TEMPEROS DA VIDA

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Filosofia para crianças?
Que história é essa?
Isabel Cristina Santana
Diretora do CBFC
P
ara muitos provoca espanto a minha resposta quando me perguntam: “qual
é o seu trabalho?” e eu respondo “trabalho com Filosofia para Crianças”.
“Filosofia para Crianças? Que história é essa? O que tem a ver criança com
Filosofia?” Normalmente essa é a seqüência de perguntas que desencadeia a
conversa sobre esse projeto filosófico-educacional que é chamado de Filosofia
para Crianças – Educação para o Pensar.
Mas, atualmente, entre a maioria dos professores e pessoas envolvidas com
Educação, a idéia já não causa esse tipo de espanto que considera Filosofia e
crianças realidades sem nenhuma conexão. Surge um novo espanto que é
encantamento diante da possibilidade de ajudar crianças e jovens a se
aproximarem das questões significativas que, ao longo da história da
humanidade, foram sistematizadas pelos grandes filósofos.
Tentarei, nesse artigo, contar um pouco sobre este trabalho, sua história e
seus principais objetivos.
Tudo começou no final da década de 1960, quando o filósofo e professor
norte-americano Dr. Matthew Lipman concebeu o Programa de Filosofia para
Crianças. Como professor de Filosofia na Universidade, ele estava insatisfeito
com o ensino tradicional, percebia grandes dificuldades em seus alunos para
lidar com a disciplina que ensinava e começou a se aprofundar nessas questões.
Constatou que as mesmas dificuldades que os alunos tinham em relação a sua
disciplina, tinham em relação às outras: dificuldade em estabelecer relações
entre as idéias de autores diferentes; em detectar pressupostos presentes nas
falas ou escritos; dificuldade de expor o próprio pensamento de forma
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compreensível, coerente, articulada; problemas com argumentação, com a busca
de boas razões que justificassem opiniões emitidas sobre um assunto;
dificuldades de síntese, de conceituação.
Enfim, ao elencar essas e uma série de outras dificuldades, ele constata que
todas estavam diretamente ligadas à articulação do que chamam habilidades
cognitivas, habilidades de pensamento.
Para ele, a escola deveria se preocupar, em primeiro lugar, em ajudar os
alunos a desenvolverem as habilidades que são condições para o Pensar Bem,
para o pensamento complexo, ou pensamento de ordem superior. A grande
deficiência escolar estaria em não favorecer um espaço adequado, com
atividades e intervenções pedagógicas intencionalmente direcionadas ao
desenvolvimento do pensamento.
Mas ensinar a pensar não se limita ao exercício de habilidades cognitivas, é
uma educação para a autonomia do pensamento. Não é uma educação que
objetiva somente a racionalidade, entendida de forma rígida, exclusivamente
lógica, descontextualizada, mas que objetiva a razoabilidade, envolvendo um
aspecto atitudinal de respeito aos outros, de disposição para a autocorreção,
para a consideração de pontos de vista diferentes, para ouvir e dialogar.
Lipman vê a Filosofia como área do conhecimento privilegiada para ajudar
esse aprimoramento do pensar. A Filosofia trabalha com conteúdos, com temas
presentes em todas as outras disciplinas, e o faz com investigação rigorosa,
sistemática e aprofundada. A reflexão filosófica é um esforço de busca de
sentido, busca de significado para as coisas, para a existência, para o viver e
fazer do homem no mundo. Trabalha-se com questões complexas, controversas
e abertas, que não têm uma única resposta; questões que, por essas
características, exigem um esforço de pensamento que concilia o conteúdo
pensado e os procedimentos do pensar.
Mas não seriam estes assuntos complicados demais para levá-los até as
crianças? Seriam elas capazes de entender o que disse Sócrates, Platão ou
Aristóteles? Para que deveriam estudar Locke, Kant, Rousseau, ou qualquer
outro filósofo? Essas perguntas surgem porque nós sempre entendemos o
ensino de Filosofia como ensino de história da Filosofia. Quando nos lembramos
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de algumas aulas que tivemos são estes os nomes que nos vêm na mente, junto
com algumas teorias muitas vezes incompreensíveis.
