O dólar caro veio para ficar

Propaganda
Gontijo, Dawber. “O dólar caro veio para ficar”. São Paulo: Valor Econômico, 26 de novembro de
2001. Jel: E, F
O dólar caro veio para ficar
Dawber Gontijo
A alta do dólar que nos últimos meses causou apreensão na economia brasileira nada mais foi do que o
reflexo da significativa deterioração do cenário externo e interno, em que se sobrepuseram o
desaquecimento da economia americana e da economia global (agravados pelos ataques terroristas de 11
de setembro), o agravamento da crise argentina, a eclosão da crise energética e a aproximação das
eleições de 2002. A redução da oferta e o aumento da demanda por dólares foram a reação natural dos
agentes econômicos ao aumento dos riscos a que se expunha uma economia com expressivas
necessidades de financiamento externo, como a brasileira.
Boa parte dos analistas parece ter se convencido de que o câmbio tem passado por processo de
"overshooting", no qual a taxa de câmbio nominal se descola temporariamente da taxa de câmbio real de
equilíbrio. Sendo assim, o descolamento teria que se auto-corrigir em algum momento, seja pelo do recuo
do dólar, seja pela aceleração dos preços domésticos. Essa visão, entretanto, nos parece equivocada. Há
boas razões para se acreditar que um câmbio permanentemente mais fraco veio para ficar.
A desvalorização recente certamente não decorreu de uma ação deliberada da política econômica. Pelo
contrário, durante alguns meses as políticas monetária e fiscal foram orientadas para conter a queda do
real frente ao dólar, o que fazia sentido diante da hipótese, à época justificável, de que a deterioração da
percepção de risco era transitória. Mas isso é passado. A avaliação do cenário externo e interno indica que
os riscos devem tomar mais tempo para se dissipar. A alta do dólar é uma realidade e é a partir dela - e
dos seus custos e benefícios - que se deve avaliar a trajetória futura da política econômica.
Os custos associados à desvalorização são relativamente claros. Com o dólar fechando o ano em torno de
2,70 reais, o IPCA deve fechar 2001 em 7,2%, contra um teto de 6% definido para o período. Além disso,
a expectativa do mercado para o IPCA em 2002 está em 5%, segundo pesquisa do próprio Banco Central,
contra a meta central de 3,5% e o teto de 5,5%. Ainda que desconfortável, a alta da inflação é plenamente
justificável diante dos choques mencionados acima. Ter tentado trazer a inflação para o centro da meta
nesse período teria tido um efeito muito negativo sobre a atividade econômica, sem contar os riscos
associados à trajetória da dívida pública decorrentes da elevação dos juros.
Além desse desconforto, há ainda um outro custo expresso em termos de credibilidade do regime de
metas de inflação. A expectativa de alta de 5,0% do IPCA em 2002 sinaliza que o mercado não tem como
certo o comprometimento do Banco Central em perseguir o centro da meta sob quaisquer circunstâncias.
Ainda que justificável - e assumindo que verdadeira - não há como negar que essa postura implica alguma
perda de eficácia da política monetária dentro do regime atual. A partir de agora, mesmo um recuo da
expectativa de inflação - ou da inflação efetivamente apurada - pouco faria para recuperar essa eficácia,
dado que ela depende mais da percepção sobre a disposição ou a capacidade do BC de cumprir a meta sob
circunstâncias adversas do que do seu cumprimento em si, obtido em circunstâncias satisfatórias. De
qualquer forma, esses custos já foram assimilados e não devem causar nenhum impacto negativo
adicional nos mercados.
Os benefícios advindos da desvalorização, por sua vez, só há pouco começaram a se fazer sentir na forma
de uma expressiva melhora da balança comercial, concentrada na queda das importações. Embora o
desaquecimento da economia também tenha sido importante no processo, grande parte da queda das
importações (e da leve melhora das exportações, apesar das condições adversas do comércio
internacional) se deveu à alta do dólar. A desvalorização também induz um efeito significativo sobre
outros itens do balanço de pagamentos, com destaque para a conta de turismo, dividendos e investimentos
diretos (nesse caso, sob certas circunstâncias). De qualquer forma, a persistência e o aprofundamento da
melhora das contas externas requer um dólar mais alto. Uma taxa de câmbio permanentemente mais fraca
- e percebida como tal - é uma peça decisiva de um processo gradual e economicamente eficiente de
substituição de importações e incentivo às exportações.
Diante dessas considerações, é de se esperar uma atitude complacente - e até receptiva - da política
econômica frente à desvalorização do câmbio. Nesse sentido, uma melhora da percepção de risco-Brasil
abre espaço para um corte da taxa Selic e um gradual reaquecimento da economia, ainda que às custas de
se impedir uma queda substantiva da taxa de câmbio e da inflação. A alternativa seria manter estáveis os
juros, abrindo espaço para um recuo razoável do dólar e uma queda moderada da inflação, mas ao custo
de uma atividade econômica anêmica. Nada alentador para um ano eleitoral.
A conclusão de que o real deve permanecer fraco se estende além de 2002, por duas razões principais. A
primeira se relaciona a um certo desconforto de vários segmentos da sociedade com o ritmo de
crescimento da economia. Podem-se alegar legitimamente condições externas adversas e a extensa agenda
de reformas implementada como causas da modesta expansão econômica dos últimos anos (a política de
câmbio administrado é bem menos defensável, para dizer o mínimo). De qualquer forma, a aceleração do
crescimento econômico será um ponto essencial da agenda do próximo governo, qualquer que seja ele.
A segunda razão é o consenso que tem se formado em torno da idéia de que é preciso reduzir a
dependência externa do país, identificável no teor das declarações de praticamente todos os précandidatos à Presidência e de suas assessorias econômicas. Esse consenso encontra respaldo no
desempenho da economia brasileira nos últimos anos face às mudanças das condições econômicas
internacionais. Diante da perspectiva de manutenção da instabilidade dos fluxos de capitais internacionais
pelos próximos anos, torna-se inviável atrelar o nível atual de dependência externa a uma estratégia de
crescimento sem grandes sobressaltos.
A implementação simultânea desses dois objetivos - crescimento mais alto e déficit externos mais baixos
- requer inequivocamente uma taxa de câmbio permanentemente mais desvalorizada pelos próximos anos,
mesmo diante de um cenário externo mais favorável. A contrapartida disso será uma inflação ligeiramente
mais alta, por algum tempo. Se essa for a escolha da sociedade, que assim seja.
Download