O II PND e a peculiar estratégia brasileira durante a crise internacional dos anos 70 Dennys Montagner1 Gustavo Machado Cavarzan2 Resumo Este artigo tem por objetivo discutir as diferentes interpretações do pensamento econômico acerca do II PND. Concebido no governo do General Ernesto Geisel, o plano tinha por finalidade última superar o subdesenvolvimento do país. Esse período da história do país (1974-1979) foi alvo de um intenso debate entre os economistas, que será aqui analisado, a fim de se compreender de que forma desenvolveu-se a política industrial do plano, de modo que esta se colocou frente ao intento de corrigir os desequilíbrios do padrão industrial brasileiro, vigente a partir dos anos 50. Palavras-chave: Economia Brasileira; II PND; Pensamento Econômico; Política Industrial Abstract The main objective of this article is to discuss the different interpretations of the economic thought about the II PND. Conceived in Ernesto Geisel´s government, the plan had the last finality to overcome the underdevelopment of the country. This country´s history period (1974-1979) was subject of an intense debate between economists, which will be studied with the purpose to understand the development of the industrial policy of the plan. It has the intention to correct the imbalances of the brazilian’s industrial standard started in the 50´s years. Keywords: Brasilian Economy; II PND; Economic Thought; Industrial Policy 1. Introdução Em 1973 a criação de uma nova estratégia por parte dos formuladores de política econômica se mostrava indispensável com o advento do primeiro choque de preços do petróleo. Criara-se então uma nova situação estrutural na economia mundial e os diferentes países teriam que, de alguma forma, se ajustar ao novo cenário político-econômico mundial 1 Graduado em História pela Unesp/Franca e Mestrando em História Econômica pelo Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista da Capes. 2 Graduado em Economia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Mestrando em História Econômica pelo Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista da Capes. que era de alerta geral. Em outubro daquele ano o Estado de Israel seria atacado por Egito e Síria, o que desaguaria na Guerra do Yom-Kippur.3 Como forma de retaliação aos EUA, que davam suporte ao Estado de Israel, inclusive com fornecimento de armamentos durante a guerra, os países membros da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) utilizaram, de forma inédita, a principal arma que possuíam, a saber, o controle sobre o mercado de petróleo. Passado pouco tempo do inicio da guerra os preços do bem haviam quadruplicado, passando de US$ 3 o barril para US$ 12 o barril.4 Os efeitos de tamanha alta nos preços do petróleo foram tão significativos que houve uma transferência de renda dos países consumidores para os produtores da commoditie da ordem de 2% do PIB dos primeiros, cerca de US$ 60 bilhões no ano de 1974.5 A amplitude do acúmulo de divisas por partes dos membros da OPEP pode ser apreciada nas palavras de Heilbroner: Em 1973 e 1974, os exportadores mundiais de petróleo aumentaram seus ganhos de 40 para 120 bilhões de dólares, provavelmente a mais extraordinária “mina” de toda a história, incluindo até a descoberta de ouro na América pelos espanhóis, no século XVI.6 O primeiro choque do petróleo começa a se desenhar no ano de 1973. Em uma tentativa de recuperar territórios perdidos na Guerra dos Seis Dias (1967), os países árabes atacam o Estado de Israel no dia 6 de outubro de 1973, feriado religioso judeu no qual é comemorado o “dia do perdão”, ou Yom Kippur. Tinha início a IV guerra árabe-israelense. Como já mencionado, os EUA mantinham posição claramente favorável a Israel e a conseqüência deste apoio veio com a retaliação imposta pelos países árabes materializada no primeiro grande choque dos preços do petróleo. Segundo João Paulo dos Reis Velloso: A partir do dia 16 de outubro, a guerra alcançou uma nova dimensão, com o uso da “arma do petróleo”, para, pela primeira vez, fixar unilateralmente o preço, através da OPEP. Já se indicou como isso resultou, em curto período, na elevação do preço do petróleo para US$ 12 por barril, após o embargo e os cortes na produção. 7 3 VELLOSO, J. P. R. O Último Trem para Paris. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Ibid. 5 VELLOSO, J. P. R. op. cit. 6 HEILBRONER, R.. A Formação da Sociedade Econômica. 5 ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987, p. 325. 7 VELLOSO, J.P. R. op. cit., p. 161-162. 