Os Planos de Saúde, Os Médicos e Os Clientes: Tripé Difícil de Equilibrar Em um país onde a questão da saúde está sempre em pauta, e que os sistemas públicos não apenas não dão conta da demanda como não atendem às necessidades sequer das classes B e C, cabe levantar a situação dos planos de saúde privados. A situação atual é extremamente delicada, pois estas empresas prestadores de serviço na área da saúde vem enfrentando volume expressivo de queixas dos consumidores ao Procon, organização de setores da sociedade e descredenciamento de médicos. Um ano e meio depois dos planos de saúde serem obrigados a cumprir a nova legislação que regulamenta o setor, a situação ainda preocupa os órgãos de defesa do consumidor. De acordo com Lúcia Helena Magalhães, Assistente de Direção do Procon de São Paulo, as principais queixas dos consumidores contra os planos de saúde estão principalmente ligadas aos reajustes e às negativas de cobertura à doenças pré-existentes. Aumentos das mensalidades As queixas em relação aos reajustes dizem respeito, principalmente, aos aumentos sofridos nas mensalidades daqueles que fazem aniversário e passam para uma nova faixa de preços. Desde janeiro de 99, os planos de saúde são obrigados a explicitar contratualmente as sete faixas de idade aprovadas pela nova legislação e que, ao irem sendo vencidas, permitem reajustes de preços. Estas faixas são: dos 0 aos 17, dos 18 aos 29, dos 30 aos 39, dos 40 aos 49, dos 50 aos 59, dos 60 aos 69 e dos 70 em diante, sendo que o valor da última faixa não pode exceder seis vezes o valor da primeira. Esta regra, no entanto, suscita a discussão de que muitos usuários pagam durante toda a vida seu plano de saúde e, quando chegam à idade avançada, são punidos com reajustes abusivos. Doenças pré-existentes e procedimentos de alta complexidade Sobre as doenças pré-existentes, o cliente é obrigado, por lei, a declarar qualquer uma de que já tenha conhecimento, sob risco de ser acusado de fraude. Como contrapartida, caso informe já possuir alguma, ele pode oferecer-se a pagar mais e solicitar ser atendido de qualquer forma - é o chamado contrato com agravo. O problema é que muitas empresas não tem disponibilizado esta alternativa para seus clientes. No caso do agravo, o cliente pode ter uma cobertura parcial, pelo período de dois anos, não cobrindo cirurgia, leito de alta tecnologia e procedimentos de alta complexidade, obtendo, portanto, apenas atendimento ambulatorial para a sua doença pré-existente. Somente a questão da alta complexidade já é um ponto de discordância por parte das associações de usuários e os planos de saúde. De acordo com estas entidades, este conceito não foi bem definido na legislação, gerando diferentes entendimentos pelas operadoras, como justificativa para perpetuar exclusões. “As operadoras descumprem a lei, na medida em que não oferecem opção de escolha ao consumidor”, disse Lúcia Helena. Este prazo de dois anos também vem sendo discutido e considerado extremamente longo pelas entidades. Transplantes Outro aspecto levantado contra a legislação dizem respeito aos transplantes, onde a regra estabelecida exige das empresas apenas a cobertura de transplantes de rim e córnea, sendo que todos os demais estão excluídos (medula, fígado, coração, pâncreas), apesar de igualmente importantes para a preservação da vida e da saúde. Fragmentação dos Planos Também a fragmentação dos planos não é aceita pelas entidades representativas dos usuários, por não aceitarem o conceito de "divisão" do atendimento à saúde. Foram definidos rols de procedimentos – e exclusões – referentes aos diversos tipos de planos: Ambulatorial, Hospitalar com Obstetrícia; Hospitalar sem Obstetrícia; Odontológico; Misto e Referência. Urgências e emergências As urgências e emergências são outro ponto de conflito, uma vez que, embora a lei tenha corretamente estabelecido que, em situação de urgência ou emergência, para preservar a vida e/ou um membro do corpo, o atendimento é obrigatório dentro dos limites do plano adquirido e deve ser imediato, desde que já tenham decorrido as primeiras 24 horas da contratação do plano, uma resolução do CONSU restringiu o direito ao atendimento nessas situações. Procon reúne-se com entidades do setor No último dia 28 de junho, aconteceu em São Paulo uma importante reunião entre o Procon e várias entidades do setor, como a Confederação das Unimeds, a Abrange, Associação Brasileira de Medicina de Grupo e a ANS, Associação Nacional de Saúde Suplementar, além do Conselho Federal de Medicina. O evento ocorreu no Espaço da Cidadania, no Pátio do Colégio, centro de São Paulo, e teve por objetivo discutir os pontos positivos e negativos da Lei, as angústias dos consumidores em relação aos planos de