54 RELATO DE CASO Ana Cristina Gonçalves Ribeiro Ferreira Barros1 Diana Baptista1 Ângela Silva2 Acne e cefaleias - uma relação que não deve ser esquecida Olga Pereira3 Carla Laranjeira4 Acne and headache - a relationship that should not be forgotten > RESUMO Objetivo: As cefaleias podem traduzir patologia grave, e a presença de sinais e sintomas de hipertensão intracraniana (HIC) alerta para a necessidade de investigação etiológica. Descreve-se o caso de uma adolescente com cefaleias e medicada com minociclina, fármaco amplamente utilizado em dermatologia. Descrição de caso: Adolescente de 12 anos com cefaleias, náuseas e vómitos, de agravamento progressivo, associados à diplopia horizontal intermitente e zumbido pulsátil. Medicada nas 6 semanas prévias com minociclina oral e adapaleno tópico por acne. Ao exame objetivo constatada limitação na abdução do olho direito e edema bilateral da papila, simétrico, não inflamatório. O estudo imagiológico excluiu massas intracranianas e foi realizada punção lombar com medição da pressão intracraniana (PIC) que se revelou superior a 50 cm de água. O vírus Epstein-Barr foi o único achado positivo no despiste infeccioso do líquido cefalorraquidiano. Iniciou acetazolamida e suspendeu a minociclina, com melhora dos sintomas. Comentário: Dada a prevalência de acne nos adolescentes e a prescrição de tetraciclinas no seu tratamento, é essencial estar alerta para os sinais de HIC, de modo a instituir um tratamento atempado que previna a perda visual permanente. > PALAVRAS-CHAVE Pseudotumor cerebral, minociclina, infecções por vírus Epstein-Barr, cefaleia, acne, adolescente. > ABSTRACT Objective: Headaches can reflect serious pathologies, and the signs and symptoms of intracranial hypertension (ICH) indicate the need for etiological investigation. This case study describes an adolescent girl with headaches taking minocycline, a drug widely used in dermatology. Case description: A twelve-year-old female with progressively more severe headaches, nausea and vomiting, with horizontal diplopia and intermittent pulsatile tinnitus, medicated with oral minocycline and topical adapalene for acne over the previous six weeks. An objective examination revealed abduction limitation of the right eye and symmetrical non-inflammatory bilateral papilledema. The imaging study excluded intracranial mass and intracranial pressure at the lumbar puncture, higher than 50 cm of water. The Epstein-Barr virus was the only positive finding in the infectious examination of the cerebrospinal fluid. After switching to acetazolamide and taking her off minocycline, the symptoms improved. Remark: Due to the prevalence of acne among adolescents and the prescription of tetracyclines for its treatment, it is vital to be alert for signs of ICH, with rapid treatment preventing permanent loss of sight. > KEY WORDS Pseudotumor cerebri, minocycline, infection by Epstein-Barr virus, headache, acne, adolescent. 1 Médica - Interna de Pediatria. Centro Hospitalar do Alto Ave. Guimarães, Portugal. 2 Médica - Assistente Hospitalar de Neurologia. Centro Hospitalar do Alto Ave. Guimarães, Portugal. 3 Médica - Assistente Hospitalar de Dermatologia. Centro Hospitalar do Alto Ave. Guimarães, Portugal. 4 Médica - Assistente Hospitalar de Pediatria. Centro Hospitalar do Alto Ave. Guimarães, Portugal. Ana Cristina Barros ([email protected]) - Rua Óscar da Silva, n.