1 considerações de hegel acerca da educação

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL
ELEANDRO CARLOS ROSSATTO
CONSIDERAÇÕES DE HEGEL ACERCA DA EDUCAÇÃO E
DO ENSINO DA FILOSOFIA
Ijuí, RS
2005
2
ELEANDRO CARLOS ROSSATTO
CONSIDERAÇÕES DE HEGEL ACERCA DA EDUCAÇÃO E
DO ENSINO DA FILOSOFIA
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Filosofia da Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial à
obtenção do título de Licenciatura em Filosofia.
Orientador: Profº. Dr. CLAÚDIO BOEIRA GARCIA
Ijuí, RS
2005
À
memória
de
minha
mãe,
Dileta Picoli Rossatto, que
como educadora despertou em
mim o amor ao nobre ato de
aprender e ensinar.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos colegas e professores que sempre souberam me orientar em
meus estudos. De modo especial, agradeço à minha amiga e pesquisadora de
Hegel, Vânia Cossetin, pela leitura dos rascunhos e pelos valiosos comentários.
Sou, ainda, especialmente grato ao meu orientador, professor Claudio Boeira
Garcia que com seu jeito seguro de se expressar estimulou minha busca por
conhecimento. Enfim, agradeço a todas as pessoas que de uma forma ou de outra
contribuíram para que pudesse alcançar meus objetivos.
“O aprendizado é como o
horizonte: não há limites”.
(Provérbio Chinês)
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7
1 CONSIDERAÇÕES DE HEGEL ACERCA DA EDUCAÇÃO........................................ 9
1.1 Hegel e o problema da educação ................................................................................... 10
1.2 Elementos pedagógicos segundo a proposta hegeliana ................................................. 11
1.3 O educar: entre o imediato e o mediato ......................................................................... 13
1.4 A formação humanista ................................................................................................... 15
2 CONSIDERAÇÕES HEGELIANAS ACERCA DO ENSINO DA FILOSOFIA ......... 17
2.1 Sobre o ensino da filosofia nos ginásios ........................................................................ 17
2.1.1 Os Conteúdos ....................................................................................................... 18
2.1.2 Estatuto e especificidade da filosofia ................................................................... 20
2.2 Sobre o ensino da filosofia nas universidades ............................................................... 24
2.2.1 A relação da filosofia com as outras ciências ...................................................... 24
2.2.2 O papel da filosofia na universidade .................................................................... 26
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 27
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 32
INTRODUÇÃO
A partir da leitura e discussão dos principais textos hegelianos que abordam o tema da
educação e do ensino da filosofia buscamos responder os seguintes questionamentos: Como
se encontrava a realidade educacional no período em que Hegel trabalhava como educador?
Que elementos pedagógicos Hegel apresenta para a educação atual? E quais são as suas
principais considerações acerca do ensino da filosofia nos ginásios e nas universidades?
A realidade educacional em que Hegel se encontrava foi marcada pela influência de
várias correntes de pensamento, tais como o Iluminismo, o Romantismo, o Idealismo, o
Neohumanismo, etc. No entanto, podemos averiguar que aquela que mais influenciou a
educação na Alemanha, país de origem de Hegel, foi o Iluminismo, particularmente inspirado
em Rousseau e Locke. Eles defendiam a necessidade de uma reforma radical no ensino,
segundo uma orientação fundamentalmente prática. Diante da propagação do pensamento
Iluminista na Alemanha e sua influência na educação Hegel não fica indiferente. Neste
contexto, o ensino da filosofia aparece como uma das exigências da modernidade para uma
boa e autêntica formação do indivíduo.
O objetivo desta pesquisa é mostrar algumas considerações de Hegel acerca da
educação e do ensino da filosofia e, num segundo momento, sua proposta e possíveis
contribuições para a reflexão atual sobre a educação e o ensino da filosofia. Para tanto,
8
abordamos o tema da seguinte forma: no primeiro item procuramos desenvolver algumas
considerações de Hegel acerca da educação, tendo presente o problema educacional da época
e suas propostas para a solução de tais problemas. No segundo item transcorremos sobre as
cartas escritas por Hegel ao conselheiro superior da Baviera, Immanuel Niethammer, e ao
conselheiro do governo prussiano e professor, Friedrich Rayner. Tais cartas abordam a
questão da filosofia nos ginásios e nas universidades de seu tempo.
1 CONSIDERAÇÕES DE HEGEL ACERCA DA EDUCAÇÃO
Ao longo da história a filosofia, sistematicamente considerada, a educação foi
geralmente referida como uma questão pertinente à sociedade humana. Toma-se como
exemplos a República de Platão, a Ética a Nicômaco de Aristóteles, De Magistro de Santo
Agostinho, o Emílio de Rousseau, etc. Todas estas obras lançam um convite ao problema do
saber e da aprendizagem. O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831)1
não ficou indiferente à educação em sua época, mesmo porque os efeitos do Iluminismo2 na
França e na Inglaterra fizeram-se sentir na Alemanha. Embora não tenha se manifestado
explicita e detidamente sobre o tema da educação em suas obras, Hegel sempre desempenhou
funções relacionadas à educação: “(...) foi preceptor, professor, diretor de ginásio, conselheiro
escolar, professor e reitor universitário e consultor do governo para assuntos educacionais”.3
Ao tratar da educação em seus Escritos pedagógicos, Hegel afirma: “A educação não é
um processo pacífico de uma sucessão de conhecimentos em que se vão agregando
1
Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, no dia 27 de agosto de 1770. Se destaca no ginásio no estudo do latim e
da história da antigüidade clássica. Em Tübigen Hegel estudou teologia no Seminário Luterano. Neste período
era considerado um aluno disciplinado, cumpridor de seus deveres e tirava boas notas. Destacava-se por ser
divertido, bom bebedor de vinho, apreciador de piadas, meio lento e vestia-se com tamanha deselegância que
ganhou o apelido de “velho”. Depois do seminário Hegel trabalhou como tutor e preceptor em Berna (Suíça) e
Frankfurt (Alemanha). Aos 38 anos assume a direção do ginásio de Nüremberg, aos 48 anos começa a lecionar
filosofia em Berlim e aos 60 assume como reitor da universidade. Morre aos 61 anos (1831).
2
O Iluminismo também chamado de Ilustração ou movimento Enciclopedista, ocorreu no século XVIII. Os
Iluministas acreditavam que a principal força transformadora era a razão, capaz de tirar os homens das trevas da
ignorância, do fanatismo religioso e das superstições.
