Interacções do álcool com medicamentos – I

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Interacções do álcool com medicamentos – I
O consumo de álcool encontra-se, actualmente, bastante generalizado e comporta o risco de sérias consequências
médicas como resultado das interacções com os fármacos.1
Contudo, a avaliação destas interacções não é linear e, de facto, para um determinado indivíduo, os efeitos da interacção entre o álcool e os fármacos podem ser impossíveis de prever a partir da literatura, contribuindo para isso
a forma como o álcool é consumido, nomeadamente: a natureza variável do consumo, que pode ir da bebida ocasional ao abuso de álcool; o facto de a maior parte dos estudos que investigam estas interacções não reflectirem a
forma habitual pela qual o álcool é consumido e as grandes diferenças inter e intra individuais relativas à absorção
do álcool.2 Também a idade,1-6 o sexo1,3-6 e os factores genéticos1,3,4,6 poderão influenciar o risco de ocorrência de
reacções adversas relacionadas com as interacções entre o álcool e os fármacos.
Os idosos estão mais vulneráveis à ocorrência de interacções clinicamente significativas, como resultado da sua
polimedicação,1,2 das múltiplas patologias, da reduzida resposta homeostática, da redução da função renal e, por
vezes, da função hepática e da alteração da resposta farmacodinâmica.2 As mulheres têm um risco acrescido de
ocorrência destas interacções devido a um metabolismo mais reduzido, ao baixo teor de água corporal total1,4 e à
maior percentagem de gordura corporal comparativamente ao homem.4 Um risco acrescido de interacções é também observado nos asiáticos, devido à reduzida actividade quer da aldeído desidrogenase, quer das isoenzimas
implicadas no metabolismo de fármacos tais como os antidepressores e os antipsicóticos.1
Estão descritos dois tipos de interacções entre o álcool e fármacos: as interacções farmacocinéticas e as interacções farmacodinâmicas,1 que podem resultar num aumento do efeito do álcool,2,3 e numa redução ou aumento
da eficácia dos fármacos,2 ou mesmo num aumento dos seus efeitos secundários.3
Metabolismo do álcool
O álcool consumido por via oral é rapidamente absorvido a partir do tracto gastrintestinal,4,5 podendo a sua taxa
de absorção ser modificada por factores tais como: a presença de alimentos, a concentração de álcool, o período
de tempo durante o qual é ingerido,5,6 entre outros.
Cerca de 90 a 98% do álcool ingerido é oxidado a acetaldeído.3,5 Essa oxidação dá-se a dois níveis:
- A nível gastrintestinal, onde o álcool é oxidado pela álcool desidrogenase (ADH) em acetaldeído.1
- A nível hepático, onde ocorre a principal metabolização,2,3,5,7 o álcool é transformado em acetaldeído maioritariamente pela acção da ADH3,6,7 mas também pela acção do sistema oxidativo microssomal do álcool, cujas enzimas
são activadas para níveis de álcool superiores.3,6-8
A ingestão aguda de álcool provoca uma inibição competitiva das enzimas envolvidas no seu metabolismo, incluindo
a CYP2E1; pelo contrário, após um consumo crónico de álcool haverá uma indução da CYP2E1.2,7 O metabolismo
do álcool realizado por esta enzima conduz à formação de acetaldeído e de radicais oxigénio, assim como a um aumento do metabolismo dos xenobióticos com produção de metabolitos tóxicos.1,7 O acetaldeído formado é, posteriormente, convertido a acetato pela aldeído desidrogenase (ALDH), sendo libertado para a corrente sanguínea e
oxidado pelos tecidos periféricos em CO2, água e ácidos gordos.4
Interacções farmacocinéticas
1) Alteração da taxa de esvaziamento gástrico.
