Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew Lipman e os seus

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Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças
1. Matthew Lipman e os seus colaboradores
Matthew Lipman é um professor americano, nascido em 1923, e
que ainda goza de saúde. Ensinou, durante dezoito anos, Lógica, na
Universidade de Columbia, e vinte e dois na Universidade City, ambas em
Nova Iorque – Estados Unidos. Desde 1972, é professor na Universidade
Estadual de Montclair (Nova Jersey – Estados Unidos) onde é
Distinguished University Scholar.
Lipman é conhecido por ser o criador do projecto educativo –
Filosofia para Crianças – programa conhecido e aplicado em mais de 30
países dos cinco Continentes. É autor de numerosos artigos e alguns
livros, entre eles, Philosophy Goes to School, Philadelphia: Temple
University, 1988; Thinking in Education, Cambridge: University Press,
1991; Natasha – Vygotskian dialogues, New York: Teacher’s College
Press, 1996 e Thinking Children and Education, org. Dubuque: Kendall,
1993. As três primeiras obras estão traduzidas em português.
Matthew Lipman foi o fundador e Director do Institute for the
Advancement of Philosophy for Children da Montclair State College, em
Nova Jersey. É, ainda, autor de vários livros para crianças (Novelas
Filosóficas2) cujo intuito é introduzir as crianças na atitude filosófica. Dada
a pertinência do seu projecto, em Outono de 1991, Lipman foi tema do
7
programa de televisão da BBC Transformers, sendo considerado um dos
três educadores pioneiros. Já que a sua tentativa comporta uma ideia e
uma prática. Ideia e prática que interagem e se influenciam mutuamente,
mas que não devem confundir-se, pois uma coisa é a ideia de introduzir a
filosofia nas crianças, ou seja, pôr as crianças a vivenciarem a sua
história, os seus métodos e seus problemas, e, outra bem diferente é
dispor de tudo que é necessário para concretizar essa ideia. Isto é,
instituições, materiais e cursos.
Mas tudo foi possível com a ajuda, persistência e trabalho dos seus
colaboradores, exemplo disso é Ann Margaret Sharp (norte-americana)
que junto com Matthew Lipman criou o Institute for the Advencement of
Philosopy for Children – Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia
para Crianças. É co-autora, com Lipman, de seis Manuais para o
professor do currículo de Filosofia para Crianças3 e autora de Hospital de
Bonecos, programa de filosofia para as crianças de três a cinco anos.
Dirige o programa de doutoramento em FpC que teve início em Janeiro de
1999 na Montclair State University. Realizou numerosos cursos e
conferências em mais de trinta países sobre o projecto de FpC, inclusive
no nosso país em 1989 na Sociedade Portuguesa de Filosofia.
Ronald Reed, norte-americano, fundador e director do programa
Philosophy for Childre na Texas Wesleyan Universiy (Texas, EUA), onde
foi nomeado, pelo seu trabalho e dedicação, Bebensee Distinguished
Scholar. Foi autor e co-autor de dez livros, sendo o mais conhecido
Talking With Childre e Rebeca, estando esta traduzida para português
2
Explicadas e analisadas no capítulo dois deste trabalho.
8
pelo centro Brasileiro de Filosofia para Crianças. Trabalhou desde 1979,
em FpC, até a sua morte em 1998. Ainda nos E.U.A, Tom Jacson, director
do Centro Havaiano de Filosofia para Crianças desde a sua fundação, em
1984, doutor em Filosofia comparada e professor do Departamento de
Filosofia. Coordena o projecto Filosofia nas Escolas na Universidade de
Havai tendo como colega de trabalho Linda Oho.
A FpC tem muitos outros colaboradores em vários países, tais
como Walter Omar Kohan argentino. Licenciado em Filosofia pela
Universidade de Buenos Aires e mestrado na Universidade Iberoamericana onde também se doutorou com a dissertação “A Filosofia na
Educação das Crianças”. A sua participação em congressos e cursos
sobre FpC tem percorrido vários países: Argentina, Chile, Estados Unidos,
México, Uruguai e Brasil onde actualmente é professor de Filosofia da
Educação na Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, onde
também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros
professores e crianças de escolas públicas. Apresenta várias publicações4
em castelhano sobre a temática em questão. Ainda na Argentina em
conta-se Gustavo Santiago. Licenciado em Filosofia pela Universidade de
Buenos Aires, é membro activo do Centro Argentino de Filosofia para
Crianças tendo experiência com crianças e professores de Argentina e
Chile.
Vera Waksman (Argentina) trabalha com crianças e na formação
de professores nas Universidades de Buenos Aires e La Plata Argentina.
3
Como serão enumeras às vezes que se fará referência à “Filosofia para Crianças” será
utilizada a sigla “FpC”.
9
Licenciada em Filosofia na Universidade de Buenos Aires, tem participado
em diversos Congressos e cursos de formação em Filosofia para
Crianças, sendo ainda, co-organizadora de Qué es filosofia para niños?
Ideias y propuestas para pensar la educación (Buenos Aires: Ofic. De
Publicaciones del CBC, 1997)
Ana Míriam Wuensch, colaboradora de Filosofia para Crianças no
Brasil, é licenciada em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), é especialista em Fenomenologia pela Universidade de Brasília e
mestranda em Filosofia Política na Universidade Federal de Goiás. Levou
a cabo a formação de professores e implantação de Filosofia para
Crianças em diversas escolas particulares de Brasília. Supervisiona a
Prática de Ensino da Filosofia no Departamento de Filosofia da
Universidade de Brasília e coordena, juntamente com Walter Kohan, o
projecto de “Filosofia na Escola”.
Angélica Sátiro, grande colaboradora no Brasil, licenciada em
Pedagogia pelo IEMG (Belo Horizonte, Minas Gerais) e especialista em
filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É directora de
projectos e responsável pela área de Filosofia para Crianças nas escolas
do Grupo Pitágoras. A sua participação em Congressos sobre Filosofia
para Crianças em países como Argentina, Brasil, Espanha, Estados
Unidos, e em Portugal tem demonstrado o quanto colabora na divulgação
deste projecto educativo. Tem publicado diversos artigos, livros sobre
filosofia, educação e literatura infantil, entre eles, o livro didáctico para o
4
As mais conhecidas são: (co-autor com Mário Berríos) Una outra mirada: niñas y niños
pensando en América Latina; La Filosofia en la escuela;? Qué es filosofia para nños?
Ideias y propostas para pensar la educación.
10
ensino de filosofia, Pensando Melhor. Iniciação ao filosofar (co-autora com
Ana Míriam Wuensch).
No Canadá Marie-France Daniel, doutora em Filosofia da Educação
e professora da Universidade de Montreal (Quebec). É investigadora do
Centro Interdisciplinar de Pesquisa sobre a Aprendizagem e o
Desenvolvimento em educação que promove pesquisas sobre as relações
entre educação física, a matemática e a filosofia para crianças. A
pesquisadora tem publicado numerosos artigos e livros sobre o tema, ente
eles La phisophie et les enfants (Montreal: Logiques, 1992).
11
A Filosofia para Crianças5 tem ainda muitos mais colaboradores6
que investigam, reflectem e trabalham com este projecto educativo nos
trinta países onde é conhecido. Mas em que consiste a Filosofia para
Crianças? Que projecto é este que envolve filosofia e crianças? Qual a
5
Ao longo do trabalho serão muitas as vezes que se fará alusão à Filosofia para
Crianças o que significa que será utilizada, a partir deste ponto, a sigla FpC.
6
Aqui fica, mais, um apontamento sobre alguns colaboradores que estão envolvidos
com a FpC, ou porque reflectem sobre o tema e participam em Congressos, editam
artigos, ou porque trabalham em Centros de Filosofia para Crianças. Nos Estados
Unidos nomes como Ronald M. Green, (Professor em Dartmouth College, Hanover, New
Hampsire), Philip Guin, (Professora de Filosofia, trabalha na investigação de Filosofia
para Crianças), David Kennedy (Professor Associado de Educação e Filosofia para
Crianças na Montclair State University) Gareth Matthews (professor de Filosofia na
University of Massachusetts Amhert.), Maura J. Geisser (professor do departamento de
Filosofia da Universidade de Browa). Um dos investigadores no Canadá é Michel
Sausseville (professor da Universidade da Faculdade de Filosofia da Universidade Laval,
Quebec.) entre outros.
No Brasil encontram-se nomes como: José Ani Cunha (Director do Centro de
Filosofia para Crianças de Campinas), Marcos António Loieri (Professor da Universidade
Católica de São Paulo), Margarida Patriota (professora do Departamento de Letras da
Universidade de Brasília), Maria Cristina Theobaldo (professora do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso), Moacir Gadotti (professor titular da
Universidade de São Paulo e Director do Instituto PauloFreire), Peter Buttner (professor
da Universidade de Mato Grosso), Olga Matos (professora do Departamento de Filosofia
da Universidade de São Paulo), Sílvio Gallo (Director da Faculdade de Filosofia, História
e Letras e Coordenador do Curso de Licenciatura em Filosofia da UNIMEP), Sílvio
Wonsoviez (Presidente do Centro de Filosofia – Educação para o Pensar, Florianópolis).
Na Argentina nomes como Alejandro A. Cerletti (professor da Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires), e Ricardo Sassone (Director do
Teatro Universitário d Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires.