º 88, 3º A, 4200-432 - Porto, Portugal. Recebido em 8/01/2012 - Aprovado em 10/02/2012 Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 54-58, jan/mar 2012 Adolescência & Saúde Barros et al. > INTRODUÇÃO As cefaleias podem traduzir patologia grave, sobretudo se acompanhadas de sinais e sintomas de hipertensão intracraniana (HIC)1, que, até prova em contrário deve-se à presença de uma massa intra-craniana2. A HIC idiopática é caracterizada, segundo os critérios de Dandy modificados3,4,5, por sinais e sintomas de aumento da pressão intracraniana (PIC); exame neurológico normal (exceto paresia do VI par); pressão de abertura do líquido cefalorraquidiano (LCR) > 25 cm de água em decúbito lateral; análise citoquímica do LCR normal; estudo imagiológico cerebral normal; e exclusão de causas sistêmicas de HIC. A incidência anual de HIC idiopática em adultos é de 1-2/100.000 pessoas, podendo chegar a 20/100.000 em mulheres obesas1,6. Após a puberdade verifica-se um predomínio no sexo feminino e em indivíduos obesos1,4,5,6,7,8. A idade de início da HIC idiopática em pediatria é variável, havendo relatos de casos a partir dos 3 meses (média de idade de 7,7 anos)9. > CASO CLÍNICO Adolescente de 12 anos, do sexo feminino, com quadro de cefaleias frontoparietais opressivas, náuseas e vômitos com 7 dias de evolução e de agravamento progressivo. Nas 24 horas prévias à observação apresentava diplopia horizontal intermitente e zumbido pulsátil. Sem história de febre nem traumatismo. Sem queixas respiratórias ou genito-urinárias. Sem imunizações ou alterações recentes de peso. Estava medicada com minociclina oral (100 mg/dia) e adapaleno tópico há 6 semanas por acne. Ao exame objetivo, apresentava razoável aspecto geral, consciente, colaborante e orientado. Estava apirética e hemodinamicamente estável. Normoponderal. Sem sinais de desidratação. Comedões abertos e lesões pápulo-pustulosas na face. No exame neurológico constatou-se limitação na abdução do olho direito e edema bilateral da papila, simétrico, não inflamatório. A acuidade visual e campimetria eram normais. Adolescência & Saúde ACNE E CEFALEIAS - UMA RELAÇÃO QUE NÃO DEVE SER ESQUECIDA 55 Analiticamente, sem alterações no hemoleucograma e contagem plaquetária. Proteína C reativa e velocidade de sedimentação normais. Ionograma, função renal e transamínases sem alterações. Cinética de ferro e estudo da coagulação sem alterações, bem como cortisol e função tiroideia. Sem evidência serológica de infecção aguda [vírus Epstein-Barr (EBV), citomegalovírus (CMV), vírus herpes simplex (HSV) 1 e 2, toxoplasmose e Mycoplasma pneumoniae]. Anticorpos anticitoplasma neutrofílico, anticorpos anti-nucleares, anticorpos anti-DNA de cadeia dupla e anticorpos antifosfolipídios negativos. Complemento e imunoglobulinas sem alterações. Exame sumário de urina sem alterações. Realizou tomografia axial computadorizada (normal), ressonância magnética cerebral (normal) e angioressonância magnética cerebral (normal). A pressão de abertura do LCR na punção lombar, em decúbito lateral, foi superior a 50 cm de água. A análise citoquímica foi normal e o exame bacteriológico negativo. A pesquisa de vírus no LCR foi positiva para o EBV (10 cópias/ml) e negativa para os restantes vírus (enterovírus, CMV e HSV). Perante o diagnóstico de hipertensão intracraniana, iniciou acetazolamida (250 mg, bidiário) e suspendeu minociclina, verificando-se redução da frequência e intensidade das cefaleias e episódios de diplopia, desaparecimento do zumbido pulsátil, náuseas e vômitos. Cerca de 8 meses após a internação, permanecia sem queixas de cefaleias e sem alterações visuais (acuidade visual e campimetria sem alterações), mantendo terapêutica com acetazolamida. DISCUSSÃO > Os sintomas mais frequentes de HIC são as cefaleias (90-99%), a perda visual transitória (70%) e o zumbido pulsátil intracraniano (60%), ocorrendo também fotópsias (54%), diplopia (38%) e perda visual (30%), que pode ser severa em 25-30% dos casos2,3,4,5. Sintomas menos frequentes são a rigidez e dor cervical, náuseas