Diagnóstico e tratamento de deficiências genéticas metabólicas no Rio de Janeiro – uma equipe multidisciplinar em ação. Any Bernstein1 [email protected] Wanise Maria da Souza Cruz2 [email protected] Patrícia Santana Correia3 [email protected] Célia Ruth Berditchevisky4 [email protected] Maria Lucia Costa de Oliveira5 [email protected] Os erros inatos do metabolismo (EIM) são disfunções genéticas caracterizadas pela falta ou deficiência de uma enzima, resultando em distúrbio nas vias metabólicas normais; estas doenças acarretam graves problemas neurológicos e atingem uma parcela da população que se torna não produtiva e onerosa para a sociedade. São conhecidos atualmente mais de 500 EIM, cada um deles bastante raro isoladamente. A fenilcetonúria, um dos mais freqüentes, tem incidência em torno de 1:12.000. Entretanto, quando considerados como um grupo, a incidência dos EIM chega até 1:5.000 a 1:3.800. Quando são avaliados em grupos de risco (pacientes com sintomas sugestivos de EIM ou alguns grupos étnicos) essa incidência aumenta bastante, como por exemplo: • • O Hipercolesterolemia familiar (considerado o EIM mais freqüente) - sua incidência na população geral é de 1:500. Em indivíduos com colesterol total ou LDL elevados esta incidência passa a ser de 1:20. O Tay-Sachs - a incidência na população geral é de 1:400.000. Para judeus Askhenazi é 100 vezes maior, de 1:4.000. No Brasil não existem dados estatísticos disponíveis sobre a incidência destas doenças. Dados levantados no Rio de Janeiro, em amostras de pacientes de risco encaminhadas ao Laboratório de Erros Inatos do Metabolismo (LABEIM) do Instituto de Química da UFRJ, demonstram que as doenças com maior número de casos diagnosticados, após a análise de 3800 pacientes, pertencem aos grupos das doenças lisossômicas de depósito (106 casos) e das disfunções no metabolismo e transporte de aminoácidos (69 casos). Dietoterapias são utilizadas como forma de tratamento nas disfunções em aminoácidos. No caso do grupo das doenças lisossômicas, novos tratamentos envolvendo reposição enzimática estão começando a ser adotados. As amostras foram enviadas ao LABEIM principalmente por entidades hospitalares municipais, estaduais e federais, e analisadas sem ônus para os 1 Doutorado em Ciências- especialidade Biotecnologia Vegetal pelo Centro de Ciências da Saúde da UFRJ. Professor Adjunto do Departamento de Bioquímica do Instituto de química / UFRJ. Colaborador do projeto de Erros Inatos do Metabolismo (LABEIM) - Departamento de Bioquímica do IQ-UFRJ. 2 Mestre em Bioquímica pelo Instituto de Química – UFRJ Professora de Nutrição e Dietoterapia da Faculdade de Nutrição / UFF. 3 Graduação: Medicina, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Mestrado em Genética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Títulos de especialista em Pediatria (SBP) e Genética Clínica (SBGC) Participante do comitê de Genética da Sociedade de Pediatria do estado do Rio de Janeiro (SOPERJ) 4 Médica formada pela FF, Especialista em Pediatria Mestre em Nutrologia pela UFRJ Médica do hospital dos Servidores do Estado e do Instituto Estadual de Cardiologia Aluísio e Castro 5MestreemBioquímicapelaUFRJProfessorAdjuntoIVdoepartamentodeBioquímicadoIQUFRJCoordenadordoLaboratóriodeErrosInatos Departamento de Bioquímica do IQ-UFRJ. do Metabolismo (LABEIM) - pacientes. Estes pacientes eram moradores não só dos municípios do Rio de Janeiro e da região metropolitana, mas também de outros municípios do Estado e até de alguns estados vizinhos. Importância do diagnóstico e do tratamento Diagnosticar corretamente um EIM é o passo fundamental para que seja iniciado um tratamento eficaz e, sempre que possível, específico. Quanto mais precocemente for feito o diagnóstico e instituído um tratamento, mais favorável será a evolução dos pacientes. Ainda que o prognóstico seja ruim, mesmo com tratamento, a confirmação do diagnóstico é importante para diminuir a ansiedade das famílias, para o aconselhamento genético e acompanhamento pré-natal em futuras gestações. Além disto, o diagnóstico de um EIM é importante para aumentar o conhecimento clínico e bioquímico a respeito das doenças metabólicas, mesmo que nem sempre seja possível salvar o paciente. Para que se consiga fazer um diagnóstico e estabelecer um tratamento, é fundamental a atuação de uma equipe multidisciplinar, que opera nas áreas da química e da saúde, trabalhando em conjunto, somando esforços e conhecimentos pertinentes a cada um. Somente assim, haverá possibilidade de proporcionar uma melhor qualidade de vida a estes pacientes. O trabalho relata o papel de diversos profissionais que atuam no Rio de Janeiro, no diagnóstico e tratamento de doenças genéticas metabólicas. • Médico Generalista (Clínico Geral e Pediatra) Apesar de atualmente se saber que os EIM são freqüentes, especialmente em grupos