Investigador do Instituto de Artes del Espectáculo da mesma Universidade) são assíduos
em Colóquios e Congressos.
Maria Teresa de la Garza (professora do Departamento de Filosofia da
Universidade Ibérico - Americana do México) e Mónica Velasco (Directora do Centro de
Filosofia para Crianças em Guadalajara) são alguns dos nomes ligados à Filosofia para
Crianças no México.
Ana Maria Vienña (professora de Pontifícia Universidade Católica do Chile) e
Celso López (Professor da Universidade Nacional Andrés Bello do Chile) são os
colaboradores do Chile. Maurício Longón (Membro da Associação de Filosofia do
Urugai) é um dos representantes do Uruguai na Filosofia para Crianças.
Passando para o Continente Australiano, Laurance Spliter (Membro do
Departamento Australiano de Pesquisa Educacional – ACER) é também simpatizante
deste projecto educacional.
Do Continente Australiano passa-se para a Europa onde são vários os países
que dedicam dentro da educação e da filosofia o seu estudo à Filosofia para Crianças.
Como são muitos, os nomes, salientam-se só os que participam activamente no projecto,
isto é os que publicam artigos, colaborando em Revistas sobre a matéria, assim como
em Centros ou formação de professores de Filosofia para Crianças. Em Espanha nomes
como Fernando Martínez e Félix Garcia – Moriyón (Professores da universidade
Autónoma de Madrid), Irene de Puig (Professora do Instituto de Pesquisa sobre Ensino e
Filosofia de Barcelona), entre outros trabalham na Revista Internacional de Filosofia para
Crianças, assim como no programa educacional e na sua avaliação. Em Portugal são
12
metodologia usada? Que vantagens trás para a educação? E para a
Filosofia? Poderá pensar-se nesta proposta como uma Filosofia da
Educação? Perguntas que de certa forma se vão respondendo ao longo
deste trabalho.
2. O que é Filosofia para Crianças?
O que é FpC? Para se entender a resposta à questão é necessário
primeiro passar pelo que motivou o pioneiro, o que o levou, a criar este
projecto. Assim a FpC surge em consequência do comportamento dos
estudantes da Universidade de Columbia, New York - EUA, onde Matthew
Lipman leccionava Introdução à Lógica. Observando as revoltas
estudantis de 1968, o filósofo preocupou-se com o que se estava a
passar. Percepcionou os esforços desajeitados da Universidade para se
reavaliar e não pôde deixar de concluir que os problemas de Columbia
não podiam ser resolvidos no quadro dessa instituição. Estudantes e
professores, todos tinham saído da mesma matriz da escola primária e
secundária. Concluiu: “Se não tínhamos recebido uma Educação boa,
muito provavelmente tínhamos chegado a compartilhar as mesmas ideias
erróneas que nos levariam a estropiar nossa educação posterior em feliz
conluio mútuo”. (1999a, 21-22)
Contribuiu, também, para o florir deste projecto a oportunidade que
Lipman teve de observar os esforços de um professor de crianças com
Maria José Rego Figueiroa , Zaza Carneiro de Moura e Alice Dos Santos as mais
13
deficiência neurológica para ensiná-las a ler. Perante os esforços inúteis
do professor, o pioneiro sugeriu que lhes fossem dados exercícios para
tirar inferências lógicas. Mais tarde, o professor comunicou-lhe que essa
prática tinha funcionado. Lipman confirmou o seu palpite de que as
crianças podiam aproveitar a instrução no raciocínio, contando que
recebessem contribuições da Filosofia, especialmente das suas áreas de
lógica, ética, estética e epistemologia. Era claro que se podia ajudar as
crianças a pensar com mais clareza, já que lhe parecia que elas
pensavam tão naturalmente como falavam e respiravam. Porém, a
questão radicava em: como conseguir que pensassem bem?
As falhas nos raciocínios dos seus alunos, os comportamentos e o
trabalho de professores com crianças incapacitadas neurologicamente
foram as causas, entre outras, que levaram o pioneiro a pensar que os
jovens não só precisavam de estudos sobre a Lógica e Filosofia, como o
contacto com ambas teria que ser muito antes da universidade7. As
crianças e a filosofia são aliadas naturais, pois em ambas o assombro é o
princípio do questionamento. Lipman, diz mesmo: “só os filósofos e os
artistas se comprometem sistemática e profissionalmente em perpetuar o
assombro, tão característico da experiência cotidiana (sic) da criança”
(Lipman, 1999a, 24).
Um dos primeiros desafios de Lipman era criar um espaço até
então inexistente e o material didáctico a ele adequado. Em 1969, surge o
primeiro
material.
Lipman
escreve
uma
novela
filosófica
para
empenhadas no projecto.
7
O contacto com a filosofia e a lógica nos EUA, só era possível na Universidade, “a filosofia tem,
historicamente, uma fraca presença nas instituições educativas - ainda actualmente não faz parte
dos currículos escolares em nenhum dos seus níveis”. (Kohan. e Wuensch, 1999a, 85).
14
adolescentes,
na
forma
de
diálogo
construtivo
entre
crianças
intelectualmente inquietas, preocupadas em saber cada vez mais. Harry
Stottlemeier’s Discovery8, título da obra que relembra Aristóteles e a sua
Lógica.
Lipman experimentou o Harry, porém descobriu o quanto era
necessário criar um manual adicional que permitisse uma melhor
aplicação filosófica na sala de aula, para evitar que os professores
levassem as crianças a um Doutrinamento9, pois, se acontecesse isso, o
projecto educativo não atingiria os objectivos. O manual foi criado,
contendo vários exercícios e orientações de discussão sobre os temas
abordados no romance. Deste modo, o filósofo avaliou que a FpC tanto
era necessária na escola como em casa, tendo em conta que deveria
existir uma continuidade do trabalho aplicado na sala de aula.
O projecto foi-se desenvolvendo, com a ajuda de alguns
colaboradores, criando o Institute for Advancement of Philosophy for
Children10 no Montclair State college, tornando-se, anos mais tarde, em
Montclair Satate University. Já lá vão mais de trinta anos. Após o seu
desenvolvimento
realizaram-se
seminários
regulares
intensivos
e
internacionais de formação em FpC. Pode dizer-se que “pessoas do
mundo inteiro têm assistido a esses cursos e divulgado a proposta nos
seus lugares de origem ao longo dos últimos trinta anos. É de salientar
que já existe um número, ainda muito pequeno, de portuguesas que têm
8
Harry Stottlemeier’s Discovery, traduzido para português por “A descoberta de Ari dos
Teles”.
9
Conceito que traduz o inglês “indoctrination” e o francês “endoctrinement” e que em
português surge como “endoutrinamento” e/ou “endoutrinação”. (Cfr. Veiga, M. A. Da,
1998a, 241), a preferência vai para o conceito doutrinamento, na medida emque ver o
outro como alguém que não é capaz de tirar as suas elações.
15
frequentado cursos e mestrado em Philosophy for Children, na Montclair
State University, junto de Lipman, onde, segundo Mª José Rego11, o
“ritmo
de
trabalho
é
impressionante”.
Aí,
adquiriu
hábitos
de
profissionalismo que a marcaram, para o resto da vida.
Criou depois outras histórias; “(...) alguns romances para aplicar
essas ferramentas da lógica em questões éticas, literárias, artísticas,
políticas sociais e depois, “em ordem cronológica decrescente, escreveu
mais uns tantos romances para preparar os mais pequeninos para esse
contacto com lógica e as outras áreas de filosofia” (1999a, 87). Assim
sendo, a filosofia é a base e o método para levar as crianças e os jovens
a pensar por si mesmas; de forma adequada já que “poderá fazer coisas
de uma forma melhor que outras disciplinas, assim como investigar as
maneiras pelas quais a filosofia poderá fazer coisas - coisas vantajosas que nenhuma outra disciplina poderia fazer.” (1990, 55).
Sobretudo, “a filosofia implica aprender a pensar sobre uma
disciplina e, ao mesmo tempo, aprender a pensar autocorretivamente
(Sic) sobre o nosso próprio pensar” (1990, 59). Neste sentido, o currículo
de FpC foi crescendo tornando-se importante na educação.
Filosofia para Criança é um projecto educativo “cujo objectivo é o de
desenvolver o pensamento e o raciocínio de alunos desde o primeiro grau
e segundo graus12 através de discussões filosóficas nas salas de aulas.”
(1990, 9). Sendo que a filosofia é a disciplina por excelência a mais
10
Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia para Crianças.
Directora do Centro Ménon – Centro de Filosofia com Crianças - e professora na
Universidade Católica Portuguesa em Lisboa.
12
Desde o Jardim-de-infância até ao secundário, já que o currículo engloba crianças e
jovens, dos 3 até aos 16/17 anos. Daí salientar-se filosofia para crianças e jovens.
11
16
adequada para concretizar o objectivo. Lipman encontra a ideia em
Dewey, nas suas reflexões sobre filosofia da educação, reconhecendo
que “foi Dewey quem previu, nos tempos modernos, que a filosofia tinha
que ser redefinida como o cultivo do pensamento ao invés de transmissão
de conhecimento” (1990, 20) Porquê a filosofia?
