Dialética da Diferença: De Hegel a Marx. Márcio Joffily Pereira da Costa-Fevereiro/2009 Introdução Na área de linguagem, o conceito de diferença adquiriu maior elaboração. O que importa à fonologia, por exemplo, é o estudo da função diferenciadora. Na língua portuguesa, “p” e “b” são fonemas diferentes por causa desta função, pelo fato de que esta oposição permite a distinção entre conceitos, como por exemplo: “pote” / “bote”, “bilha” / “pilha”; daí deriva a relação de rendimento funcional da oposição fonológica p/b ( ou, mais geralmente, da oposição surda/sonora, pois ambos são oclusivos e labiais ). Da mesma forma, tanto na frase como na representação numérica, os valores de palavras e números variam em decorrência das posições que ambos ocupam, as quais expressam relações contrastivas lastreadas nas diferenças. Destas ocorrências relevantes do conceito de diferença não deriva que toda e qualquer diferença tenha importância, especialmente a “diferença” proposta pela semântica neoliberal. Aliás, tal “diferença”, como dito acima, encaixa-se muito bem no comentário feito por Hegel, em “Temas Filosóficos - Ontologia e Lógica / Isto, algo e o outro”, quando diz: 1- Algo e outro são ambos, em primeiro lugar, entes determinados ( Daseiende ) ou algos ( Etwas ). Em segundo lugar, cada um deles é também um outro. É indiferente qual deles é primeiro, e, simplesmente, por tal motivo, chamado outro; ( ... ) Se chamamos A a um termo determinado, e B a outro, então B é imediatamente como o outro. Mas igualmente A é o outro de B. Ambos são, da mesma maneira, outros. Para fixar a diferença e o algo a ser tomado como afirmativo, serve a palavra isto. Porém este exprime exatamente que o diferençar e destacar um de algo é uma designação subjetiva, que cai fora do próprio algo ( ausserhalb des Etwas selbst fallendes Bezeichnen). ( ... ) Os dois são determinados como algo e também como outro; por conseqüência são o mesmo, e, portanto, nenhuma diferença neles se apresenta. Essa mesmidade ( Dieselbigkeit ) das determinações, entretanto, cai apenas na reflexão exterior, na comparação de ambos; todavia, como o outro é posto imediatamente, o mesmo está por si em relação com o algo, mas também lhe é exterior. Como podemos perceber, segundo Hegel, onde vemos diferença não há senão “mesmidade” que se desfaz na “comparação”. Em nosso caso, uma comparação descabida que toma o aspecto biológico como justificativa da existência econômico-social. Ainda na representação da linguagem, fora das determinações relacionais, esboços de relações contraditórias, os termos incidem na “mesmidade” mencionada por Hegel : o pai é algo também por si, ainda fora da relação com o filho; mas então não é mais o pai, sim um homem em geral; do mesmo modo acima e abaixo, direita e esquerda são também algo refletido em si, fora da relação, mas apenas são lugares em geral. Diferença e Relação À parte questões relativas à propriedade constitutiva deste ou daquele fato, se é de natureza biológica e/ou histórico-social etc, ainda que muito importante, importa saber, para que a discussão fique mais completa, o tipo de relação posta em jogo. Ora, a considerarmos que perceber diferença e/ou contradição corresponde ao ato de estabelecer relações entre objetos, somente uma abordagem dialética nos propicia a percepção mais completa do real sentido do que comumente chamamos de diferente e/ou contraditório. Esta forma de abordagem, das relações, mostra a fragilidade e inconsistência do discurso falacioso que nos é proposto. Segundo Marx, nos “manuscritos Econômico-Filosóficos-Terceiro Manuscrito/Crítica da dialética e da filosofia de Hegel”: “Um ser, que não tenha objeto fora de si, não é nenhum ser objetivo. Um ser que não seja ele próprio objeto para um terceiro ser, não tem existência para o respectivo objeto, quer dizer, não possui relação objetiva, o seu ser não é objetivo. [ XXVII ] Um ser não objetivo é um não-ser. ( ... ) Mas o homem não é exclusivamente um ser natural; é um ser natural humano; ou melhor, um ser para si mesmo, por conseqüência, um ser genérico, e como tal tem de legitimar-se expressar-se no ser como no pensamento”. Como percebemos, em Marx, além do movimento, não apenas o