Sobre o acesso a medicamentos e à saúde por via judicial

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São Paulo, 26 de abril de 2009
Senhores Juízes do Superior Tribunal Federal
Escrevo a V. Exas. para exprimir minha opinião de leigo no tema da audiência pública.
Fui beneficiado pelo acesso à terapia tríplice antiviral em 1996 e testemunhei e continuo
testemunhando o benefício à saúde e à vida de alguns colegas meus. Não pretendo
defender o acesso a novidades terapêuticas com este argumento! Mas infelizmente
algumas pessoas esgotam o arsenal disponível para seus tratamentos e se vêem
obrigadas, por falta de opções, a utilizar novas medicações que ainda não constam das
Diretrizes de Tratamento – sobre cujos efeitos adversos só saberemos com segurança no
futuro – ou ainda mais perigoso, a participar de ensaios clínicos para resgate. Eu sempre
expresso ao meu médico que prefiro tomar medicações velhas, com efeitos conhecidos,
e que já se sabe o mal que causam, do que medicações novas, sempre lançadas como
maravilhas e de cuja verdade só sabemos pelo menos cinco anos depois do uso amplo.
Mas infelizmente algumas pessoas não podem esperar este tempo.
Entendo que os gestores até o momento não têm agido de modo a maximizar o uso do
orçamento em benefício dos cidadãos por razões que exporei. E também não tem havido
políticas que permitam o acesso privado a medicamentos mediante o controle de preços
abusivos e de monopólios indevidamente estabelecidos pelo uso incorreto da lei 9279
(de propriedade industrial) pelo INPI, permitindo assim o desafogamento do SUS. Por
outro lado, não posso deixar de reconhecer que os preços em aumento da assistência e
da prevenção necessitam de um enfrentamento corajoso e continuado por parte das
autoridades, sejam elas gestores de saúde, legisladores ou membros do poder judiciário,
em benefício da saúde dos cidadãos e sem apelar para a defesa dos direitos de grupos ou
coletivos sem rosto a cada vez que um reclamo individual ou de poucas pessoas for
apresentado.
Desejo que a audiência seja bem sucedida e que estas palavras possam servir a V. Exas.
para uma decisão sobre um tema que é da maior importância, que pode levar – ou não à restrição da integralidade e universalidade do direito à saúde no Brasil.
Atenciosamente,
Prof. Dr. Jorge A. Beloqui
IME-USP
GIV-ABIA-RNP+
Sobre o acesso a medicamentos e à saúde por via judicial
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a Constituição garante o acesso universal e integral à saúde. Neste sentido este
direito é coletivo e individual.
O acesso por via judicial teve importância ao estabelecer o acesso à terapia
tríplice para antiretrovirais (AIDS) em 1996. Com efeito, várias ações judiciais
ganhas persuadiram o gestor que este caminho seria o mais apropriado para
garantir a saúde das Pessoas vivendo com HIV/AIDS. Realmente este caminho
mostrou-se o mais benéfico seja para a saúde dos brasileiros (a mediana de vida
das pessoas com AIDS no Brasil é superior a 9 anos segundo dados do MS de
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dezembro de 2008) seja para os recursos públicos porque o custo das
internações de alta complexidade diminuiu sensívelmente no caso de AIDS.
A lei 9313 aprovada pelo Congresso 1996, garante o acesso como
responsabilidade do SUS e a periodicidade pelo menos anual da revisão das
Diretrizes de Tratamento.
Esta segunda parte da lei não é menos importante do que a primeira parte, pois
evita a demora na revisão das Diretrizes que prejudica outras áreas. Voltaremos
a este ponto.
O Orçamento da Saúde e o acesso a medicamentos
Alguns gestores e juízes alegam a “reserva do possível” para fazer cumprir o
preceito constitucional. Coloca-se em geral um argumento de “o direito de um”
versus “o direito coletivo”. Assim, facilmente e sem comprovação alguma,
desconhece-se o direito do indivíduo à saúde. Foi o que nos aconteceu
(pessoalmente em 1996) em entrevista com Sec. Adjunto de Saúde do ESP na
época, quando fomos solicitar em passeata o acesso à terapia tríplice com
antiretrovirais.