Porque o projecto educacional que Lipman procura é aquele que
alcance tudo o que existe de desejável nos outros, e mais o que não
existe nos outros projectos. A filosofia porque, salienta o pioneiro, “é
investigação conceitual, que é a investigação na sua forma mais pura e
essencial.” Reforçando a ideia com o facto das “outras disciplinas não
envolverem tanto conhecimento quanto a prender a pensar uma
disciplina.” (1990, 59). Este pensar envolve um pensar histórico,
antropológico, físico, matemático e linguístico.
Conforme a obra A Filosofia vai à Escola, Lipman, aponta três razões
para responder a pergunta Porquê a Filosofia?, sendo que a primeira
realça para o facto da disciplina ser representativa de uma herança do
pensamento humano. “A filosofia não desmantela o seu passado, mas
toma
o
pensamento
de
qualquer
filósofo
para
reinspiração
e
reinterpretação,” refere Lipman. O espírito de racionalidade e juízo crítico,
que nenhuma disciplina pode proporcionar, só a filosofia é que consegue
dar à educação, segundo motivo. Como terceira razão aponta-se a
circunstância da filosofia preparar para o pensar, nas várias disciplinas, o
que deduz a importância da sua incorporação no currículo de todos os
grau de ensino tendo uma abordagem cultural. (Cfr. 1990, 59)
Lipman pretende “Oferecer às crianças um modelo de vida mais racional como membros
de uma boa comunidade de participação e colaboração.” (1990, 61).
17
Todas são razões para pensar-se no papel da filosofia na educação
escolar. Para Lipman esta é uma questão resolvida. E por que está
resolvida, não lhe foi difícil encaminhar-se para o projecto educativo de
FpC.
Dada a importância do tema filosofia e criança, não pode deixar de se
pensar em três expressões ou matérias diferentes É o caso de Filosofia
com Crianças, Filosofia para Crianças e Filosofia da Infância. O que são?
O que as diferenciam?
Segundo Lipman a expressão Filosofia com Crianças consiste em
fazer investigação com crianças, que “abrange tanto o papel informal de
conversações filosóficas com crianças que ocorrem nos lares e outros
espaços externos à escola.” (1999d, 362). A maior associação de
investigação com crianças denomina-se “Conselho Internacional para a
Investigação Filosófica com Crianças” (ICPIC).
Quando se pensa, ou se utiliza, a filosofia “como um elemento
nuclear da educação formal institucionalizado, das crianças” (Cfr,
Lipman), estamos perante a Filosofia para Crianças, já que não podemos
deixar de desenvolver matérias curriculares e pedagógicas apropriadas.
FpC é o nome de uma abordagem educacional específica, como já se
referiu, empregando um currículo próprio e uma pedagogia particular.
No entanto Kohan chega a mencionar esta abordagem educacional
como “filosofia com crianças, na medida em que o caminho aberto por
Lipman vai mais longe do que a sua proposta de praticar a filosofia para
crianças, sendo um campo fértil de pesquisa sobre a fundamentação, os
métodos e as finalidades dessa prática.
18
A Filosofia da Infância consiste numa investigação filosófica em uma
área particular da experiência humana, a fase infantil da vida do ser
humano. Segundo Lipman a Filosofia da Infância contrasta fortemente
com FpC, sendo esta, sempre e em qualquer lugar educacional. A
“Filosofia da Infância é primeiramente um ramo da filosofia tradicional,
uma subdisciplina (sic) do tipo «filosofia de», ainda que lidando com um
assunto relativamente novo: infância”. (Cfr. 1999d, 362).
Fazer filosofia sobre o conceito, tema ou ideia historicamente
localizado, deve-se à época moderna onde a infância é vista como um
estado prolongado da vida humana que deve ser separado da maturidade
adulta. Mas como se dá esse crescer? Esse estado prolongado da vida?
3. A Criança e a Educação
3.1. A evolução do conceito de criança
A Filosofia da Educação do nosso tempo apresenta algumas
características que reflectem, nos seus aspectos mais essenciais, as
modificações sofridas pela evolução durante as mudanças históricas e
sociais. A realidade educativa, esboço de uma história e de uma filosofia
da educação, apresenta uma visão variável do conceito de criança, o que
não se verifica na psicologia.
Os estereótipos que se mantinham, até ao despertar do século XX,
acerca do conceito de criança e da pouca importância que lhe era
concedida, impediram durante muitos anos o aparecimento de uma área
19
de investigação e uma visão sobre a sua educação mais adequada à
essência da criança.
Havia psicólogos e educadores que tinham uma visão negativa da
infância, encarando a criança como uma espécie de selvagem quase sem
humanidade, incluindo-a na mesma categoria em que mantinham os
primitivos e os deficientes mentais. Outros, ainda, viam na infância uma
idade em que a mente da criança funcionava como a do adulto. A
diferença entre criança e adulto era apenas encarada em termos de
crescimento13 e não de desenvolvimento14. A criança era vista como um
homem em miniatura. O mesmo já não acontece nos dias de hoje, pois a
grande luta da psicologia actual é, como nos diz Planchard: “não esquecer
que a criança é um ser qualitativo e quantitativamente diferente de nós
mesmos.” (1952, 12).
Não reconhecer o estatuto próprio da criança tinha reflexos
negativos na educação familiar e escolar que lhe exigiam condutas muito
próximas das do adulto, sem que ela pudesse comportar-se da forma
pretendida. Por isso é que, no que diz respeito à matéria de psicologia
educativa, deve-se evitar cair em qualquer destes excessos: só ver as
semelhanças entre a criança e o adulto é o erro que, noutros tempos, se
cometia com grande frequência; só ver as diferenças, é o defeito em que
certos pedagogos contemporâneos e psicólogos da educação se arriscam
13
Refere-se ao tamanho da criança, apresentando como diferença entre uma criança e o
adulto, exclusivamente o seu tamanho e a sua força corporal.
14
Refere-se ao conjunto de transformações do ser humano ao longo da sua vida. É um
processo que se inicia no momento da concepção e termina com a morte, e em que
estão envolvidos múltiplos factores: biológicos, cognitivos, motores, morais, emocionais,
linguísticos, afectivos e sociais.
20
a cair, tendo em conta que, como diz Pestalozzi15, “a criança é um ser
dotado de todas as faculdades da natureza humana, sem que nenhuma
tenha, ainda, alcançado o seu desenvolvimento: é com se todavia fosse
um cartucho por abrir.” (1996, 9), e o levantar de cada ponta do cartucho
é cheio de surpresas. O que leva os filósofos da educação a
questionarem-se sobre o desenvolvimento da criança e se esse,
desenvolvimento é acompanhado por uma educação adequada.
Com agudeza e elegância, num tempo em que, por razões diversas
já que cada época tem as suas verdades, se menosprezava a linguagem
e as ideias da criança, Rousseau defendia a dignidade da mesma,
mostrando o quanto era importante que a criança vivesse a sua infância
para desenvolver pouco a pouco as tendências naturais que nela existem
e, em cada idade, ao nível da sua maturação. Para deixarmos a criança
ser ela mesma, ou viver a sua infância, é necessário conhecê-la nas
diferentes etapas do seu desenvolvimento.
A psicologia da criança tem vindo a desenvolver os seus estudos;
mas até que ponto tem contribuído, para um melhor conhecimento da
criança? E da sua educação? É sabido que, o movimento sofístico “é a
origem de educação no sentido escrito da palavra: a paideia” (Paideia,
335) e que a educação não pode ser senão um processo de
desenvolvimento interno, mas, para isso é necessário conhecer e
compreender esse mesmo desenvolvimento, o que operará uma
transformação completa da perspectiva pedagógica. A transformação,
15
Pestalozzi (1746-1827) nasceu em Zurich, suíço alemão, é um clássico da pedagogia,
sendo esta fruto da observação e da experiência, intuindo a natureza da criança e do
processo educativo. Pedagogo que se entrega totalmente à escola e à educação das
crianças entende a educação como a formação do homem enquanto ser individual.
21
não completa, mas, como alerta para a descoberta da criança, enquanto
criança, deve-se a Rousseau, pois via a educação como um processo de
desenvolvimento.
No tratado sobre a educação Émile, Rousseau descreve a
educação de um jovem para a sua sociedade ideal. A criança é tirada dos
pais e das escolas, isolada da sociedade e entregue às mãos de um
preceptor ideal que o criar em contacto com a natureza que é indicada
como inanimada sub-humana, mas bela e maravilhosa, onde a criança
deve estar em contacto directo com as plantas, fenómenos físicos e
forças de todas as espécies. Uma vez que a criança é intrinsecamente
boa, a sociedade é que a deforma. A educação deve ter em conta o
desenvolvimento natural da criança, para que possa agir, actuando por si
própria; porque as lições fornecem as experiências de outros e destroem
o germe da experiência própria da essência do ser humano. A concepção
educacional da natureza do ser humano, defendida por Rousseau, não
podia deixar de estar relacionada com o pensamento filosófico da época.
Um dos precursores da pedagogia contemporânea, Pestalozzi
“extrai as suas ideias, como Rousseau, da simples especulação ou
reflexão sobre a natureza humana” (1996, IX); porém, este opta pelo
caminho da experiência para conhecer e compreender o desenvolvimento
da natureza humana, que o coloca “de entre todos os educadores e
filósofos da educação (...) o único conhecido nos cinco continentes, o
único que alcançou a grandeza mística de um Beethovem: o génio
pedagógico” (Chateau, 232 - 233).
22
Toda a criança deve ter como primeira e principal educadora a sua
mãe, diz Pestalozzi .