4 Ilustração maior da enorme transferência de renda ocorrida é a reversão da conta corrente dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) entre 1973 e 1974. Em 1973 observava-se um superávit de US$19 bilhões na conta corrente de tais países. Já em 1974 o saldo em transações correntes destas economias foi negativo em US$ 16,5 bilhões. Por outro lado, os países da OPEP passaram a ter um superávit de US$ 62 bilhões em 1974, ante um saldo de US$ 9 bilhões em 1973. 8 Nos países em desenvolvimento as dificuldades eram ainda maiores, já que, além de também serem bastante dependentes da importação de petróleo, ainda sofriam com as dificuldades de obter receitas de exportação, pois os países desenvolvidos, que eram tradicionalmente seus mercados consumidores, encontravam-se em um período de recessão. O déficit em transações correntes dos países subdesenvolvidos passou de US$ 11,5 bilhões em 1973, para US$ 31 bilhões em 1974 e US$ 37 bilhões em 1975. 9 Os países desenvolvidos, através de políticas recessivas, conseguiram amenizar e, até mesmo, reverter os déficits em conta-corrente – em 1975, os países da OCDE já tinham um superávit em transações correntes de US$ 12 bilhões – e, mais, os déficits parecem ter sido deslocados para os países subdesenvolvidos. “Como se vê, em 1975, o superávit da OPEP tinha aproximadamente sua contrapartida no déficit dos países subdesenvolvidos”. 10 Diante do novo cenário internacional, mostrava-se claro que os países precisariam traçar novas estratégias a fim de atravessar, sem graves seqüelas, aquele período conturbado. As dificuldades surgiam não só em função da quadruplicação dos preços de uma das principais commodities do mundo, o petróleo, da qual a grande maioria das economias tinha dependência evidente, mas também de um efeito em cadeia que tal elevação de preços causava. Qualquer produto derivado direta ou indiretamente do petróleo teria, também, os seus preços inflacionados no mercado, o que contribuiria para agravar o já flagrante desequilíbrio na conta corrente do balanço de pagamentos de países dependentes de importações de tais produtos. Considerando-se este cenário internacional, na seqüência serão abordadas as peculiaridades da estratégia brasileira, materializada no II PND, com especial ênfase na 8 Ibid. VELLOSO, J.P. R. op. cit. 10 Ibid., p. 163. 9 política industrial, bem como alguns apontamentos acerca das diferentes visões acerca do plano. 2. A política industrial do II PND O objetivo central da estratégia do II PND era criar condições para a implementação de um novo padrão de industrialização no Brasil, onde o dinamismo industrial passaria a ser ditado pelo setor de bens de produção, o que, até então, não havia sido alvo de significativas políticas estatais de desenvolvimento econômico. Aliado a essa nova estratégia de investimentos aparecia implicitamente a idéia de corrigir os desequilíbrios da organização industrial11, o que faria com que o parque industrial nacional adquirisse a capacidade autofinanciamento dinâmico, ou como bem ressaltou Tavares, a industria deixaria de depender de “decisões autônomas de investimento nas quais o Estado, em associação com o grande capital internacional, joga um papel decisivo”12. O Estado teve um papel fundamental de financiador de longo prazo de modo a assumir a alavancagem de investimentos em infra-estrutura, que por sua vez garantiriam uma demanda a ser atendida pelos setores à frente da base industrial. A participação do Estado no processo de modificação do padrão industrial garantiria que a concorrência não desbancasse nenhum agente econômico associado, ou seja, no bojo do planejamento deveriam ser definidas as áreas de atuação de cada um, sendo que quando houvesse concorrência por um mesmo setor, que esta fosse leal e incentivadora da modernização e do acesso social aos bens e\ou serviços gerados naquele setor. Nestes termos, o II PND projetava no Estado a responsabilidade pelo equilíbrio entre os agentes econômicos, como nos demonstra Lessa nesta passagem: O Estado é um escolhedor de uma taxa de crescimento, de um sistema de preços relativos, da gradual constituição de um mercado de massas, etc; é um protetor (dos fracos e pequenos); é portador de uma ética e um juiz (diferenciando bons de selvagens comportamentos); é um demiurgo (constituindo ou fortalecendo a grande empresa nacional); é o sujeito racional e de visão (produtor das estratégias de média e longo prazos). E não é apenas o construtor e promotor do desenvolvimento social: será seu garantidor permanente velando para que no 11 LESSA, C. A estratégia do desenvolvimento (1974-1976): sonho e fracasso. Brasília, DF: FUNCEP, 1988, p. 17. TAVARES, M. C. Ciclo e crise: o movimento recente da industrialização brasileira. Campinas, SP: UNICAMP-IE, 1998, p. 80. 