de risco, a maioria dos médicos considera estas doenças raríssimas e muito difíceis de diagnosticar. Embora o diagnóstico específico seja complexo, a suspeita de um EIM pode ser feita a partir de alguns sinais e sintomas facilmente reconhecíveis. Esta suspeita inicial feita pelo generalista é fundamental no diagnóstico, pois ele é o profissional que geralmente tem o primeiro contato com o paciente. De acordo com os sinais, alguns exames gerais podem ser solicitados e o tratamento de suporte iniciado. Paralelamente, especialistas devem ser contatados condução da investigação e do tratamento específicos. para auxiliar na Os sinais e sintomas são inespecíficos (Tabela 1), podendo ocorrer em uma série de outras condições patológicas. No entanto, na presença destes sinais o médico deve sempre considerar a possibilidade de um EIM no diagnóstico diferencial. É também importante atentar para a história familiar, procurando informações como óbitos de causa não esclarecida, casos semelhantes ao do paciente e presença de consanguinidade parental. Tabela 1 • Médico Geneticista Um dos especialistas que deve ser contatado, diante de uma suspeita de EIM, é o geneticista. Embora a história familiar faça parte da anamnese de todos os médicos, o geneticista é especialmente detalhista na coleta destas informações. Algumas particularidades da diagnóstico, pois podem sugerir um estas, destacasse a consanguinidade portadores, em relação à população autossômica recessiva. história familiar são muito importantes no determinado tipo de herança genética; entre parental, bem mais freqüente nas famílias de geral, pois a maioria dos EIM é de herança Cabe ao geneticista estabelecer a origem étnica da família, pois em alguns grupos a freqüência de determinados EIM pode estar aumentada, como já citado anteriormente. Como existem poucos serviços de Genética Médica no Brasil, o contato de um geneticista com pacientes com a mesma doença rara é bem maior do que o de um clínico, portanto, muitas vezes, é ele quem faz o encaminhamento do paciente a outros especialistas e centros de referência para diagnóstico e tratamento de EIM. Um dos papéis mais relevantes do geneticista é facilitar a organização de grupos de pais e portadores pelo contato que este profissional tem com um grande número de pacientes com o mesmo EIM. Estes grupos são de extrema importância no suporte emocional das famílias e para conseguir apoio para projetos de pesquisa e custeio dos tratamentos. O aconselhamento genético para as famílias também é atribuição do geneticista, quando são explicados os riscos e é oferecido o diagnóstico pré-natal. Outra função do geneticista surgiu mais recentemente, quando portadoras de EIM submetidas a tratamento, vem atingindo a idade reprodutiva, e passam a necessitar de aconselhamento, planejamento e acompanhamento de possíveis gestações. • Profissional Bioquímico Como os EIM se caracterizam pela alteração de diferentes substâncias em fluidos biológicos, o papel do bioquímico nesta equipe é de extrema importância. Ele é o profissional que possibilita o diagnóstico, ao realizar as análises das substâncias que se encontram alteradas. Este bioquímico é um profissional diferenciado que deve ter uma boa base de química orgânica analítica e enzimologia, além do conhecimento da bioquímica das doenças, para que, em conjunto com o clínico, discuta os sintomas e os resultados bioquímicos, permitindo determinar o diagnóstico. Este profissional não deve ser um clínico, e deve trabalhar em laboratórios especializados na pesquisa destas disfunções. A análise é realizada em diversos fluidos biológicos e abrange várias etapas: 1. Rastreamento, realizado em amostras de urina, através de testes químicos qualitativos; 2. Análise por técnicas qualitativas de fracionamento das substâncias alteradas na primeira etapa, avaliadas em urina, plasma ou liquor; 3. Analise por técnicas e métodos mais sofisticados e sensíveis das amostras com alterações significativas na segunda etapa. Os resultados, em muitos casos, confirmam o diagnóstico; 4. Dosagens enzimáticas são realizadas em plasma, leucócitos, fibroblastos, para a confirmação de diagnóstico, quando necessário. • Médico Nutrólogo O Nutrólogo é o médico especializado em nutrição e o profissional habilitado a estabelecer condutas nutricionais e terapêuticas. Ele deverá ser chamado assim que houver suspeita de um EIM em um paciente grave, principalmente em situações emergenciais no período neonatal, onde há risco de vida eminente. Entre os pacientes em crise, encontram-se crianças sem diagnóstico e com diagnóstico e tratamento já estabelecidos. No caso de uma criança em crise e sem diagnóstico, o tratamento emergencial a ser adotado pelo profissional que a atende, deve ser iniciado por uma hidratação venosa adequada, uma tentativa de diminuição do catabolismo e aumento do