As interacções farmacocinéticas podem resultar de alterações na taxa de esvaziamento gástrico, afectando a quantidade de álcool ou fármaco absorvidos.2 Fármacos que reduzam o esvaziamento gástrico diminuem a velocidade de
absorção do álcool e a sua concentração no sangue1; fármacos que acelerem o esvaziamento gástrico conduzem a
um aumento da concentração de álcool no sangue.1,2 O próprio álcool pode atrasar o esvaziamento gástrico.2
2) Alteração do efeito de primeira passagem do álcool pela ADH gástrica e hepática.
É sugerido, por exemplo, que os antagonistas H2 possam inibir a ADH gástrica, diminuindo o metabolismo do álcool
e permitindo a sua maior absorção2 – ver quadro em anexo.
3) Alteração do metabolismo hepático oxidativo do álcool pela ALDH ou pelo sistema microssomal.
Fármacos que inibem a aldeído desidrogenase (ALDH)
Os fármacos que inibem a oxidação do acetaldeído, por inibição da ALDH, podem provocar uma reacção sistémica
se administrados simultaneamente com o álcool3 – reacção “tipo dissulfiram”.
O dissulfiram, usado para encorajar a abstinência em doentes alcoólicos que decidiram parar de beber,1,3,5,9 ao ser
administrado concomitantemente com o álcool conduz a um aumento da concentração de acetaldeído, cujos efeitos
adversos são caracterizados por rubor, náuseas, vómitos,1-3,5,8,9 palpitações,1,3,5 hipotensão,3,5,9 taquicardia2,3,5,9 e cefaleias.3,5 Mais raramente, poderá ocorrer uma reacção severa caracterizada por colapso cardiovascular, convulsões
ou morte.1,3,5 Exemplos de reacções deste tipo serão referidos na tabela em anexo.
Interacções farmacocinéticas ao nível do sistema hepático microssomal
O álcool pode interferir com os fármacos metabolizados pelas enzimas do sistema hepático microssomal, interacção essa que dependerá da forma como o álcool é consumido. No caso do consumo agudo há uma competição
entre o álcool e o fármaco ao nível microssomal, com diminuição do metabolismo do fármaco,1,3 resultando numa
excreção diminuída dos produtos de metabolismo e num aumento do risco de sobredosagem.1 O consumo crónico de álcool traduz-se num aumento da actividade microssomal,1-3,7,8 mesmo na ausência de álcool,1 com aumento
do metabolismo do fármaco1,3,8 e diminuição das suas concentrações plasmáticas.1
Interacções farmacodinâmicas
São interacções menos previsíveis mas não necessariamente menos importantes que as farmacocinéticas. A interacção mais manifestada é a relativa ao efeito reforçado dos fármacos que deprimem o sistema nervoso central
(SNC) pela ingestão concomitante de álcool.8
ficha técnica n.º 71
centro de informação do medicamento
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São referidas em seguida algumas das interacções mais comuns, assim como as respectivas recomendações:
FÁRMACO
ANALGÉSICOS
Analgésicos
opiáceos
INTERACÇÃO COM O ÁLCOOL/RECOMENDAÇÕES
Interacção PD (farmacodinâmica): O álcool pode agravar os efeitos depressores do SNC provocados pelos
analgésicos opiáceos,3,5,9 aumentando a sonolência e reduzindo o estado de alerta.9,10
Recomendações: Alertar os doentes para o risco de condução ou manipulação de máquinas perigosas.9
Paracetamol
Interacção PK (farmacocinética): A nível do sistema hepático microssomal.1,3,8,9,11,12
- consumo agudo de álcool + doses tóxicas de paracetamol: diminuição do risco de envenamento por inibição da formação do metabolito hepatotóxico do paracetamol: N-acetil-p-benzoquinonaimina.1 Assim, o consumo agudo de álcool parece conferir protecção contra a toxicidade por sobredosagem de paracetamol.9,11,12
- consumo crónico excessivo de álcool + doses tóxicas de paracetamol: formação do metabolito hepatotóxico,