3
HEGEL, Discursos sobre educação, p.13.
10
harmonicamente novos elos, sem ter que absorver os anterioes. Em cada nova etapa agrega as
precedentes. É preciso voltar a formar o já formado, reelaborando e dando uma nova
profundidade”.4 Aqui se evidencia o conceito de educação em Hegel, que traz como uma das
idéias básicas a noção de movimento. A educação na concepção hegeliana não é estática, mas
se caracteriza por um movimento especulativo em direção à totalidade, ao universal, sem com
isso negar as fazes precedentes. É esse movimento que tentaremos elucidar nos próximos
itens.
1.1 Hegel e o problema da educação
Hegel viveu numa época na qual a educação era tema tratado apaixonadamente e o
Iluminismo exercia forte influência sobre os intelectuais da época, razão pela qual este
movimento não pode ser dissociado da vontade hegeliana de divulgar o saber e popularizar o
conhecimento. O Iluminismo europeu, especialmente o inglês, influencia a educação da época
ressaltando o papel das experiências vividas pelos homens, é o caso do empirismo de Locke 5,
por exemplo, que aponta para a importância da educação em elucidar o vivido e preparar para
compreendê-lo mais plenamente.
O Iluminismo na Alemanha não seguiu direção distinta apesar de suas
particularidades, mas desenvolveu iniciativas que buscavam romper com um determinado
estado de coisas. Neste contexto educacional emergiram inúmeros pensadores, intelectuais
que simplesmente procuravam refletir sobre esta temática. “Na segunda metade do século
XVIII aparecem na Alemanha mais escritos e artigos sobre educação e ensino, que nos três
4
HEGEL, Escritos pedagógicos, p. 43.
John Locke (1632 – 1704), filósofo inglês e um dos principais representantes do empirismo inglês. O
empirismo, ao contrário do racionalismo, enfatiza o papel da experiência sensível no processo do conhecimento.
Para Locke o objetivo principal é saber qual é a essência, a origem e o alcance do conhecimento humano.
5
11
séculos anteriores”.6 Lessing7 é um destes pensadores, um exemplo do modo de pensar
filosófico na Alemanha do século XVIII que se empenhava em educar conduzindo os homens
para os ideais Iluministas. O progresso humano passa, para Lessing, pela capacitação à
prática. Isso é proporcionado pela educação que ao melhorar os indivíduos atinge toda a
humanidade.8
Herder9 considera a educação de forma singular, pois ela é a possibilidade de
superação e melhoria da condição humana marcada por carências e limitações. O fim de toda
e qualquer ciência é humanizar, isto é, promover o homem de sua condição humana menor
para uma maior.10Assim como Lessing e Herder, podemos citar outros pensadores iluministas,
tais como Kant11, Fitche12 e Schelling13.
Nesse contexto situava-se Hegel. Sua filosofia seria construída e, por isso,
influenciada por uma época impregnada pela questão educacional. Se para Hegel a filosofia é
a própria história concebida no pensamento, então a educação, enquanto momento da história,
não deveria ficar de fora da exposição de seu sistema filosófico.
1.2 Elementos pedagógicos segundo a proposta hegeliana
Hegel afirmava que a filosofia é filha de seu tempo, apontando, assim, à importância
da história em seu sistema. Nesse sentido, Hegel situa-se dentro do debate sobre a educação
6
HEGEL, Escritos pedagógicos, p.09.
Gotthold Lessing nasceu na Alemanha em 1729 e morreu em 1781, foi escritor e filósofo. Defendia que o que
constitui o valor do homem não é a verdade que qualquer pessoa pode possuir ou supõe possuir, mas o empenho
sincero que o homem empregou para descobrir a verdade.
8
Cf. HEGEL, Escritos pedágógicos, p.08.
9
Joham Gottfried Herder, escritor alemão, crítico literário e clérigo, nasceu em 1744 em Mohrungen na Prússia
Oriental, faleceu em 1803. Estudou teologia em Känigsberg onde absorveu a filosofia de Kant.
10
Cf. HEGEL, Escritos pedagógicos, p.09.
11
Kant nasceu em 1724 na Alemanha e morreu 1804. Ele afirmou que a educação está na base de todo o
aperfeiçoamento humano.
12
Fichte nasceu em 1726 na Alemanha e morreu em 1814. Em vida, insistiu na educação e em sua relação com a
política segundo a qual poder-se-ia estabelecer o fundamento para o futuro de toda uma nação.
13
Schelling nasceu em 1775 e morreu em 1874. Ele procurou fornecer ao jovem estudante de sua época um guia
sobre o estudo, o que reflete sua crença na possibilidade de uma unidade e universalidade do saber.
7
12
de sua época, pois, além de encontrar-se nesse contexto, toda a sua vida ficou marcada pela
atividade docente, vivendo de perto, inclusive, as reformas educacionais na Alemanha tanto
no período do ginásio como na universidade.
Na concepção hegeliana, a realidade está implicada num processo constante de vir a
ser . E se ela está sempre em movimento, nunca chega a fixar-se definitivamente. O homem,
inserido nesta realidade, portanto, também acompanha este desdobramento, não, porém, sem
ter poder de ação sobre si mesmo e sobre a realidade.
O homem é o que ele faz de si mesmo. Obviamente não há o controle ou a consciência
absoluta de tudo o que o homem possa ser e fazer. As conseqüências de um ato humano não
podem ser previamente determinadas, mas ele se faz segundo sua própria atividade e
enquanto resultado da formação educacional que recebeu. Por isso o homem não é, para
Hegel, determinado totalmente pela natureza. Ele se constrói e ao fazer isso realiza o espírito,
contribui para a formação da cultura de uma época, o que implica em sua própria realização.
A concepção de homem em Hegel indica ser uma contínua passagem, um contínuo vir-a-ser
sempre filho de seu tempo, do que o precedeu e do que está por vir.
Com respeito à Propedêutica filosófica de Hegel, vemos que ela denota uma
preocupação marcante com o conteúdo da prática docente, mas sem ignorar a questão
metodológica. O que se percebe é que, na concepção hegeliana, conteúdo e método estão
imbricados, não há como separá-los. Hegel tem uma certa desconfiança em relação à
pedagogia em voga, na medida em que esta se resume em formalismo, métodos e técnicas.
Kant teria afirmado que não se pode aprender filosofia, mas somente a filosofar. Hegel
retrucou afirmando que aprender a história da filosofia já se estaria a filosofar e vice-versa.