e vômitos. A paresia do nervo abducente ocorre em Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 54-58, jan/mar 2012 56 ACNE E CEFALEIAS - UMA RELAÇÃO QUE NÃO DEVE SER ESQUECIDA 10-20% dos casos, havendo relatos de paresias de outros nervos cranianos (III, IV, V e VII)3. O edema da papila devido a HIC habitualmente é simétrico, mas pode ser unilateral e francamente assimétrico1. A atrofia do nervo óptico resulta de edema crônico da papila com consequente cegueira per- Barros et al. manente, sendo esta a maior morbilidade da HIC não tratada1,4,5,6. Por isso, a designação HIC benigna não será a mais adequada quando se trata de um diagnóstico de exclusão, sendo o termo idiopática mais apropriado6. Na Tabela 1 descrevemse as causas de aumento da PIC. Tabela 1. CAUSAS DE AUMENTO DA PRESSÃO INTRACRANIANA Substâncias exógenas Amiodarona Indometacina, Cetoprofeno Antibióticos (trimetropim-sulfametoxazol, ácido nalidíxico, sulfonamidas, penicilina, tetraciclina* (minociclina e doxiciclina), nitrofurantoína) Chumbo, lítio Carbidopa, levodopa Fenitoína Corticosteroides (tópicos ou sistêmicos) Ciclosporina Vitamina A (> 100 000 U/dia)/ácido retinoico* Danazol Hormonas tiroideias (levotiroxina) Implantes de levonorgestrel, Contraceptivos orais, Oxitocina Isotretinoína Hormona de crescimento* Doenças sistêmicas Anemia por deficiência de ferro Doença de Addison Insuficiência respiratória crônica Doença de Cushing Apneia do sono Síndrome de Turner Febre familiar mediterrânica Hipoparatiroidismo Hipertensão arterial Panhipopituitarismo Obesidade Hipocalcemia devido a déficit de vitamina D Esclerose múltipla Hipo ou hipertiroidismo Lúpus eritematoso sistêmico Acromegalia Síndrome de anticorpos antifosfolipídios Síndrome de Behçet Síndrome de ovário policístico Síndrome de Reye Alterações da coagulação Sarcoidose Púrpura trombocitopênica Vírus da imunodeficiência humana Uremia Alterações na drenagem venosa cerebral Trombose dos seios venosos cerebrais (sagital e lateral) - asséptica (estados de hipercoagulabilidade) ou séptica (otite média, mastoidite) Tumores extravasculares Aumento da pressão no coração direito (cor pulmonale) Síndrome da veia cava superior Dissecção cervical bilateral radical *Fármacos mais fortemente associados com aumento da pressão intracraniana. Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 54-58, jan/mar 2012 Adolescência & Saúde Barros et al. A HIC é um efeito lateral raro, mas bem estabelecido, da terapia com minociclina1,4. A sua alta lipossolubilidade facilita a penetração na barreira hematoencefálica, reduzindo a capacidade de reabsorção de LCR nas granulações aracnoideias1,2,4,10. No entanto, para o desenvolvimento de HIC com o uso de minociclina, parecem ser necessários outros fatores de risco e poderá até existir uma predisposição genética2,11,12. O risco é maior quando se usam simultaneamente retinoides como a isotretinoína. Na maioria dos casos os sintomas surgem 1 a 2 meses após o início do tratamento, podendo variar entre 2 semanas e 18 meses1,6,10,13. Trabalhos recentes sugerem que a PIC permanece elevada entre 2 a 5 semanas após a suspensão das tetraciclinas14, enquanto outros mostram que o edema da papila pode manter-se por vários meses6. No caso clínico descrito, parece que o uso de minociclina foi o fator causal de HIC. Apesar de ter sido encontrado material genético de EBV no LCR, não houve manifestações clínicas de mononucleose infecciosa nem de infecção do sistema nervoso central (SNC) pelo EBV. O estudo serológico do sangue excluiu infecção aguda por EBV e o LCR apresentava composição citoquímica normal. A imagiologia cerebral não tinha alterações no parênquima cerebral, excluindo-se assim meningoencefalite. A carga