Deflação de ativos e concentração de crédito

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Belluzzo, Luiz Gonzaga de Mello. "Deflação de Ativos e Concentração de Crédito." São Paulo:
Folha de São Paulo, 04 de outubro de 1998.
Deflação de Ativos e Contração do Crédito
Autor: Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
Assunto: Economia Internacional
Publicado pela Folha de São Paulo em 04/10/98
Meses atrás, o temor de Alan Greenspan, o todo-poderoso presidente do Fed, era de que, no
auge do atual ciclo expansivo da economia americana, surgissem tensões inflacionárias,
decorrentes do aquecimento da demanda de trabalho, da elevação dos preços das matériasprimas e de serviços e de outros insumos. Numa economia aberta, porém, a ampliação do
déficit na conta de comércio impede que a força da demanda interna em expansão possa se
materializar numa aceleração inflacionária, ainda que os salários reais mostrem inclinação
para subir. Além disso, a estagnação européia e a longa recessão japonesa ensejaram um forte
ingresso de capitais na economia americana. Esses capitais eram atraídos tanto pela elevada
rentabilidade prometida pelo investimento produtivo quanto pela perspectiva de expressivos
ganhos com a valorização dos ativos financeiros nos Estados Unidos. A entrada de capitais
determinou, a partir de 1996, uma continuada valorização da taxa de câmbio, ampliando o
déficit comercial. Depois das desvalorizações em cadeia que acompanharam a crise asiática,
o fenômeno tornou-se mais grave. É provável que o déficit comercial americano aproxime-se
dos US$ 300 bilhões este ano. Os números do Departamento do Comércio dos Estados
Unidos mostram que a tendência é de crescimento das compras externas apesar da queda de
preços dos bens importados e de recuo acentuado das exportações. Não é de espantar que os
mercados venham revelando uma especial sensibilidade diante das expectativas pessimistas
quanto ao fluxo de lucros esperados pelas empresas com ações cotadas em Bolsa. Os lucros
estão declinando, revelam os balanços trimestrais. Isso vem acontecendo não só por conta de
uma desaceleração dos dispêndios na acumulação produtiva e da queda das exportações,
como também em razão do crescimento das importações baratas. A combinação entre esses
fatores costuma provocar forte erosão dos lucros, tornando evidente a "exuberância
irracional'' das avaliações dos preços das ações, quando seus rendimentos são descontados à
taxa de juros corrente. Assim, à medida que o déficit comercial se amplia, o investimento
desfalece e o ritmo de crescimento diminui afetando a rentabilidade esperada das empresas,
cresce a probabilidade de uma correção dos preços inflados das ações. Pode-se imaginar,
diante dessa perspectiva, que os investidores privados estrangeiros evitem aumentar, em suas
carteiras, a participação dos ativos denominados em dólares. Esse rearranjo de porta-fólios,
antecipando-se a um possível ciclo "baixista'' nos mercados financeiros americanos, coloca as
autoridades monetárias americanas diante de decisões complicadas, sobretudo às vésperas da
introdução da moeda européia. O temor da saída de capitais recomendaria a manutenção ou
até mesmo a subida dos juros de curto prazo. Tais medidas poderiam, no entanto, tornar mais
agudo e rápido o processo de "encolhimento'' da bolha formada pelo crescimento
desmesurado dos preços dos ativos financeiros. Um colapso abrupto dos preços levaria
inevitavelmente a economia à depressão, devido ao caráter cumulativo e de auto-reforço
assumido pela deflação de ativos.
Senão vejamos: dado o elevado grau de alavancagem que sustenta grande parte das posições
dos fundos (de pensão, mútuos e, sobretudo, os de "hedge'') em bônus de alto rendimento,
ações e derivativos, as famílias serão colocadas diante de um crescimento inesperado das
suas dívidas, tanto em relação à renda quanto em relação aos respectivos patrimônios. No
caso das empresas também envolvidas no processo de fusões e aquisições, movido a crédito
ficará exposta uma situação em que a relação dívida/capital próprio cresce involuntariamente,
piorando o "rating'' e tornando desfavorável a tomada de novos empréstimos ou a renovação
dos antigos. Essa degradação do valor de mercado das empresas e de sua situação de
endividamento provocará, por certo, ulteriores desvalorizações de suas ações. Os
consumidores, por sua vez, "empobrecidos'', buscarão recompor a relação desejada
riqueza/renda, devendo, para isso, aumentar a poupança corrente. Isso significa que o corte
nos gastos de consumo será provavelmente muito pronunciado, atingindo particularmente os
setores que se alimentaram da inflação de ativos e da expansão do crédito, os bens de alto
valor e os serviços diferenciados. São exatamente esses setores os que experimentaram maior
crescimento relativo na expansão recente. A reação do sistema bancário diante da degradação
do valor dos ativos comprados a crédito, da ampliação generalizada das margens de
endividamento das famílias e das empresas e da depreciação das garantias contratuais não
pode ser outra senão a de contrair ainda mais violentamente o crédito, provocando um "credit
crunch'' e acelerando a caminhada da economia para a depressão. Nesses ciclos comandados
pela inflação de ativos, as autoridades monetárias estão sempre colocadas diante do risco de
um crash de enormes proporções, o que as obriga a tentar suavizar a aterrissagem, mediante
uma expansão da liquidez. Não é por acaso que todos clamam por uma baixa das taxas de
juros nos EUA. Baixar os juros para impedir que o sistema bancário provoque a contração do
crédito, lançando a economia numa crise de liquidez. No entanto, numa economia aberta, em
que a finança direta tornou-se importante, a queda da taxa de juros e a expansão monetária
podem não ser tão eficazes. Caso continuem firmes as ordens de venda, os preços já
deprimidos dos ativos privados não se recuperam o suficiente para cobrir os prejuízos.
Nessas circunstâncias, a contração do crédito será ainda mais profunda, estimulando a fuga
de capitais e a intensificação das pressões sobre o dólar. É nesse ambiente de contração
generalizada do crédito e de graves problemas de liquidez que os países outrora emergentes
deverão providenciar os seus programas de "ajustamento''. Receitas deflacionárias do FMI
serão não só ineficazes para os pacientes como jogarão mais água no moinho da recessão
global. Num contexto de crescente interpenetração e interdependência dos mercados de
riqueza, a divergência cíclica entre os países centrais _a Europa poderia ser o novo refúgio
dos capitais voadores coloca sérias restrições às políticas de regulação e estabilização das
economias nacionais. Entre os problemas, está a possibilidade de flutuações exacerbadas
entre as taxas de câmbio das moedas centrais, ampliando os movimentos de capitais
causadores de instabilidade e acentuando os riscos de uma disrupção financeira à escala
global. Neste momento, não há outra saída senão uma coordenação bem azeitada entre os
bancos centrais mais importantes, com o propósito de administrar uma queda das taxas de
juros. Tal ação coordenada das autoridades monetárias servirá apenas para impedir a
precipitação de uma crise severa, se isso ainda é possível. Mais à frente, será incontornável a
reforma do sistema monetário internacional das regras cambiais, dos mecanismos de
provimento de liquidez e de ajustamento dos balanços de pagamentos. Isso, no entanto, de
nada adiantará se o controle de capitais não for instituído como "um elemento permanente do
sistema'', como dizia Keynes nos trabalhos preparatórios da reforma levada a cabo em
Bretton Woods, nos idos de 1944.
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