12 interior da Sociedade construída não venham a haver afastamentos das pautas do comportamento adequado13. No centro das ações políticas, econômicas e sociais, o Estado exercia seu poder colocando-se na condição de agente capaz de fortalecer a empresa nacional e de direcionar as ações das empresas estrangeiras para a promoção do desenvolvimento brasileiro14. Assim, era a harmonia entre Estado, empresa nacional, e empresa estrangeira que garantiria a superação do subdesenvolvimento, tendo em vista que esse modelo solucionaria as desigualdades regionais e sociais, por meio de um mecanismo redistribuidor de renda. No entanto, o que se viu, a partir da análise da participação do setor publico e privado no que tange aos investimentos, foi algo diferente do que a estratégia havia previsto. Tomando-se o período que vai de 1974 a 1976 observa-se que o investimento cresceu acima da produção corrente, atingindo um pico nos anos 75/76 de 25% do PIB. Já no período 1977 a 1980 a tendência da taxa de investimento inverteu-se e passou a recuar ano a ano15. Outro fato importante, ressaltado por Serra, é a constante diminuição do investimento privado e sua substituição pelo investimento público realizado pelas empresas estatais16. Isso reflete a modificação do padrão histórico de associação entre o capital estatal e privado (nacional e estrangeiro), dado principalmente pelo horizonte da recessão internacional o que traria a impossibilidade de manter os níveis de crescimento anunciados pela monta de investimentos realizados entre 1974 e 1976. O Estado então assumiu o risco da continuidade desses investimentos, o que levou a afirmação de Lessa de que em 1977 o padrão de desenvolvimento previsto no inicio do plano havia terminado. A política industrial do II PND estava voltada para a consolidação da empresa privada nacional, nesse sentido era primordial a geração de uma tecnologia genuinamente brasileira, ou seja, era imperativo reduzir a dependência externa, criando oportunidades 13 LESSA, C. op. cit., p. 31. Ibid., p. 28. 15 CARNEIRO, R. Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XX. São Paulo: Ed. Unesp; Campinas: IE/Unicamp, 2002, p. 65-66. 16 Segundo dados apontados por Coutinho, os investimentos das estatais passaram de 23,5% do total em 1974 para 28,5% em 1979, enquanto que a participação dos investimentos privados caíram de 60% do total em 1974 para 55% em 1979. COUTINHO, L. REICHSTUL, H. F. Investimento estatal 1974/80: ciclo e crise. In: BELLUZZO, L. G. M., COUTINHO, R. Desenvolvimento capitalista no Brasil: ensaios sobre a crise. São Paulo: Brasiliense, 1983, v.2; SERRA, J. Ciclos e mudanças estruturais na economia brasileira do pós-guerra. In: BELLUZZO, L. G. M., COUTINHO, R. Desenvolvimento capitalista no Brasil: ensaios sobre a crise. São Paulo: Brasiliense, 1983, v.1. 14 para exportar tanto produtos de baixo valor agregado (agropecuários), bem como produção tecnológica. Desta forma, a política econômica estava voltada para a correção dos desequilíbrios intersetoriais, no entanto, segundo nos mostra Tavares, o crescimento industrial no país sempre dependeu de investimentos exógenos, que não eram gerados dentro do próprio ciclo do crescimento industrial17. Vejamos isso de forma mais detalhada: O caráter acentuadamente cíclico do crescimento industrial brasileiro, a partir da segunda metade da década de 50, deve-se sobretudo a estrutura setorialmente desequilibrada de crescimento da própria industria. Quando se compara a dimensão relativamente reduzida da base produtiva dos setores líderes com a expansão rápida de sua demanda final, fica em evidência o caráter do desequilíbrio dinâmico. Os ritmos de crescimento do investimento e da produção corrente de bens duráveis de consumo e de capital podem acelerar-se periodicamente mas não são capazes de auto-sustetar-se por muito tempo 18. O que a autora ressalta é que a disparidade no crescimento dos setores, ou seja, um crescimento menos acelerado na indústria de base (insumos) e um crescimento rápido no topo da cadeia produtiva (bens de capital e consumo), demonstra como o avanço dos últimos é muitas vezes artificializado por investimentos extrasetoriais, assim o esgotamento desses leva conseqüentemente à reversão do ciclo de expansão. O