Gilles Deleuze e Peter Eisenman

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Cruzamentos filosóficos em processos
de projeto na arquitetura contemporânea:
Gilles Deleuze e Peter Eisenman
Rodrigo Scheeren
Instituto de Arquitetura e
Urbanismo da USP
Mestrando em Teoria e História
da Arquitetura e Urbanismo
[email protected]
Palavras-chave
Diagrama, Dobra, Arquitetura
contemporânea, Gilles Deleuze,
Peter Eisenman.
353
Resumo
O texto apresenta algumas considerações sobre determinados processos de projeto na arquitetura contemporânea que assimilaram
teorias multidisciplinares. Ao longo de 1990, a teoria da arquitetura
acolheu temas da filosofia de Gilles Deleuze, dentre eles, os principais foram o diagrama e a dobra. O arquiteto norte-americano Peter Eisenman explicita a influência do discurso de Deleuze em seu
trabalho investigativo. O principal conceito que ele explorou foi o
do diagrama, assimilado como “um conjunto de relações flexíveis
entre forças”, nunca enquanto uma estrutura – hierárquica, estática
e com ponto de partida. Para ele, o diagrama é tanto um dispositivo analítico - estruturando informações -, quanto generativo
- intermediário no processo de geração do espaço -, sem oferecer
a correspondência necessária entre si mesmo e a forma resultante.
Deleuze introduziu a noção de diagrama via Foucault - a quem
credita a emergência do termo na contemporaneidade -, conceito
que não se resume a, mas se expressa como um evento linguístico
- operação abstraída de obstáculo e separado de qualquer uso específico. Suas características são a multiplicidade espaço-temporal,
além de não ser um mapa de identidades estáticas, mas que relaciona singularidades virtuais e forma multiplicidades. Os objetivos são
explicitar que o diagrama não pode ser compreendido isoladamente
a partir da filosofia de Deleuze - mas faz parte de um aparato conceitual que engloba outros conceitos como o virtual, a abstração,
a desterritorialização e a máquina abstrata – e apresentar o seu
desdobramento na teoria e no processo experimental arquitetônica
de Eisenman – a dimensão prática da sua tradução. O procedimento de translação desses conceitos para a arquitetura representa
o pensamento formal não acabado, isto é, são mecanismos não-formalizados, abertos a matérias e funções que serão engendradas
através da habilidade de criar conexões nos planos de consistência
do projeto. A relação entre filosofia e arquitetura estabelece um
caráter expandido do seu campo de investigação disciplinar, através do conteúdo conceitual utilizado de modo operatório em outros
métodos e práticas projetuais.
Introdução
Na arquitetura contemporânea, algumas manifestações são estimuladas por processos experimentais que assimilam teorias multidisciplinares para suas bases conceituais. No decorrer dos anos de 1990,
a teoria da arquitetura acolheu dois temas relacionados ao filósofo
francês Gilles Deleuze: a dobra e o diagrama. No período, se difundia a corrente de ideias do Pós-Estruturalismo em diversos campos
disciplinares, que conjuntamente promulgava o pensamento de
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Michel Foucault e Jacques Derrida. Antes de Deleuze, o Desconstrutivismo – subsidiário do pensamento de Derrida - se expandiu
por meio de áreas como a literatura, a filosofia, a política, entre
outras, caracterizando a corrente teórica que pretendeu minar as
pressuposições hierárquicas sustentadoras do pensamento ocidental
baseado nas relações binárias que estabelecem a supremacia de um
termo sobre o outro (JUNIOR, 2010, p. 10). Esse pensamento foi
introduzido na arquitetura em 1985, quando o arquiteto suíço Bernard Tschumi convocou Derrida para colaborar em parte do projeto
Parc de la Villete em Paris - elaborando uma estrutura conceitual
para o projeto do grandioso parque na cidade (WIGLEY, 1993, p.
xi-xii). Esses fatos marcam um período de apropriação interdisciplinar entre a filosofia e a arquitetura contemporânea, cujos limites
acolheram uma forma de “negociação estendida”. As associações
entre as disciplinas reencaminharam a atenção ao significado atribuído para cada elemento compositivo da obra a partir da aplicação conceitual.
No início de 1990, a crítica arquitetônica ainda discutia o Desconstrutivismo, enquanto a teoria da dobra emergia na literatura.
Logo, as formas arquitetônicas se desviaram do retilíneo em direção ao contínuo curvilíneo, subvertendo tanto a caixa Modernista
quanto os destroços Desconstrutivistas (ROCKER, 2006, p. 89). Esse
quadro surgiu sob influência da obra Le pli: Leibniz et le Baroque
de Deleuze, de 1988. Contudo, o trabalho não repercutiu no meio
acadêmico antes da sua tradução inglesa, em 1993. No mesmo ano,
circulava a edição da revista inglesa Architectural Design - Folding
in architecture, quando finalmente a obra de Deleuze se difundiu
amplamente. Segundo Carpo, o arquiteto americano Peter Eisenman garantiu, em 1991, com o projeto urbanístico RebstockPark
para Frankfurt - uma versão arquitetônica da dobra deleuziana -,
uma segunda chance para a elaboração teórica do tema (2009, p.
85-6). A tentativa de tradução1 para a arquitetura de alguns conceitos filosóficos foi um ato de Eisenman que pode ser considerado
experimental, uma abordagem processual desviada de práticas
correntes, saturando de camadas conceituais o exercício de projeto
além da sua afirmação como manifestação específica e formalmente autônoma. Frente aos apontamentos, surge a questão de como
os conceitos foram traduzidos pela teoria arquitetônica contemporânea e se expressaram em processos de projeto. A análise tensiona
as dimensões de interpretação da filosofia para a arquitetura - conceitual, técnica e metodológica – e busca compreender as contribuições que esta recebeu. Além disso, procura inserir o debate no
contexto brasileiro - no qual pouco se depreende tal gênero de
investigação da teoria arquitetônica contemporânea.
Pontos de contato: processos e conceitos
Com a tarefa de explorar novos princípios formais da modernidade
- elaborar uma linguagem autossuficiente para alcançar a autono-
354
1
Mark Wigley usa o termo “tradução” - ao falar da Desconstrução, de Derrida
e a sua ligação com a arquitetura - como um ato que não se limita a transmissão ou
reprodução do significado original, mas transforma e produz o que aparentemente está
aprisionado, em potencial.
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mia arquitetônica, explicitar os problemas da forma e compreender
o processo de projeto -, Peter Eisenman apresentou “propostas ideológicas literais capazes de dar conteúdo à obra” (MONEO, 2008, p.
158). As propostas transitaram da base teórica do linguista Noam
Chomsky - da Semiótica e do Estruturalismo linguístico – para Derrida e Deleuze - e o Pós-Estruturalismo -, fazendo com que Eisenman relegasse a sua posição anterior e deixasse de conceber a arquitetura autônoma, agora contaminada pelo mundo externo. Nesse
cenário, ele aplicou o pensamento da dobra ao projeto de reconfiguração da área urbana do Rebstockpark, em Frankfurt, na Alemanha,
em 1991. O discurso do arquiteto2 reconhecia o modelo de habitação Siedlung – que dominou o urbanismo alemão até a metade do
século XX, constituído de blocos perimetrais de miolo vazio - como
o representante da repetição e da estandardização provenientes da
produção industrial em massa. Em contrapartida, reconsiderou essa
tipologia expressando uma nova identidade criada a partir da superfície topológica, promovendo a individualidade e as características especiais de cada segmento (EISENMAN, 2007, p. 27).