saúde e o descrenciamento dos médicos. As entidades representativas das empresas seguradoras argumentam que as queixas dos consumidores feitas ao Procon são em pequena quantidade, diante do número total de credenciados, que eles afirmam ser de 43 milhões. A ANS, no entanto, afirma que só tem registro de 23 milhões de usuários de planos de saúde, praticamente a metade. O Procon rebate esta afirmação, dizendo que o número de queixas é bastante expressivo e consta como o terceiro do ranking de reclamações do consumidor, perdendo apenas para a telefonia e o setor moveleiro. “Chama a atenção que eles considerem como inexpressivo o número de queixas do consumidor justamente em um setor onde o produto é a saúde”, afirma Lúcia Helena. De janeiro à maio deste ano, foram realizadas 4715 consultas e 690 reclamações somente ao Procon de SP. Na prática, os números permanecem estáveis em relação ao ano passado, não tendo sido observado um aumento significativo no número de consultas ou reclamações. “O que chama a atenção é a discrepância entre o número de consultas e reclamações. Os consumidores tem procurado muito o Procon para esclarecer dúvidas e tentar entender a lei, que já conta com 27 medidas provisórias, 23 resoluções do CONSU (Conselho de Saúde Suplementar órgão governamental que delibera sobre as mudanças e regulação da lei) e 29 resoluções da Diretoria Colegiada da ANS, Agência Nacional de Saúde Suplementar”, aponta Lúcia Helena. Os médicos no tripé dos planos de saúde Da sua parte, os médicos levantaram que é inadmissível que as operadoras tratem de forma banal o descredenciamento, punindo os médicos com baixos pagamentos, prazos longos demais e outras condições ruins de trabalho, o que resulta, em última instância, na perda de qualidade dos serviços para o consumidor. Naturalmente, o principal foco de conflito, que gera o descredenciamento, diz respeito aos honorários pagos pelas operadoras. Além de estarem congelados há pelo menos quatro anos, os valores das consultas e procedimentos médicos pagos pelos planos de saúde vêm sofrendo cortes significativos desde o segundo semestre do ano passado. Os profissionais e serviços que não concordam com a diminuição – que chega a 50% em muitos planos – estão sendo descredenciados. Alguns planos chegam a pagar apenas R$ 10,00 por consulta. O impacto dos custos da recente regulamentação tem sido a principal razão apresentada pelas empresas para aviltar a remuneração dos médicos e dos demais prestadores. De acordo com Regina Ribeiro Parizi Carvalho, conselheira do Cremesp e representante de São Paulo no Conselho Federal de Medicina, também integrante da Câmara de Saúde Suplementar, que acompanha a regulamentação dos planos de saúde, a lógica seguida pelo Governo Federal está centrada na relação entre o consumidor e a empresa, esquecendo o prestador de serviço. “Este enfoque prevalece na Lei 9.656, alterada por seguidas edições de medidas provisórias e é justificável, sobretudo se levarmos em consideração que o usuário sempre foi a maior vítima de um mercado livre e sem lei, o elo fraco da relação, submetido a exclusões, negação de atendimento e abusos de todo tipo”, explica ela, que defende, no entanto, uma ampliação dessa perspectiva. Regina acredita que a atenção à saúde pressupõe uma relação no mínimo triangular, onde a prestação direta de serviços, dirigida aos usuários, depende, sobretudo, dos médicos. Contratos e convênios A crítica de Regina é de que os médicos, ao se credenciarem como prestadores de serviços das operadoras de planos de saúde, firmam contratos ou convênios cujas cláusulas nem sempre são compatíveis com aquelas que foram pactuadas entre empresa e usuário de plano. O que desgasta – e por vezes, de acordo com Regina, inviabiliza – a tão importante relação de confiança entre médico e paciente. “Não apenas os contratos leoninos implodem a relação médicopaciente. Os pacotes de atendimento com valores pré-fixados têm sido outro condicionante. É quando a empresa oferece aos médicos um valor fixo de remuneração para diversos tipos de atendimento ambulatorial, sem levar em conta o grau de complexidade do agravo, dos custos, da eventualidade de complicações ou necessidade de outros procedimentos”. Recentemente, conta Regina, uma conhecida empresa ofereceu a médicos ortopedistas um pacote no valor de R$ 35,00 para atender desde um entorce ou fratura, independentemente na necessidade de raio X e colocação de gesso. “Os desvios não páram por aí. Algumas operadoras pagam valor mais alto para as consultas que não demandam exames complementares, sem levar em conta a patologia do paciente. Já os clínicos, que realizam a triagem de pacientes, são pressionados pelas empresas para não encaminhá-los aos especialistas”, acusa