“Toda a mãe é chamada a consagra a atenção sobre
essa tarefa. Nisto consiste o principal dos seus
deveres; (...) a ideia de se ter um dever vai sempre
acompanhada da capacidade de o cumprir.” (1996,
108)
Nesta perspectiva a mãe é a única que consegue pôr a criança a fazer as
coisas por si própria, formar as ideias mediante os actos que executa
todos os dias. Tudo o que ela pode vir a ser, o ser do futuro, encontra-se
na espontaneidade das suas iniciativas. A criança é vista como um ser
que exercita o cérebro, o coração e as mãos, isto significa que trabalha
harmonicamente as várias faculdades humanas.
Assim, a criança deve, desde o berço, ser encarada de acordo com
a sua natureza, ideia também defendida por Froebel:16
“a criança não é boa nem má, é um ser em formação e
em desenvolvimento espontâneo (...) a criança é
chamada a realizar-se na vida que lhe é actual e o
ensino deve assentar na observação contínua da
criança.” (1977, 36)
Sendo pois da crença na natureza divina da criança que nasce a
característica reverência de Froebel pela infância, que considera
detentora de um valor absoluto. Foi sem dúvida através deste pedagogo
que se deu uma mudança na percepção da infância, criando um interesse
16
Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852) nasceu na Turíngia (Alemanha). A vida
foi-lhe muito agitada, mas sempre inspirada, essencialmente, no amor à criança e à
natureza, suas duas grandes paixões. Para Froebel, a educação consiste em suscitar as
energias do homem, como ser progressivamente consciente, pensante e inteligente. A
educação é antes de tudo desenvolvimento completo das energias latentes, com
finalidade humana.
23
pela criança e pelo próprio método de ensino, já a escola passa a centrarse no desenvolvimento da criança.
Froebel teve o prenúncio de antecipar a descoberta feita pelos
psicólogos que os primeiros anos de vida são os decisivos no
desenvolvimento mental do ser humano; apesar de apresentar uma
psicologia pobre foi feliz nas suas intuições, já que previram muito do
posterior descoberto pela Psicologia de hoje, pois em seu tempo não se
conhecia, como hoje, a vida anímica da criança. (Cfr, 1960, 201-265).
A base do conceito de criança, ou do que é a criança assenta “na
crença
de
que
a
alma
da
criança,
no
primeiro
período
de
desenvolvimento, não pode reconhecer-se senão na percepção das
formas mais simples do mundo exterior” (1967, 265-266). A pedagogia de
Froebel é uma pedagogia da acção, onde “a criança para desenvolver-se,
não deve apenas olhar e escutar, mas agir e produzir”(Ibid). Não
obstante, tem a escola uma função social, através da função individual: o
desenvolvimento das energias da criança e da consciência do grupo e da
colectividade; nomeadamente, a escola deve parecer-se o mais possível
com a vida; onde conste a actividade e a liberdade.
Froebel criou o Kindergarten17, escolas infantis, com aspecto
simpático, salas arejadas, espaçosas, perfeitamente limpas e cercadas de
jardins. As crianças sentadas em pequenos grupos ocupam as mãos e o
cérebro que desperta com cubos de madeira, réguas, pauzinhos. Jardim
onde, “o essencial é a actividade infantil, que se manifesta como jogo”
(Cfr, 1969, 202) sendo este, o mais puro produto da fase de crescimento
17
Jardim-de-infância.
24
da criança, pois é do jogo que brota tudo, ou quase tudo, que há de bom
na criança em si mesma.
A caracterização da criança na época contemporânea não
apresenta grandes diferenças nas linhas gerais apontadas pelos filósofos
da educação da época moderna. Porém não se pode dizer que não houve
perspectiva novas em relação à educação, exemplo disso e John Dewey.
A educação, segundo o filósofo, tem a função de descobrir e desenvolver
capacidades, até aqui nada de novo. A novidade está no facto da filosofia
ser a teoria da educação, educação esta que assente numa sociedade
democrática.18
O que é que existe de semelhante entre as linhas gerais apontadas
sobre alguns pedagogos e a Filosofia para Crianças? Rousseau fala da
educação como processo de desenvolvimento. Lipman nem pensa a
educação se não como um processo de desenvolvimento da criança. No
entanto esse desenvolvimento é feito de outra forma bem diferente da
apresentada por Rousseau, é um desenvolvimento cognitivo para o
pensar por si. Em certo aspecto é uma classificação de contextos:
aprender a não confundir o especial com o temporal, o auditivo com o
visual, o físico com o pessoal. A criança em desenvolvimento cognitivo,
muito cedo adquire aprendizagem desses contextos, não defrontando
dificuldades em transcendê-los. (Cfr, 1990, 126). É a fase do Jogo
Simbólico da criança que será analisado, ainda, neste ponto.
No caso de Pestalozzi é a espontaneidade da criança, assim como
o desenvolvimento do cérebro através da criatividade, que apresenta de
18
Ideia a desenvolver no ponto seguinte.
25
certa forma uma semelhança com o desenvolvimento das habilidades do
pensamento que pretende a FpC, sendo que as habilidades cognitivas em
Lipman são de quatro tipos19: Raciocínio, Questionamento e investigação,
Formação de conceitos e Tradução.
Quando Froebel salienta que é importante para a criança
desenvolva a consciência de grupo e de colectividade, onde conste a
actividade e liberdade, Lipman também de certa forma partilha dessa ideia
pois, assim estará a contribuir para uma sociedade democrática que leva
a uma crescente sociabilização20 da criança. Froebel ao descrever as
salas do Jardim-de-infância apresenta requisitos que Lipman aponta para
a sala de aula onde se pratica a Comunidade de Investigação. Lipman,
também acredita que o jogo é uma actividade importante na educação da
criança.
Para se entende, exactamente, onde se pode encontrar algumas
semelhanças é fundamental que se conheça em que tipo de educação
assenta a FpC. Assim como: quais as habilidades cognitivas a
desenvolver? Para que tipo de sociedade prepara as crianças a FpC?
3.2 A criança e o desenvolvimento das habilidades
O
patamar
das
grandes
mudanças,
na
psicologia
do
desenvolvimento (estamos a falar de um processo básico relativo ao
19
Ver anexo. Quadro com as principais habilidades cognitivas.
Por sociabilização, Lipman entende: “a internalização de atitudes e modos de fazer e
dizer institucionais é uma substituição progressiva de inocência pessoal por experiência
20
26
organismo e à própria conduta), quanto ao modo de encarar a criança,
radica no conceito de evolução apresentado por Charles Darwin. A teoria
evolucionista de Darwin, estilhaçadora da fronteira intransponível entre
animal e ser humano, abre caminho a uma nova perspectiva em
psicologia genericamente apelidada de organicismo por oposição ao
maturacionismo
e
mecanicicmo.
É
objecto
de
mais
atenção
e
desenvolvimento, neste ponto, a perspectiva organicista, dada a sua
pertinente para a temática a desenvolver.
Os psicólogos que defendem o modelo organicista assumem uma
perspectiva
interaccionista,
considerando
que
o
desenvolvimento
cognitivo “é uma competência geral e estrutural do sujeito para pensar e
raciocinar sobre o mundo físico e lógico - matemático considerados de um
ponto de vista científico” (1997, p.61), isto é, a dinâmica em que factores
maturacionais, genéticos e da experiência externa se combinam no
decorrer dos diferentes estádios21 por que o indivíduo passa ao longo da
vida.
O modelo organicista realça o carácter adaptativo do processo de
desenvolvimento dado considerar que, ao progredir na sequência dos
estádios22, o organismo dispõe de mecanismos psicológicos diferentes e
qualitativamente superiores de intervenção no meio. Essas intervenções,
por sua vez, contribuem para reorganizar os mecanismos psicológicos,
fazendo com que a criança fique melhor apetrechada para ajustar
mundana, de ignorância por conhecimento, de subjectividade por objectividade.” (1999c,
43).
21
Estádios consistem, segundo Piaget, em fases ou etapas qualitativamente diferentes
por que passa o desenvolvimento intelectual.
22
Ver em anexo quadro com os estádios e características principais de cada um, sobre o
desenvolvimento cognitivo segundo Piaget.
27
adequadamente os comportamentos às exigências do meio. “A criança é
um
ser
dinâmico
que
tem
a
possibilidade
de
moldar
o
seu
desenvolvimento graças às numerosas competências que lhe permitem
orientar, reorientar e conduzir as suas interacções com o ambiente.”
(1996, p.9).
Jean Piaget23 elaborou uma teoria de desenvolvimento a partir do
estudo da inteligência da criança e do adolescente. Ultrapassou a velha
concepção de que a inteligência da criança era semelhante à do adulto,
existindo entre elas mera diferença quantitativa. A proposta de Lipman
encontra
apoio
no
construtivismo
de
Piaget.
A
concepção
(construtivista/interaccionista) parte da tese de que o conhecimento não
depende nem só da criança (sujeito) nem só do conteúdo de estudo
(objecto). As estruturas da inteligência não são apenas inatas, mas
produto de uma construção contínua da criança. As estruturas intelectuais
constroem-se de modo progressivo num processo de troca entre o aluno
e o meio (sujeito/meio). Destaca a importância do trabalho em equipa e
cooperação para o desenvolvimento da inteligência24. O apelo às
actividades
espontâneas
da
própria
criança,
objectivando
uma
organização cognitiva preparatória das operações da inteligência é
conseguida através do processo de adaptação ao meio.
