“Fitohormônios” e o conceito de “natural” na terapêutica hormonal feminina no climatério1 Ivone Manzali de Sá2 “Como todas as palavras que designam uma idéia muito geral, a palavra Natureza parece clara quando a empregamos mas, quando sobre ela refletimos, parece-nos complexa e talvez mesmo obscura.” (Lenoble, 1990:p.183) Resumo: Pretendo analisar, de forma preliminar, como se articula o conceito de “natural” frente ao público consumidor, mercado de medicamentos, médicos e pesquisadores da área, tendo como objeto de estudo a categoria de medicamentos chamados “fitohormônios”, isto é, hormônios de origem vegetal. No fim da década de 90 e início de 2000, chegou ao Brasil, através de mídia farmacêutica especializada, a notícia de uma alternativa terapêutica para a terapia de reposição hormonal (TRH) de origem sintética, até então largamente utilizada pelas mulheres ocidentais para aliviar os sintomas do climatério, mas que foi colocada em questão após anúncio de pesquisa que alertava para sérios efeitos colaterais. Por influência dos movimentos europeus e americanos de retorno a práticas médicas de saúde ligadas à natureza (naturopatas e fitoterapeutas), novos produtos, utilizando plantas medicinais como matériasprimas, foram apresentados ao mercado brasileiro para substituir a TRH. Abordagens de sensibilização do público médico e consumidor para estas medicações “naturais” explicitam a idéia da oposição entre as categorias “medicamentos sintéticos” e “medicamentos naturais”. O conceito de uma natureza Rousseauniana, perfeita, curadora, segura, pode ser percebido quando há uma alusão à ausência de efeitos colaterais neste tipo de medicamentos, em contrapartida ao medicamento sintético, produzido pelo homem, por sua vez considerado como artificial e iatrogênico. Por outro lado, observa-se na cadeia da pesquisa de medicamentos com matérias-primas naturais, sob a luz de uma orientação mecanicista, uma desarticulação do conceito de natureza, levando a deslizamentos semânticos do termo “natural”, associados a estes medicamentos. Palavras-chave: natural; menopausa; ciência. Começo este texto com esta reflexão de Lenoble sobre o significado da palavra natureza (e seu correlato natural) com a clareza de estar longe de poder iluminar o assunto de forma conclusiva, mas antes apontando para a complexidade deste conceito no universo do chamado “medicamento natural”. 1 “Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil.” 2 Mestre em Ciências Biológicas (Botânica), Museu Nacional/UFRJ. 1 Analiso nesta comunicação como se articula o conceito de “natural” nos discursos sobre a categoria de medicamentos chamados “fitohormônios”, isto é, hormônios de origem vegetal, ou melhor, substâncias de origem vegetal com características hormônios-like. O universo etnografado inclui o público consumidor, o marketing de medicamentos, além de artigos e outros textos médicos e de demais pesquisadores da área. No final da década de 90 e início de 2000, chegou ao Brasil, através de mídia farmacêutica especializada, a notícia de uma alternativa terapêutica para a terapia de reposição hormonal (TRH) de origem sintética, até então largamente utilizada pelas mulheres ocidentais para aliviar os sintomas do climatério. Apesar de ser um fenômeno fisiológico, a menopausa, a diminuição dos níveis dos hormônios estrogênio e progesterona nas mulheres, levando à interrupção da menstruação e possíveis sintomas associados como ondas de calor, secura vaginal, depressão entre outros, vem sendo medicada através da TRH, que se tornou popular e indicada para todas as mulheres nesta fase da vida por influência do livro Feminine Forever (1966), do médico ginecologista americano Robert Wilson (Vigeta, 2004). Neste livro, publicado com o apoio de uma indústria farmacêutica produtora de hormônios sintéticos, o autor faz uma apologia a respeito do direito da mulher se manter feminina e sexualmente ativa, após o período da menopausa. A divulgação de suas idéias se propagou rapidamente no meio médico e leigo, levando milhares de mulheres a utilizarem a TRH. A conduta terapêutica preconizada por Wilson provocou o deslizamento