Para Hegel, o conteúdo torna-se determinante, pois deve ser a apresentação das verdadeiras
riquezas criadas pelos homens ao longo de sua existência.
13
A partir disso se compreende a unidade entre a filosofia hegeliana e a sua prática
pedagógica. No período em que trabalhou como professor no Ginásio de Nürenberg, 14 Hegel
fez um grande esforço para adequar a filosofia aos seus jovens educandos, não descuidando
do conteúdo que seus alunos precisariam saber.
Na 5ª série do 1º ciclo, o professor discorria sobre as bases do Direito, da
Moral e da Religião; nas 6ª e 7ª séries lecionava Lógica e Psicologia; na 8ª e
última série, reexaminava os temas que haviam sido abordados nos períodos
precedentes e tratava de aprofundar o conhecimento dos problemas,
relacionado-os uns com os outros, na busca de uma visão global que pudesse
se traduzir em conceitos (...). O método que utilizava para ensinar era o mais
comum em sua época: ditava para seus alunos e em seguida fazia
comentários esclarecedores. Era cerimonioso, tratava seus alunos da 8ª série
por “senhor” e estimulava perguntas durante as aulas.15
1.3 O educar: entre o imediato e o mediato
A educação é o meio pelo qual o homem supera o estado de natureza imediata, porém
sem o perder de vista, porque é a referência para a sua própria superação. A educação tem,
portanto, a tarefa de conduzir o homem desta naturalização à sociedade, de onde surge a
necessidade do estabelecimento de condutas que possam ser assumidas por todos. Em boa
medida trata-se de uma conciliação, porque o homem nunca vai deixar completamente de
pertencer à natureza, o que ocorre é que ele vai dar-se conta de que pode não ser mais
condicionado inteiramente por ela. É o que afirma Hegel: “A criança existe como homem,
mas de um modo imediato, natural; a educação é pois, a negação desta forma natural, a
disciplina que o espírito se impõe para se elevar desta sua imediatez”.16 Por isso, Hegel situa a
infância no período da natureza imediata. Ele realça mais a carência desta etapa pelo fato de a
14
De 1809 a 1815 Hegel foi professor e diretor do ginásio em Nürenberg. Por ser diretor, ao final de cada ano
letivo ele pronunciava um discurso de encerramento do ano à comunidade em geral. Foi a partir destes discursos
que se compilou a obra Discursos educacionais. É claro que são discursos desprovidos de um caráter
sistemático, mas isso não diminui a importância e a contribuição para questões fundamentais no que tange a
educação.
15
KONDER, Hegel: a razão quase enlouquecida, p.39.
16
HEGEL, Escritos pedagógicos, , p.34.
14
criança ser, predominantemente, dirigida pelo instinto, pela natureza, da qual ela não sai por
conta própria. Isso explica porque Hegel afirma que a natureza opera por coação e precisa de
uma outra coação para ser vencida: “Tem a educação um destino negativo, o de conduzir as
crianças desde a natureza imediata em que primitivamente se encontram para a independência
e a personalidade livre”.17
A natureza imediata do educando é o seu mundo dado enquanto resultado da natureza
bio-psíquico-social. O que é imediato é apenas o ponto de partida do processo pedagógico do
indivíduo, pois ele necessita passar pela mediação do ato de ensinar. A concepção de
educação em Hegel é, exatamente, este movimento de passagem do imediato da pessoa para a
mediação de um sujeito capaz de agir e decidir livremente, enquanto membro da sociedade e
do Estado. Realizar esta pedagogia do imediato-mediato é o que constitui a função
pedagógica do educador.
Há, entretanto, sempre uma parcela de sacrifício envolvido na educação, ou seja,
implica na conscientização do processo educativo como algo que demanda compromisso,
dedicação e renúncia. Por isso Hegel prima pela responsabilidade e disciplina de seus alunos.
No discurso de encerramento do ano letivo, em 1810, ele diz o seguinte: “A disciplina segue
sendo um aspecto básico do proceso educativo. A obediência e a disciplina em que haverão de
se sobmeter as crianças não são desde logo um fim em si, mas sim um meio imprenscidível
para chegar a se converter em pessoas livres”.18
Hegel apresenta a escola como uma parte de suma importância no processo
educacional. Em seu discurso de final de ano letivo, em 1811, diz:
A escola é um estádio ético particular em que o homem se demora e no qual
adquire uma formação prática, habituando-se a relações efetivas. É uma
esfera que tem uma matéria e um objeto próprios, os seus castigos e
recompensas e que constitui, efetivamente, um degrau essencial no
desenvolvimento do caráter ético no seu todo. A escola encontra-se, de fato,
entre a família e o mundo efetivo e constitui o elemento mediador de
17
18
HEGEL, Princípios da filosofia do direito, p.160.
HEGEL, Escritos pedagógicos, p.36.
15
ligação, de passagem daquela para este. Este aspecto importante é de
considerar mais de perto.19
A escola é, portanto, a esfera mediadora que promove também a passagem do homem
do círculo familiar ao mundo. Isto é, na escola a criança deixa de agir somente
arbitrariamente, movida apenas pelo prazer e inclinações momentâneas e aprende a
determinar o seu agir segundo finalidades, ou seja, não mais pela sua pessoa imediata e sim,
por aquilo que realiza.
1.4 A formação humanista
Por receber grande influência do mundo grego, Hegel dá acentuada importância ao
estudo do pensamento deste povo, pois, segundo ele, o pensamento grego é capaz de
humanizar o homem. No discurso de 1809, Hegel profere sua fala dizendo que o homem
derivado do mundo grego é aquele que se embrenha pela eticidade, pela razão, pelo espírito
despojado de suas contingências. Saber o que os gregos sabiam significaria garantir a
formação de homens guiados pela razão e pelo espírito. O conhecimento dos clássicos, então,
contribuiria para que o indivíduo deixasse seu estágio natural e se deparasse com as riquezas
do espírito.20 Por conseguinte, Hegel afirma que a literatura grega e a romana devem ser
vistas como “obras primas, deve ser o banho espiritual, o batismo profano que dá à alma a
primeira e indelével tonalidade e cor para o gosto e a ciência (...). O mundo grego possui para
nós o valor que os santos têm para os católicos”.21 Acrescenta ainda, neste mesmo discurso, a
importância de dominar bem a língua materna, como meio à erudição. Diz ele: “Um povo não
19
HEGEL, Discursos sobre educação, p.61.