23
Jean Piaget (1896 - 1980) nasceu em Neuchâtel e morreu em Genebra, Suíça. Foi
biólogo, zoólogo, filósofo, epistemólogo e psicólogo. Este conhecimento interdisciplinar
dá-lhe uma vasta cultura científica impregnaram a sua obra com muitas contribuições
para vários campos do saber. Piaget revolucionou as concepções de inteligência e de
desenvolvimento cognitivo de pesquisas centradas na observação e em diálogos que
estabelecia com as crianças.
24
Na perspectiva de Piaget inteligência define-se por: capacidade para resolver
problemas; poder de adaptação a situações novas; faculdade de compreender, de
discernir; fazer uso de símbolos abstractos; eficiência global das capacidades cognitivas.
28
Sendo
que
a
inteligência
precede
o
pensamento25,
o
desenvolvimento pressupõe, por um lado, a influência do meio físico,
social e ainda, a hereditariedade.
O desenvolvimento mental faz-se, pois, por etapas sucessivas em
que as estruturas intelectuais se constroem progressivamente:
“A cada instante, a acção é desequilibrada pelas
transformações que aparecem no mundo, exterior ou
interior, e cada nova conduta vai funcionar não só para
estabelecer o equilíbrio, mas também para tender a um
equilíbrio mais estável que o do estádio anterior a essa
perturbação” (1990a, 16),
Cada novo estádio representa uma forma de equilíbrio cada vez maior,
que permite uma adaptação mais adequada às circunstâncias. Sendo
assim, o desenvolvimento psíquico tem início com o nascimento e termina
na idade adulta, podendo comparar-se ao crescimento orgânico,
consistindo essencialmente numa marcha que tende para o equilíbrio,
portanto, em certo sentido, uma equilibração progressiva, uma passagem
perpétua de um estado de menor equilíbrio a um estado de equilíbrio
superior.
Em todos os estádios, a permuta entre o sujeito e o meio opera-se
por dois mecanismos constantes, que são a assimilação e a acomodação,
que segundo Piaget consiste em:
“Incorporar as pessoas e as coisas na actividade
própria do sujeito, portanto em «assimilar» o mundo
exterior às estruturas já construídas, (...) a reajustar
estas últimas em função das transformações sofridas,
25
Por pensamento Piaget entende: pensamento representacional, ou seja, pensamento
que é internalizado e inclui representações mentais de experiências anteriores com
objectos e acontecimentos.
29
portanto em «acomodadas» aos objectos externos.”
(1990a,17).
Por isso, face a uma nova situação, a criança começa por
incorporar os objectos aos esquemas já construídos (se possui, por
exemplo, esquemas de agarrar, sacudir ou puxar, aplica-os aos objectos)
e, simultaneamente, transforma esses esquemas para uma melhor
adaptação. O desenvolvimento mental surge assim, na sua organização
progressiva, “como uma adaptação sempre mais precisa à realidade.” (Cfr
1990a, 18). São estes dois mecanismos funcionais que possibilitam a
construção das novas estruturas. Estes são, primeiramente, esquemas de
acção que, quando interiorizados, se transformam em esquemas
operatórios.
Sendo
que,
qualquer
regulação
acrescenta
novas
transformações que têm as suas próprias estruturas, designadamente
quanto às negociações, o que permite enriquecer na forma o sistema que
se queria equilibrar. (Cfr, 1977, 47).
Até aqui tudo bem, pois Lipman também faz um apelo às
actividades espontâneas da criança, para que se proporcione o
desenvolvimento das habilidades cognitivas. Porém é neste ponto que se
afasta de Piaget, pois, o conceito cognitivo em Lipman é muito mais que o
acto de conhecer. É desenvolver habilidades que exigem classificação de
contextos e não a forma piagetiena, que “visa traçar os limites do alcance
intelectual da criança propondo uma série de problemas (…) e
determinando em que idade a criança pode enfrentá-los com sucesso.”
(1990, 166). Mas em que assenta esse desenvolvimento? Tal como em
Piaget é num construtivismo, numa relação interactiva entre criança e
30
escola. Não obstante Lipman rejeita a dicotomia entre o cognitivo e o
afectivo, pois no caso de se defender que não existe evolução com talento
artístico, então também não se pode atingir as habilidades na sua
plenitude. O pensamento é um componente de todo estado ou processo
psicológico, “sob alguns aspectos, uma actuação artística, e, sob outros, é
uma arte criativa”, diz Lipman. (2001,149). Pode-se reflectir sobre um
texto, tentando descobrir o seu significado intrínseco, na possibilidade de
existir uma semelhança aos artistas, ou pode-se criar uma nova hipótese,
ou escrever um texto original.
Lipman afasta-se de Piaget na correspondência entre as idades
dos estágios e as habilidades desenvolvidas em cada um deles. Os
esquemas de desenvolvimento conseguidos em cada estágio, propostos
por Piaget não são advogados por Lipman, pois as áreas de habilidade
mais relevantes para os objectivos educacionais são aquelas relacionadas
com os processos de investigação, processos de raciocínio, organização
de informação e tradução, que na perspectiva do pioneiro é provável que
as crianças, mesmo muito pequenas, as possuam de forma primária. E
não a abordagem neopiagetiana que “deixam a criança perplexa (…)
como consequência da ambiguidade ou da indiferença deliberada do
investigador.” (1990, 166)
Sendo assim, à que saber em que assenta o desenvolvimento das
habilidades cognitivas e não as suas limitações cognitivas da crianças,
mas de aumentar as suas capacidades cognitivas. O que imperiosamente
leva a uma sucinta análise da função simbólica da criança.
3.2.1 A função Simbólica: a linguagem e o jogo
31
No campo dos estudos sobre o desenvolvimento da criança, um
dos itens que ocupa o estudo dos psicólogos e filósofos é o
funcionamento da linguagem e a configuração das primeiras palavras. A
Questão da linguagem surge associada ao âmbito da lógica já desde os
primórdios da filosofia grega.
Historicamente, verifica-se que o momento de ruptura no
equacionamento da relação entre pensamento e linguagem surge com o
movimento designado por positivismo ou logicismo. Porém, com o
desenvolvimento da psicologia e a reflexão filosófica, ao nível da lógica,
há autores que afirmam que a linguagem é simultaneamente o único
modo de ser do pensamento, a sua realidade e a sua realização.
Organiza o pensamento e realiza-o numa forma específica, torna a
experiência interior de um sujeito acessível a outro numa expressão
articulada e representativa.
Toda a criança quando nasce produz um grito reflexo automático
que “desempenha um papel fisiológico importante e incontestável: a
criança aprende a coordenar a respiração em função da sua intensidade e
duração.” (1975, 119) Assim, o grito está ligado a uma situação de
necessidade ou de sofrimento e que é em certa medida como que uma
necessidade
neurofisiológica
sem
significação
própria,
acontece
rapidamente, diferenciando-se do primeiro, o grito emotivo que serve
incontestavelmente para traduzir, de uma maneira intencional, um estado
psíquico, que poderá ser de cólera ou decepção do bebé.
32
A mãe é geralmente o ser humano com quem o bebé estabelece a
primeira relação afectiva de maior proximidade, pois é quem começa por
lhe proporcionar alimentação, conforto, protecção e carinho: “o coração
de uma mãe influência certamente de um modo preponderante na
maneira como ela põe em jogo a sua atenção.” (1996, 14). Existem no
bebé, para além de reflexos inatos dirigidos para a satisfação de
necessidades fisiológicas, como chupar ou mamar, outro tipo de
características inatas, com objectivo de sobrevivência, que visam
promover a interacção com os outros, como a necessidade corporal e de
aproximação física. Deve ser a mãe, tal como salienta Pestalozzi, a
“sentir-se capaz de ensinar ao filho os diversos nomes; pois, ao mesmo
tempo que mostra os objectos, de forma simples, pronuncia os seus
correspondentes nomes e faz com que a criança os repita.” (1975, 105).
Não podia deixar de ser um marco o momento em que a criança
começa a falar, tanto para os psicólogos que se dedicam ao estudo do
desenvolvimento da criança, como para os filósofos. A indiscutível
importância da linguagem, relacionada às diversas tentativas de
descrever e explicar a emergência das primeiras palavras na ontogenese,
levanta ainda questões concernentes aos processos de significação e ao
locus da linguagem na psicologia do desenvolvimento e na educação.
Só pelo simples facto de ter de viver em sociedade e porque esta,
de certo modo, actua sobre ela logo a partir dos primeiros dias de vida, a
criança deve dispor de sinais para traduzir os seus sentimentos e os seus
pensamentos, e deve ser capaz de reconhecer os sinais provenientes do
meio em que está inserida. Existem para o ser humano vários meios de
33
comunicação, no entanto, a linguagem verbal “é sem contestação um
meio muito mais eficaz e muito mais prático de comunicar o pensamento
a outrem” (1975, 17). A linguagem proporciona a comunicação
intersubjectiva na sociedade. Sem esta possibilidade de comunicação
com os outros, ver-nos-íamos privados de uma série de experiências,
conhecimentos, valores, de outros sujeitos, o que nos tornaria ainda mais
incompletos e fechados. A nossa abertura ao mundo e aos outros e a
todo o universo de sentimentos e pensamentos passa fundamentalmente
por uma ponte: a linguagem. Com efeito, o uso da linguagem faz parte
essencial da vida e da acção humana, e é pela linguagem que o ser
humano se apropria da realidade.