de deslocamento espacial, a relação também é condição de existência. Uma das grandes dificuldades que temos é a de não percebermos um vasto emaranhado de possibilidades relacionais e dentre as quais a que se refere e funda a contradição. A todo momento pedimos aos alunos que estabeleçam relações, mas muitos de nós não têm claro a problemática do que seja perceber relações. As relações banais do cotidiano saltam à vista, mas as que podem descortinar a vida plena de vitalidade permanecem soterradas, ainda que estejam tão próximas de nós e direcionando nossas vidas. Do contrário teríamos claro, de pronto, o engodo que representa a falácia do discurso do respeito às “diferenças”. O que não ocorre. Para percebermos tal equívoco devemos ir além do raciocínio dito formal e que repulsa a contradição, embora reconheçamos sua eficácia em muitos aspectos, especialmente nos da vida rotineira. Mas, em se tratando da necessidade de observações mais apuradas do desenvolvimento históricosocial, o raciocínio lógico-formal nada resolve, pois ele nega a transformação e percebe a vida em momentos compartimentados e isenta de relações. Raciocínio formal e Raciocínio dialético Ao afirmarmos que determinado objeto é igual a ele mesmo ( A = A ), subentende-se que ele não pode ser simultaneamente ele e outro, pois é ele ou outro ( A ou B ); como também fica subentendido que, se o objeto pode apenas ser ele mesmo ou outro, não há uma terceira alternativa ( terceiro excluído ). Nesse sentido, o objeto ou ser é, sempre foi e o será. Portanto, não há começo nem fim, nem tampouco relação, história e/ou processo. No entanto, como mencionado acima, relação é condição de existência entre objetos e de cada objeto consigo mesmo, tanto é que Marx, como mostrado antes, diz que o homem, como ser natural humano, um ser para si mesmo, legitima-se e expressa-se tanto no ser como no pensamento. Desta forma, a relação fundante da contradição que impulsiona a vida, tanto biológica como histórico-social, segundo Hegel, em “A Essência-O fenômeno / Propedêutica Filosófica”: ...é uma referência recíproca de dois termos, que em parte têm uma existência indiferente, mas em parte cada um é apenas por meio do outro e na unidade do ser determinado”. Os dois termos postos em relação, no ser determinado, são a imediatidade ( ser posto ou o que está ) e o não-ser ( o que será, possibilidade ). Na semente da árvore, por exemplo, já se encontram implicadas todas as determinações da árvore futura, assim como no embrião humano já estão postos como possibilidades, as determinações da criança, adolescente etc. E Hegel, em “O SER-A Qualidade / Propedêutica Filosófica”, complementa: “Qualidade-Parágrafo 8 A qualidade é a determinidade imediata, cuja alteração é o passar para algo oposto. A - Ser, Nada, Devir O ser é a simples imediatidade sem conteúdo que tem o seu oposto no puro nada, e cuja união é o devir: enquanto passagem do nada para o ser é o nascer, inversamente, o perecer. ( O são entendimento humano, como a si mesmo muitas vezes se denomina a abstração unilateral, nega a união de ser e nada. Ou o ser é ou não é; não existe nenhum terceiro. O que é não começa; o que não é também não. Por conseguinte, afirma a impossibilidade do começo. ) ( ... ) B - Ser Determinado O ser determinado é ser evolvido, especificado, um ser que tem ao mesmo tempo relação com outro, portanto, com o não-ser”. No devir, no movimento, a polaridade genérica ser / nada manifesta-se na polaridade imediatidade ( ser posto ou o que está ) / não-ser ( latência ou possibilidade ). Quadro Resumo: relação e contradição objeto 1 humano objeto 2 planta objeto 3 sol Relação entre objetos Reciprocamente, cada um dos objetos (1, 2 e 3) tem outros dois como objetos, portanto, são três seres objetivos porque têm objetos fora de si. Disto deriva a relação como condição de existência dos objetos. Relação na contradição Referência recíproca entre dois termos cujas existências são simultaneamente indiferentes e condicionadas entre si em um ser determinado ( imediatidade versus não-ser ). POLARIDADE GENÉRICA DEVIR SER/NADA nascer POLARIDADE CONCRETA DEVIR IMEDIATIDADE/NÃO-SER ( ser determinado) nascer perecer perecer Exemplo 1: Fenômeno