II PND, no entanto, identificou tal falha no sistema produtivo, tentou promover investimentos na industria de bens de capital, mostrou-se presente, na figura das estatais, no setor de base e tentou acabar com os “gargalos” inibidores do crescimento, presentes na infra-estrutura. No entanto, essas políticas esbarraram em dois problemas fundamentais: O primeiro foi a incapacidade das estatais de tornar o setor de base líder do crescimento econômico e o segundo foi a interrupção do financiamento externo, já que em uma indústria com as características já ressaltadas por Tavares, o capital internacional joga um importante papel no financiamento das empresas nacionais, o que acabou por sustentar a expansão durante os anos 70, até sua interrupção nos anos 80. Num primeiro momento trataremos da questão das Estatais e como a estratégia de modificação do padrão industrial, a partir delas, fracassou. Embora o governo não se pronunciasse oficialmente, havia no II PND uma clara opção por colocar as estatais no 17 18 TAVARES, M. C. op. cit., p. 80-81. Ibid., p. 80. centro da industrialização nacional; Observemos a tabela a seguir , nela estão colocados os valores a serem investidos nos setores, com recursos captados do PIS\PASEP, os quais seriam geridos pelo BNDE: Tabela 01 Fontes de recursos (em Cr$ milhões) Fonte Junho 1974\Junho 1975 Julho 1975\Junho 1976 PIS 4.850 10.000 PASEP 3.450 6.100 Total 8.300 16.100 Fonte: BNDE. Dados relativos à Investimentos nos anos de 1974-1976. apud LESSA, C. op. cit., p.84. Tabela 02 Uso dos recursos por setores (em Cr$ milhões) Junho 1974\Junho 1975 Julho 1975\Junho 1976 1–Insumos Básicos 1.500 4.000 a- Mineração 100 400 b- Siderurgia 600 1.200 c- Não-Ferrosos 120 300 d- Química e Petroquímica 220 600 e- Fertilizantes 120 500 f- Celulose e Papel 140 500 g- Cimento 200 500 2–Equipamentos Básicos 350 950 a- Bens de K sob encomenda 160 450 b- Outros Equipamentos 190 500 3-FINAME 700 1.200 4-Infra-Estrutura 550 1.150 a- Corred. de Transporte 100 250 b- Rodovias Alimentadoras e de 200 300 Integração Nacional c- Outros Setores 250 600 5- Sistemas de Comerc.\ 300 500 6- Fort. da Empresa Nacional 4.900 8.300 a- Moder.\Reorganização de 400 700 1.000 1.600 600 1.500 1.700 2.500 8.300 16.000 Distribuição de Consumo Básico indústria – FMRI b- Financiamento Capital de Giro (Progiro) c- Reforço de Capital da Empresas d- Financiamento através de agentes Total Fonte: BNDE. Dados relativos à Investimentos nos anos de 1974-1976. apud LESSA, C. op. cit., p.85. A partir dos dados pode-se constatar a preocupação do plano com investimentos em insumos básicos, equipamentos, infra-estrutura, bem como o fortalecimento da empresa nacional. É também importante ressaltar o tamanho do aporte de recursos dado ao BNDE e a centralidade governamental com relação a quantidade de recursos e áreas do setor produtivo em que estes seriam aplicados. Imbuído do otimismo com relação ao crescimento criado no período do “milagre econômico” e num intento de contornar a crise energética, o governo fez altos investimentos nas áreas de energia e transporte. Esse momento mostrou-se crucial para o aumento da participação das empresas estatais, tendo em vista que várias delas foram criadas ou aumentadas nesse momento. Podemos tomar como exemplo a construção da Itaipu binacional (14 bilhões de dólares somados a 1 bilhão de dólares em linhas de transmissão); o acordo Brasil-Alemanha, que possibilitou a construção das usinas nucleares de Angra dos Reis e a transferência da tecnologia de enriquecimento de Urânio; o fortalecimento da Petrobrás, com novos investimentos em pesquisas; programas de pesquisa em novas fontes de energia, como o Próalcool; a organização do Programa Rodoviário com o DNER e dos DERs estaduais e do Programa Ferroviário19. Todos esses projetos contaram com uma ativa participação das estatais, contudo isso não fora suficiente para atingir os objetivos traçados no II PND. Enquanto a fase cíclica não dava sinais de esgotamento, isso até fins de 1976, o empresariado permaneceu confiante no êxito do II PND, porém a desaceleração, em relação ao período anterior, causou uma série de fissões no ramo empresarial, sendo que os setores prejudicados pelos projetos do governo passaram a adotar um discurso antiestatização 20. “A adesão de novas frações de interesses leva a uma mudança na percepção do autoritarismo, que de eficiente passa a ser percebido como responsável por disfunções políticoeconômicas. Do tema da estatização da economia caminha-se para a crítica ao