Rebstockpark Master Plan
Frankfurt - Alemanha, 1990
A investigação apresentada nesse texto, destaca o recorte centrado
na leitura do quadro de transição conceitual para o pós-estruturalismo - que reagiu contra a neutralidade de certas ideologias: as
metanarrativas. O pensamento surgiu a luz de fatores como a crise
do sujeito – a sua dissolução frente a capacidade de afirmar a realidade -, da representação – ou do sentido, no qual o signo linguístico é reconhecido como arbitrário em relação ao objeto, ou seja,
um está pelo outro numa relação de convenção - e da continuidade
histórica – a antipatia pela noção de um padrão globas na história,
de continuidade e de progresso na representação dos fenômenos,
ou seja, que há períodos compreendidos como superiores às culturas do passado (SARUP, 1993, p. 2-3). Essa tripla crítica (CUSSET,
2008, p. 19) não se limitou ao campo das ciências humanas, mas
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2 Texto “Folding in time: Singularity of Rebstock”.
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se expandiu interdisciplinarmente, inclusive para a arquitetura.
Gilles Deleuze, filósofo e professor francês, escreveu sobre teses de
filósofos reconhecidos na história. O seu método promovia a releitura de temas apresentados pelos autores e criava novos conceitos
na introjeção de uma filosofia particular, sendo difícil perceber a
origem das falas – devido a fusão de discursos que trata menos de
potencializar as filosofias (formalizando-as) do que de virtualizá-las (e atualizá-las) (ALLIEZ, 1996, p. 14). Somente após a publicação do seu trabalho sobre o filósofo e matemático alemão Gottfried
W. Leibniz e a dobra, que o seu nome figura nas tratativas teóricas
da arquitetura. Ao abordar o Barroco em associação à dobra, esta é
apresentada como uma expressão estética que se “refere não a uma
essência, mas a uma função operativa” (DELEUZE, 1993, p. 17). Enquanto função operativa, não se limita a um momento específico,
mas pode ser evidenciada historicamente em diversos períodos.
A síntese desses princípios pode ser exposto como a “ontologia do
autor” – determinações gerais manifestadas em realidades específicas, que a experiência pode revelar de modo constante -, através
da qual substituiu o essencialismo da gênese da forma por outro,
que considera a relação entre matéria e forma imbricados por propriedades topológicas internas (DE LANDA, 2000, p. 34). No caso
da dobra, se refere ao conceito de multiplicidade, que declara os
corpos elásticos, flexíveis e fluidos, dobrando e desdobrando-se de
diferentes maneiras (DELEUZE, 1993, p. 18). Estes princípios podem
ser reconhecidos em diversas manifestações no tempo - de uma
igreja barroca a uma obra arquitetônica de geometria topológica.
Em oposição a Descartes e seu Discurso do Método, que estipulou
a real distinção entre as partes da natureza, Leibniz prescreveu os
corpos como monádicos, flexíveis e elásticos, nos quais a curvatura
do universo se prolonga de acordo com a fluidez da matéria, contendo partes coerentes formando dobras. A dobra, portanto, é uma
atribuição ou propriedade, não um elemento: “dobrar-desdobrar já
não significa simplesmente tender-distender, contrair-dilatar, mas
envolver-desenvolver, involuir-evoluir” (DELEUZE, 1991, p. 21). O
insight de Deleuze, ao recuperar Leibniz, é o de confrontar o ideário científico cartesiano - do reducionismo e da análise das partes,
linearidade e vetorização que formam a retícula espacial e excluem
o fator tempo. Para o filódofo, a releitura é necessária porque Leibniz expôs matrizes científicas da mesma grandeza que Descartes,
porém, acabou preterido em função das bases filosóficas simplificadas do último.
No ano de 19923, ao expor o desafio que o paradigma eletrônico
impôs à arquitetura, Eisenman relacionou a dobra à continuidade
da visão, e avaliou o que o papel do conceito é o de modificar a
posição da projeção em perspectiva para o espaço tridimensional,
alterando a associação entre o desenho do projeto e o espaço real.
O ato de dobrar modifica a posição tradicional da visão, do espaço
efetivo para o afetivo, uma das estratégias para deslocar a hierarquia do interior para o exterior da obra (EISENMAN, 2007, p. 38).