Cf. HEGEL, Discursos sobre educação, p.29.
21
HEGEL, Discursos sobre educação, p.32.
20
16
pode ser visto como culto se não conseguir exprimir todos os tesouros da ciência na sua
própria língua, e se nela não se mover livremente em qualquer conteúdo”.22
Outra preocupação de Hegel é de que a educação sempre deve ser contextualizada.
Como o indivíduo é sempre fruto de sua época, isto exige do educador conceber o homem a
partir de sua realidade. Conscientes de que estamos inseridos em uma realidade, segundo
Hegel, devemos buscar conhecer tudo, no entanto, não sem um regramento adequando. Os
interesses devem ser limitados e contidos para que obtenham efetividade. Isto, porém, não
quer dizer que devam ser superespecializados. Ao contrário, todo estudo precisa vir
acompanhado pelo enfoque humanista que oferece uma visão ampla dentro da qual se localiza
a especialidade. A especialização por si só não oferece uma compreensão completa de homem
e de mundo e apresenta o sério risco de enclausurar o indivíduo em sua própria abordagem e
de disseminar a fragmentação.23 É o que podemos ler no discurso de encerramento do ano
letivo de 1813: “Na universidade começa a divisão mais acentuada, a determinação mais
próxima de uma profissão particular; não esqueceis aí, portanto, meus senhores, os estudos
humanísticos feitos no Ginásio”.24 Segundo Hegel, uma forma de amenizar esta fragmentação
é o estudo humanístico baseado na tradição grego-romana, juntamente com o estudo da
filosofia.
22
HEGEL, Discursos sobre educação, p.29.
Cf. HEGEL, Escritos pedagógicos, p.52.
24
HEGEL, Discursos sobre educação, p.76.
23
2 CONSIDERAÇÕES HEGELIANAS ACERCA DO ENSINO DA FILOSOFIA
O ensino da filosofia é pauta sempre presente e a tematização acerca de sua
relevância, bem como do seu lugar diante das demais disciplinas ou ciências, objeto de análise
constante. Questionamos se a filosofia possui conteúdos próprios ou não e se os tem, quais
são esses conteúdos e qual o método apropriado para o seu ensino. Hegel não ficou
indiferente à questão do ensino da filosofia. Embora ele não tenha desenvolvido uma ampla
discussão sobre essa questão, nos aponta algumas idéias nessa direção na Propedêutica
Filosófica. No entanto, o que abordamos neste item são algumas considerações de Hegel
acerca do ensino da filosofia a partir dos dois últimos textos da Propedêutica “O ensino da
filosofia nos ginásios”25 e “Sobre o ensino da filosofia nas universidades”.26
2.1 Sobre o ensino da filosofia nos ginásios
Ao falar sobre o Ensino das Ciências Propedêuticas Filosóficas no Ginásio, Hegel
apresenta dois aspectos de suma relevância para compreensão do todo: primeiro, ele aborda os
próprios objetos de ensino; segundo, apresenta uma reflexão sobre o método de abordagem
25
É uma carta em que Hegel escreve em 1812 dando seu parecer e fazendo um relatório do ensino da filosofia no
ginásio ao real conselheiro superior da Baviera Immanuel Niethammer.
26
É uma carta dirigida em 1816 ao conselheiro do governo prussiano e professor Friedrich Rayner.
18
dos objetos de ensino da filosofia. Na carta em que escreve ao real Conselheiro Superior da
Baviera, Immanuel Niethammer, em 1812, descreve como era dividido o curso ginasial
alemão da época e, ao mesmo tempo, propõe algumas mudanças no que se refere aos objetos
de ensino, ou seja, os conteúdos. O curso ginasial era dividido em três classes: Inferior, Média
e Superior. Para cada uma delas havia uma prescrição, vejamos: para a Classe Inferior estava
prescrito o conhecimento da religião, do direito e dos deveres. Para Classe Média,
cosmologia, teologia natural e psicologia. E, por fim, para a Classe Superior, Enciclopédia
Filosófica. Na carta Hegel faz questão de deixar clara sua posição a respeito do conhecimento
da lógica. Segundo ele, “o ensino da doutrina do direito, dos deveres e da religião não se deve
unir com o da lógica”.27 Hegel propõe, então, a sua prática: ele reserva a lógica para a classe
média, na qual, intercala os bimestres com psicologia, ou seja, um bimestre de lógica e outro
de psicologia.
2.1.1 Os Conteúdos
Hegel faz uma abordagem crítica em pormenores dos conteúdos de ensino de cada
classe. No caso da Classe Inferior ele salienta as limitações de começar pela doutrina da
religião, no que se refere a esta, ele diz o seguinte: “Visto que ainda não existe nenhum
compêndio, deve deixar-se ao docente, segundo o seu discernimento, constituir aqui a ordem
e a conexão. Pela minha parte, nada mais sei do que começar pelo direito, a mais simples e
abstrata conseqüência da liberdade, passar em seguida à moral e desta avançar para a Religião
como o grau mais alto.28
Hegel nos aponta como mais conveniente partir da doutrina do direito, pois esta é a
mais simples e abstrata conseqüência da liberdade. O conhecimento, em suma, a formação do
27
28
HEGEL, Propedêutica filosófica, p.366.
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 366.
19
indivíduo, não é estática. Por isso se faz necessário saber por onde começar e qual caminho
percorrer. Segundo Hegel, aderir a sua forma de abordagem de conteúdo é optar pelo caminho
que dá início à introdução da filosofia, ou seja, na concepção hegeliana, o conceito destas
doutrinas são mais simples, facilitando assim, a assimilação dos jovens educandos. Hegel
prossegue justificando sua posição quanto à prescrição dos conteúdos em voga:
Prefiro de longe este objeto de ensino à Lógica, porque esta tem um
conteúdo mais abstrato e, sobretudo, mais afastado da imediata realidade
efetiva do íntimo, um conteúdo meramente teórico. Liberdade, Direito,
Propriedade, etc., são determinações práticas com que diariamente lidamos e
que, para além da existência imediata, tem uma existência sancionada e uma
validade real.29
Fica claro que o ensino da filosofia é um processo, um processo laborioso e paulatino,
em que se deve começar pelo existente e a partir daí, levar a consciência para o alto, para o
pensamento. Neste sentido, urge a necessidade de fazer o aluno partir daquilo que conhece em
direção a um pensamento sistemático, a fim de que se formem indivíduos críticos e com um
raciocínio lógico.