da TRH para a categoria discutida por Azize (2006) como “medicamentos de estilo de vida”, onde o objetivo de uso do medicamento está associado ao bem estar do consumidor e não a um estado patológico, necessariamente. No entanto, a TRH foi colocada em questão após anúncio de uma pesquisa realizada pela Women’s Health Initiative (WHI) que alertava para os riscos de doença arterial coronariana, acidente vascular cerebral, assim como trombose e câncer de mama associados à TRH, afirmando que os riscos eram, em muitos casos, superiores aos benefícios de alívio dos sintomas relacionados ao climatério (WHI, 2002). Este artigo provocou uma grande reação por parte da comunidade médica, resultando numa série de artigos sobre procedimentos da clínica médica, medicalização, e da validade da utilização de outros recursos terapêuticos em substituição à TRH, principalmente de plantas medicinais e alimentícias utilizadas por diferentes sistemas médicos tradicionais. Por outro lado, desde os anos 1960/70, por influência do movimento da contracultura dos europeus e americanos, houve um retorno às práticas médicas de saúde ligadas à natureza e a importação de antigos sistemas médicos como a Medica Tradicional Chinesa (MTC), 2 Ayuverda, xamanismo, entre outros, em geral reinterpretadas e reapropriadas culturalmente de acordo com padrões ocidentais (Luz, 2007). Uma das hipóteses apontada por Madel Luz, seria percepção de que o “próprio paradigma que rege a biomedicina contemporânea se afastou do sujeito humano sofredor como uma totalidade viva em suas investigações diagnósticas, bem como em sua prática de intervenção, além de deixar de observá-lo como centro de seu objeto de investigação e seu objetivo como prática terapêutica” (Luz, 2007: p.47). Neste cenário, novos produtos utilizando plantas medicinais como matérias-primas, foram apresentados aos públicos leigo e especializados para substituir a TRH, como Angelica sinensis, Cimicifuga racemosa, Glicine max (soja) e Dioscorea villosa (cará). Abordagens de sensibilização do público médico e consumidor para estas medicações “naturais” explicitam a idéia da oposição entre as categorias “medicamentos sintéticos” e “medicamentos naturais”. O conceito de uma natureza Rousseauniana, que tende à perfeição, curadora e segura, pode ser percebido quando há uma alusão à ausência de efeitos colaterais neste tipo de medicamentos, em contrapartida ao medicamento sintético, produzido pelo homem, por sua vez considerado como artificial e iatrogênico. No material de marketing do livro intitulado “Fitohormônios – Abordagem Natural da Terapia Hormonal”, elaborado por dois médicos ginecologistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há uma evocação de uma noção Rousseauniana de natureza como segue neste trecho do texto: ...é o tipo de trabalho científico que a um só tempo contempla o valor terapêutico das ervas e plantas – neste livro particularizando as ações hormonais, bem como a minimização de efeitos colaterais; a par de obviamente enfocar a medicação, bem mais barata em comparação com os sucedâneos sintetizados em laboratórios da indústria farmacêutica. No entanto, quando seguimos para a continuação do texto, percebe-se uma abordagem vitalista do conceito mesclado a informações descritivas da classificação dos reinos biológicos e da botânica científica, como segue: Revive-se aqui a essência da energia vital da natureza que aviva todos os seres do micro e do macrocrossomos, dos reinos: vegetais, animais, fungos, protistas (microalgas e protozoários) e monera (bactérias e algas azuis). E é no reino vegetal que encontramos o maior número de espécies, muitas ainda não classificadas pelos botânicos. Ainda neste material etnográfico, quando observamos o conteúdo do livro, nos deparamos com abordagens de caráter mecanicistas sobre as plantas medicinais em questão. 