CARTA ABERTA AO GOVERNO DO ESTADO E À SOCIEDADE GAÚCHA SOBRE A ATUAL SITUAÇÃO DA FUNDAÇÃO DE ATENDIMENTO SÓCIO-EDUCATIVO DO RIO GRANDE DO SUL – FASE-RS No ano que comemoramos a maioridade do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, assistimos ações governamentais que se resumem em um retrocesso aos avanços alcançados a muito custo nos últimos dezoito anos. As conquistas decorrentes de árduo trabalho de mudança do paradigma cultural trazidas com a Constituição Federal de 1988 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente têm se esvaído de forma avassaladora com o descaso com que a atual gestão trata da privação de liberdade em nosso Estado. As conseqüências desse momento que estamos vivendo são incalculáveis. Não temos muito o quê comemorar. Os últimos episódios envolvendo a FASE, que culminaram com o pedido do Ministério Público de afastamento do atual Presidente, são o reflexo de um processo de descaso com a política de atendimento às medidas sócio-educativas de internação e semiliberdade, que vem se agravando nos últimos anos. Para que se dimensione o agravamento dessa situação, é preciso que se compreenda a responsabilidade enorme que é executar medidas sócio-educativas de privação de liberdade que, de forma alguma, pode ser tratada com descaso, sob pena de fracassar a proteção integral e se instaurar-se o caos institucional. Para que isso não ocorra, é necessário o fortalecimento dos operadores dessa política para enfrentamento de momentos de crise como o que por ora se vivencia, e que destes episódios possam ser extraídos algum cunho resiliente aos gestores, trabalhadores e Adolescentes. Estamos aqui tratando da efetivação da garantia de direitos e de prioridade absoluta, convocando a todos para uma reflexão sobre o modelo de sociedade em que vivemos e o modelo que queremos para viver. Há necessidade de que se efetive o caráter pedagógico das medidas sócioeducativas preconizado pelo ECA, dando-se interpretação no sentido mais abrangente da efetivação da garantia de direitos, uma vez que as disposições contidas nesta Lei se referem a proteção integral de Crianças e Adolescentes (art. 1º). E proteção integral só se realiza com ações que passam por investimento financeiro, respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, condições dignas de cumprimento de medida sócioeducativa – e condições dignas para os trabalhadores – a fim de compor uma outra possibilidade nas trajetórias de vida de Adolescentes privados de liberdade. É a proteção integral tem disposição legal, portanto é um direito do Adolescente e não uma benesse ideológica. Na execução de medias sócio-educativas com privação de liberdade, o cumprimento mínimo das disposições do ECA garante direitos, sendo necessário que, entre outros, seja o Adolescente tratado com respeito e dignidade, seja proporcionada a realização de atividades pedagógicas, tenha acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal, habite alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade, receba escolarização e profissionalização, realize atividades culturais, esportivas e de lazer. Os relatos recebidos dão conta de uma situação antagônica aos direitos dispostos no ECA, estando os Adolescentes ociosos, com insuficientes atividades profissionalizantes, escolarização deficitária (algumas Unidades com aulas somente duas vezes na semana), poucas atividades recreativas e culturais. Mas isso não é o maior problema: as condições de habitabilidade de algumas Unidades de Internação são mínimas, graves e inadmissíveis, traduzindo condições indignas de permanência de seres humanos, com espumas jogadas no chão sem lençóis, toalhas de banho divididas entre os internos, entre outros lamentáveis relatos. Além disso, a escassez de material de higiene e material de limpeza transformam o ambiente em insalubre, proporcionando propagação de doenças como escabiose. Por outro lado, o que se vê são procedimentos burocratizados em relação à sociedade civil em geral, com a dificuldade de ingresso de organizações nãogovernamentais para execução de projetos com àquela população e entraves aos órgãos de controle social e defesa, dificultando a fiscalização da sociedade sobre o que se passa para além dos muros da FASE. Não é hora de se transferir responsabilidades: a FASE tem que garantir condições de respeito e dignidade aos Adolescentes. Não há espaço para desculpas e justificativas calcadas na burocracia. São necessárias ações imediatas que se fundem em investimentos financeiros para uma população que tem (ou deveria ter) prioridade absoluta (art. 4º do ECA). Quaisquer projetos que estejam sendo elaborados serão para o futuro, mas o clima de caos que está sendo vivido só se resolve com ações imediatas, e com planejamento de ações para resultados a curto, médio e longo prazo. Não estamos tratando de política de governo, mas de política de Estado e essa política de Estado está concretizada no PEMSEIS – Programa de Execução de Medidas Sócio-Educativas de Internação e Semiliberdade, no SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo e ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Estes são os instrumentos orientadores do processo político-pedagógico. E esses instrumentos são o que se têm em vigência e que foram construídos coletivamente no cenário nacional e estadual, não podendo ser desconsiderados. De nada adianta o recrudescimento da legislação que assiste à juventude autora de ato infracional, se não efetivarmos as políticas públicas para esse segmento e não concretizarmos de forma universal as disposições do artigo 227 da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como respeitar os instrumentos internacionais garantidores de direitos humanos e fundamentais de crianças e adolescentes, que o Brasil é maciçamente signatário. Com tudo isso, afirmamos que as medidas sócio-educativas são a alternativa viável no sentido da responsabilização de adolescentes, sendo necessário que se garanta a efetivação positiva das disposições legais no sentido de constituir uma política pública que perpasse governos e se realize como política de Estado. E para isso, de nada adianta o maior recrudescimento da legislação e a redução da maioridade penal. Temos que entender o ECA como uma lei de políticas públicas e o adolescente autor de ato infracional como o retrato do fracasso das demais políticas que deveriam tê-lo alcançado. Somente com significativo investimento financeiro, seriedade nas propostas, planejamento e afirmação da garantia de direitos podemos ter a chance de diminuir os índices de reincidência, para ter uma sociedade melhor, mais justa, pautada por uma cultura de paz. Diante das considerações aqui apresentadas, ficam os questionamentos: Quê política sócio-educativa queremos? Em que sociedade queremos viver? Porto Alegre/RS, outubro de 2008. Fórum Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente