Spartacus, o homem que desafiou Roma

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Spartacus, o homem que desafiou Roma
O ex-escravo colocou em risco o poder do império
durante os três anos de uma rebelião com milhares de
comandados que abalou a Itália
Reinaldo Lopes | 01/03/2006 00h00
Um exército dos mais improváveis virou de pernas para o ar o coração do Império
Romano, cerca de 70 anos antes do nascimento de Cristo. Embora fosse inteiramente
formada por escravos, a imensa maioria deles sem nenhuma experiência militar, essa
força rebelde chegou a contar com 90 mil soldados, deu um trabalho imenso aos
principais comandantes de Roma e chegou perto de engendrar o colapso político e
econômico da Itália. À frente dos revoltosos estava um ex-gladiador, um gênio militar
nato, apesar da origem aparentemente humilde. Seu nome era Spartacus.
Mais de 2 mil anos depois, os detalhes da vida e personalidade desse guerreiro foram
quase totalmente engolidos pela lenda. Para os antigos historiadores gregos e romanos,
ele não passava de um bandido, enquanto teóricos socialistas e revolucionários de todos
os tipos o transformaram num herói quase sobre-humano. Calúnias ou idealizações à
parte, o fato é que a história de Spartacus e seu exército mostram à perfeição como a
enxurrada de escravos que havia inundado o Império Romano criou um desequilíbrio
social de proporções bíblicas. Sem saber, os romanos tinham plantado a semente de seu
próprio pesadelo, embora, no fim das contas, tenham conseguido acabar com ela.
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A revolta de Spartacus só se tornou possível porque Roma, nos dois séculos anteriores
ao nascimento do guerreiro, havia se tornado a senhora (quase) absoluta da bacia do
Mediterrâneo. Numa série de conquistas, envolvendo basicamente o império de Cartago
e as regiões dominadas por macedônios e gregos, Roma incorporou vastos territórios,
muitos deles ricos em solos férteis e recursos agrícolas. Além disso, havia um bônus: no
mundo antigo, os derrotados nas guerras tradicionalmente se tornavam escravos.
Depois de vencer meio mundo em batalha, Roma deixou de ser uma civilização formada
basicamente por homens livres e pequenos proprietários de terra para se tornar a dona
de uma multidão de escravos. Algumas estimativas modernas sugerem que, na época,
havia um escravo para cada três pessoas livres. O problema, porém, não era só esse
desequilíbrio demográfico: a mão-de-obra servil favoreceu os grandes proprietários de
terra, que passaram a adquirir as pequenas propriedades dos camponeses livres por
meios legais ou ilegais. Assim, a zona rural da Itália estava lotada de “sem-terra” e
pequenos agricultores empobrecidos e encurralados – um fator que acabaria
favorecendo Spartacus e seus comandados. Nas três ou quatro décadas que precederam
a revolta do gladiador, a situação explosiva criou outros levantes no campo italiano, em
especial na recém-conquistada Sicília.
Embora a principal vantagem econômica de incorporar tantos escravos ao império fosse
seu emprego na agricultura, havia um contingente, digamos, diferenciado de cativos.
Alguns se tornavam servidores domésticos ou, no caso de certas mulheres, literalmente
escravas sexuais de seus amos. Mas entre os mais apreciados pelos romanos estavam os
escravos destinados às lutas de gladiadores, uma das formas mais populares de
entretenimento público no império. As lutas, ou ludi (“jogos”, em latim), como eram
mais conhecidas na época, quase sempre comemoravam grandes triunfos militares. Os
que tomavam parte dos combates nem sempre recebiam treinamento especial. No
entanto, lutadores com potencial para conquistar as multidões eram muito procurados e
logo eram incorporados a academias especiais, onde eram treinados e recebiam até certa
dose de regalias.
Foi justamente num estabelecimento desses, mantido por um sujeito chamado Lentulus
Batiatus, em Cápua, sul da Itália, que Spartacus e seus companheiros originais viviam.
Segundo o historiador grego Plutarco, que escreveu seu relato no século 2 d.C., “a
maioria deles era de origem gaulesa ou trácia. Esses homens não haviam feito nada de
errado, mas, simplesmente por causa da crueldade de seu amo, eram mantidos em
confinamento até que chegasse a hora de entrarem em combate”. (A referência a “não
fazer nada de errado” tem a ver com o fato de que criminosos condenados às vezes
também eram mandados para a arena.) Como sempre, fica óbvio que os historiadores do
mundo antigo não faziam muito bem, sua lição de casa: as designações “gauleses” (ou
seja, nativos da Gália, na atual França) e “trácios” (originários da Trácia, região que
corresponde a partes da Grécia e Bulgária atuais) podem não indicar a origem
geográfica, mas o tipo de “modalidade” gladiatorial que os homens de Batiatus
praticavam.
Seja como for, a maioria dos autores greco-romanos diz que Spartacus era um nativo da
Trácia. Para Apiano, escritor contemporâneo de Plutarco e originário de Alexandria, no
Egito, ele teria lutado contra os romanos e feito prisioneiro – os trácios eram famosos
por seu espírito de luta e, em certo sentido, até selvageria. Plutarco acrescenta, já
criando uma aura mítica em torno do gladiador: “Dizem que, quando o levaram a Roma
para ser vendido, uma serpente foi vista enrolando-se em torno da cabeça dele enquanto
dormia. Sua mulher, que pertencia à mesmo tribo e era uma profetisa, submetida ao
êxtase do deus Dioniso, declarou que esse sinal significava que ele teria um poder
grande e terrível, o qual, no final, iria levá-lo ao infortúnio”. A história tem toda a cara
de ser uma invenção de Plutarco, já que na tradição grega os trácios é que teriam levado
o culto de Dioniso para o resto do Mediterrâneo.