autoritarismo”21. O fato é que a incapacidade das empresas estatais de manterem o processo de demanda configurou a impossibilidade de essas modificarem o padrão de industrialização. Ajuda a piorar esse cenário, de retração da demanda das estatais com relação a indústria de bens de capital, a aceleração da inflação, ou seja, o excesso de capital investido no setor produtivo foi muito além do que a demanda da sociedade era capaz de absorver, assim o desequilíbrio entre produção e consumo desencadeou um processo inflacionário que passou a deteriorar a renda, obrigando o governo a adotar uma política de saneamento e equilíbrio dos gastos das estatais22. Com o corte de investimentos e cancelamento de contratos, as estatais passaram parte do ônus da desaceleração para as indústrias de bens de capital e consumo, mesmo assim as estatais ainda arcaram com boa parte dos prejuízos, já que o governo fixou um limite de ajuste de preços nos produtos e serviços públicos, fazendo com que muitas delas ficassem num estado deficitário. Desta forma, já em 1977 a maior parte dos projetos do II PND encontravam-se paralisados ou abandonados definitivamente. Nas palavras de Lessa: A primeira vista, a política de 76/77 de fixação de limites cada vez mais estritos às importações estatais pareceria benéfica para a indústria nacional de bens e equipamentos, que inclusive fez em 1975 uma interpretação otimista da referida política. Cabe notar que as restrições globais às importações estatais se inserem em um quadro mais amplo de cortes nos níveis globais de expansão. Isto significa que as restrições às importações estatais não substituem importações por compras 19 LESSA, C. op. cit., p. 109. Ibid., p. 115. 21 Ibid., p. 116. 22 LESSA, C. op. cit., p. 137. 20 internas de bens de capital. Simplesmente são comprimidas todas as compras de máquinas e equipamentos pelas estatais e a partir desse nível comprimido são estimuladas as importações financiadas23. Lessa atribui tal ação a tentativa governamental de baixar a inflação através da valorização cambial, o que financiaria bens de capital importados mais baratos que os internos, a partir de 1976 isso pressionou os preços para baixo, mas no entanto levou a falência muitos dos projetos do II PND24. O fracasso da estratégia de colocar as estatais no centro da dinâmica industrial é bem percebido por Tavares: “O projeto público anunciado no II PND para manter o crescimento industrial através da ‘substituição de importações’ de bens de capital e de insumos pesados tornou-se economicamente inviável mais pelo lado da realimentação dinâmica e das dificuldades de auto financiamento interno do que por restrições da capacidade para importar”25. Desta forma, o descompasso da política econômica entre a implementação de ações de curto prazo (controle da inflação) e de longo prazo (correção do desequilíbrio setorial), deixou as empresas estatais em uma situação controversa, sendo que o excesso de capacidade não podia ser preenchido, já que não havia demanda para tal, se somado a isso a imposição governamental no tocante ao reajuste de preços, constatasse que houve um repasse dos prejuízos dos setores privados para o setor público. Como as estatais não poderiam garantir um superávit em suas contas e tão pouco continuar o processo de conglomeração, a medida adotada no curto prazo atravancou a de longo prazo, ou seja, o governo fez a opção de “abandonar o desenvolvimento nacional” em prol da manutenção do próprio regime, que estaria ameaçado se a crise inflacionária abortasse o padrão de crescimento e ao mesmo tempo comprometesse as conquistas já consolidadas das classes médias e assalariadas. Pode-se concluir, então, que o padrão industrial que o II PND buscava corrigir, encontrava-se assentado sob bases instáveis, seja pela incapacidade de auto-reprodução do capital para investimentos autônomos ou pelo fato de haver se modificado o “pacto” entre Estado e capitalistas nacionais. Nesse sentido, as políticas do II PND privilegiaram o setor de bens de capital, porém o sucesso de tal intento fora logo solapado pelo fracasso das estatais e pela 23 Ibid., p. 140. Ibid., p. 141. 25 TAVARES, M. C. op. cit., p. 122. 