3 Este tipo de abordagem é similar a tantos outros artigos científicos sobre o tema que vêm sendo veiculado no meio médico científico sobre plantas medicinais. Dentro da cosmologia biomédica Ocidental, o conhecimento tradicional e a planta medicinal são considerados pontos de partida, pertencentes à natureza, onde através da tecnologia científica tornam-se totalmente desvinculados de seus atributos originais. Muitas substâncias de origem vegetal com propriedades hormônio-like, são conhecidas como diosgenina, isoflavonas, ácido glicirrético, entre outros, mas muitos médicos que prescrevem tais substâncias, sequer sabem que aos seus pacientes está sendo administrado o extrato de uma planta, que contém tais substancias e não esses constituintes isolados. A planta medicinal hierarquicamente passa a ter um valor secundário em detrimento de uma ou mais substâncias contidas nela. Toma-se a parte pelo todo, num típico discurso iluminista. Desta forma, a planta Vitex agnus castus, utilizada desde a Antiguidade grega, para ser considerada eficaz, segundo Alves & Silva (2003) deverá conter 5% de viterscarpina, e as doses terapêuticas deverão ser de 400mg/dia de extrato padronizado. Surge então um preparado vegetal que mantêm as características principais da planta, e que atende simultaneamente as expectativas do paradigma iluminista da biomedicina. Este preparado, denominado “extrato seco padronizado”, é o resultado de purificações da planta, que teoricamente deveria conter as substâncias originais da espécie vegetal, porém melhoradas em sua performance químico-biológica, além de ter substâncias químicas de referência, com quantidades regulares, permitindo assim ao clínico prescrever o medicamento segundo estas substâncias de referência, e não pelas características da planta de origem. Considero o “extrato seco padronizado” um quase-objeto híbrido (Latour, 1994), pertencente à rede sociotécnica das plantas medicinais (Branquinho, 2007), pois trata-se de uma matéria de origem vegetal, à qual foram agregados saberes e valores tecnológicos, tem como atributo o conhecimento tradicional, e é conhecido como um “produto natural”. Através da idéia de “rede” associada às plantas medicinais, Branquinho considera que “...temse assim, uma série infinita de possibilidades de articulação de conceitos científicos e não científicos que ligam as mais antigas tradições às tecnologias avançadas, humanos e nãohumanos, natureza e cultura, popular e científico, num tecido único, um conjunto de “híbridos” (Branquinho, 2007, p.15). Observa-se na cadeia da pesquisa de medicamentos com matérias-primas naturais, sob a luz de uma orientação mecanicista, uma desarticulação do conceito de natureza, levando a um deslizamento semântico do termo “natural” associado a estes medicamentos. Além disso, observa-se uma busca pela perfectibilidade de Rousseau, através de processos de purificação no sentido empregado por Latour, onde tanto os dados oriundos do conhecimento 4 tradicional como o próprio extrato bruto da planta é purificado com a intenção de um “aprimoramento” da natureza, através da ciência e da tecnologia. Também chama a atenção como o conceito de “natural” se amplia e é utilizado, não somente para identificar a matéria-prima vegetal ou animal, mas também quando existe um conhecimento tradicional associado. Mesmo após sofrer uma série de processos tecnológicos, como purificação, isolamento ou mesmo alteração de algumas moléculas, distanciando-o consideravelmente do produto original, o medicamento é comercializado como um medicamento “natural”, de uso tradicional, como demonstrado no material de divulgação na internet de alguns produtos naturais indicados para sintomas da menopausa e da saúde, em geral, da mulher: PrevenSoy Plus Combina seis elementos importantes para a boa nutrição do organismo feminino: isoflavonas, proteína isolada de soja, dosagem ideal de cálcio e fibras, vitaminas e minerais. A proteína isolada soja contém as ISOFLAVONAS, que são hormônios naturais muito parecidos com o hormônio estrógeno, proporcionando inúmeros benefícios para a saúde. PrevenSoy Plus é um alimento especial para a manutenção geral da saúde da mulher,recomendado para todas as idades, pois as isoflavonas são fitoestrógenos que não rivalizam com os hormônios produzidos naturalmente pelo organismo. 