Regina. Regina detalha que as entidades médicas e de defesa do consumidor têm procurado resistir, como fica claro na última reunião do dia 28 de junho, promovida pelo Procon, “mas a verdade é que as empresas manipulam o excedente de médicos com o instrumento do credenciamento de profissionais, impondo regras que no fundo restringem o atendimento e excluem patologias através dos convênios, com os médicos, mas, formalmente, continua cumprindo a lei com o associado ao plano”. Com a falta de estrutura para manter os médicos no interior do País, onde seriam extremamente necessários, as operadoras de planos contam com um exército de reserva ainda maior, podendo, portanto, manipular os profissionais, que se sentem acuados com a dificuldade de inserir-se no mercado de trabalho. “A recente onda de redução de honorários unilateralmente ou o descredenciamento em escala dos profissionais "descontentes’, tornou ainda mais vulnerável uma relação que já era desigual, marcada pela preponderância do capital financeiro em detrimento dos códigos de ética dos médicos e os direitos dos cidadãos”, aponta a conselheira. Fórum de Acompanhamento da Regulamentação dos Planos de Saúde No dia 17 de fevereiro deste ano, reuniram-se na sede do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo cerca de 80 entidades representativas dos usuários, profissionais de saúde e trabalhadores vinculados aos planos de saúde, entre elas o Idec, Conselho Federal de Medicina, Procon/SP e Conselho Nacional de Saúde. Eles criaram o Fórum de Acompanhamento da Regulamentação dos Planos de Saúde e aprovaram um manifesto onde acusam que a Lei 9.656/98 não eliminou os diversos abusos cometidos contra os usuários dos planos privados de saúde, a exemplo da negação de atendimento a diversas patologias, exclusões de procedimentos e exames, descredenciamento da rede contratada (hospitais, médicos e laboratórios), reajustes abusivos de mensalidades, incluindo aumentos por mudança de faixa etária, além de não ter apresentado solução na relação entre a empresa, o usuário e o prestador de serviços. Além disso, eles apontam que a regulamentação da matéria prossegue provocando indefinições para o usuário, que tem encontrado dificuldades para o conhecimento de seus direitos. O manifesto, resultante desta primeira reunião, recomenda, portanto, a revisão da legislação em vigor, especialmente das alterações introduzidas pelas Medidas Provisórias e pelas Resoluções do Consu, contrárias ao Código de Defesa do Consumidor e à própria Lei 9.656/98. Os avanços da regulamentação É necessário dizer, no entanto, que alguns avanços foram feitos a partir da regulamentação dos planos de saúde, principalmente se o compararmos aos projetos de Lei e ao que foi aprovado anteriormente pelo Legislativo. Entre as conquistas da Lei 9656/98, está a de vedar a participação do usuário em função de sua idade, doença preexistente ou deficiência, embora permita o aumento da mensalidade, o que é considerado pelas entidades representativas dos usuários como uma “exclusão pecuniária”. A nova legislação restringiu o descredenciamento de prestadores, hospitais, clínicas e laboratórios, só o aceitando quando em substituição por outro do mesmo nível e obrigando o credenciado a concluir o tratamento daqueles já internados. A Lei também limitou os prazos de carência para no máximo 6 meses, com exceção de parto que prossegue sendo de 10 meses, assim como de doenças preexistentes, estipulados em dois anos. Outra conquista foi a obrigatoriedade da assistência ao recém-nascido nos seus primeiros 30 dias de vida. Também passou a ser proibida a rescisão contratual unilateralmente pela empresa, salvo por fraude ou atraso de pagamento da mensalidade em período superior a 60 (sessenta) dias. Foi ainda garantida a cobertura em saúde mental, inclusive com internação a portadores de transtornos psiquiátricos, mesmo nos quadros de intoxicação e abstinência provocados por alcoolismo ou dependência química. No entanto, a lei restringe essa cobertura a 12 consultas/ano para plano ambulatorial e 30 dias de internação para o plano hospitalar. Com esta nova legislação, ficou assegurado, ainda que com algumas restrições, ao demitido sem justa causa e ao aposentado, que contribuíram com plano coletivo de empresa, o direito de permanecerem no mesmo plano, desde que assumam o pagamento (a mesma mensalidade paga pela empresa). Por último, a Lei de 98 definiu o ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS), toda vez que um usuário de plano de saúde for atendido em hospitais públicos. Já foi, inclusive, editada a TUNEP – tabela única de procedimentos dos planos – que só pode ser usada para fins de ressarcimento ao SUS. Copyright © 2000 eHealth Latin America