Ilusões perdidas LUIZ GONZAGA BELLUZZO O presidente Fernando Henrique estaria desgostoso com os defensores da desvalorização do real. Diante das dificuldades e incertezas do cometido, passaram a criticar o "modus operandi" da equipe econômica. É difícil, senão inútil, tentar descobrir em que registro funciona a cabeça de certas pessoas. Mas é improvável que os críticos mais avisados do real forte tenham imaginado a desvalorização como um episódio de Alexandre Dumas, em que os mosqueteiros, liderados pelo intrépido D'Artagnan, derrotam os guardas do Cardeal. O roteiro da desvalorização parece ter sido escrito para um filme dos Trapalhões dirigido com a lúcida crueldade de Tim Burton, aquele de Marte Ataca. Primeiro, desde setembro, depois da moratória da Rússia, estava claro que os marcianos do mercado financeiro internacional iriam lançar um "ataque" fulminante contra os ativos de maior risco, posições de alta rentabilidade que vinham perseguindo com avidez desde o começo dos anos 90. Depois da crise asiática, a desconfiança em relação aos emergentes se manifestou por meio de uma elevação dos "spreads" médios entre os papéis de maior risco e os títulos de igual prazo emitidos pelo Tesouro americano. Na posteridade do "default" russo, a aversão ao risco assumiu a forma de volta para casa. Este, diga-se, é o único caso em que a fuga é, ao mesmo tempo, um ataque mortal às casamatas da vítima. É preciso reconhecer que a equipe econômica identificou a natureza qualitativamente distinta do episódio. Tanto é verdade que buscou o acordo com o Fundo, acompanhado por um aporte "preventivo" de recursos financeiros. Nesse momento, nossas reservas andavam lá pela casa dos US$ 70 bilhões. O Fundo exigiu o de sempre: ajuste fiscal, metas rigorosas para o crédito líquido doméstico, limites para o endividamento externo de curto prazo. Curiosamente, e -na visão de muitos- numa decisão incompatível com os supostos de seu próprio "modelo" de ajustamento, o Fundo concordou com a manutenção da política cambial vigente. O mercado percebeu que esse "monstrum vel prodignum" da tecnocracia globalitária teria vida curta. Intensificaram-se, assim, os ataques contra a cidadela em ruínas do emergente sitiado. Há dúvidas quanto à origem da desastrosa manobra tática patrocinada por alguns brasileiros e acolhida pelo Fundo Monetário: erro crasso de avaliação, sensibilidade eleitoral ou um aviso para que os capitais se mandassem usufruindo os benefícios de uma taxa de câmbio favorecida? Certamente um pouco de cada coisa. Seja como for, chegamos a janeiro à beira de um ataque de nervos. A velocidade da perda de reservas tornou impossível a defesa do real. O governo foi obrigado a desvalorizar "in extremis", não sem antes protagonizar o episódio grotesco da banda cambial-diagonal-endógena. Lembrou-me o professor João Manuel Cardoso de Mello que a última tentativa de se aplicar a diagonal -famosa e igualmente desafortunada- foi observada no esquema tático adotado pelo treinador Flávio Costa na Copa de 1950. Anunciaram, então, um regime cambial de livre flutuação. Muita gente entendia que, dado o desequilíbrio estimado, ao longo deste ano, entre a oferta e a demanda de dólares, a flutuação livre teria poucas chances de estabilizar o câmbio. Estabilizar, no caso, significaria definir um valor nominal do dólar compatível com expectativas civilizadas de inflação e, ao mesmo tempo, a manutenção de uma taxa de câmbio real capaz de sinalizar para uma redução significativa do déficit em transações correntes, sobretudo mediante uma reversão do saldo comercial. Mesmo admitindo que a demanda especulativa por reais tenderia a aumentar à proporção em que o dólar se tornasse muito caro, ainda assim seria bastante improvável, diante do desequilíbrio estrutural e do desarranjo das expectativas, que o curso do câmbio se assentasse no nível desejado por obra e graça da operação das forças do mercado. Quando o ministro Pedro Malan e o então presidente do Banco Central, Francisco Lopes, voaram para Washington, os ingênuos de sempre imaginaram que seria pleiteada e conseguida junto ao Fundo Monetário, na pior das hipóteses, uma antecipação dos tais recursos "preventivos". Há indícios de que os funcionários brasileiros fizeram, de fato, essa reivindicação. A resposta do Fundo parece ter sido a seguinte: "Vocês tratem de subir imediatamente a taxa de juros para conter a inflação e segurar a grana, mas não mexam nas reservas". Resumo da ópera: os burocratas do Fundo gritaram fogo com o teatro lotado. Não foram os especuladores, mas o público informado, em geral, que interpretou tal gesto de loucura como ineficaz para conter a inflação de custos, deflagrada pelo dólar alto, mas bastante eficiente para promover uma trajetória não sustentável da dívida pública. O que aconteceu naquela sexta-feira trágica é de conhecimento geral. Pode-se apostar que o preço do dólar, flutuando entre R$ 1,85 e R$ 1,90, vá provocar apenas um soluço inflacionário, logo abafado pela recessão e pela queda dos salários reais. Mas são grandes as chances de vingarem as previsões que sustentam a possibilidade de um avanço mais intenso da inflação, caso a dolarização -que ainda não ocorreu integralmente- venha contaminar as expectativas dos formadores de preços. Se assim for, estará remontado circuito infernal da indexação dos preços, juros e câmbio nominais. É crucial, portanto, neste momento, que a ação do Banco Central seja capaz não apenas de reduzir a volatilidade do câmbio, mas também de fazer o preço da moeda estrangeira regredir para um nível adequado. Que bom seria, se a história do Real pudesse fluir da pena romântica de Dumas. Seu desfecho, no entanto, parece exigir um escritor habilitado às narrativas realistas, em que os personagens encarnam processos sociais, políticos, econômicos e culturais. O professor Fernando Henrique, eu suponho, é um leitor de Balzac. Certamente aprecia a esplendorosa construção do personagem central, Lucien de Rubempré, que atravessa as Ilusões Perdidas tentando equilibrar-se entre os ideais de jovem jornalista da província e as ambições despertadas pelo "grand monde" parisiense de meados do século 19. Rubempré, como tantos personagens da Comédia Humana, sucumbe às ambições, não sem antes cuidar de se desvencilhar de ideais incômodos. Luiz Gonzaga Belluzzo, 55, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).