A ideia de afeto se contrapõe a de efeito. O efeito é produzido por
3 Texto “Vision's unfolding: architecture in the age of electronic media”.
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um agente ou causa, na arquitetura, é a relação entre um objeto
e a sua função ou sentido – é boa se é efetiva4, como na asserção
moderna “a forma segue a função”. O afeto é o aspecto subjetivo
consciente de uma emoção considerada apartada de modificações
corpóreas, na arquitetura, é a resposta sensória a um meio físico.
A ideia de afeto oferece à arquitetura a soma de diferentes experiências, respostas individuais a estímulos não mediados para a sua
constituição (EISENMAN, 2007, p. 20). Desse modo, o Rebstockpark
se apropria da dobra para pensar a forma contínua – partindo da
ideia leibniziana de extensão – e articuladora de possíveis relações
entre vertical e horizontal, quebrando a ordem cartesiana do espaço de objetos singulares (EISENMAN, 2007, p. 16). Para Eisenman,
em referência a Deleuze, os objetos não se limitam ao framing do
espaço, mas à modulação temporal e sua variação contínua5.
Em 1998, o artigo Diagram: an original scene of writing, publicado na revista Any, expôs o tema do diagrama na história da
arquitetura e a sua aproximação aos sistemas teóricos dos filósofos
franceses. No texto, Eisenman interpreta que, de modo genérico, o
diagrama é uma abreviatura gráfica não necessariamente abstrata - por se comportar como a representação de algo, mesmo não
sendo a coisa em si (2007, p. 88). Para ele, o diagrama é tanto um
dispositivo analítico - estruturando informações -, como generativo
- intermediário no processo de geração do espaço -, sem oferecer a
correspondência necessária entre o diagrama e a forma resultante
(EISENMAN, 2007, p. 89). O arquiteto explicita a influência do discurso de Deleuze, que o influenciou a desviar a sua concepção do
diagrama de algo estrutural – hierárquico, estático e com pontos de
partida -, para assimilá-lo como “um conjunto de relações flexíveis
entre forças” (EISENMAN, 2007, p. 90), ou seja, mecanismos não-formalizados, abertos a matérias e funções que serão engendradas.
Como o conceito de diagrama é apresentado?
Diagrama compositivo
House III, 1970
Deleuze explicita o diagrama no capítulo “587 A.C. - Sobre alguns
regimes de signos” do livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia,
de 1980. O ponto de inserção não ocorre à toa, porque o diagrama
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4 Texto “The affects of singularity”.
5 Texto “Unfolding events: Frankfurt Rebstockpark and the possibility of a new urbanism”.
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não se resume a, mas se expressa como um evento linguístico – ou
melhor, um statement6. O diagrama é aproximado ao conceito de
“máquina abstrata” no livro Diferença e Repetição, de 1968, no qual
o autor traça a base de um processo imbuído de dinamismo e de abstração. Em 1986, no livro sobre Foucault - a quem Deleuze credita a
emergência do termo diagrama na contemporaneidade -, é elaborada
uma definição complementar: operação abstraída de qualquer obstáculo, separado de qualquer uso específico - uma multiplicidade
espaço-temporal (2006, p. 34). O diagrama não é um mapa que apresenta identidades estáticas: em algumas aplicações é substantivo, em
outros é atribuição – diagrama e diagramático - e se relaciona a já
citada máquina abstrata e ao processo de “desterritorialização”.