anabolismo. Concomitantemente deve-se tentar a depuração das toxinas acumuladas, e sob a orientação do nutrólogo, ser feita uma avaliação criteriosa da necessidade de prescrição de cofatores e coenzimas, enquanto se aguarda a definição de um diagnóstico. No caso de uma criança em crise, com diagnóstico e tratamento estabelecidos, o profissional que a atende deve procurar conhecer, respeitar e obedecer rigorosamente ao protocolo instituído e prescrito pelo profissional nutrólogo que a acompanha; este deve ser contatado imediatamente para discutir o caso e estabelecer o melhor tratamento para aquela situação. • Nutricionista O nutricionista que integra a equipe multidisciplinar, deve ser um profissional especializado, com bom conhecimento da bioquímica das doenças, e, portanto, das vias metabólicas afetadas, dos tratamentos dietéticos específicos e das necessidades nutricionais dos pacientes. Este profissional deve ser chamado para acompanhar os pacientes com diagnóstico definido e terapia nutricional prescrita. A ele cabe elaborar cardápios variados, supervisionar o preparo da alimentação, avaliar o cumprimento da dieta e orientar a família quanto ao planejamento destes cardápios. O trabalho do nutricionista é importante para que o paciente tenha na sua dieta os nutrientes necessários para seu crescimento e desenvolvimento adequados. Além disto, esta orientação propiciará uma maior integração da criança portadora de EIM ao seu ambiente social. Tratamentos dietéticos para EIM No caso das disfunções que podem ter um tratamento através de dietoterapias, tanto os nutrólogos quanto os nutricionistas dispõem de cardápios específicos para cada caso, que se baseiam: • • • • Na inclusão de um suprimento adicional de nutrientes que se encontrem deficientes (tirosina, no caso de fenilcetonúria, carnitina nos casos de deficiência de oxidação de ácidos graxos); Na retirada de metabólitos tóxicos ou seus precursores (galactose e lactose no caso da galactosemia); No fornecimento de vitaminas que atuem como cofatores em reações enzimáticas (biotina, que atua como cofator nas reações que envolvem carboxilases); No fornecimento de substâncias que seqüestram metabólitos tóxicos (carnitina, nas acidúrias orgânicas). Dificuldades encontradas pelos profissionais no diagnóstico • • • • • • • • Desconhecimento da maioria dos médicos de que sinais e sintomas comuns a várias doenças podem ser sugestivos de EIM; Retorno dos resultados dos exames em tempo hábil - estes demoram a ser solicitados e encaminhados aos laboratórios; Dificuldades na realização das análises em tempo hábil, pela carência de recursos humanos e equipamentos especializados; Solicitação tardia dos médicos dos exames específicos, que acabam sendo realizados, após o início da prescrição de medicações e dietas, o que pode interferir nos resultados laboratoriais; Dificuldades na elaboração de cardápios pela pouca disponibilidade de dados referentes a composição dos alimentos. Informações incompletas encontradas nos rótulos dos alimentos do teor de seus componentes; Dificuldade de acesso aos produtos dietéticos; Alto custo dos exames laboratoriais, do tratamento e pouca verba disponível para custeio; Falta de integração e troca de experiências entre os profissionais que trabalham com EIM. Ações facilitadoras que permitiriam uma maior eficiência no diagnóstico e no tratamento dos EIM • • Educação continuada de profissionais das áreas da química e da saúde voltada para o estudo das doenças genéticas metabólicas em seus vários aspectos, a nível de graduação, pós-graduação e extensão universitária; Criação de centros de referência, que centralizariam todas as etapas de diagnóstico e tratamento, diminuindo os custos em todos os níveis. Deveriam ser criados, pelo menos: Centros de captação das amostras: responsáveis pela coleta ou recepção de amostras, armazenamento e encaminhamento a laboratórios de referência; Centros de diagnóstico: laboratórios de referência responsáveis pela realização dos exames especializados; Centros de tratamento: responsáveis pelo fornecimento de dietas e medicações especiais e acompanhamento da evolução dos pacientes. No mundo inteiro o interesse pelos EIM tem crescido exponencialmente, principalmente nas últimas décadas. Isto se deve, em grande parte, ao desenvolvimento de novas e variadas técnicas analíticas e da área da biologia molecular, assim como, ao enorme avanço no conhecimento da bioquímica. Com isto centenas de novas doenças e suas variantes têm sido reconhecidas e caracterizadas. O Brasil vem se inserindo, ainda que incipientemente, nestes avanços e a atuação desta equipe multidisciplinar vem demonstrar que os erros inatos do metabolismo existem, que é possível diagnosticá-los e tratá-los, sendo fundamental que exista a integração e troca de experiência entre as equipes dos diversos profissionais.