Argumentamos que não é claro que os gestores na atualidade utilizam
devidamente o orçamento de saúde. Por esta razão, além de estabelecer a EC29
é necessário regulamentá-la porque são incluídas despesas não entendidas como
saúde, segundo a Res. 322 do Conselho Nacional de Saúde. Ela foi parcialmente
aprovada no Senado Federal. Ela distingue quais são as despesas em saúde e
quais são as receitas que devem ser consideradas para compor os orçamentos.
Mas há interesse contrário dos Poderes Executivos (Federal e Estaduais) para
aprovação pela Câmara. Não regulamentando o que são despesas em saúde, nem
quais receitas devem entrar no cálculo para a EC29, fica difícil argumentar que
os orçamentos são insuficientes.
Ao mesmo tempo, os gestores não procuram ativamente o ressarcimento do
SUS pelo sistema privado de saúde. Por exemplo, na Argentina o sistema
privado de saúde fornece os antiretrovirais para seus associados o que poderia
ser realizado no Brasil. Porém, alguns gestores colocam como virtude o fato de
que o Brasil é “o único país em desenvolvimento a garantir, gratuitamente,
tratamento integral a portadores do HIV” (Folha de São Paulo, 26 de abril 2009,
pg. A3).
Medicamentos patenteados e acesso à saúde
Cabe ressaltar que o acesso judicial à saúde no caso de medicamentos se dá
fundamentalmente para medicamentos patenteados, que têm um preço muito
alto.
Em 1996 o Congresso Nacional aprovou a lei 9279 sobre propriedade industrial
estabelecendo o monopólio para as medicações patenteadas. Como todo
monopólio pode levar a preços extorsivos. No caso do Brasil temos o caso da
vacina para HPV, útil no tratamento do câncer de colo de útero. Ela foi testada
em brasileiras em Fase III. Mas o acesso a ela custa pelo menos 200 dólares a
dose (são três doses).
A Constituição de 1988 garante no Art. 1º a livre iniciativa. Portanto este
monopólio concedido pela lei 9279 deve ser considerado uma exceção e
interpretado de forma restritiva dado que vai contra um dos fundamentos da
República.
Corresponderá ao gestor (federal, estadual e municipal) vigiar com muita
atenção os excessos aos quais estes monopólios podem levar, sob o risco de
investir erradamente os recursos para a saúde e até restringir o acesso à
assistência farmacêutica, por exemplo, dos cidadãos. Seja por adquirirem os
medicamentos em forma particular seja porque estes são fornecidos pelo SUS.
As negociações para obtenção de preços mais acessíveis, e o uso das
flexibilidades da Lei 9279 (como o licenciamento compulsório) devem ser
utilizados pelo gestor para garantir o direito à assistência farmacêutica. Também
deveria ser acrescentado pelo legislativo a figura da importação paralela,
flexibilidade permitida pelo Acordo TRIPS da OMC e não implementada pela
nossa legislação.
14. Visando também defender a saúde pública seja pelo acesso privado ou pelo
SUS, corresponde também que os órgãos relacionados à concessão destes
monopólios (ANVISA e INPI) interpretem da forma mais restrita possível os
requisitos para a concessão destes monopólios. Na atualidade o INPI concede
patentes para medicamentos polimorfos (ou seja, variações químicas de um
mesmo princípio ativo) e para segundo uso, cuja inventividade é nula. Os
gestores de saúde não têm agido opondo-se a esta interpretação arbitrária da lei
9279 e também errada no nosso entendimento, forçando assim a criação de
monopólios que prejudicam o acesso privado à saúde, e o acesso pela via do
SUS.
15. Por outro lado, às vezes os patrocinadores dos ensaios clínicos utilizam o SUS
durante o ensaio ou para fornecimento após a finalização do ensaio do
medicamento em teste . Transcrevemos a notícia da Folha de São Paulo sobre
decisão de um Juiz do Rio Grande do Sul:
“O laboratório que realiza pesquisas em seres humanos é responsável por fornecer o
medicamento testado ao paciente mesmo após o estudo finalizado. O entendimento é do
juiz José Antônio Daltoé Cezar, da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre
(RS), que condenou um laboratório internacional a devolver aos cofres públicos valores
gastos com a medicação fornecida a uma criança que havia participado de um ensaio
clínico”, informa o jornal Folha de S. Paulo desta quinta-feira (08/01).