Matthew Lipman não despreza a história da Filosofia, nem os grandes
pensadores que sistematizaram questões importantes para a humanidade, ou
formularam novos conceitos que nós utilizamos para explicar a realidade. Mas,
segundo ele, não é esse o enfoque que devemos dar ao trabalho com as
crianças.
Se acreditarmos num projeto educacional que ajude as crianças e os jovens
a pensarem por si mesmos, capazes de um exame crítico das idéias que lhes
são apresentadas e de construir suas próprias idéias de forma crítica, criativa e
cuidadosa, é importante aproximar as crianças das questões e temáticas
filosóficas que têm profunda significação para nossas vidas e do processo de
investigação reflexiva própria da Filosofia.
E as crianças se interessam e se intrigam com estas questões. Qualquer
adulto que tenha contato com crianças tem sempre um caso para contar sobre
“perguntas difíceis” ou comentários e conclusões surpreendentes feitos por elas.
As crianças se interessam por assuntos como o sentido da própria existência, o
nascimento, a morte, o motivo dos acontecimentos, as razões das diferentes
escolhas dos adultos, o problema da existência de Deus. São questionamentos
de caráter existencial, cultural, ético, gnosiológico, metafísico, estético.
Para aproximar as crianças da Filosofia, Lipman aposta na narrativa.
Começa, então, a escrever “novelas filosóficas”, que são histórias adequadas às
várias faixas etárias, nas quais os personagens vivem as situações do cotidiano
familiar e escolar, sempre se colocando em situações de questionamento e
diálogo. As temáticas filosóficas são colocadas ao longo da História como iscas
que são jogadas e que serão pegas pelas crianças de acordo com o interesse e
problematização que serão feitos em sala de aula.
Vamos a alguns exemplos de questões filosóficas presentes nas histórias.
Ao dar estes exemplos, contarei a vocês os títulos das histórias que são
trabalhadas no Brasil. Tomo como referência um levantamento feito pelo Prof.
Josué Cândido da Silva e que foi publicado em junho de 1999 no Jornal do
Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças. Aos estudiosos da História da
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Filosofia, será fácil associar os temas com os nomes de filósofos que se
dedicaram de forma mais intensa a estas questões.
Issao e Guga - é uma novela para crianças de 7 a 9 anos. Além de temas
ligados à ecologia, existe um forte acento nas questões relativas ao
conhecimento e à fenomenologia da percepção. Como percebemos o mundo?
Qual a relação entre os objetos e o que percebemos através dos sentidos? O
mundo é uma construção de cada pessoa?
Pimpa - é uma novela para crianças de 9 a 11 anos. Aqui os temas centrais
se relacionam com a teoria da linguagem e a metafísica. Questiona-se se o
significado de conceitos como tempo, espaço, família, mamíferos e até mesmo o
próprio nome representam relações que são reais ou que só existem no
pensamento. Qual a relação entre a linguagem e as coisas? As relações corpomente, parte-todo, idéias e coisas estão muito presentes na narrativa.
A descoberta de Ari dos Telles - é uma novela para alunos de 11 a 13 anos.
Os temas dominantes são questões lógicas, epistemológicas e éticas. Aparecem
discussões sobre a lógica da investigação científica, a realidade do pensamento,
a ética e a cultura, as relações de poder, os conflitos entre diferentes padrões
éticos, normas e valores, estética.
Luísa - é a novela para alunos de 13 a 15 anos. Retomam-se aqui vários
temas trabalhados na novela anterior e são introduzidas outras questões éticas
que são a temática principal nessa história. Determinismo e liberdade; livrearbítrio; relação entre intenção, ação e conseqüências; critérios e julgamento são
alguns dos temas presentes.
Rebeca - é a novela para alunos de 5 a 7 anos. Não foi escrita por Lipman,
mas por seu colaborador Ronald Reed. O manual de orientações para o
professor foi escrito por Sylvia Hamburger Mandel, uma das fundadoras do
Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças. Relações entre o imaginário e o real,
entre pensamento concreto e abstrato, e questões que envolvem a compreensão
e sentido dos atos mentais são alguns temas presentes na novela.
Com a colaboração da Drª. Ann Margaret Sharp, Lipman prepara, para cada
novela, manuais de orientação para o trabalho do professor em sala de aula.