Quebrando tudo
Verdade ou mentira, o fato é que Spartacus tinha pelo menos uma virtude: a iniciativa.
No ano 73 a.C., ele se tornou o cabeça de uma fuga envolvendo 78 escravos, que se
armaram com facas de cozinha e qualquer outro instrumento cortante à vista e deram o
fora da tal “academia”. Segundo o mesmo Plutarco, o grupo deu a sorte de cruzar com
um carregamento de armas para gladiadores que se dirigia para outra cidade e capturálo, o que aumentou suas chances de resistir à eventualidade de um ataque.
Os gladiadores, que tinham como líderes, além de Spartacus, dois sujeitos conhecidos
como Crixus e Oenomaus (supostamente gauleses, embora a classificação também seja
duvidosa), se refugiaram no cume do vulcão Vesúvio. Puseram-se a atacar e pilhar as
propriedades rurais vizinhas, atraindo mais e mais escravos fugitivos para seu lado. Mas
não só cativos: pastores e camponeses pobres da região também começaram a se unir
em massa ao chefe gladiador.
As autoridades romanas demoraram para se dar conta da gravidade da situação. Basta
dizer que sua primeira tentativa de acabar com a rebelião foi mandar contra Spartacus
uma força de 3 mil homens que tinham acabado de entrar para o exército e não tinham
treinamento algum. Seu líder, Caio Cláudio Glaber, se limitou a montar seu
acampamento bloqueando a trilha que levava para fora do Vesúvio, achando que
conseguiria fazer os gladiadores se render pela fome. Segundo relatos da época, porém,
o vulcão tinha seu topo coberto por videiras selvagens, que Spartacus e seus
companheiros usaram para tecer cordas, com as quais desceram pelo outro lado da
montanha. Atacaram Glaber por trás e aniquilaram seu exército de novatos.
Depois dessa primeira grande vitória do gladiador, muitos de seus seguidores decidiram
marchar para o norte com a intenção de deixar a Itália e voltar para seus países de
origem. Enquanto isso, o governo romano resolveu agir e mandou contra Spartacus duas
legiões – cerca de 12 mil homens – comandadas pelos dois cônsules, os chefes de
governo da república. Parte do exército de escravos, liderado por Crixus, se separou de
Spartacus e acabou dizimada, mas o líder rebelde conseguiu derrotar ambas as legiões.
No fim, os revoltosos (com 90 mil pessoas em seu grupo) chegaram aos Alpes. Mas
parte dos homens queria continuar a viver de pilhagem, o que os levou a voltar a Itália.
O governo de Roma deu então o comando de dez legiões a Crasso e convocou o herói
de guerra Pompeu. Os dois encurralaram Spartacus no sul da Itália. O gladiador e seus
homens ainda venceram batalhas. Durante uma delas, o gladiador atacou Crasso e
morreu em combate com milhares de seus homens. Outros 6 mil escravos foram
crucificados na estrada que ia de Roma a Cápua – a Via Ápia.
Dois filmes sobre Spartacus
O clássico
Com a direção de Stanley Kubrick, responsável por outros clássicos, como 2001: uma
Odisséia no Espaço, esse filme, de 1960, é provavelmente a principal fonte da fama do
líder escravo nos dias de hoje. Dirigida com todo o capricho técnico dos épicos de
Hollywood da época, a obra segue à risca a receita do cinemão, até dando ao herói,
interpretado por Kirk Douglas, uma paixão pela bela escrava Varínia. O Spartacus do
filme é um lutador típico, que quer libertar todos os escravos do império.
O enlatado
Como no ramo nada se cria nos últimos tempos, produtores norte-americanos decidiram
fazer, em 2004, uma minissérie para a TV com base no filme de Kubrick. Que essa é a
fonte original de Spartacus está na cara pela presença da bela Varínia mais uma vez (um
personagem nunca registrado historicamente). De quebra, o herói, encarnado pelo ator
croata Goran Visjnic, come o pão que o diabo amassou, trabalhando no deserto egípcio
antes de virar gladiador. O que, aliás, lembra outro famoso gladiador do cinema...
Treinamento básico de um soldado
A principal diferença entre as legiões do exército romano e boa parte dos povos que
enfrentava em batalha era este detalhe decisivo: a disciplina. Ao menos durante a fase
áurea do império, quem ingressava numa legião sabia estar aceitando um período
extenso e exclusivo de serviço militar, com duração de 25 anos. O coração das legiões
era a infantaria, que era treinada para lutar de forma ao mesmo tempo coesa e flexível.
As duas principais armas do legionário eram o pilo, uma lança curta que era
arremessada assim que o combate começava, e o gládio, uma pequena espada para o
duelo corporal. Uma sacada tecnológica simples tornava o pilo especialmente
importante: se ele atingisse o escudo do inimigo, sua ponta se dobrava para dentro e ele
ficava enganchado, o que levava a pessoa sob ataque a ter de se livrar do escudo. Além
do treinamento para manobras como essa, os soldados romanos também estavam
acostumados a carregar mais de 30 kg de seu próprio equipamento em marchas forçadas
durante as viagens.
Para saber mais
Spartacus and the Slave Wars: a Brief History with Documents, Brent D. Shaw, ed.
Palgrave Spartacus, Howard Fast, ed. Pub Group West
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/spartacus-homem-desafiou-roma434646.shtml
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