por indução da CYP2E1.1,9 Simultaneamente, uma situação de subnutrição pode provocar uma deficiência de
glutatião (GSH), com alteração do processo de destoxificação do metabolito hepatotóxico formado,3,9 o que faz
com que os consumidores crónicos de álcool tenham um risco acrescido de dano hepático após consumo de
doses elevadas de paracetamol.1,3,5,9,11
- consumo crónico excessivo de álcool + doses terapêuticas de paracetamol: a dose diária máxima normalmente recomendada e considerada segura de 4g de paracetamol pode ser tóxica para alguns alcoólicos,1,9 enquanto
que o risco para os não alcoólicos, os consumidores moderados e os que consomem álcool ocasionalmente,
parece ser reduzido.9 Alguns autores defendem que são necessários mais estudos para clarificar a segurança do
uso regular do paracetamol associado a quantidades moderadas a elevadas de álcool.12
Recomendações: Apesar de a incidência da interacção ser razoavelmente reduzida, o dano pode ser grave, daí
que os alcoólicos devam ser alertados para evitarem o paracetamol9 ou limitarem o seu uso.9,11,12
Anti-inflamatórios
não esteróides
(AINEs)
Interacção PD: O álcool parece acentuar as hemorragias gastrintestinais (GI) causadas pelo ácido acetilsalicílico (AAS)1,2,8,9,11 e outros AINEs,1,2,8 assim como prolongar o tempo de hemorragia.8,9,11
Não há evidências de que o consumo ligeiro a moderado de álcool aumente significativamente o risco de hemorragia GI em doentes a consumirem simultaneamente AAS ou outros AINEs, especialmente se estes são tomados
somente quando necessário; porém, o risco de hemorragia GI aguda aumenta para os consumidores excessivos
tanto de álcool, como de AAS ou outros AINEs.9,13,14
Recomendações: Alertar os consumidores excessivos de álcool que tomam AAS ou outros AINEs regularmente, para um particular risco de hemorragia GI.13,14 Recomenda-se evitar o consumo de AAS 8 a 10 h após a
ingestão excessiva de álcool. Os doentes devem também ser alertados para o facto de bebidas com elevada
concentração de álcool ingeridas com o estômago vazio potenciarem o dano do AAS sobre a mucosa gástrica.11
Ácido acetilsalicílico (AAS)
Interacção PK: Inibição da álcool desidrogenase.6,9
Apesar de alguns dados limitados sugerirem que o AAS pode aumentar os níveis de álcool no sangue, não há
informação consistente e substancial que suporte esta interacção farmacocinética.6,9
BENZODIAZEPINAS
(BZD)
Interacção PK: A nível do sistema hepático microssomal.1,2,7,15
O metabolismo das BZD é catalisado principalmente pela CYP2C19 (ex.: diazepam) e pela CYP3A4 (ex.: midazolam e triazolam). Mas a clearance das benzodiazepinas via fase I do metabolismo, por N-desmetilação e/ou
hidroxilação, tende a ser mais afectada pelo consumo do álcool que a clearance de compostos tais como o
lorazepam, oxazepam e lormetazepam, que sofrem uma reacção de conjugação (fase II).7,15
- Consumo agudo de álcool: inibição do metabolismo e aumento da concentração das BZD;1,2,7,15 os níveis de
oxazepam permanecem inalterados, pois a reacção metabólica predominante é a conjugação.7,15
- Consumo crónico excessivo de álcool: a enzima CYP2E1 é induzida,2,7 e os fármacos que são metabolizados
por N-desmetilação (diazepam) e hidroxilação exibem uma clearance aumentada.7
Interacção PD: O álcool agrava os efeitos depressores do SNC causados pelas BZD.1-3,5,7,9-11,15
Recomendações: Apesar de com a ingestão ocasional de modestas quantidades de álcool os efeitos serem
reduzidos na maioria dos doentes, qualquer doente que consuma BZD deverá ser alertado para o facto de a sua
resposta habitual ao álcool poder ser maior do que a esperada, e de a sua capacidade de conduzir ou desempenhar qualquer tarefa que exija um estado de alerta poder vir a ser afectada.9,11
