Comer ou não comer no hospital - Laboratório de Psicopatologia

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Comer ou não comer: eis a questão
Ao descobrir a forma de controlar o fogo e por ter inventado a agricultura o homem
deixou de ser nômade e tornou-se sedentário, iniciando assim o processo civilizatório. O
fogo permitiu que o homem cozinhasse os alimentos.
No paleolítico, com o desenvolvimento técnico e econômico permitiu-se múltiplos e
variados modos de conservação e de preparação dos alimentos. A partir daí, também as
escolhas alimentares se diversificam e orientam as estratégicas econômicas, ao mesmo
tempo em que são influenciadas por elas. São muitos os alimentos que permitem
atender às necessidades dietéticas das famílias.
As técnicas de produção de alimentos vão evoluindo e mudando ao longo da história da
humanidade. As ofertas de alimentos que são oferecidas interferem modificando o gosto
e paladares das comunidades. Podemos dizer também que o paladar segue padrões
regionais, que dependem da oferta dos alimentos. A localização das cidades,
comunidades ou países determinam em certa medida o tipo de cultivo ou de indústria
alimentícia.
A alimentação, desde a pré-historia, não responde exclusivamente às necessidades
nutricionais, sendo também uma expressão de opções culturais, reflexo de uma
ideologia e até de relações de poder. Comer é, então, um processo social, político,
afetivo e está associado com nossas escolhas subjetivas. Como também a memória, ao
olfato, a nossa história. Podemos dizer que no prato que vai à nossa mesa há uma
complexa combinação de aspectos da indústria, da história, da geografia e de nossa
subjetividade.
Comer à mesa e civilização são processos concomitantes, com e diretamente associados.
Como podemos ver com Nobert Elias (1994), comer à mesa produz certo tipo de
interação social, que obedece a leis e regras próprias. O que comemos, como comemos
e onde comemos determina e é determinado pela subjetividade. A alimentação servida à
mesa de forma coletiva permite ao homem fazer distinções sociais (quem se senta
próximo a quem), o que é servido mostra aos comensais o nível de riqueza e poder de
quem convida. Desde a Idade Média o comer à mesa revestem-se de códigos, normas e
regras de boa convivência. Flandrin (1991) nos mostra que já na idade média os
manuais de cortesia condenavam “as manifestações de gula, a agitação, a falta de
consideração pelos convivas”. Podemos pensar que são essas regras que permitem a
convivência social e o respeito ao outro ao mesmo tempo em que disciplinam os
comensais e assim vai se estabelecendo o processo civilizatório.
Flandrin (1991) em seu texto observa um processo de individualismo crescente que
aparece no uso do garfo, da colher, do prato, do copo e que erguem uma parede
invisível entre os comensais. Antes desses equipamentos todos se serviam da carne
colocada numa tigela com as mãos. Bebiam numa mesma taça que circulava pela mesa.
Os pratos e copos eram comuns a todos. No avançar dos séculos. Individualizam-se os
utensílios, aumenta a noção de higiene e a variedade dos alimentos servidos.
Atualmente temos pouco tempo para partilhar à mesa. Comemos rapidamente e muitas
vezes sozinhos. Temos acesso a uma variedade enorme de tipos, sabores, consistências,
formas de coação e de preparo. Comer é uma experiência que permite ao homem
aproximar-se do outro, criar, inventar e inventar-se ao cozinhar.
A privação da possibilidade de escolher o que comer, onde comer, como comer e
quando comer é a das mais impactantes e numa experiência de hospitalização onde o
sujeito é submetido às normas, regras e determinações que a instituição hospitalar
impõe, a dimensão social, política e ideológica do comer não fica perdida. Ao contrário,
evidencia-se o comer como um ato político. A aceitação ou a renúncia em alimentar-se
possibilita ao paciente expressar-se singularmente.
Em sua grande maioria a internação é uma vivencia traumatizante. O paciente não
escolheu estar ali. Foi-lhe imposto seja por circunstância clínica crônica ou por alguma
situação aguda (trauma, tentativa de suicido, gravidez). Nesse espaço as questões
relativas à subjetividade, a singularidade ficam em segundo plano. O que prevalece são
as condições impostas pela organização hospitalar. Dessa forma o paciente tem poucas
oportunidades para se tornar protagonista de suas escolhas ou desejos.
Nessas condições o comer assume um significado especial e um sentido próprio, mesmo
que eventualmente as dimensões simbólicas sejam difíceis de representar porque tratase o comer como um puro alimenta-se.
Dificilmente num hospital conseguimos problematizar a relação do paciente com o
alimenta-se e trazer a tona os aspectos mais significativos do comer. Tendemos a
encarar a comida com algo normal ou corriqueiro desprovido de significado e de
sentido, sem nos atermos a tudo o que envolve a aceitação ou a renúncia do que é
oferecido ao paciente. Sejam pacientes adultos idosos ou crianças, a experiência de
comer no hospital se reveste de significado especial. A alimentação é parte das regras
do hospital que são impostas aos pacientes independe de sua vontade. A hora em que é
servida a alimentação, por exemplo, não é de escolha dos pacientes, assim como, nos
hospitais da rede pública, não é possível escolher o cardápio. Os alimentos podem não
ser identificados pelo paciente, porque muitas vezes são cozidos ou apresentados de
forma incompreensível. A dieta é apresentada apenas como um nutriente. Essas
condições devem simplesmente ser aceitas ou não.