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Em um estudo clínico, Black Cohosh, um dos ingrediente de ProEstron, mostrou ser seguro e extremamente eficaz para reduzir os sintomas mais comuns associados com a menopausa. 5 Segundo a fala de uma pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) em uma palestra sobre desenvolvimento de medicamentos fitoterápicos, “o chá da vovó é um dado histórico; nós trazemos desenvolvimento e tecnologia (através da purificação dos extratos e análises laboratoriais) para ele se tornar um medicamento fitoterápico.” No entanto, quando a mesma pesquisadora descreve o apelo do produto junto ao público consumidor, um dos critérios utilizados, é que o medicamento é natural e é de uso tradicional. Outro exemplo, citado no Correio Brasiliense (2006), é o posicionamento da ginecologista Carolina Carvalho do Ambulatório de Climatério da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), durante uma entrevista sobre plantas medicinais e menopausa. Ela esclarece que a diferença entre o fitomedicamento e a terapia hormonal (TH) convencional é a origem natural, mas que é preciso cuidado ao escolher o produto. "O remédio cujo princípio ativo é a isoflavona precisa ter estudos científicos comprovando a sua eficácia e registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária", avisa a médica. Outro caso interessante neste segmento é o de um produto que vem sendo oferecido como substituto do creme (ou gel) de progesterona sintético, utilizado na TRH. Trata-se do creme (ou gel) de Dioscorea sp. Esta planta foi utilizada como precursor na síntese da progesterona por químicos na década de 1950, por possuir na sua composição uma substância chamada diosgenina. No entanto, não há qualquer pesquisa que sustente a idéia que o extrato da planta, quando introduzida no organismo humano, seja biotransformada em progesterona. Mesmo assim, este produto é vendido como: “Creme (ou gel) de Dioscorea sp.” com “progesterona natural”. Há uma tentativa de ligar fatos, através do termo “natural”, que estão desconectados cientificamente. Numa linha semelhante outro produto foi laçado no mercado oferecendo também a “progesterona natural”, mas quando verificado cuidadosamente na constituição da fórmula, constatava-se a adição de progesterona de origem animal, que não deixa de ser natural, mas por ser semelhante ao produto sintético, também oferece riscos de efeitos colaterais para a consumidora. Esquivando-me de entrar na discussão de fraude ou má fé por parte do mercado, fica a reflexão da força do termo “natureza” ou “natural” como peça fundamental na venda destes produtos. Aparece neste campo etnográfico, mais um aspecto interessante, que diz respeito à confiança. A partir da publicação e grande difusão da pesquisa do WHI que alertava para os riscos de doenças cardiovasculares advindos da TRH, muitas reportagens passaram a questionar a ciência médica e suas pesquisas. Formou-se uma espécie de pânico coletivo entre as mulheres usuárias desta terapêutica, assim como nas congregações médicas. Artigos intitulados: “Postmenopausal hormone replacement therapy: How could we have been so 6 wrong?”3, “TRH x WHI: A estrela vai a nocaute”4, entre outros foram divulgados na mídia especializada e leiga, colocando em questão alguns paradigmas da pesquisa científica. Ainda hoje, segundo comunicados à população das principais agências de saúde no Brasil e no exterior, não existe uma explicação plausível para tal falha no sistema de desenvolvimento e aplicação desta terapêutica. Por outro lado, um número considerável de mulheres abandonou o uso da TRH, por falta de confiança, partindo em busca de alternativas para os sintomas do climatério, entre elas, as plantas medicinais. Os balcões de farmácias e consultórios médicos foram muito demandados por uma “alternativa natural” aos hormônios sintéticos, que pudesse ao mesmo tempo ser seguro e eficaz contra os sintomas da menopausa. Médicos que trabalham com fitoterapia relatam a procura por parte dos pacientes por esta terapêutica: É muito comum os pacientes chegarem ao consultório sentindo sintomas incômodos da menopausa e referindo medo de utilizar a terapia de reposição hormonal por conhecerem os