Diferentemente das plantas e dos animais, os seres humanos
pensam, falam e argumentam, isto é, usam sistemas de linguagem mais
complexos para pensar e comunicar, sendo, por isso que pensamento e
linguagem estão necessariamente interligados como as duas faces de
uma moeda, que nos leva a perceber, que “entre a linguagem e o
pensamento existe assim um círculo genético, de tal modo que um dos
dois termos se apoia necessariamente no outro, numa forma solidária e
numa perpétua acção recíproca.” (1977,133).
Pensar é um acto lógico que implica o estabelecimento de relações
entre conceitos traduzidos na linguagem por signo ou palavras, e a
imagem acústica do conceito (signo) é o significante e a ideia é o seu
significado. Por outras palavras, segundo Saussure o signo é a totalidade
que resulta da associação de um significante com um significado (cfr.
Saussure, 1964, 123). Não podemos pensar que um signo é
34
simplesmente a união de uma coisa e um nome, mas e continuando a
citar Saussure, é “um conceito e uma imagem acústica. Esta última não é
o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica desse
som, a representação que nos é dada pelo testemunho dos nossos
sentidos.” (1964, 122) É por isso que não podemos pensar sem palavras,
sem uma imagem acústica. Por outro lado, não podemos deixar de
constatar que esta está materializada numa Língua, num código comum,
numa determinada sociedade, e isto remete-nos para outro aspecto
fundamental da linguagem: a comunicação com os outros seres humanos.
Daí a necessidade da criança se sentir enquadrada no meio em que vive,
para descobrir o uso particular desta actividade espontânea e de natureza
puramente fisiológica.
A criança tem necessidade de expressar o que sente, e o que quer,
“o comportamento da criança que atira os brinquedos e que grita
zangando-se para que lhos apanhem, mostra que a utilização de valor
altamente simbólico pode adquirir finalmente o grito.” (1975, 120) A
inteligência
prática
ou
sensório-motora
da
criança,
sem
outros
instrumentos que as percepções e os movimentos, são a base da
inteligência verbal ou reflexiva.
Segundo Piaget, no final do estádio sensório-motor e princípio do
pré-operatório, surge a existência de representações simbólicas que vai
permitir à criança usar uma inteligência diferente. “Voz e ouvido se
interligam: a criança controla a sua emissão segundo os efeitos acústicos
que ela lhe proporciona e a própria voz alheia parece actuar sobre a sua.”
(1976, 19) Mas afinal em que consiste a função simbólica? A função
35
simbólica
também
designada
por
função
semiótica
designa
os
funcionamentos fundados no conjunto dos significantes diferenciados, ou
seja, refere-se à capacidade de criar símbolos para substituir ou
representar os objectos e de lidar mentalmente com eles. É “um conjunto
de condutas que supõe a evocação representativa de um objecto ou de
um acontecimento ausente e que envolve, por conseguinte, a construção
ou o emprego de significantes diferentes.” (1997, 51).
Com a aquisição da linguagem abre-se um mundo novo para a
criança, em que as palavras substituem os objectos e as situações, a
linguagem nascente permite-lhe a evolução verbal de acontecimentos já
passados, nomeadamente, a criança não necessita de ver o cão para
dizer “ão, ão”, existe representação verbal, além de imitação. A aquisição
da linguagem, “cobre finalmente o conjunto do processo, assegurando
um contacto com os outros muito mais vigoroso do que a simples
imitação e permitindo, portanto, à representação nascente aumentar os
seus poderes, apoiada na comunicação.” (1997, 53). O uso da linguagem
permite-lhe comunicar com os outros, pois começa a adquirir a lógica e a
sintaxe, como refere Lipman é altura de: descrever, narrar, explicar,
fazendo julgamentos quanto à verdade ou falsidade. (Cfr. 2001, 47)
A emissão de palavras significa que a criança já possui imagens
mentais. Elas não são ainda conceitos, mas representações dotadas das
características particulares dos objectos que representam, por isso
levantam muitas questões sobre o que as rodeiam. Piaget fala, a este
respeito, de pré-conceitos, na medida em que a criança, não dispondo
36
ainda de esquemas de generalização, é incapaz de distinguir com nitidez
“todos” de “alguns”.
Passemos à inteligência representativa, onde a utilização dos préconceitos permite à criança produzir inferências. Mas estas não são do
tipo indutivo nem do tipo dedutivo: o raciocínio da criança procede por
analogia. O pensamento da criança, preso ainda ao sensível, vai apenas
do particular ao particular, pois a generalização, ainda incipiente,
apresenta-se imprecisa e sem controlo. Ao passarmos para o período
das operações concretas, as estruturas intuitivas transformam-se, agora,
num sistema de relações de tipo operatório que “consiste apenas em
operações aditivas e multiplicativas de classes e de relações e seriações
(...). A linguagem será a única fonte das classificações e das seriações,
que caracterizam a forma de pensamento ligada a estas operações.”
(1990, 125).
Efectivamente, a linguagem acompanha a acção da criança e a
sua percepção imediata das situações e das coisas; há uma correlação
surpreendente entre a linguagem empregada e o modo de raciocinar. Em
suma, os estudos da linguagem e os das operações intelectuais
pretendem uma colaboração entre os linguistas e os psicólogos.
O mundo da criança corresponde a uma acção interiorizada,
assente na capacidade de simbolizar. A criança necessita de algo que a
coloque em assimilação do mundo, sem obrigações ou castigos: só
assim encontrará o equilíbrio afectivo e intelectual. Deste modo, o jogo
simbólico assinala, sem dúvida, o apogeu do jogo infantil, tendo função
essencial, na prática da vida da criança, proporcionando uma
37
equilibração entre a assimilação e a acomodação. O jogo diferencia-se
das condutas de adaptação propriamente ditas. A criança não procura
uma adaptação ao real, mas uma assimilação do mesmo ao Eu. A
criança não consegue satisfazer as suas necessidades através das
adaptações, “as quais, para os adultos, são mais ou menos completas,
mas que para ela permanecem tanto mais inacabadas quanto mais jovem
for” (1990b, 56). O interesse pelo mundo que a rodeia aumenta
significativamente depois de 1 ano de idade. O bebé faz tentativas na
descoberta de novos meios experimentando a existência da atitude
criadora, a energia potencial para construir um mundo psíquico à custa
do ambiente, ideia defendida, também por Montessori. (Cfr. Montessori,
62).
Ao longo do primeiro ano, os esquemas de acção vão-se
coordenando entre si: por exemplo, o esquema de acção de agarrar e o
de puxar permite ao bebé fazer funcionar o guizo suspenso por cima do
berço. Por meio de tentativas e erros, são seleccionados os
comportamentos que dão os resultados desejados. Nomeadamente, os
jogos das primeiras lalações (voz), os movimentos da cabeça e das mãos
acompanhados de sorrisos de divertimento são lúdicos ou adaptativos, já
que tudo é um jogo durante os primeiros meses de existência, tendo em
conta que “não têm mais finalidade exterior do que, mais tarde, os
exercícios motores atirar pedras numa poça de água, fazer esguichar a
água de uma torneira, saltar, etc. - que todo o mundo considera jogos ou
brincadeiras.” (1975119).
38
Quando uma criança descobre por acaso a possibilidade de
destapar uma esferográfica, primeiro reproduz o gesto para se adaptar a
ele e para o compreender, o que não é jogo; porém, depois, utiliza essa
conduta por simples prazer. Para ilustrar o exemplo, ressalte-se um
registo observado por John Holt26:
“Estou sentado no terraço de um amigo. Ao meu lado
encontra-se Lisa, de 16 meses, uma criança esperta e
ousada.(...)
Um dos jogos preferidos de Lisa é tirar-me a
esferográfica do bolso, destapá-la e voltar a tapá-la. Para
isto é necessária destreza; Lisa nunca se cansa do jogo.
Quando vê que tenho a caneta no bolso, dá-me logo a
entender que a quer e não há forma de a contrariar. É
teimosa e se eu fingir que não percebo o que ela quer - o
que é mentira - faz uma cena. Quando sei que preciso da
caneta, o truque é ter uma outra escondida noutro
bolso.(...)” (2001,.30)
Posto isto, o jogo deixa de ser “jogo de exercício” aos dois para
dar lugar às representações simbólicas, podendo assim a criança usar
uma habilidade diferente, dominada por um pensamento mágico, onde os
desejos
se
tornam
realidade,
sem
preocupações
lógicas.
Uma
imaginação prodigiosa permite tudo explicar ao invés do jogo de
exercício, que não supõe o pensamento nem qualquer estrutura
representativa especificamente lúdica. O símbolo implica a representação
de um objecto ausente, visto ser comparação entre um elemento dado e
um elemento imaginado. É natural, neste período, a criança bater à mesa
26
John Holt (1927 – 1985), escritor e figura de proa da reforma educacional americana.
A sua profunda compreensão da mente das crianças tem vindo a ser cada vez mais
apreciada, à medida que tentamos transformar a escola e a família em locais onde as
39
onde se magoou, dizer à boneca que tem que comer a sopa toda. Assim
como é neste estádio que procura, sobretudo, saber “para quê”, apesar
de se argumentar que está na “idade dos porquê”.