biológico / cultural ( humano ou não-humano ) IMEDIATIDADE versus NÃO-SER = SER EM SI ( negação ) criança criança pequena / criança ( negação da negação) adolescente criança / adolescente ( negação... ) adulto adolescente / adulto Exemplo 2: Fenômeno cognitivo / reflexo objetivo da realidade ( humano versus humano ou não-humano ) A partir do conhecimento mais elementar acerca de um objeto ( pereira ), o concreto como imediato, cada grau de conhecimento é ampliado de modo a possibilitar o conhecimento mais completo do referido objeto, sua real concreticidade. Disto deriva, como diz Marx: O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade na diversidade. IMEDIATIDADE versus NÃO-SER = SER PARA SI HUMANO eu ser para si Conhecimento 1 ( negação ) ÁRVORE pereira / árvore valor de uso trab. assal./valor de uso NÃO-HUMANO pereira ser em si conhecimento 2 ( negação da negação ) VEGETAL árvore / vegetal valor de troca valor de uso/valor de troca conhecimento 3...( negação...) ORGÂNICO vegetal / orgânico mercadoria valor de troca/mercadoria dinheiro mercadoria/dinheiro substantivo trabalho/substantivo força produtiva trabalho/força produtiva classe de palavra subst./classe de palavra função sintática cl. de palavra/função sintática relação de produção força prod./relação de prod. modo de produção rel. de prod./modo prod. sintagma função sint./sintagma capitalismo modo prod./capit. Vida e Dialética Assim, é desta forma que o mundo orgânico, a vida, se manifesta. E o homem, como ser natural humano, além de biologicamente manifestar-se deste modo, no seu ser, manifestase também como ser para si por via do pensamento, desde que raciocine dialeticamente. Embora, em termos gerais, ser para si possa significar forjar sentidos novos, produzir cultura, transformar a realidade; um ser para si conseqüente não faz o que os ideólogos neoliberais propõem com base nesta semântica enganosa. Muito pelo contrário, um ser para si verdadeiro, conectado com as necessidades históricas de transformações radicais e com base no aguçamento das contradições insolucionáveis, almeja e luta pelo fim da contradição maior, a relação contraditória de exploração entre capital e trabalho. Neste sentido, antes de tudo, ser para si é apropriar-se da forma dialética de compreensão da vida, tanto biológica como histórico-social; como também apropriar-se do conhecimento acumulado por via do processo de transformação exercido pelo homem sobre a natureza e si próprio através da prática social. Aliás, sem perder de vista a relação necessária entre conhecimento e realidade objetiva que aponta necessidade de transformação, pois o resto é adaptação ao meio, teorização do comportamento, biologização da vida prenhe de dialética, que a todo momento nos convida a sair da caverna para percebermos que A é, sim, B. Devemos almejar mais do que uma simples inteligência prática. Como diz Agnes Heller, a essencialidade da nossa existência não se resolve por via de uma consciência caricatural e fetichizada. Esta, quando muito, nos propicia a capacidade de podermos decidir aos vinte anos o que se poderá ganhar em determinado emprego quinze anos mais tarde, quando será conveniente casar, quantos filhos convirá ter etc. Isto não é nada mais do que espontaneidade do homem que tudo aceita, sem preocupações além das comezinhas, do modo como lhe aparece na vida. Trata-se do homem que age conforme o princípio do “seja o que deus quiser” ou, como diz a música, “o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”, sem nenhuma perspectiva que transcenda o dia-a-dia. Em suma e sem mais delongas, mesmo porque o propósito deste texto não é o de concentrar-se no materialismo dialético, empreitada que demandaria muito mais estudos e alongaria demais o trabalho, sob pena de perdermos o eixo central da discussão proposta, um pequeno exemplo da semântica neoliberal; o ser para si é o que capta, por via do fenômeno, a essência dos objetos e fatos para si e para nós. Desta forma, cai por terra a concepção de que exista alguma coisa em si, inacessível. Nesse sentido, Lênin, em “Materialismo e Empiriocriticismo”, diz o seguinte: “Qualquer diferença misteriosa, engenhosa e subtil entre o fenômeno e a coisa em