resultados dos estudos5. Querem uma terapia natural, que pensam ser isentas de efeitos colaterais (Dra G.S.). É interessante observar que os pacientes chegam ao consultório com a concepção de que os medicamentos naturais seriam isentos de efeitos colaterais, mas, por outro lado, buscam a mesma eficácia dos medicamentos sintéticos. Curiosamente, segurança e eficácia são as premissas no desenvolvimento de novos medicamentos pela ciência moderna, e a justificativa por parte da comunidade científica para a não utilização dos métodos naturais, pois estes não passaram pelas metodologias científicas que garantem eficácia e segurança. No entanto, paradoxalmente, os hormônios sintéticos passaram por estes testes. Pouco antes do fechamento desta comunicação, o jornal “O Globo”6, no caderno de ciências, publicou uma reportagem que, apesar de não abordar medicamentos para menopausa, ilustra bem as algumas questões levantadas neste texto, sobre como se articula o conceito de natural no segmento científico de desenvolvimento de medicamentos. Sob o título “Pílula do vinho para aumentar a longevidade”, um repórter do New York Times anuncia que a intenção do laboratório britânico GlaxoSmithKline, multinacional de medicamentos, de comprar uma empresa de biotecnologia que investiga a capacidade de uma das substâncias 3 Annals of Medicine, 20 de Agosto de 2002. Vol. 137, n.4, p.290. Endocrinologia & Diabetes Clínica e Experimental. Hospital Universitário Evangélico de Curitiba. Março, 2004, vol.4, n.2. 5 Estudo do WHI sobre os riscos da TRH. Women’s Health Initiative Investigators. 2002. Riscs and benefits of estrogen plus progestin in healthy postmenopausal women. JAMA. 288:321-333. 4 6 “O Globo”, Caderno de Ciência/ Saúde; domingo, 27 de abril de 2008. 2ª edição, p.41. 7 presentes no vinho (revesterol), de retardar o envelhecimento. O atual diretor executivo desta empresa de biotecnologia diz que os efeitos do revesterol poderiam “evitar de maneira segura e natural muitas das doenças que afetam a sociedade ocidental”. No entanto, ao final da reportagem, a empresa anuncia que “espera em breve começar as experiências com um composto sintético, que é muito mais potente que o próprio revesterol.” Num mesmo ato, o diretor do laboratório associa a palavra “natural” com a idéia de segurança, mas por outro lado, deixa claro que o produto mais eficiente seria o composto sintético, numa exposição paradoxal do conceito de “natural”. A ciência moderna, a partir de Bacon e Descartes (séc. XVII), promoveu um afastamento das formas sensíveis de apreensão dos fenômenos da natureza, pretendendo uma ruptura com os modelos científicos antigos, porém alguns autores como Strathern (1992), Lenoble (1990), e Canguilhem (2002), a partir de campos de trabalhos diversos, apresentam uma preeminência da idéia de natureza que permeia vários momentos históricos e intelectuais no mundo Ocidental. Lenoble (1990) considera que o conceito da natureza “salvadora”, “sábia”, “original” é anterior à Rousseau, e que podemos observá-la reaparecer “como um sintoma” em todas as civilizações. ... a esperança de que as verdadeiras soluções e a verdadeira razão serão encontradas renunciando às idéias recebidas: os nossos esforços revelam-se infrutíferos, mas, para lá de nossos esforços, a verdadeira razão manteve-se intacta no homem mais simples, o homem da Natureza. Afastámo-nos da razão ao querer tudo bem demais, o remédio encontrar-se-á num regresso à Natureza. (Lenoble, 1990, p.235-6) Strathern (1992), no campo do parentesco britânico, traz uma visão da ambigüidade nas relações de “mudanças” e “continuidade”, demonstrando como o conceito de natureza pode ser modificado pelas alterações impressas pela cultura, sem, contudo romper necessariamente com o seu valor intrínseco. Já no campo especifico da medicina, Canguilhem (2002) faz considerações a respeito de como o pensamento médico, a partir de Hipócrates, é permeado pelo conceito de natureza. Citações hipocráticas como “A natureza é o médico das doenças”, “A natureza sem instruções e sem saber, faz o que convém de fazer, o que tem que ser feito”, ou ainda de Galeno, baseado