O pensamento infantil neste estádio é sincrético, isto é, tem uma
forma global e confusa, não diferencia o essencial do superficial, a parte
do todo, o particular do geral.
Em terceiro lugar, surgem os jogos de regras. Ao invés do símbolo,
a regra supõe, necessariamente, relações sociais. Assim, se vários jogos
regulares são comuns às crianças e aos adultos, um grande número
deles, porém, é especificamente infantil, transmitindo-se de geração em
geração, ou seja, de criança em criança sem a intenção de uma pressão
adulta. (Cfr., Holt, 30). Os jogos27 são, pois, transmitidos tendo uma
importância na vida da criança, conforme o progresso da vida social da
mesma.
Do jogo simbólico desenvolvem-se os jogos de construção que,
graças aos esquemas mentais operatórios, a criança consegue agora
compreender: a relação parte - todo, fazer operações de classificação e
de seriação, obter a conservação do número, adquirir a noção de tempo
e de espaço globais. A criança pode compreender e explicar as situações
problemáticas graças à reversibilidade e às suas preocupações lógicas
de reflexão sobre o real. Essa reversibilidade não é mais que a própria
expressão do equilíbrio permanente, assim alcançado, entre uma
acomodação generalizada e uma assimilação que se tornou, por isso
crianças aprendem melhor. O seu trabalho está a ter continuação através da Holt
Associates em Cambridge.
27
Os jogos a que nos referimos são: do exterior a macaca, os berlindes, as caricas, às
escondidas, a cabra-cega. Do interior, o anel vai na mão, a mímica, a batalha naval.
40
mesmo, não deformante. O pensamento descentrado vai agora permitir
que ela entenda que, quando um espanhol vem a Portugal, é estrangeiro,
e que, quando um português vai a Espanha, também o é.
Não podemos deixar de apontar que, das múltiplas funções do
simbolismo extraíram-se várias teorias que tentam explicar o jogo em
geral, isto é, a sua importância no desenvolvimento da criança. Lipman
também salienta o quanto é importante nas crianças a actividade lúdica.
A criança brinca para se conhecer e também para compreender o mundo
que a cerca. Para Lipman é importante ter em conta a noção de brincar
na medida em que “pode ser muito útil quando procuramos compreender
a relação entre criatividade e imaginação28. É na brincadeira que a
criança é desafiada a questionar, transformar e desvendar a realidade. A
criança precisa de tempo, de espaço e de elementos incentivadores para
trabalhar a construção do real, através do seu já familiar exercício da
fantasia.
Na perspectiva de Lipman a brincadeira, o jogo, o brinquedo, são
poderosos instrumentos de auto-conhecimento e de descoberta do
mundo. Proporcionam o desenvolvimento, da memória, da criatividade,
da expressão e da concentração.
3.2.2. As habilidades cognitivas a desenvolver
28
Por imaginar Lipman entende um pensamento divertido. Que é uma acção
desincorporada, ao passo que a criatividade é uma espécie de imaginação incorporada.
41
Salientou-se no ponto 3.2. que Lipman a ponta quatro principais
variedades de habilidades cognitivas29, sendo que as crianças estão
naturalmente inclinadas a adquirir habilidades cognitivas como adquirem
naturalmente a linguagem, como foi analisado, e a educação é
necessária para fortalecer o processo.
Assim, quando Lipman aborda as habilidades de investigação
refere-se à prática de autocorrecção. O que não pode corresponder a um
comportamento de investigação habitual, convencional, mas sim se à
prática subsequente da autocorrecção for acrescentada aquela prática,
acontecendo a investigação.
É
basicamente
através
das
habilidades
de
investigação que as crianças aprendem a associar suas
actuais experiências com aquilo que já acontece em
suas vidas e com aquilo que esperam que aconteça.”
(2001, 66).
As crianças que aplicam a sua educação a investigação aprendem a
formular problemas, estimar, medir e distinguir, porque:
“Investigar é uma prática auto-correctiva onde um tema é
investigado com o objectivo de descobrir ou inventar
maneiras de lidar com aquilo que é problemático.” (2001,
72)
A partir de um argumento sólido formulado, onde se inicia com
premissas verdadeiras, infere-se uma conclusão verdadeira. Pois o
conhecimento diz Lipman “baseia-se na experiência do mundo” o que
significa que é pelo raciocínio (habilidade de raciocínio) que se
desenvolve esse conhecimento, assim como o preserva, sem recorrer a
29
Por habilidades cognitivas Lipman entende: “a capacidade para bem realizar
movimentos e desempenhos cognitivos. (2001, 117)
42
uma experiência adicional. A lógica é apontada como algo educativo, já
que demonstra “aos alunos incrédulos que a racionalidade é possível, (…)
e que alguns argumentos são melhores que outros”. (2001, 66) Quando
uma criança pensa por si mesma em diálogo, o processo de raciocínio,
através de silogismos, adquire mais entusiasmo, e a conclusão pode
surgir de modo inesperado. Já que raciocínio, segundo Lipman:
“é o processo de ordenar e coordenar aquilo que foi
descoberto através da investigação. Implica em descobrir
maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi
descoberto ou inventado enquanto era mantido como
verdade.” (2001, 72)
A criança tende para uma eficiência cognitiva, o que implica
organizar as informações que recebe em unidades ou grupo conceptuais.
Estes, representação universal de alguma coisa ou realidade, entendendo
os termos coisa e realidade num sentido lato que não se reduza aos
objectos físicos. Cada grupo ou rede de conceitos representa uma teia de
significados que “envolve esclarecer e remover ambiguidades” diz Lipman
(2001,68). Desta forma:
“o pensamento conceptual envolve relacionar conceitos
entre si a fim de formar princípios, critérios, argumentos,
explicações, etc.”(2001, 72)
O raciocínio é aquela forma de pensamento que preserva a
verdade através da mudança, a habilidade de tradução é aquela forma
que preserva o significado através da mudança:
O que implica na transmissão de significados de uma
língua ou esquema simbólico, ou modalidade de sentido,
para outra, mantendo-os intactos.” (Ibid)
43
O que nem sempre é respeitado pelos que traduzem. O que é significativo
é que as habilidades de tradução possibilitam transitar entre línguas ou
quando se traduz um poema para a música, como um compositor
sinfónico, ou ainda, da linguagem corporal para a linguagem comum;
está-se a trocar e a preservar significados. Neste caso o pensamento é
compreendido como forma de produtividade e a tradução como forma de
troca.
Para atingir adequadamente estas quatro áreas de habilidades
cognitivas é necessário saber pensar e principalmente saber pensar por
si, para que seja possível seguir o caminho do pensamento de ordem
superior. O pensamento de ordem superior “inclui o pensamento flexível e
rico em recursos” (2001, 38). Rico em recursos no sentido que sabe
procurar os recursos de que precisa e flexível porque se mobiliza
livremente.
O pensamento de ordem superior ocorre sob o escudo de duas
ideias reguladoras: a verdadeira e o significado, envolvendo o
pensamento crítico e o criativo. O pensamento crítico envolve o raciocínio
e o julgamento crítico, enquanto que o pensamento criativo compreender
habilidade, talento e julgamento criativo. Os julgamentos são as
consequências do pensar crítico. E como consequências implicam,
portanto, uma determinação: do pensamento, da fala, da acção ou da
criação.
O pensar crítico apresenta quatro características fundamentais: (1)
facilita o julgamento pois (2) fundamenta-se em critérios, (3) é autocorrectivo, e (4) é sensível ao contexto. (Cfr. 2001, 172). Facilita o
44
julgamento porque utiliza critérios, isto é, regras ou normas para fazer
julgamentos. É auto-correctivo, portanto corrige-se por si no discurso e na
reflexão. O penar crítico é pensar hábil, e as habilidades em si não podem
ser definidas sem critérios através dos quais desempenhos supostamente
hábeis possam ser avaliados, o que o torna sensível ao contexto, na
medida em que sabe aplicar critérios ao contexto. “Pensar crítico significa
responsabilidade cognitiva” (2001, 175), pois o raciocínio como
componente do pensar crítico é estimulado em diálogo e investigação
atingindo a inferência, movimento cognitivo através do qual um aluno tira
uma conclusão a partir de premissas. Implica pensar por si mesmo sem
deixar que outro pense por si. Pensamento responsável que fornece,
também, responsabilidade intelectual.
Retomando a ideia de que: o pensamento de ordem superior
ocorre sob o escudo de duas ideias reguladoras: a verdadeira e o
significado e sendo que a verdade refere-se ao pensar crítico, não será
difícil inferir que o significado destina-se ao pensar criativo.
O pensar crítico tem uma preocupação essencial pela verdade,
apresenta um interesse genuíno em desviar o erro e a falsidade, daí o
seu controle auto-correctivo. No caso do pensar criativo, a sua
preocupação é mais com a invenção e a totalidade. Controla-se através
do objectivo de ir além de si mesmo, transcendendo-se com o objectivo
de alcançar a integridade. Lipman define o pensar criativo como “o pensar
que conduz o julgamento, que é orientado pelo contexto, é autotranscendente, e sensível aos critérios.” (2001, 279). Reconhecendo que
é sensível aos critérios, significa que não é um pensar irracional, já que:
45
“não há nenhum pensar criativo que não seja permeado de
julgamentos
críticos,
assim como não
há
nenhum
julgamento crítico que não seja permeado de julgamentos
criativos.” (2001, 280)
Daí o pensar criativo não ser orientado por considerações analíticas, mas
não significa que não seja sensível as mesmas. Por outro lado, o pensar
criativo é sensível à forma como a qualidade universal incorpora valores e
significados.