No que se refere aos conteúdos da Classe Superior, Hegel reserva o estudo de sua
Enciclopédia30 e salienta a importância de ficar em temas estritamente filosóficos, o que
interessa são os conteúdos universais da filosofia, ou seja, os conceitos fundamentais, que
segundo ele são os seguintes: Lógica, Filosofia da Natureza31 e Filosofia do Espírito.32 “Todas
as outras ciências, que se devem considerar como não filosóficas, entram de fato nestas,
segundo os seus princípios, e só segundo estes princípios se devem considerar na
Enciclopédia, porque esta é filosófica”.33 Hegel argumenta que todas as ciências particulares
já foram abordadas nas classes antecedentes.
29
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 367.
A primeira versão da Enciclopédia saiu em 1817, a segunda em 1827. Nesta obra Hegel procura dar um
panorama do seu sistema. O primeiro volume foi dedicado ao resumo da lógica, o segundo a Filosofia da
natureza e o terceiro a Filosofia do espírito.
31
Filosofia da natureza é o estudo da física empírica, ou seja, busca o conhecimento dos fenômenos naturais.
32
Filosofia do Espírito compreende o estudo da psicologia, da doutrina do direito, dos deveres e da religião.
33
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 369.
30
20
Ademais, Hegel sente a necessidade de abordar ainda na Classe Superior a questão do
belo. Segundo ele, há uma necessidade de se trabalhar, de se desenvolver mais a estética junto
com a Filosofia da Natureza. “A estética é, além da Filosofia da Natureza, a ciência particular
que ainda falta no ciclo científico e parece poder ser de um modo essencial uma ciência
ginasial”.34 Sugere, então, ao Conselheiro Niethammer colocar a estética no ginásio, uma vez
que esta ciência particular não foi abordada nas classes anteriores e nem haveria como colocála na terceira classe, porque teria de substituir horas de uma outra ciência: “Seria muitíssimo
útil se os ginasiastas, além de um maior conceito da métrica, recebessem também conceitos
mais determinados acerca da natureza da epopéia, da tragédia, da comédia e de coisas
semelhantes”.35 Porém o curso de estética não poderia ficar preso a um simples palavrório
acerca da arte. O que ele propõe é o empenho nos gêneros particulares da poesia e nos
peculiares modos poéticos antigos e modernos. Conclui sua reflexão sobre os conteúdos no
ginásio afirmando que a inserção da estética deixaria o curso ginasial tanto mais rico quanto
agradável.
2.1.2 Estatuto e especificidade da filosofia
No que tange ao estatuto e à especificidade da filosofia, Hegel logo inicia fazendo uma
crítica à pedagogia de seu tempo, a qual importava simplesmente filosofar, mesmo sem
conteúdo, ao invés de apreender os conteúdos da filosofia. Fazer isso, no entender de Hegel é
como “viajar sempre, sem chegar a conhecer as cidades, os rios, os países, os homens, etc.”36
Continua justificando o que pensa a respeito da filosofia sem conteúdos: “Quando se conhece
uma cidade e, em seguida, se chega a um rio, a outra cidade, etc., aprende-se, sem mais, deste
34
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 370.
HEGEL, Propedêutica filosófica, p.371.
36
HEGEL, Propedêutica filosófica, p.371
35
21
modo a viajar, e não só se aprende, mas efetivamente já se viaja. Assim, ao chegar-se a
conhecer o conteúdo da filosofia, aprende-se não só a filosofar, mas já efetivamente se
filosofa.”37
Hegel faz um alerta ao perigo de aceitar a concepção de que o mais importante é
filosofar, segundo ele, quem adere a esta concepção são pessoas com cabeças vazias de
pensamentos. “O comportamento tristonho, simplesmente formal, a perene busca e
vagabundagem sem conteúdo, o argumentar ou especular assistemático, têm como
conseqüência à vacuidade de conteúdo, o vazio dos pensamentos nas cabeças”.38
O ensino baseado na história da filosofia, faz dela e de sua história uma só. O seu
ensino é ensino da sua história. Portanto, ensinar filosofia significa ensinar o que a história da
filosofia produziu até hoje, mesmo que talvez seja difícil chegarmos até os filósofos
contemporâneos. No que se refere a essa temática, Vânia Cossetin diz o seguinte:
Ao entrar em contato com a História da Filosofia já se conhecem seus
conteúdos e, ao mesmo tempo, aprende-se a filosofar. Em última instância,
filosofia e método coincidem, pois se o caminho para filosofar é conhecer o
conteúdo da filosofia, então o aprendizado deste conteúdo é o próprio
método para o filosofar. O que torna o método parte integrante e
indissociável da filosofia, até porque se considerarmos que ela, por
excelência, constitui-se e leva ao desenvolvimento do pensamento críticoreflexivo, então ela já é um método.39
Partindo destas considerações podemos averiguar que na proposta hegeliana, não há
como separar conteúdo é método, ambos estão imbricados um no outro. No entanto, Hegel
não deixa de enfatizar que apenas a intencionalidade não garante o filosofar. A filosofia
precisa ter claro seus conteúdos e estes precisam ser aprendidos e ensinados para poderem
impulsionar os educandos em direção a mediação com sua família e o Estado, enfim, com o
mundo, ou seja, com a totalidade.
37
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 371.
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 372.
39
COSSETIN, Vânia “Hegel e a questão do ensino da filosofia”. Texto apresentado no II Simpósio sul-brasileiro
sobre o ensino da filosofia , Unijuí, em 2002 e publicado nos Anais do evento.
38
22
Podemos acrescentar ainda que é o ensino da história da filosofia que vai despertar no
aluno o espírito especulativo que gradualmente conduzirá ao estudo sistemático da filosofia.
Ao contrário, se optarmos pela concepção de que o importante é filosofar, mesmo sem
conteúdo, o que teremos será apenas pessoas com cabeças vazias de pensamento. No que se
refere a essa tematização Hegel prossegue afirmando: “O procedimento no conhecimento de
uma filosofia rica de conteúdos não é nenhum outro a não ser a aprendizagem. A filosofia
deve ensinar-se e aprender-se, como qualquer outra ciência.”
40
Segundo Hegel, é justamente
a assimilação dos conteúdos que faz com que os indivíduos sejam capazes de produzir
reflexões significativas e contribuir para o avanço da ciência. Na leitura de Vânia Cossetin, “a
filosofia deve ser considerada como todas as demais disciplinas e ciências, ou seja, com
conteúdos específicos, pensadores que se ocuparam com ela, um conjunto de conceitos e
métodos próprios, de igual modo ela deve ser concebida como algo existente, que possui
especificidade e uma história que deve ser conhecida por todos”.41
Por essa razão Hegel diz que a filosofia guarda os verdadeiros pensamentos universais.