24 conseqüente reversão do ciclo. Os argumentos de Tavares e Lessa demonstram uma deficiência no perfil da industrialização brasileira, a qual não permite que o parque industrial sustente seu processo de acumulação e recapacitação autonomamente, no entanto é inegável que o processo de sofisticação da produção nacional, iniciado no pós-guerra, chegou ao seu ápice nos anos 80, valendo-se do chamado “desenvolvimento associado”. Segundo Serra, ao observarmos a economia brasileira no longo prazo, podemos constatar que houve um processo de paulatina consolidação industrial a partir dos anos 50. Nota-se que até o II PND a estrutura produtiva estava acentada sob os bens de consumo e que dos anos 50 aos 70 houve um salto da indústria de bens intermediários. Nesse sentido as políticas do II PND estavam corretas com relação ao fortalecimento da indústria de bens de capital. Temos que de 1959 a 1970 houve uma queda na participação desta industria na produção brasileira, no entanto tem-se para o período um crescimento na participação da industria de bens intermediários. Desta forma, a oferta criada nesta industria fora absorvida pela produção de bens de consumo duráveis e pelas exportações, tanto que ao longo da década de 70 o crescimento na produção dos bens de capital registrou 4,1%, enquanto os bens intermediários permaneceram praticamente estáveis. Assim, as políticas do II PND aproveitaram-se do aporte de oferta dos intermediários para acelerar o crescimento na produção de bens de capital, isso mostra que o relativo sucesso desta indústria no período deveu-se também a condições históricas do próprio parque industrial e não somente aos privilégios que lhes eram conferidos pelo II PND26. A especificidade do II PND deve-se ao fato de este ter sido formulado e implementado no esgotamento da fase expansiva, iniciada em 1967 e no limiar da crise econômica mundial que só irromperia no final dos anos 70. Assim, a forma como Serra interpreta o plano é similar com a de Lessa e Tavares. Serra, no entanto, busca encontrar no II PND mais uma tentativa de fortalecer e consolidar um setor historicamente fraco no sistema produtivo brasileiro, do que propriamente a viabilidade e a capacidade de constituição de um capitalismo nacional aos moldes dos países centrais do capitalismo contemporâneo27. 26 27 SERRA, J. op. cit., p. 101. Ibid., p. 101-103. 3. O debate sobre o II PND As teses sobre o II PND são bastante controversas. A política industrial é uma das bases desse desacordo; enquanto Lessa, Tavares e Serra se atêm a questão do fracasso do plano no intuito da superação dos desbalanços estruturais da industria nacional, Castro e Souza interpretam a política industrial como um ato de consciência com relação a gravidade da dependência externa brasileira no que tange a insumos básicos e bens de capital28. Nestes termos o II PND significou uma tentativa deliberada de superação do subdesenvolvimento29. Carlos Lessa parte do pressuposto de que o diagnóstico que deu origem ao II PND estava correto, ou seja, o Brasil realmente sofria de carência nos setores de bens de capital e insumos básicos. No entanto, o autor vê uma série de obstáculos e dificuldades para a implementação de um programa tão ousado quanto o II PND. 30 Em primeiro lugar uma característica inerente às economias capitalistas é seu caráter cíclico. A economia brasileira vinha de uma fase de forte expansão decorrente do milagre econômico e seria natural e quase inevitável que a fase subseqüente fosse de desaceleração, o que impediria que as metas ambiciosas de crescimento do II PND fossem cumpridas. Outra dificuldade consistia na retração do comércio mundial observada a partir de 1973, aprofundada com o choque do petróleo, o que leva Lessa a concluir que o quadro internacional também era muito pouco favorável a execução do plano. 31 Outro obstáculo importante apontado por Lessa consiste no enorme conflito de interesses que o plano poderia gerar. O II PND apontava para algumas mudanças de prioridade que poderiam se materializar em perda do apoio político necessário ao sucesso da estratégia. Dentre estas mudanças de prioridades destaca-se a ênfase dada aos investimentos nos setores de bens de capital e insumos básicos em detrimento do setor de bens de consumo duráveis e a divisão espacial dos investimentos. Diante de tantas barreiras 28 CASTRO, A. B; SOUZA, F. E. A economia brasileira em marcha forçada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 17. Ibid., p.33. 30 LESSA, C. A Estratégia de Desenvolvimento 1974-1976: Sonho e Fracasso. Brasília: FUNCEP, 1988. Para uma versão mais compacta do texto ver LESSA, Carlos. Visão Crítica do II PND. Revista Tibiriçá, n. 6, jan/mar, 1977. 31 LESSA, C. op. cit., 1977. 29 Lessa conclui que já em 1976 o II PND haveria perdido o fôlego e fracassado em suas principais metas. 