, pretendia encontrar universalidades que explicassem de uma vez por todas a multiplicidade real, Deleuze e Guattari defendem que os conceitos são mutáveis e transformam-se em função dos novos contextos em que são inseridos. Por isso, eles afirmam que o conceito é assinado pelo filosófo, que ele tem uma história, que é uma heterogênese, etc. Todas essas palavras manifestam de modos diferentes e com funções diferentes a defesa deleuziana da singularidade do conceito por oposição a perspectiva tradicional de conceitos absolutos. Se, portanto, a principal diferença entre Deleuze e a perspectiva tradicional é que a primeira acusa que o conceito é relativo ao contexto em que ele é elaborado e a segunda pretende descobrir conceitos absolutos e universais que transcendem toda e qualquer 3 particularidade, por que Gallo afirma que, na obra de Deleuze e Guattari, o conceito é “absoluto e relativo ao mesmo tempo”? Se Gallo vem defendendo que a perspectiva de Deleuze e Guattari atribui ao conceito um aspecto relativo, ele certamente não entende nessa citação o termo “absoluto” no mesmo sentido que a perspectiva tradicional. A dúvida reside, portanto, nas duas possibilidades de interpretação do caráter absoluto do conceito. A primeira diz respeito às características atribuídas por Platão às Idéias ou Formas e a segunda, diz Gallo, não deve confundir o caráter absoluto com a universalidade. 3. Qual é o sentido do termo 'acontecimento' no texto? O que significa dizer que o conceito é “produtor de acontecimentos”? O que é um plano de imanência e qual é sua relação com os acontecimentos produzidos pelos conceitos? Quando apresenta a noção deleuzeguattariana de acontecimento, Gallo afirma que o conceito diz o acontecimento e não a essência ou a coisa. Essa perspectiva não expressa nada mais que a mesma atenção à perspectiva de singularidade do conceito. Em sua formulação, o conceito não abarca, tal como se espera tradicionalmente, a essência de uma coisa. Não abarca algo imutável e universal que, uma vez descoberto, constitui um conhecimento seguro e sólido sobre o real. Pelo contrário, o conceito manifesta um acontecimento do real segundo essa ou aquela perspectiva. As coisas são, portanto, apenas aquilo que o conceito faz acontecer. Por isso, diz Gallo, citando Deleuze e Guattari, o conceito é responsável por “erigir o novo evento das coisas e dos seres, darIhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos [...]” Os filósofos recebem conceitos de outros pensadores, remanejam os conceitos existentes, fundam novos conceitos e, assim, inauguram novos eventos das coisas e dos seres, isto é, apreendem coisas diferentes ou as apreendem sob aspectos diferentes. Com a palavra acontecimento, diz Gallo, Deleuze e Guattari querem indicar que o conceito não descobre o real mas o produz. O plano de imanência é, segundo Gallo, ao mesmo tempo o solo e o horizonte da produção conceitual. Como solo, ele indica que os conceitos são produzidos a partir de uma experiência singular com um contexto específico de sentido. Os conceitos, conforme discutido anteriormente, são formados a partir de uma experiência com as “coisas” que já foi determinada dessa ou daquela maneira. O conjunto dessa experiências é o que constitui o plano de imanência. 4 Como horizonte, por outro lado, o plano de imanência indica que os conceitos são responsáveis por transformações estruturais. Na medida em que as “coisas” que constituem o plano de imanência são determinadas conceitualmente, toda e qualquer criação conceitual é responsável por uma transformação no plano de imanência. Desse modo, o plano de imanência constitui ao mesmo tempo o solo desde o qual os conceitos são criados mas é também o horizonte determinado pela criação conceitual. 4. Qual é o sentido da expressão 'pré-filosófico' utilizada para caracterizar o plano de imanência? Se ela não significa que o plano seja anterior à filosofia, qual é o sentido do prefixo 'pré' que a compõe? “Enquanto solo da produção filosófica, o plano de imanência deve ser considerado como pré-filosófico [...]