Com esse alerta, ele quer mostrar que a educação ou, especificamente, o ensino da filosofia,
deve ter por finalidade levar à verdade, ao esclarecimento. Ou seja, o ensino deve posicionarse contra a mera opinião, à argumentação vazia, ao sem sentido e irracional, dilema que desde
a antiguidade grega afetou filósofos como Sócrates e Platão.
Segundo Hegel o conteúdo filosófico tem, no seu método, três formas: o abstrato, o
dialético e o especulativo. Hegel salienta que no ensino da filosofia ginasial devemos começar
pelo primeiro passo do método, o abstrato. No entanto, podemos optar por começar pelo
sensível e chegar ao abstrato, ou então podemos começar de fato pelo abstrato. Vejamos:
“Pode, pois, desejar começar ou pelo sensível, pelo concreto, extrair e elevar esta ao abstrato
40
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 372.
COSSETIN, Vânia, “Hegel e a questão do ensino da filosofia”. Texto apresentado no II Simpósio sulbrasileiro sobre o ensino da filosofia, na Unijuí, em 2002, e publicado nos Anais do evento.
41
23
por meio da análise, tornando assim – como parece – a via natural, como também se ascende
do mais fácil para o mais difícil; ou então pode igualmente começar-se pelo abstrato tomar o
mesmo em si e para si ensina-lo e torna-lo compreensível.” 42
Hegel prossegue dizendo que iniciar pelo sensível é possível, mas é o caminho mais
difícil. Ele dá um exemplo: “É mais fácil pronunciar e ler os elementos da linguagem, as
letras singulares, do que as palavras inteiras – por ser mais simples o abstrato é mais fácil de
compreender”.43 O abstrato, por estar diretamente ligado ao pensamento, Hegel o associa ao
intelecto, ou seja, é o momento em que as coisas, os objetivos são conhecidos cada um nas
suas determinações, em que eles diferenciam-se um dos outros.
O dialético é o momento em que as diferenças de fato aparecem, há a manifestação das
antíteses em diálogo com as teses antecedentes, diríamos que há um afloramento da razão
negativa, ou seja, uma negação que se dá em qualquer processo de relação do sujeito com os
outros e com o mundo. Dentro do sistema hegeliano cada novo conceito que surge não nega
por completo o antecedente, mas suprassume.44 De acordo com Hegel, é a forma que menos
interessa aos jovens.
A terceira e última fase do método de ensino é o especulativo, esse é o momento em
que o oposto é de fato conhecido e as diferenças são superadas, ou seja, é o momento da
síntese. O especulativo, ainda que sendo o elemento mais difícil de se alcançar, deve ser a
meta de todo o ensino ginasial:
Aprender a pensar especulativamente, o que é prescrito no Regulamento
como a determinação fundamental do ensino propedêutico filosófico, deve,
pois, considerar-se como a meta necessária: a preparação para tal é o pensar
abstrato e, portanto, o dialético, ademais, a aquisição de representações de
conteúdo especulativo. Visto que o ensino ginasial é essencialmente
propedêutico, poderá consistir sobretudo em procurar conseguir estes lados
do filosofar.45
42
HEGEL, Propedêutica filosófica, p.374.
HEGEL, Propedêutica filosófica, p.374.
44
Hegel usa regularmente a palavra Aufhebung, freqüentemente traduzida por suprassunção. Significa que o
segundo saber não elimina o primeiro, mas o supera e guarda. E, como o sistema hegeliano é circular, significa
que o saber do começo aparece em todos os momentos subsequentes, inclusive no último, no saber absoluto.
45
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 376.
43
24
Enfim, o que podemos concluir é que o objetivo da filosofia ginasial é despertar nos
jovens educandos o pensamento especulativo, que na verdade é a sistematização das etapas
anteriores: o abstrato e o dialético. É desta forma que se estará conduzindo o educando a um
estudo sistemático da história da filosofia.
2.2 Sobre o ensino da filosofia nas universidades
Como já vimos, as atividades de Hegel sempre estiveram ligadas a docência. No
período em que foi conselheiro escolar Hegel deparou-se com pedidos de diversas
comunidades escolares para agilizar a instalação do curso de filosofia para os ginaziandos,
pois estes chegavam despreparados à universidade e, em particular, para o estudo da filosofia.
Uma vez, tendo presente o desleixo para com a filosofia, Hegel escreve uma carta, em 1816,
ao conselheiro do governo prussiano fazendo algumas considerações sobre o contexto atual da
filosofia nas universidades. Parte de uma reflexão crítica sobre a relação da filosofia com as
demais ciências e, num segundo momento, traz a tona o autêntico objetivo da filosofia nas
universidades.
2.2.1 A relação da filosofia com as outras ciências
Na carta em que escreve ao conselheiro do governo prussiano, Hegel procura dar à
filosofia o lugar que lhe pertence, está convencido de que a filosofia, juntamente com a arte e
a religião, é a investigação e a expressão do absoluto. “Pode parecer uma coisa muito simples,
com a observação de que para o ensino da filosofia deveria valer apenas o mesmo que vale
25
para as outras ciências”.46 Ao escrever ao professor Rayner, Hegel manifesta sua preocupação
com o espaço da filosofa. Deixa claro que a filosofia não pode estar aquém das outras
ciências, portanto deve ter seu espaço garantido na universidade como as demais disciplinas:
“Que o ensino da filosofia partilhe com o ensino das outras ciências numa Universidade o
destino de se ajustar ao fim do tempo estabelecido – na regra de um semestre; que, por
conseguinte, se exija alargar ou reunir a ciência”.47
Hegel explica que tal situação da filosofia na universidade é fruto de uma distorção do
sentido autêntico da filosofia, o que se constata nas universidades é um ensino que está muito
aquém do conceito de filosofia, ou seja, as universidades alemãs estavam ensinando uma
filosofia estática, pronta. Na concepção hegeliana isso era uma afronta ao pensamento
especulativo. Por isso, faz critica os conteúdos e a forma com que são ensinados, citando
como exemplo os filósofos Franz Baader e Friedrich Schlegel: “Baader faz imprimir, de
tempos a tempos, uma ou duas folhas que devem conter toda a essência de toda a filosofia ou
de uma ciência particular da mesma”48; no caso de Schlegel, salienta o fato de em apenas seis
semanas concluir um curso sobre filosofia transcendental.