ANTIDEPRESSORES
E ANTIPSICÓTICOS
Interacção PK: A nível do sistema microssomal.1,16
Os antidepressores e os antipsicóticos são metabolizados principalmente pela CYP2D6 e/ou CYP2C19.1,16
- Consumo agudo de álcool: a clearance dos antidepressores e antipsicóticos diminui1 ou mantém-se,16 e o seu
tempo de semivida é prolongado.1,16 Ex.: O álcool causa um aumento das concentrações plasmáticas de amitriptilina por inibição do seu metabolismo durante o efeito de primeira passagem.9,15,16
- Consumo crónico excessivo de álcool: o metabolismo dos antidepressores e antipsicóticos aumenta e o seu
tempo de semivida decresce.1,16 Ex.: Foram detectados níveis plasmáticos reduzidos de imipramina e desipramina em alcoólicos abstinentes atribuídos à indução enzimática provocada pelo álcool.9,11
Antidepressores
Interacção PD: O uso concomitante de álcool e de antidepressores pode resultar num efeito aditivo ao nível
da sedação e da disfunção psicomotora.1-3,5,9,11,15 Há relatos de interacções farmacodinâmicas tanto para os
antidepressores tricíclicos (ex.: amitriptilina)2,9-11,15,16 como para os tetracíclicos (ex.: mianserina).3,9,10 O álcool
pode também agravar a hipotensão provocada pelos inibidores da monoaminoxidase (IMAOs),9,10 devido aos
seus efeitos ao nível da vasodilatação e à sua capacidade de redução do débito cardíaco.9
Recomendações: Alertar os doentes para o facto de o álcool provocar uma alteração da função psicomotora
maior que a esperada, em especial no início do tratamento com antidepressores tricíclicos ou derivados,9,11
advertindo-os para os riscos de conduzir ou manipular máquinas. Doentes tratados com IMAOs devem ser alertados para a possibilidade de hipotensão ortostática e síncope após ingestão de álcool.9
Novos antidepressores: Os novos antidepressores, incluindo a fluoxetina, fluvoxamina, paroxetina e moclobemida, não parecem causar o mesmo grau de alterações a nível do SNC que os antidepressores tricíclicos e derivados quando estes são administrados em simultâneo com o álcool,2 mas os doentes deverão ser alertados.
Nota: As bebidas alcoólicas (ou mesmo as não alcoólicas) que contenham tiramina, poderão originar uma crise
hipertensiva ao serem ingeridas simultaneamente com IMAOs não selectivos.3,9-11 A ocorrência de uma reacção
hipertensiva no caso dos IMAOs reversíveis e selectivos (ex.: moclobemida) é improvável.3,9
Recomendações: Os doentes a fazerem terapêutica com IMAOs não selectivos devem ser alertados para evitarem ingerir bebidas alcoólicas.11
Antipsicóticos
Interacção PD: O álcool tem efeitos aditivos na depressão do SNC causada pelos antipsicóticos.3,5,9-11
Recomendações: Alertar os doentes para o facto de não ser aconselhável conduzir ou manipular máquinas
potencialmente perigosas. A possibilidade de o álcool precipitar efeitos extrapiramidais em certos doentes mais
susceptíveis a fazerem terapêutica com neurolépticos é outra razão para limitar o seu consumo.9,11
BARBITÚRICOS
Interacção PD: O álcool e os barbitúricos têm um efeito aditivo ao nível da depressão do SNC,1,9-11 resultando
num aumento da sonolência, numa diminuição do estado de alerta e numa redução da coordenação motora,9
podendo ser fatal em caso de sobredosagem.11
Recomendações: Alertar os doentes para os sérios riscos de conduzir ou manipular máquinas.9,11
Interacção PK: A nível do sistema microssomal.9,11
- consumo agudo de álcool: inibição das enzimas que metabolizam os barbitúricos.2,9,11
Joana Viveiro
A próxima Ficha Técnica continuará a abordar este tema; a bibliografia será publicada com a parte II.
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