“ Primeiramente é importante considerar o que dizem Deleuze e Guattari sobre o locus da filosofia, ou seja, o plano de imanência. Esse plano deve ser compreendido em oposição ao conhecimento mítico-religioso que opera pela transcendência. É no plano de imanência que são gerados os conceitos. Porém, não podemos confundir o plano de imanência com o conceito, embora um dependa do outro. Na tentativa de nos ajudar na compreensão do que seja o plano de imanência, Gallo, afirma que ele, o plano de imanência, não é pré-filosófico no sentido de que sem ele não há a produção dos conceitos e vice e versa. Assim, é possível dizer que conceito e plano de imanência são concomitantes. O que ocorre, contudo, é que a produção do conceito como atividade filosófica humana se realiza sempre a partir de um plano de imanência já existente, a partir da história do pensamento filosófico exercido no tempo, mas que não foi suficiente , e nunca o será, para dizer o devir dos acontecimentos . Nesse sentido, o plano de imanência é pré-filosófico, pois a criação de conceitos se efetiva numa experiência conceitual compartilhada. Em outras palavras, o tempo filosófico não é o do antes e do depois, os vários planos podem coexistir. É nesse sentido que os filósofos podem criar seus próprios planos ou conceitos, Husserl, Nietzsche, enquanto outros conceitualizam no contexto já existente, os neoplatônicos, os neokantianos. - podendo existir, ao mesmo tempo, múltiplos planos de imanência que se opõem, se complementam ou mesmo são indiferentes entre si, 5 convivendo todos numa simbiose rizomática.1 5. Se Deleuze tem o objetivo de inverter o platonismo e, nas palavras de Gallo, substituir a busca pelas “formas puras” pela atenção à multiplicidade oferecida pela sensibilidade, como pode mais tarde o autor do texto afirmar que, tal como Platão, Deleuze e Guattari concebem a tarefa da filosofia como superação da doxa que, de seu ponto de vista, defende a unidade, opondo-se à multiplicidade? A opinião, para Platão, não é justamente o nível de conhecimento sensível que lida, assim, com a multiplicidade e não com a unidade? Ao final do texto, Gallo apresenta uma nova comparação entre o pensamento de Deleuze e Guattari e o pensamento de Platão. Nesse caso, porém, Gallo afirma que, tal como o filósofo grego, os franceses concebem a filosofia como superação da opinião ou doxa. Se, por um lado, Deleuze e Guattari querem inverter o platonismo, por outro, querem mantê-lo. O problema é que Gallo, ao afirmar tal coisa, apresenta um discurso contraditório. Para Platão, o interior da caverna constitui o domínio da doxa, o domínio da opinião. Aquele que está acorrentado na caverna, está preso à perspectiva múltipla e caótica das sombras. Num primeiro momento, Gallo afirmava que a proposta de Deleuze e Guattari consistia em manter-se no interior da caverna, isto é, manter-se no domínio da opinião por oposição à perspectiva de um conceito universal e absoluto. Como ele pode afirmar agora que Deleuze e Guattari, assim como Platão, pretendem superar o domínio da opinião, isto é, o domínio do múltiplo? Não há aqui uma contradição? A chave para resolver a contradição produzida pela interpretação de Gallo consiste em descobrir os dois sentidos em que o termo “opinião” é utilizado. Quando Deleuze e Guattari falam em superação da opinião, eles não pretendem falar da mesma coisa que Platão. Para o filósofo grego, a doxa constitui justamente a perspectiva particular daqueles que, não conhecendo o domínio das idéias, enxergam a realidade limitada das sombras. O domínio externo à caverna representa, em oposição, o elemento das idéias 1 O plano de imanência toma do caos determinações, com as quais faz seus movimentos infinitos ou seus traços diagramáticos. Pode-se, deve-se então supor uma multiplicidade de planos, já que nenhum abraçaria todo o caos sem nele recair, e que todos retêm apenas movimentos que se deixam dobrar juntos [...] Cada plano opera uma seleção do que cabe de direito ao pensamento, mas é essa seleção que varia de um para outro. Cada plano de imanência é Uno-Todo: não é parcial, como um conjunto científico, nem fragmentário, como os conceitos, mas distributivo, é um 'cada um'. O plano de imanência é folhado. 6 ou formas que, por serem universais e imutáveis, constituem o verdadeiro foco do conhecimento. Para Deleuze e Guattari, por outro lado, a opinião consiste justamente na “luta contra o caos que é a multiplicidade de possibilidades [...]”. No sentido contrário ao de Platão, opinião é a perspectiva de superação do múltiplo em direção ao universal e imutável. Se fosse possível comparar com a perspectiva platônica, seríamos obrigados a dizer que o conceito de opinião dos filósofos franceses corresponde ao caminho ascendente e ao conhecimento do mundo externo. A contradição encontrada desaparece, portanto, com a compreensão do duplo sentido que o termo opinião apresenta no texto de Gallo. E, nesse sentido, a segunda comparação entre o pensamento de Platão e o pensamento dos filósofos franceses não é apropriada.