Para Hegel, não se aprende filosofia como se apreende outra ciência qualquer. A
filosofia demanda a radicalidade, o rigor e a totalidade. É próprio da filosofia o perguntar, o
indagar a partir daquilo que é dado, pois este é entendido como algo passível de novas e
diversas análises. Ademais, a filosofia exige empenho reflexivo e analítico, o que não se
obtém preso à avalanche dos interesses materiais. Dessa forma, a filosofia não deve sofrer
uma popularização, mas o povo deveria ser elevado ao nível da filosofia, pois ela possui um
conteúdo significativo que deve ser apropriado pelos indivíduos. Desta forma, Hegel busca
aproximar a filosofia das demais ciências, mas ao mesmo tempo sem que ambas percam o que
46
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 379.
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 379.
48
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 381.
47
26
lhes caracteriza. Aí é que se manifesta a dificuldade de aproximação com as outras áreas de
conhecimento, o que não implica na impossibilidade de seu relacionamento.
2.2.2 O papel da filosofia na universidade
Em termos gerais o papel da filosofia nas universidades seria despertar o pensamento
especulativo que gradualmente conduziria ao estudo sistemático, ou seja, ao estudo metódico
e rigoroso administrado pelo professor. Diz ele: “Como ciência propedêutica, a filosofia deve
sobretudo proporcionar a educação formal e o exercício do pensar, só conseguirá tal mediante
o total afastamento do fantástico, por meio da determinidade dos conceitos e de um
procedimento conseqüente e metódico”.49 Mas alerta que a filosofia deve evitar a edificação:
A edificação, que muitas vezes se espera da filosofia; na minha opinião,
mesmo quando ensinada à juventude, ela jamais deve ser edificante, mas
deve satisfazer assim uma necessidade a fim, que agora quero aflorar com
brevidade. Quanto mais nova idade suscitou de novo a tendência para um
tema purificado, para idéias superiores e para a religião, tanto menos e em
menor medida chega para isso a forma do sentimento, fantasia, conceitos
confusos. O afazer da filosofia deve ser justificar perante o conhecimento o
que tem valor, de o aprender e conceber em pensamentos determinados, e
assim, o preservar dos desvios obscuros.50
Como ciência propedêutica a filosofia deve buscar incansavelmente desenvolver nos
jovens educandos o exercício do pensar, fazendo com que o jovem tenha um pensamento
determinado e claro, mas não significa que de posse do que lhe foi ensinado, não tenha mais
nada a aprender. Não esqueçamos que, para Hegel, o desafio do ensino ginasial é o de
impulsionar o jovem ao pensamento especulativo para que, ao entrar na universidade, possa
passar a dar um caráter sistemático ao seu conhecimento, portanto à sua formação que está
sempre voltada em direção ao absoluto, ou seja, à totalidade.
49
50
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 384.
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 384.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao término desta pesquisa concluo que, para Hegel, não há sociedade que se sustente
sem a educação, pois a mesma é expressão da razão que busca conduzir os indivíduos à
liberdade. Diante disso, proponho apresentar alguns elementos da prática docente de Hegel,
que podem enriquecer nas discussões sobre a formação humanística e sobre a situação da
filosofia enquanto disciplina pertencente aos programas curriculares das universidades e das
escolas.
Um dos aspectos importantes enfatizados por Hegel é quanto a atenção que o professor
de filosofia deve dar ao contexto em que estão inseridos os educandos. Portanto, Hegel lança
um desafio para a atual educação: uma educação contextualizada. Penso que há um desafio
que vai além de conhecer onde e como vivem os educandos, mas o desafio está em conseguir
associar esta realidade concreta aos conteúdos que serão abordados, ou seja, se faz necessário
uma aproximação, uma intimidade entre os conteúdos curriculares e a experiência social.
Nesta mesma linha de pensamento, pode-se ainda lembrar que, em carta a Niethammer, Hegel
salienta a importância de introduzir a filosofia com conteúdos que fazem parte da vivência
dos alunos, conteúdos da prática cotidiana, portanto, mais simples de serem assimilados. “(...)
Liberdade, direito, propriedade, etc., são determinações práticas com que diariamente lidamos
28
e que, para além da existência imediata, tem uma validade real”.51 Ele defende que se deve
partir da realidade do aluno, valorizando seus pré-conhecimentos e mostrando a direção ao
pensamento sistemático. No momento em que o educando fizer este movimento,
possivelmente teremos indivíduos críticos e com uma mínima coerência lógica no
pensamento.
Por conseguinte, a proposta hegeliana enfatiza a disciplina. Hegel salienta que há
sempre uma parcela de sacrifício envolvido na aprendizagem. Logo, se o objetivo do
educador é formar um indivíduo ético, capaz de conviver bem em família e em sociedade, este
educador deve conduzir seus educandos à disciplina. Em uma parte do discurso de 181052 ele
faz uma séria crítica ao desleixo dos alunos. Penso que haja um consenso de que hoje se
precisa formar cidadãos responsáveis com suas obrigações. No entanto, observa-se que esta
posição hegeliana é um grande desafio aos nossos educadores e educandos. No intuito de
buscar novas formas de ensino acaba-se muitas vezes aderindo a métodos aprioristas53: o
professor, ao tentar fazer o papel de orientador e deixando que o aluno aprenda por si,
indiretamente acaba por incentivar a indisciplina e a irresponsabilidade. Convém lembrarmos
de que Hegel é categórico ao afirmar que não se aprende os conteúdos da filosofia sem
dedicação, empenho e disciplina: “A disciplina não é um fim em si, mas sim um meio
imprescindível para o indivíduo tornar-se livre”.54
Como terceiro aspecto presente nas reflexões de Hegel sobre o ensino, aparece a
importância do conteúdo. O que se observa hoje no meio educacional é uma acentuada
preocupação de alguns educadores com novas metodologias, novas formas de educar. Nesta
busca desenfreada de transformar o ensino, surgem lacunas, uma delas é de que muitas vezes
51
HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 367.
Cf. HEGEL, Discursos sobre educação, p. 45.
53
A pedagogia apriorista é não-diretiva, difícil de se viabilizar, portanto não é fácil de detectar sua presença na
prática da sala de aula. O professor é um auxiliar do aluno, um facilitador. O professor deve intervir o mínimo
possível. Para muitos críticos isto traz como conseqüência uma acentuada indisciplina.