si é um completo disparate filosófico. Na realidade cada homem já observou milhões de vezes a transformação simples e evidente da coisa em si em fenômeno, em coisa para nós. Esta transformação é precisamente o conhecimento”. Consideração final Como pudemos verificar, o discurso politicamente correto neoliberal do respeito às “diferenças” não tem consistência alguma, ainda que cative multidões. Ao finalizar, como a discussão proposta trata da questão relativa ao significado e/ou sentido atribuído ao termo “diferença” num certo discurso, o quadrado semiótico, instrumento bastante utilizado em lingüística para a análise do discurso, é de grande importância para mostrarmos com maior evidência o afirmado ao longo deste trabalho. Em se tratando de discurso, o objeto de análise é o dizer-verdadeiro cuja verificação decorre de certos critérios de verdade, especialmente relativos à realidade, e instaura a oposição entre o que é de fato (esquema de imanência) e o que parece ser (esquema de manifestação), considerando-se que só se tem acesso à imanência pela manifestação. O cruzamento desses dois esquemas no quadrado semiótico (mostrado abaixo) apresenta uma série de outros termos (segredo, verdade, mentira, falsidade) que demonstram que um critério de verdade depende da articulação de cada um dos termos dos pares de termos do quadrado semiótico. QRADRADO SEMIÓTICO VERDADE SER PARECER SEGREDO MENTIRA NÃO - PARECER NÃO - SER FALSIDADE Segundo o critério de verdade mostrado no quadrado semiótico, algo será verdadeiro quando puder, ao mesmo tempo, ser e parecer; será mentira quando apresentar a composição parecer e não-ser; constituirá um segredo se articular simultaneamente ser e não-parecer; e constituirá uma falsidade quando apresentar a composição não-parecer e não-ser. No âmbito da narrativa, a figura do herói é passível de transferência da esfera do segredo para a esfera da verdade; a figura do vilão, da esfera da mentira para a esfera da falsidade. Em nosso caso, acerca da “diferença”, as evidências mostram, sobretudo as confusões originadas sobre o conceito de “diferença” e o apagamento de fatos históricos comprometidos ideologicamente, que o discurso de respeito às “diferenças” parece verdade, mas não é; trata-se de uma mentira. Produto da ideologia hegemônica da ordem vigente, a influência de tal discurso não poderia ser outra. O fato é que, como eles propõem, será que as diferenças biológicas podem ser simplesmente transpostas para o âmbito do papel social que cada agente desempenha, e serem “respeitadas” como meras “diferenças”? Entre um professor ( a ), a despeito de ser negro ( a ) ou branco ( a ) e um banqueiro ou empresário existem singelas diferenças ou contradições de classes? Desta forma, fica a proposta de discussão: “diferenças” biológicas versus contradições entre classes sociais, cuja chave para compreensão não é outra senão o materialismo dialético aliado à ação, materialismo histórico. Não a repetição enfadonha e rotineira das leis da dialética, baseada em manuais que na maioria das vezes proporcionam apenas memorização e não compreensão. Mas o estudo constante, disciplinado e aliado à ação, das categorias instauradoras da dialética num único ser, cujo ponto de partida está na lógica grega. Do contrário, como podemos perceber, por exemplo, as mutações históricas pelas quais passaram o valor de uso até sua consolidação em coexistência dialética com o valor de troca na mercadoria, além das relações desta com o trabalho, lucro, mais-valia, alienação etc? Não nos enganemos, o nosso conceito de concreto tem sido uma pseudoconcreticidade lastreada puramente nas sensações, especialmente na visão, tato e, ligeiramente, numa representação mental fugaz. Como diz Marx, ao comentar acerca do método na economia política, em “Contribuição à Crítica da Economia Política”: “O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade na diversidade”. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail.Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. DUARTE, Newton. Educação Escolar, Teoria do Cotidiano e a Escola de Vigotski. São Paulo: Autores Associados, 2004. DUARTE, Newton. 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