em Hipócrates, onde diz que: “A natureza é a primeira conservadora da saúde”, corroboram a afirmação de Canguilhem. Considerando a grande influência dos conceitos hipocráticos dos humores na medicina popular até os dias de hoje, como a concepção das oposições clássicas entre quente x frio, forte x fraco, por exemplo, talvez pudéssemos também correlacionar a 8 difusão da idéia de “natureza” na arte médica, apontada por Canguilhem, para os setores mais populares da sociedade Ocidental. Quais outros fatores poderiam estar envolvidos na opção de retorno às práticas naturais de saúde, especificamente no contexto atual da medicina contemporânea? Se levantarmos outros dados referentes a equívocos de desenvolvimento de medicamentos, como a Talidomida nos anos sessenta, responsável por mais de 10.000 casos de más formações em fetos, ou mais recentemente o Vioxx™, que dobra o risco de acidentes cardiovasculares em seus usuários, por exemplo, observamos o abandono do uso da medicação envolvida, sem necessariamente ter ocorrido uma busca por um substituto mais “natural”. Será que podemos especular uma analogia com a medicalização da chamada “depressão leve”, onde em países de primeiro mundo? Na Alemanha, por exemplo, com mais recursos financeiros e com acesso a medicamentos industrializados observa-se um aumento significativo na opção por uma terapêutica mais “natural”, onde se prescrevem cerca de 200 mil receitas por mês de Hipérico (Hypericum perforatum), e somente 30 mil receitas de fluoxetina (Prozac™) (Yunes e Calixto, 2001). Para Duarte (2005), “a categoria natureza é crucial para a ordenação dos horizontes modernos, sob diferentes roupagens e através de diferentes tradições de conhecimento”. Ainda segundo este autor, “a representação cientificista e iluminista de natureza foi retomada pelo Romantismo – sobretudo sob a forma do valor da vida, assumindo as características principais pelas quais passou a se apresentar e difundir como uma “crença” estruturante do Ocidente (aquém de qualquer dogma ou preceito religioso) (Duarte, 2005). A palavra natureza, ao longo da história e mesmo nos dias de hoje, como se verifica neste estudo de caso, se por um lado aparentemente nos parece óbvia, revela uma diversidade de sentidos, muitas vezes articulada de forma contraditória até mesmo dentro do mesmo domínio de saber, como as ciências médicas, como foi demonstrado neste trabalho. Gostaria de encerrar esta comunicação, mais uma vez citando Lenoble, assim como os antigos romanos utilizavam a imagem de Jano7 : ...este conceito de Natureza só na história toma todo o seu sentido; exprime menos uma realidade passiva apercebida que uma atitude do homem perante as coisas. (Lenoble, 1990: p.200) 7 Deus mitológico que remonta a Roma antiga, conhecido pelas duas faces, e que era evocado para abrir e fechar situações como guerras ou períodos como o calendário anual. 9 Bibliografia: Alves, D.L. & Silva, C.R. 2003. Fitohormônios – Abordagem natural da Terapia hormonal. São Paulo: Editora Atheneu. 105p. Azize, R. L.. 2006. Saúde e estilo de vida: divulgação e consumo de medicamentos em classes médias urbanas. Antropologia e Consumo: diálogos entre Brasil e Argentina. Leitão, D.K., Lima, D. N. O., Machado R. P. (orgs.). Porto Alegre, AGE: 119-137. Branquinho, F. 2007. O poder das ervas na sabedoria popular e no saber científico. Rio de Janeiro: Ed. Mauad X. Canguilhem, G. 2002. Écrits sur la medicine. Paris : Édition du Sueil. Correio Braziliense. Revista do Correio Fitoterapia na menopausa. Publicado em: 24/12/2006. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/divulga/imprensa/clipping/2006/dezembro/241206.pdf Duarte, L.F.D.; Jabor, J.M.; Gomes, E.C.; Luna, N. 2006. Família, reprodução, e ethos religioso: subjetivismo e naturalismo como valores estruturantes. In: Duarte, L.F.D..; Heilborn, M.L.; Barros, M.L.; Peixoto, C..(orgs). Família e Religião. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. P.15-50. Latour, B. 1994 Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34. Lenoble, R. 1990. História da Idéia de Natureza. 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