Quando Lipman aborda o pensar criativo, está aborda-lo em
termos de processo, não de produtos. Se existe singularidade, não é
consequência do método prorrogar de ocasião para ocasião, mas porque
o método, quando empregue em contextos diferentes, engendrar
resultados diferentes. Não se pode pensar que a criatividade como
processo vem do nada. É pelo contrário, uma transformação daquilo que
é estabelecido em algo radicalmente diferente.
Aprender a pensar de forma a atingir o pensamento de ordem
superior é uma linha educacional de pensamento que, segundo Lipman,
sustenta o fortalecimento do pensar na criança como tarefa principal da
actividade das escolas e não somente como uma consequência casual.
(Cfr. 2001, 11)
John Locke foi um dos vários filósofos que fez uma associação
entre pensar crítico e a democracia, na medida em que o pensar crítico
melhora a capacidade de raciocinar e a democracia requer uma
sociedade com cidadãos que saibam pensar de forma racionalizante. Se o
objectivo da proposta de desenvolvimento das habilidades é uma
sociedade onde a internalização de atitudes e modos de fazer é uma
46
substituição progressiva de inocência pessoal por experiência mundana,
de ignorância por conhecimento, de subjectividade por objectividade
então a educação propõe um olhar democrático.
4. A Educação: o olhar democrático
Na perspectiva de Lipman é ponto convencionado que é
fundamental
que
as
crianças
tenham
uma
educação
para
o
desenvolvimento das habilidades do pensar. As habilidades “são o
ingrediente que falta na educação.” (1990, 47) As crianças devem ser
ensinadas a pensar por si mesmas, dando-lhes a oportunidade de
desenvolverem critérios relativos ao que constitui o comportamento
racional e moral, para viverem em sociedade. Se isto se proporcionar
estão a produzir-se agentes morais, inteligentes sinceros e autónomos.
Sendo que esses dois papeis, socialização e autonomia, têm como
sustentáculo a Democracia:
“Uma sociedade que providencia a participação nos seus
benefícios de todos os seus membros em iguais
condições, e que garante o reajuste flexível de suas
instituições mediante a interacção das diferentes formas
de vida associativa, é, quanto a isso, democrática.”
(1999a, 162)
Perante este objectivo a sociedade tem que promover uma educação que
estimule nos alunos o interesse pessoal nas relações e controle social. As
escolas devem proporcionar metodologias e currículos que facilitem o
pensar crítico e o pensar criativo aos alunos, para que sejam interventivos
47
numa sociedade de direitos e deveres. Diz Lipman que “Cada aspecto da
educação deve ser, em princípio a qualquer custo, racionalmente
defensável.” (2001, 21) Pois crianças educadas em escolas que
apresentam critérios racionais têm maiores probabilidades de serem
razoáveis do que crianças educadas sob conjuntura irracional.
As crianças podem ser auxiliadas a tornarem-se sensíveis à
necessidade que pode surgir nas suas vidas, podem adquirir hábitos que
lhes proporcionem uma mais fácil adaptação a novas situações.
Mas afinal qual é a função da educação numa sociedade
democrática? E o que entende Lipman por democracia?
Lipman apoia-se na noção de democracia proposta por Dewey que
faz referência a dois sentidos de Democracia, um político e outro social.
Sendo que o primeiro é designado como uma forma de governo ou um
sistema de instituições para organizar a vida em sociedade.
“Democracia é um modo de vida, social e individual. É
mais do que uma forma de governar; ela é acima de tudo
um modo de viverem sociedade, da experiência
participativa conjunta” (Cfr. 1999a, 155)
Definitivamente,
participação
directa
J.
Dewey
na
eleição
entende
dos
Democracia
governantes
como
a
tornando-se
imprescindíveis para satisfazer o princípio da equitatividade e bem – estar
da totalidade das pessoas de uma sociedade. E como modo de vida,
atingindo todos os grupos, instituições sociais: família, escolas, empresas
e religião. Sendo que o grupo social deve ter como critério para
determinar o carácter democrático, o grau de ligação entre as acções e os
interesses das diferentes pessoas que o formam, assim com o modo em
48
que a livre interacção entre os seus membros faculta a reacomodação e
correcção dos hábitos e práticas sociais.
Neste último sentido, a democracia e a educação conciliam uma
relação dialéctica, isto é: a escola como instituição educativa gera hábitos
democráticos para estabelecer um processo de relações de abertura, sem
preconceito mas com enriquecimento de experiências individuais e
partilhadas. Segundo Dewey a educação tem de promover hábitos
democráticos “só a educação pode garantir a ampla difusão de uma
comunidade de interesses e objectivos.” (1999a, 165)
São vários os colaboradores, entre eles Walter Kohan, de FpC que
referem Lipman como continuador de Dewey, pois encaram a
democracia, como um ideal de vida social ao qual todo o grupo humano
tem um compromisso; muito mais que um sistema político. Grupo
humano, como grupo perfeito, que se funda numa educação como
processo de questionamento e auto-correcção. Educação que:
“se transforma em educação como investigação e
educação para a investigação, o produto social desta
mudança
institucional
será
a
democracia
como
investigação e não meramente democracia.” (2001, 355).
O papel de uma educação em questionamento e investigação é
preparar alunos a viver como membros questionadores de uma
sociedade, que se interrogam trabalhando para uma democracia como
investigação, que une a racionalidade e o consenso e que este factor de
união é superior a ser orientado por qualquer critério isolado. (Cfr. 2001,
365).
49
Uma relação perfeita entre democracia e educação leva à
concretização de uma sociedade organizada. Não se trata apenas de
educar para a democracia, senão democratizar para educar. Esta relação
recíproca implica o pensar e o julgar por um lado e o conhecer por outro.
Dewey sugeriu a escola como um espaço de construção para o pensar,
onde as crianças adquirem hábitos de exercícios para o pensar, e não
como um lugar de transmissão de conhecimento. “A educação tem de
preparar o aluno para compreender e criticar o modo de vida do seu
grupo”. (1987, 397) E nada melhor que a filosofia como disciplina do
pensar para conseguir esse objectivo. A filosofia, a educação e métodos
sociais caminham de mãos dadas, segundo Dewey, sendo a filosofia
a”teoria da educação nas suas fases mais gerais.” (1999a, 163).
O ponto onde Lipman se afasta de Dewey é exactamente quando
este considera a filosofia como a teoria da educação, pois para o pioneiro
de FpC a filosofia é a prática da educação. Argumentando da seguinte
forma:
“Eu acho um tanto estranho identificar a filosofia como
teoria, porque isso exclui a possibilidade de se fazer
filosofia, da filosofia como prática, e assim ele acaba
dando respaldo àqueles que querem separar a teoria da
prática e negar que a filosofia tenha algum valor prático
nas escolas”30(1999a, 167)
Lipman partilha da definição que Dewey atribui à filosofia como crítica,
centrada no juízo crítico, chegando a dizer: “Essa é uma das coisas mais
importantes que aprendi com Dewey”, porém não aceita que a filosofia
como pensar crítico tenha um papel de teoria na educação em vez de
50
prática educativa. Para justificar a sua teoria, apresenta dois aspectos. O
primeiro, mostra como as outras disciplinas se sentem amedrontadas em
trabalhar com noções como verdade, justiça, felicidade, etc, com as quais
a filosofia trabalha sem qualquer tipo de inibição. Na educação essas
noções não podem ser irrisórias pois, pretendendo-se uma educação
para a democracia e a democracia para o educar não se pode fugir delas.
Só investigando o que significam e como aplicá-las é que se constrói uma
sociedade com respeito. Em segundo lugar, Lipman, realça a forma como
a filosofia aborda esses conceitos. A filosofia estuda-os “a partir de um
ângulo diferente das outras disciplinas. Ela desloca o foco dos termos
substantivos para os de ordem metodológica.” (1999a, 168)
De acordo com essa ideia o processo educativo de FpC aplica a
prática filosófica onde desloca o âmago do objecto de estudo para o
método de questionamento e investigação. A ferramenta mais importante
é conseguir que as crianças questionem. E se a filosofia é uma forma de
questionamento e investigação que estimula o questionamento e a
investigação, assim como encoraja a procura da verdade, então explicase a relação apresentada por Dewey e Lipman entre Filosofia, Educação
e Democracia.
A filosofia ocupa-se de considerações normativas e a educação de
considerações descritivas e também normativas. A filosofia trabalha com
critérios, com valores, com a lógica no sentido do que deveria ser a
causa, das inferências, o educar democrático ocupa-se do conhecimento
e a filosofia da epistemologia, ou seja, de como conhecemos e o que
30
Argumento utilizado numa entrevista que Walter Kohan lhe fez por motivo de um
congresso.
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conhecemos. A educação ocupa-se do pensamento e a filosofia da crítica
do pensamento. Posto isto, a “democracia em termos de questionamento
e investigação é um ideal de democracia”. (1999a, 177) Mas como e qual
o método utilizado por Lipman para fundamenta a Filosofia para
Crianças?
52
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