32 O trabalho de Antonio Barros de Castro e Francisco Eduardo Pires de Souza traz a tona uma visão bem mais otimista acerca dos resultados do II PND.33 O fim dos anos 70 e início dos 80 havia sido um período conturbado por uma série de choques externos que contribuíram para deteriorar a situação econômica do Brasil principalmente devido à retração do comércio internacional e da elevação do volume pago em forma de serviço da dívida externa34. Com o segundo choque do petróleo as importações brasileiras de combustíveis líquidos passam de US$ 4 bilhões para US$ 10 bilhões entre 1980 e 1982. O posterior choque das taxas internacionais de juros fez com que o montante de juros líquidos pagos ao exterior saltasse de US$ 2,7 bilhões para US$ 9,2 bilhões entre 1978 e 1981.35 Além dos supracitados choques externos, a dificuldade em obter receitas de exportação em um período de retração da atividade econômica mundial e o colapso do sistema financeiro internacional, que tornou inviável a obtenção de crédito, como ocorrera na década de 70, tornavam as dificuldades ainda maiores. Apesar da conjuntura adversa, a economia nativa mostra sinais de recuperação entre 1983 e 1984, pelo menos no que tange às contas externas. A hipótese de Castro e Souza é que os investimentos realizados na estrutura produtiva do Brasil no âmbito do II PND, e maturados apenas na década de 80, tiveram participação fundamental nos resultados positivos observados nas transações correntes do país a partir de 1984. Em pleno período recessivo, os resultados da marcha forçada começam a surgir sob a forma de uma (surpreendente) melhoria no Balanço de Pagamentos – atribuída, em regra, e equivocadamente, à política econômica dos anos 1980. A retomada do crescimento, sob o impacto dinamizador do saldo comercial, seria o próximo efeito das mudanças direta e indiretamente promovidas pela marcha forçada. 36 32 Ibid. CASTRO, A. B; SOUZA, F. E. P. op. cit. 34 Resultado do modelo de crescimento com endividamento externo contraído a juros flutuantes na época do II PND. Com a elevação das taxas de juros internacionais, o serviço da dívida pago pelo Brasil aumentou significativamente. 35 CASTRO, A.B. ; SOUZA, F.E.P. op. cit. 36 Ibid., p. 08. 33 Argumentando contra os defensores da eficácia da política de ajustamento recessivo do início dos anos 80, os autores mostram que o equilíbrio das contas externas se deu, principalmente, em função da drástica redução nas importações de bens que haviam recebido grandes investimentos durante o II PND. “Destacadamente, aí se encontram os metais não-ferrosos, os produtos químicos, o papel e a celulose, os fertilizantes e os produtos siderúrgicos: as importações totais deste conjunto de bens caíram 60% entre 1980 e 1983”. 37 Os ganhos de divisas externas obtidos pelo Brasil graças à estratégia de substituição de importações e promoção de exportações em setores prioritários durante o II PND podem ser observados na Tabela 3: Tabela 03 Ganhos de divisas derivados dos programas setoriais (US$ Milhões) Ano Petróleo 1981 1982 1983 1984 1.052 1.903 2.351 4.404 Metais NãoFerrosos 22 139 366 353 Papel e Produtos Produtos Fertilizantes Celulose Siderúrgicos Químicos 90 170 188 378 149 79 363 636 354 218 308 325 1.029 1.210 1.308 1.307 Total 2.696 3.719 4.884 7.403 Fonte: CASTRO, A. B; SOUZA, F. E. P. op. cit., p. 59. Caso o Brasil não pudesse contar, nos idos dos anos 80, com a economia de dólares proporcionada pelos investimentos do II PND, certamente o equilíbrio das contas externas só seria passível de ser atingido mediante significativa retração da renda interna, a fim de diminuir o nível de importações, o que teria conseqüências graves para a economia brasileira, como falência de empresas, por exemplo. “Em outras palavras, o ganho de divisas engendrado pelos programas setoriais pode haver sido decisivo para evitar o colapso da economia”. 37 38 38 Com estes argumentos Castro e Souza chegam à conclusão de que o II Ibid., p. 24. CASTRO, A.B; SOUZA, F. E. P. op. cit., p. 61. PND, reflexo da “escolha feita em 1974 contém uma alta dose de racionalidade econômica”. 39 A abordagem de autores como Albert Fishlow e Pedro Malan acerca do II PND mostra-se distinta das anteriores, tendo em vista que sua indagação é posta no sentido de entender como os gestores de Geisel financiaram o processo de ajustamento, ou seja, focam sua análise sob os custos que o país teria que arcar ao manter o crescimento econômico num cenário de retração da demanda externa e elevação dos preços do petróleo. Assim, ao passo que os economistas estruturalistas entendem o fracasso do II PND como algo que se deveu mais a própria formação e a dinâmica de funcionamento da indústria, bem como os perversos efeitos da quebra estrutural do padrão de financiamento externo a partir de 1979, sob a economia nacional, os ortodoxos atribuem tal fracasso ao descompasso do plano com relação ao cenário externo e o crescente endividamento que levou a economia brasileira a aumentar sua vulnerabilidade externa. 