Nesses livros há exercícios e planos de discussão de acordo com os temas
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principais presentes nos episódios das novelas. São guias para as discussões
filosóficas que ocorrem na comunidade de investigação.
Cursos e seminários são oferecidos para a preparação dos professores,
pois se entende que não basta a leitura e estudo do manual para que o professor
coordene as discussões em sala de aula. É necessário que o professor vivencie
o processo da investigação filosófica, desenvolva o seu pensamento, exercite a
metodologia proposta, tenha clareza das características de uma discussão
filosófica e conheça os pressupostos pedagógicos e filosóficos da proposta.
Afinal, o professor joga um papel fundamental ao coordenar o diálogo entre os
participantes da comunidade, e como podemos ensinar a filosofar se não
filosofamos?
Ao propor a transformação da sala de aula em Comunidade de
Investigação, dá-se fundamental importância ao exercício de pensar junto com os
outros. A vivência na Comunidade de Investigação implica em aprofundamento
dos temas propostos, buscando-se dar o salto do senso comum à iniciação
filosófica. No livro A Filosofia vai à Escola, da Editora Summus, Lipman escreve:
“O fazer Filosofia exige conversação, diálogo e comunidade, que não são
compatíveis com o que se requer na sala de aula tradicional. A Filosofia impõe
que a classe se converta numa comunidade de investigação, onde estudantes e
professores possam conversar como pessoas e como membros de uma mesma
comunidade; onde possam ler juntos, apossar-se das idéias conjuntamente,
construir sobre as idéias dos outros; onde possam pensar independentemente,
procurar razões para seus pontos de vista, explorar suas pressuposições; e
possam trazer para suas vidas uma nova percepção do que é descobrir, inventar,
interpretar e criticar.”
Além dos objetivos já mencionados – a iniciação filosófica de crianças e
jovens e a educação para o pensar -, há um terceiro objetivo de trabalho a ser
considerado, que é a formação para a cidadania responsável. Este objetivo está
intimamente ligado ao trabalho de investigação e vivência em comunidade.
O Prof. Dr. Marcos Antonio Lorieri, em apostila publicada pelo CBFC,
escreve: “A participação produtiva numa pequena comunidade de investigação
exige comportamentos e atitudes de cooperação, respeito mútuo, interesse por
objetivos comuns, avaliação que são, dentre outros, elementos importantes para
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o exercício democrático na sociedade. A ocupação dos espaços de cidadania
requer das pessoas tais atitudes (...) que são elementos éticos necessários às
relações sociais e o seu domínio só é possível no exercício prático acompanhado
da atenção intelectual que o examina cuidadosamente.”
Na década de 1970 estas diretrizes do Programa de Filosofia para Crianças
já estavam consolidadas e pessoas de outros países já começavam a conhecer a
proposta e a se interessar. Em 1974, na Universidade de Montclair, foi fundado o
Institute for the Advancement of Philosophy for Children (IAPC), sob a
coordenação de Matthew Lipman.
Em 31 de janeiro de 1985, um ano após os trabalhos iniciados no Brasil, foi
fundado o Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC), que é uma
sociedade civil sem fins lucrativos, de caráter científico e cultural, representante
oficial do IAPC no Brasil, com autorização para trabalhar com a divulgação do
Programa, traduzir e adaptar o material à realidade educacional brasileira e
trabalhar com a formação de professores.
Ao longo desses 16 anos o trabalho foi se expandindo e mais de 13 mil
professores de todos os estados brasileiros fizeram cursos de formação com a
equipe do CBFC, preparando-se para o trabalho, em sala de aula, com o
Programa de Filosofia para Crianças. Além dos cursos específicos de preparação
para o trabalho com Filosofia para Crianças, o CBFC tem oferecido cursos
temáticos que tratam de questões relacionadas à educação mais reflexiva e
dialógica; assessoria e acompanhamento aos professores e escolas.
Escolas públicas e particulares cada vez mais vêem nessa proposta um
bom caminho para a promoção de uma educação mais reflexiva e dialógica e
muitas teses e estudos continuam sendo feitos nas Universidades brasileiras a
partir desse novo paradigma educacional proposto por Matthew Lipman.
Para conhecer um pouco mais sobre esta proposta educacional, visite o site
do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças: www.cbfc.com.br
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