No artigo Diagram: an original scene of writing, surge também a
abstract machine deleuziana, em breve menção que parece associar
o seu uso ao diagrama generativo. Segundo Eisenman, a noção de
diagrama pretende superar a historização da autonomia na arquitetura em um processo que ocorre com o input físico de um sujeito,
desfazendo a repressão projetual regrada funcionalmente e linguagens preestabelecidas que limitam o fator generativo. Em 1997, no
texto Processes of the interstitial, há o esboço de um método para
o processo do diagrama que, para ele, complementa algumas concepções tradicionais de projetar. Além disso, remete ao Mil Platôs,
e ao engendramento do termo “maquínico” para o processo diagramático – compreendendo que a arquitetura não necessita legitimar
um sistema de signos já fornecidos. Isso acontece através da implementação do diagrama em duas fases. A primeira se assemelha
a qualquer processo arquitetônico, com a especificação de um programa que resulta em um diagrama que contém os fatores: organização de funções, tipos de funções e a organização dos anteriores
por considerações do lugar (EISENMAN, 2001, p. 49). Esse arranjo
tripartite se converte - como em alguns processos tradicionais - na
forma de um contenedor bidimensional plano, predeterminado pela
função ampla de abrigo com significado próprio - intencional ou
não. Após a criação desse contenedor hipotético, o processo passa
à fase do “maquínico”, o ponto no qual é possível se desligar dos
modos correntes de legitimação produtiva.
Na segunda fase, é inserido outro diagrama como agente externo, sobreposto ao primeiro, borrando as relações entre forma e
função, significado e estética, produzidas pelo primeiro diagrama.
Isso ocorre através de estruturas simbólicas, textos, referências
pictóricas e processos geométricos, além de outros, externos a arquitetura. Nessa etapa, não é necessário que o diagrama seja imanente ao programa, lugar e arquitetura do primeiro: “é a aparente
natureza arbitrária do segundo diagrama o que ajudaria a tornar
acessível e revelar novas possibilidades” (EISENMAN, 2007, p. 61).
O “maquínico” expresso por Eisenman é uma referência a Deleuze,
que diferencia dois efeitos: o “maquínico” (machinic) de mecânico
(mechanical) (EISENMAN, 2007, p. 57). O primeiro se refere a uma
atividade mais aleatória, arbitrária e até caótica, enquanto o se-
6 Em “Foucault”, Deleuze o descreve como formação discursiva que contém multiplicidade
e não deriva de um estado de coisas particulares.
gundo se refere a uma relação estrutural entre partes encadeadas
harmonicamente em conjunto para executar o trabalho. O maquínico compreende a operação de agenciamento, síntese de heterogeneidade, apropriado do conceito de “máquina abstrata” do filósofo
francês, explicitado adiante.
Cidade da Cultura da Galícia
Santiago de Compostela
ESP, 1999
Para Deleuze, o diagrama não contem substância, forma, conteúdo
ou expressão, opera por matéria e não por substância, por função
e não por forma, retendo o conteúdo e a expressão desterritorializados. Em sua relação com a “máquina abstrata”, não é físico nem
corpóreo e está para além da semiótica (DELEUZE; GUATTARI,
2005, p. 141), relaciona singularidades virtuais e forma multiplicidades no plano de consistência (BONTA; PROTEVI, 2006, p. 47). O
que isso significa? A desterritorialização se liga a ideia de criação
e virtualidade – como assinala Alliez (1996, p. 13-4) - que, em linguagem franca, representa um complexo processo de “deixar o lar,
alterar os seus hábitos, aprender novos truques” (BONTA; PROTEVI,
2006, p. 78). O processo de desterritorialização pressupõe a situação
prévia de territorialização, seguida pela ideia de reterritorialização.
O efeito de territorialização expõe a interação de funções que produzem o sentido do habitual e do cômodo, que sofre o processo
de abandono através da desterritorialização para, em seguida, se
reterritorializar ao formar novos territórios - nunca voltando aos
antigos. A virtualidade é característica desse procedimento, exposta
por Deleuze como a “realidade da manifestação criativa”, colocando
a mostra variáveis que não estão em oposição ao real, mas ao atual
(DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 99). Alliez complementa ao dizer
que em toda multiplicidade há elementos atuais e virtuais: “não há
objeto puramente atual” (ALLIEZ, 1996, p. 49), ou seja, é possível
conceber construtos que têm a potência de serem atualizados.