O discurso recorrente da equipe técnica (nutricionistas, médicos, assistentes sociais) é
reafirmar que comer no hospital é fundamental para a recuperação da saúde e faz parte
da terapêutica, sublinhando o fato de que comer influencia na recuperação da saúde. A
alimentação é percebida como inerente ao tratamento. Seja qual for o cardápio servido,
não escapa de ser visto, de certa forma, como um medicamento – o que permite, em
caso de fracasso, aceitar o gosto desagradável de certos pratos. E nesse caso prevalece o
discurso da doença, da cura, da medicalização em detrimento do lado socializante do ato
do comer.
A presença do acompanhante é fundamental para, amenizar essa imposição sobre o
paciente do comer e para fazer a mediação entre o paciente e a equipe que o alimenta. O
acompanhante aconselha e influi na escolha do cardápio (dentre as opções possíveis) e
em muitos casos dá de comer ao paciente e pode reintroduzir uma dimensão de prazer
no decorrer da hospitalização reforçando o lado social e simbólico que o alimento tem.
A presença de parentes ou amigos que comentam, encorajam e favorecem uma
convivência e acabam por provocar o surgimento da dimensão social do alimento, além
de diminuírem o anonimato do ato de comer no hospital que adquire, assim,
características de familiaridade que o inscreve numa outra lógica.
A aceitação da alimentação está ainda relacionada com a doença do paciente, de como
ele adoeceu e de que fantasias ele tem sobre a doença. A refeição é feita na enfermaria e
muita vezes no próprio leito o que coloca o paciente numa posição tanto física quanto
simbólica de desvantagem.
O ato de alimentar-se, que em geral é vivido como encontro, troca, convivência, no
hospital perde esse sentido social passando a ser visto exclusivamente como
alimentação para o corpo. A dimensão do encontro, de se escolher com quem se come, é
excluída. Por isso a participação do acompanhante nesse momento é tão fundamental,
mesmo que ele não coma junto com o paciente. O horário em que a refeição é servida,
bem como o sabor, a apresentação, o aroma, a variedade do cardápio, a temperatura,
textura e o tipo de preparação, são fundamentais para a aceitação ou não da alimentação.
Outro ponto relevante é a similaridade do cardápio do hospital com o que o paciente
estava habituado em seu cotidiano. A proximidade de texturas e sabores, oferecidas no
hospital, remete a memórias, sensações e isso permite ao paciente reconstruir uma
identidade, incorporando as características de uma terra, de uma paisagem, ou
ascendendo a produtos que significam sua trajetória social, suas preferências, sua
filiação sociocultural e afetiva, sua memória. O efeito disso pode ser e tranquilizante
para o paciente porque diminui o afastamento do paciente de seus hábitos alimentares.
A equipe de saúde pode ser um elemento facilitador da recuperação e de poder abreviar
a estadia do doente no hospital se o paciente tem uma boa relação com a equipe de
saúde sua alimentação se dará de forma mais tranquila e com menos confrontos. Alguns
pacientes, no entanto recusam-se a comer, rejeitando qualquer tentativa por parte da
equipe de alimentá-los. Esse ponto é chave: o paciente consciente ou inconscientemente
sabe que a sua recusa em comer mobiliza a equipe de saúde, mexe com suas fantasias e
provoca ansiedades.
Nesses casos a psicologia é chamada a comparecer e dar sua contribuição para que o
paciente volte a comer. Muitas vezes a equipe tem a expectativa de que vamos atuar
como um disciplinador, um agente da coerção. Aquele que com uma “conversa” vai
dissuadir o paciente a abandonar sua persistência em não comer.
Evidentemente nosso compromisso ético-político não é o de promover a educação ou a
reeducação do paciente e muito menos discipliná-lo. Ao contrário, nossa tarefa é antes
de qualquer coisa compreender o sentido do discurso do paciente. Já que
compreendemos que o não comer é certamente uma fala que precisa ser entendida. O
discurso do não comer deve ser compreendido a partir da história do paciente seja essa
história clínica, pessoal ou mesmo relativa a própria internação e doença. Em algumas
situações observamos que a recusa em receber o alimento é uma tentativa do paciente de
resgatar minimamente sua autonomia.
Bibliografia
CANESQUI, A, M. (org.) Antropologia e nutrição: um diálogo possível. / organizado
por Ana Maria Canesqui e Rosa Wanda Diez Garcia. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ,
2005.
ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., vol 1, 1994 .
FLANDRIN, J-L e MONTANARI, M, (org.) História da Alimentação. São Paulo:
Estação Liberdade, 1998.
FLANDRIN. J-L A distinção pelo gosto in (org) Ariès F. e Chartier R. História da Vida
Privada. São Paulo: Companhias das Letras, 1991.
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