vírica do EBV (detectada por PCR) foi demasiado baixa (10 cópias/ml) para ser considerada infecção aguda do SNC (> 10 000 cópias/ml15), pelo que o vírus não parece ter sido o responsável pela HIC. O EBV, à semelhança dos outros vírus do grupo herpes, pode ficar latente, sem que a detecção do seu material genético signifique que seja o agente causal da doença16. Assim, a quantificação da carga vírica é um parâmetro útil para avaliar o significado clínico da presença do EBV no LCR, ajudando a diagnosticar infecção aguda15,17. O tratamento da HIC é dirigido à remoção do fator precipitante e tem como objetivo preservar a função do nervo óptico e melhorar os Adolescência & Saúde ACNE E CEFALEIAS - UMA RELAÇÃO QUE NÃO DEVE SER ESQUECIDA 57 sintomas, sendo necessário o acompanhamento por oftalmologia e neurologia1. Os diuréticos como a acetazolamida (25 mg/kg/dia, dose máxima 100 mg/kg/dia ou 2g/ dia; ou tratamento inicial com 250 mg/dia, aumentando gradualmente até dose máxima de 500 mg 4x/dia) reduzem a produção de LCR, constituindo a medicação mais utilizada e eficaz1. Deve haver monitorização do hemograma com contagem de plaquetas, eletrólitos séricos e realização de ecografia renal devido aos efeitos adversos a nível hematológico (pancitopenia), alterações do equilíbrio ácido-base e iônico (hipocalemia e acidose) e possibilidade de formação de cálculos renais em tratamentos superiores a 6 meses, respectivamente. A furosemida é a alternativa quando existe intolerância aos inibidores da anidrase carbônica4. A prednisolona (2 mg/kg/dia durante 2 semanas, com desmame em 2 semanas) está indicada quando a etiologia da HIC é inflamatória, o edema da papila é severo e há risco de compromisso visual ou quando a acetazolamida isolada é ineficaz1. No caso de haver perda visual, pode ser útil realizar um curto ciclo de corticoide como uma medida temporária antes do tratamento cirúrgico. No entanto, devido aos efeitos adversos, não deve ser considerada uma solução em longo prazo, pois além de causar aumento de peso com consequente agravamento da HIC, pode-se verificar efeito rebound no desmame1. O tratamento cirúrgico está indicado quando há agravamento das alterações visuais apesar da terapêutica médica (fenestração da bainha do nervo óptico e derivação ventrículo ou lombo-peritoneal)1. A complicação mais grave da HIC é a perda visual, que pode ser súbita ou gradual e ocorrer em qualquer fase da doença1. O prognóstico da HIC induzida por minociclina é muito variável, existindo relatos de casos em que a evolução é benigna, resolvendo-se espontaneamente após descontinuação do antibiótico, enquanto noutros há perda visual permanente1,14. Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 54-58, jan/mar 2012 58 ACNE E CEFALEIAS - UMA RELAÇÃO QUE NÃO DEVE SER ESQUECIDA > CONCLUSÃO Dada a prevalência de acne nos adolescentes e a prescrição de tetraciclinas no seu tratamento, devem ser explicados os sinais de alarme de hipertensão intracraniana, nomeadamente Barros et al. cefaleias e alterações visuais. Apesar do uso frequente da minociclina na terapêutica da acne, a hipertensão intracraniana é uma complicação rara e por isso devem ser excluídas causas secundárias. A instituição do tratamento em tempo hábil previne a perda visual permanente. > REFERÊNCIAS 1. Ang E, Zimmerman J, Malkin E. Pseudotumor Cerebri Secondary to Minocycline Intake. J Am Board Fam Pract. 2002;15(3):229-33. 2. Digre K. Not so benign intracranial hypertension. BMJ. 2003;326(7390):613-4. 3. Friedman D, Jacobson D. Diagnostic criteria for idiopathic intracranial hypertension. Neurology. 2002;59(10):1492-5. 4. Lim M, Pushparajah K, Jan W, Calver D, Lin JP. 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