A concepção de abstração, presente na “máquina abstrata”, não é
exposta como algo fora do mundo, mas um “real-abstrato” totalmente diferente de uma abstração ficcional (DELEUZE; GUATTARI,
2005, p. 142). O papel das singularidades virtuais e da natureza
diagramática da realidade é apreendida unicamente durante o pro359
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cesso de morfogênese, ou seja, antes que a forma final seja atualizada (DE LANDA, 2000, p. 36). A crítica à representação surge ao
se definir que “o diagramático ou a máquina abstrata não funcionam para representar, ainda que algo real, mas antes construir um
real que está por vir, um novo tipo de realidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 142). Isso porque as representações não apresentam
relações, que são efeito dos princípios de associação e ultrapassam
a experiência (ALLIEZ, 1996, p. 17). Um diagrama, apreendendo
a potência da máquina abstrata, produz intensidade, dinamismo e
efeitos de desterritorialização. Segundo Deleuze, a “máquina abstrata” traça linhas de contínua variação, como o diagrama de um
agenciamento7 (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 100). Brian Massumi oferece uma leitura da “máquina abstrata” que a distingue como
o que subordina o significado, no sentido de ser o agente responsável por seu desdobramento (MASSUMI, 1996, p. 17), ou seja, é um
operador do qual um diagrama formal de forças pode ser extraído.
Deleuze propunha, em suma, que pensar diagramaticamente não
consiste na resolução de problemas, mas na capacidade de problematização.
No ano de 1999 é editado o livro Diagram Diaries, que compila
textos e projetos baseados no método diagramático de Eisenman.
Moneo classifica a obra como “um esforço valioso de reconciliar
presente e passado” (2008, p. 181), da fase de interioridade à de exterioridade – da autonomia à heteronomia disciplinar, do exercício
com regras internas ao seu desdobramento a interferência de “textos” e referências externas. Somol, no comentário ao diagrama de
Eisenman, o descreve como um dispositivo disciplinar que é mais
performativo do que representacional – uma ferramenta para o
virtual (EISENMAN, 2001, p. 8). Um dos propósitos do uso do diagrama é se distanciar do processo tradicional de evidência do papel
do autor, “que poderia deslocar a forma das assumidas relações
necessárias de função, significado e estética” (EISENMAN, 2001, p.
51). No livro, Eisenman descreve o diagrama como um território de
práticas que evoluiu da ideia clássica de estrutura para o quadro
flexível de forças e relações a partir do pensamento deleuziano,
ou seja, de um quadro estrutural para um sistema instável, flexível
ou não forma(ta)do. Ao final do livro, são listadas as 39 diferentes
modalidades de processos – que são alocadas entre ferramentas
formais e conceituais – aplicados por intermédio da manipulação
diagramática nos projetos apresentados até a sua edição. Entre eles,
podemos citar a extrusão, a rotação, a torção, a repetição, entre
outros mais complexos.
Análise: conceitos, processos, técnicas e tecnologias.
A proposta de Deleuze está em acompanhar as mudanças de paradigma da ciência e da linguagem contemporâneas, para reinterpretar e expressar o mundo. A quantidade de conceitos que ele
incorpora à filosofia caracteriza o rigor com que tenta se afastar de
análises reducionistas, em direção a crítica de sistemas complexos.
360
7 Um agenciamento é uma rede de intensidade ou rizomática, exibindo consistência ou
efeitos emergentes que tangem a habilidade de auto-ordenar conjuntamente forças de
materiais heterogêneos (BONTA; PROTEVI, 2006, p. 54).
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Deleuze expõe na sua “ontologia” conceitos de grande amplitude,
tanto no seu escopo quanto para a sua compreensão: desterritorialização, abstração, virtualidade e a “máquina abstrata”. O seu modo
de criação conceitual - de retificação de metaesquemas teóricos,
como os de Leibniz e Foucault -, abre margem para interpretações
variadas do sentido de tradução aplicada para a arquitetura, enquanto é capaz de potencializar as extrações projetuais das exposições linguísticas – uma linha tênue que testa a compreensão da
intencionalidade de cada autor. A dobra, pela associação a estética
do Barroco, parece mais palatável tanto como metáfora para obras
curvas quanto substrato para a materialização de processos de
dobradura, além da atualidade do seu emprego em processos paramétricos de geração da forma, através de software computacional.