40 O enfoque dos ortodoxos sobre o período enfatiza os choques do petróleo e questões referentes ao endividamento externo, como fatores decisivos na quebra do padrão de desenvolvimento herdado do “milagre econômico”, assim a crise do final dos anos 70 e inicio dos anos 80, tem sua origem no problema da dependência e da fragilidade brasileira com relação as crises e transformações do capitalismo internacional. 4. Conclusão Ao longo deste artigo buscamos ressaltar primeiramente as dificuldades postas pelo cenário internacional à economia brasileira na segunda metade dos anos 70 e suas implicações para a implementação do II PND. Conseqüentemente a política industrial promovida pelo plano enfrentou o desafio de se colocar frente a correção do padrão da estrutura produtiva, tendo como obstáculo o já mencionado cenário externo. Os principais problemas a serem combatidos na década de 70 foram definidos como sendo a deficiência no setor de bens de capital, no setor de insumos básicos, no setor alimentício e a forte dependência de importação de petróleo, o que levaria a economia a um 39 Ibid., p. 35. Cf. FISHLOW, A. A crise da dívida: uma perspectiva mais a longo prazo. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 5, n. 3, jul./set. 1985. 40 grave desequilíbrio externo.41 Diante deste diagnóstico o II PND seria a medicação indicada. Tratava-se de um plano ousado, na medida em que pretendia dar continuidade ao vigoroso crescimento da economia brasileira justamente quando esta “esgotara a fase expansiva iniciada em 1967 e a economia mundial entrava em sua mais severa recessão desde os anos 30”. 42 A experiência histórica gerada a partir da execução do plano matizou um debate a partir do fim da década de 70, do qual fizeram parte autores de diferentes linhagens teóricas. Ricardo Carneiro as dividiu e classificou em: “evasão ao ajustamento”, onde se enquadram, principalmente, Albert Fishlow e Pedro Malan; “ajustamento estrutural” representada por Antonio Barros de Castro e “fracasso do ajustamento estrutural”, na qual os principais autores são Carlos Lessa, Maria da Conceição Tavares e José Serra43. Neste sentido, a retomada do debate do II PND nos serve de reflexão, já que na medida em que temos observado cada vez mais uma integração nacional com o capitalismo mundial, surgem novas indagações acerca do tipo de desenvolvimento experimentado pelo país, de tal sorte que a década de 70 é paradigmática tanto para se discutir um crescimento mais acelerado na economia atual, quanto para rever o padrão de desenvolvimento nela experimentado, debatendo-se a idéia de um desenvolvimento sustentado e mais atento à resolução dos problemas sociais do país. Referências Bibliográficas: CARNEIRO, Ricardo. Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XX. São Paulo: editora da UNESP, 2002. CASTRO, Antonio Barros de & SOUZA, Francisco E.P. de. A Economia Brasileira em Marcha Forçada. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. COUTINHO, Luciano; REICHSTUL, H. F. Investimento estatal 1974/80: ciclo e crise. In: BELLUZZO, Luiz. Gonzaga de Mello; COUTINHO, Renata. Desenvolvimento capitalista no Brasil: ensaios sobre a crise. São Paulo: Brasiliense, 1983. 41 SERRA, José. Ciclos e Mudanças Estruturais na Economia Brasileira de Após-Guerra: A Crise Recente. Revista de Economia Política, vol 2/3, pg.111-135, julho/setembro/1982. 42 Ibid, p 118. 43 CARNEIRO, R. Desenvolvimento em Crise: A economia brasileira no último quartel do século XX. São Paulo: Ed. Unesp; Campinas, SP: IE-UNICAMP, 2002, p. 42. FISHLOW, Albert. A crise da dívida: uma perspectiva mais a longo prazo. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 5, n. 3, jul./set. 1985. ______. Uma história de dois presidentes: a economia política da crise administrada. In: FISHLOW, A. Desenvolvimento no Brasil e na América Latina: uma perspectiva histórica. São Paulo: Paz e Terra, 2004. HEILBRONER, Robert. A Formação da Sociedade Econômica. 5 ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987. HERMANN, Jennifer. 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