54
HEGEL, Escritos pedagógicos, p. 36.
52
29
os conteúdos acabam dando lugar a técnicas de ensino. Aqui penso que Hegel traz
significativas contribuições para a educação em seu todo, mas também traz algo pertinente
sobre o ensino da filosofia em específico. No primeiro caso, podemos questionar propostas
que pensam a educação hoje e que produzem reflexões em defesa de que o importante para a
educação atual é pensar e privilegiar novas formas e métodos de ensinar. Podemos indagar se
realmente são essas novas formas de ensino que irão contemplar o grande objetivo da
educação brasileira: “Formar cidadãos solidários, sociáveis, autônomos e éticos”. 55 A partir
do pensamento hegeliano julgo não ser possível atingir tal objetivo se não houver a devida
importância ao conteúdo. Parafraseando Hegel, há a necessidade de encher as cabeças de
nossos jovens educandos com conteúdos, ou seja, de conhecimentos. Todavia, convém
lembrarmos de que Hegel não separa método de conteúdo, apenas tem a concepção de que
estes estão imbricados na aprendizagem. No segundo caso, Hegel faz uma crítica à pedagogia
de seu tempo a qual importava filosofar, mesmo sem conteúdos.56 No entender de Hegel não
se separa a filosofia do ato de aprender filosofia. Com isso, ele salienta a importância de
aprender seus conteúdos, os quais conduzirão o educando a pensar crítica e racionalmente,
oportunizando ao indivíduo um caminho em direção à eticidade, à liberdade e a autonomia de
pensamento.
Talvez a exortação de Hegel para os dias atuais reside no fato de que muitos
educadores pensam que se pode filosofar sobre qualquer coisa, de que o importante é fazer o
educando pensar, raciocinar. A partir do pensamento hegeliano faço uma crítica a esta
concepção, pois no meu entender se está esgotando a possibilidade de garantir a filosofia
como disciplina escolar, se o importante é apenas fazer o aluno pensar corre-se o risco de
fragmentar a filosofia em todas as áreas de conhecimento. O professor de ensino religioso, por
exemplo, pode fazer o aluno pensar sobre qual é o sentido de sua existência, desta forma o
55
56
LDB, Artigo 2º, finalidades gerais da educação nacional.
Cf. HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 371.
30
ensino religioso estaria contemplando a filosofia, portanto eliminando o espaço da filosofia
como disciplina. Ou ainda: se o objetivo é fazer o aluno pensar, talvez ao invés de colocarmos
a filosofia como disciplina, deveríamos colocar o estudo e prática do jogo de xadrez. Devo
concordar com Hegel quando ele diz que devemos popularizar a filosofia, ou seja, podemos
pensar filosoficamente sobre tudo, mas não significa que todos os pensamentos sejam
filosóficos. Volto a enfatizar o que já citei acima: o que acontece hoje em muitos centros
educacionais é o pensamento de que a filosofia está em tudo, no entanto por estar em tudo
acaba não estando em lugar algum. Esta preocupação Hegel manifesta em sua carta ao
conselheiro professor friedrich Rayner,57 nela ele busca garantir o lugar da filosofia na
universidade como as demais ciências com conteúdos próprios, justamente para não cair na
fragmentação do pensamento. Segundo Hegel, teremos bons filósofos quando estes tiverem a
cabeça cheia de conteúdos. Estes são aqueles com maior capacidade de contribuir com o
avanço da ciência e com o pensamento filosófico.
Por fim, a proposta hegeliana lança um dos maiores desafios à educação atual: uma
educação humanizadora. Para suprir esta necessidade em sua época Hegel propôs o estudo
dos clássicos grego e romano, como meio para evitar a superespecialização e a fragmentação
do saber. Na presente pesquisa há algumas citações que demonstram a importância que Hegel
da à formação humanística. Segundo ele, é ela que forma cidadãos éticos, sociáveis e capazes
de fazer mediações com as demais áreas do conhecimento. No discurso de 1813, Hegel diz:
“Na universidade começa a divisão mais acentuada, a determinação mais próxima de uma
profissão particular; não esqueceis aí, portanto, meus senhores, os estudos humanísticos feitos
no Ginásio”.58 A superespecialização e a fragmentação do saber continua sendo uma
preocupação hoje. No caso do Brasil muitas universidades acabam supervalorizando as áreas
técnicas, pois são estas que de momento podem contribuir com o atual sistema, para o qual
57
58
Cf. HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 379.
HEGEL, Discursos sobre educação. p. 76.
31
representam o avanço e o progresso, e as áreas humanas como aquelas que representam o
arcaico e o atraso. Em muitos casos os cursos de licenciaturas bem como de filosofia são
considerados secundários e economicamente inviáveis para a universidade. Muitas
instituições de ensino hoje estão “engordando” a máxima: “hoje o Brasil está formando
pessoas que sabem tudo de quase nada”, ou seja, especialistas em determinada área do
conhecimento, mas incapazes de ir ao encontro do coletivo, incapazes de refletir sobre seus
próprios conhecimentos. Se entendermos a universidade, segundo a concepção do professor
Paulo Schneider:
Universidade é o tempo e o lugar de refletir criticamente sobre os
conhecimentos, sobre a ciência, sobre o mundo; de saber e de assumir que
somos teoria, compressão e promoção de sentido; de saber e afirmar a
necessidade da discussão sobre o conhecimento que expressamos, já que há
a necessidade de convivência entre muitos; de saber que a questão do
conhecimento está ligada com a própria forma de institucionalização da
universidade e, ao mesmo tempo, com a proposição de sociedade-cidade
que se tem.59
A própria universidade acaba por negar-se a si mesma. A instituição que tem por
objetivo formar especialistas para o mercado vigente não pode ser considerada universidade.
Para tanto, mais do que nunca, urge trazermos à tona a velha preocupação de Hegel: garantir o
estudo humanístico e assegurar a filosofia na universidade como qualquer outra ciência, com
carga horária equivalente e com conteúdos específicos.60 Todavia, parece-me que
primeiramente se faz necessário superar a mentalidade preconceituosa de que a filosofia e as
humanidades sejam um obstáculo ao progresso científico.
59
60
SCHNEIDER, Introdução à filosofia, p.56.
Cf. HEGEL, Propedêutica filosófica, p. 379.
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1992.
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1997, 362p.
33
KONDER, Leandro. Hegel: a razão quase enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, 1991,
103p.
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