Este procedimento contudo é excepcional, pelo conflito de interesses da instituição que
sedia a pesquisa. Mas os gestores deveriam adotá-lo para administrar corretamente o
bem público.
16. assim nos pontos anteriores detalhamos casos nos quais o orçamento público de
saúde e o acesso público e privado à saúde poderia ser melhorado. Não sendo
esta a atitude tomada pelo gestor, pensamos que não cabe negar o acesso a ações
judiciais por causa de “falta de orçamento”.
17. Acesso a medicamentos e atualização de Diretrizes de Tratamento. Inexiste
na atualidade uma periodicidade obrigatória para a atualização de Diretrizes,
exceto como afirmamos acima, pela lei 9313, sendo esta atualização deixada ao
arbítrio do gestor. Como saída pode ser proposto que “esgotadas as opções de
tratamento oferecidas pelo SUS o paciente – conforme prescrição do seu médico
- poderá ter acesso a medicamentos ou tratamentos que não constam das
Diretrizes se estes estiverem registrados junto à ANVISA para esta finalidade,
numa análise cuidadosa mas acelerada porque possivelmente trata-se de pessoas
com condições de saúde complicadas e avançadas”. Neste caso entendemos que
cabe ação judicial e a aprovação pelo juiz.
18. Um outro problema relacionado com o acesso a medicamentos é que nem
sempre os detentores das patentes solicitam seu registro na ANVISA – ou o
solicitam tardiamente - mesmo depois desta solicitação ter sido realizada e
aprovada em outros países. Vale ressaltar que isto acontece até com
medicamentos que foram aplicados em ensaios clínicos no Brasil. Como
exemplos temos o tipranavir (aptivus, da Boehringer) que foi liberado pela FDA
(EUA) em 2005 e pela EMEA (Agência Européia) em agosto de 2007. Contudo
dirigentes da Boehringer declararam ao Jornal O Estado de São Paulo (janeiro
de 2008) que não solicitariam o registro no Brasil. Pressionados este registro foi
solicitado posteriormente. Ele foi testado no Brasil. Analogamente o
medicamento emtricitabina (Emtriva, Gilead) foi liberado pela FDA (EUA) em
2003 e pela EMEA (Agência Européia) em 2004. Até o ano passado não havia
solicitação de registro na ANVISA. Mas ele está em seis ensaios clínicos no
Brasil, dois dos quais iniciados em 2005. É lícito testar uma medicação no
Brasil e depois não solicitar seu registro – ou solicitá-lo com demora - na
ANVISA, mas sim em países desenvolvidos? Como se posiciona o gestor de
saúde nestes casos? E os órgãos revisores da ética em pesquisa?
19. Assim, quando se afirma que um medicamento não está aprovado pela ANVISA
para uma finalidade, acho que devem ser diferenciados alguns casos:
a. o medicamento está reprovado pela ANVISA para esta finalidade
b. o medicamento está aprovado por alguma outra Autoridade Sanitária com
base em evidências científicas e a solicitação de registro do medicamento não
foi depositada junto à ANVISA
c. o medicamento está aprovado por alguma outra Autoridade Sanitária com
base em evidências científicas e está em análise pela ANVISA
d. o medicamento não está aprovado por nenhuma Autoridade Sanitária com
base em evidências científicas para esta finalidade
No caso a) a medicação provavelmente não deva ser fornecida.
Os casos b) e c) merecem uma análise cuidadosa, depois de esgotadas as as
alternativas oferecidas pelas Diretrizes de Tratamento e das alternativas
aprovadas pela ANVISA.
Obrigado pela atenção.
Prof. Dr. Jorge A. Beloqui
IME-USP
GIV-ABIA-RNP+
GIV: HTTP://www.giv.org.br
ABIA: HTTP://www.abiaids.org.br
RNP+: Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS
Observação: o texto acima representa a opinião do autor e não necessariamente
a opinião das associações das quais ele é membro.
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