Porém, em sua “ontologia”, há uma representação/intencionalidade
especifica para cada conceito, que não é o mesmo da arquitetura.
Quando Deleuze expressa que o diagrama opera por matéria e por
função, não por forma, quer dizer que o seu substrato são inputs
de informações e dados – como o programa, as funções específicas,
o contexto, os materiais, conceitos e elementos arbitrários - para
o processo produtivo, dotados de capacidades auto-ordenadoras
devido a “máquina abstrata” - o agente responsável pelo desdobramento de significados e relações possíveis.
As similaridades entre os processos associados a dobra e ao diagrama estão no modo como foram compreendidos e aplicados na
arquitetura contemporânea: conceitos que potencializaram técnicas
ou como metáforas para projetos específicos. Peter Eisenman desenvolveu um aparato teórico com conceitos próprios a partir dos
já formatados pela filosofia - de modo mais fértil no processo do
diagrama. A dobra parece ter exercido a possibilidade de libertação
conceitual da rigidez cartesiana, trazendo a ideia de “evento” para
ser pensado conjuntamente. Com o diagrama, ele apresenta, além de
conceitos próprios, uma técnica particular que se converteu em um
método apto à ampliação de práticas compositivas através de regras
e sequências abertas de transformação. Ao utilizá-lo como dispositivo generativo para o projeto, ele se apoia na geometria, no caráter
não-hierárquico e na instabilidade formal, na potência virtual e na
indeterminação de seu desdobramento abstrato a partir do operador
de forças e relações que é a “máquina abstrata”. Ao atribuir camadas de importância específica para cada objeto, o diagrama surge
em seu discurso e prática de maneira central, mas corrobora a ideia
de uma técnica conceitual que não tem relação exclusivamente determinante com a forma. A apropriação do tema na obra do autor
pode, em alguns casos, ser utilizado como um princípio que gera
possibilidades de propostas formais e organizacionais, em outros,
pode servir apenas para coroar o discurso acerca da liberdade em
estabelecer associações concretas com relações virtuais.
É difícil elucidar até que ponto a questão causal das teorias apresentadas modificaram efetivamente os processos utilizados pelo
arquiteto, serviram como metáfora para um princípio gerador
ou como simples justificativas – uma retórica que não desvela o
que realmente pode motivar a manipulação da maneira como é
mostrada pela representação do processo. A teoria da dobra se
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transformou nas mãos do arquiteto: a construção temporal de um
evento que gera novas tipologias baseadas na própria morfologia
de dobradura. Para Eisenman, a manipulação ocorre a partir da
formação de sólidos e estruturas através de uma geometria um
pouco mais restrita, sempre lembrando o processo da dobradura de
papel. Apesar de, em alguns casos, se tratar de uma geometria pouco mais complexa, a sua manipulação ainda é limitada porque não
se utiliza o computador. Logo, a forma é um fator estruturante na
constituição dos elementos no projeto, assegurando que, ao partir
de uma lógica inerente a determinadas regras estabelecidas, produz uma série de relações e significados controlados que poderiam
ser apreendidos pelo observador através da ideia de afeto. Para o
arquiteto, a mesma teoria forneceu diretrizes para a manipulação
formal de um modo que quebrasse a rotina de geração baseada
na grelha cartesiana. Em seu trabalho, aparentemente, é através
da assimilação da teoria – principalmente a do diagrama - que foi
possível delimitar uma técnica particular que evoluiu através das
poucas tecnologias das quais se aproximou, complementando o uso
de diagramas ao da dobra e da posterior manipulação digital. Moneo corrobora essa duvida ao apontar que algumas das pesquisas
de Eisenman não partem de um diagrama generativo e, “o objeto,
enquanto resultado do processo, é o diagrama: isso equivale a afirmar que na origem não havia a noção de diagrama” (2008, p. 180).
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