João Duarte Lourenço HERMENÊUTICAS BÍBLICAS Da Palavra às palavras Em busca do ‘Sentido’ da Escritura UNIVERSIDADE CATÓLICA EDITORA LISBOA 2011 Índice Apresentação..................................................................................... 9 HERMENÊUTICAS BÍBLICAS ou JUDAICAS Introdução – Hermenêuticas judaicas...................................... 19 a) O centro das Hermenêuticas judaicas.................................. 20 b) Precisão terminológica........................................................ 22 1. Da Bíblia à formação da ‘Biblioteca’ judaica............................ 1.1. A formação da ‘Biblioteca’ do Judaísmo (literatura judaica).. 1.2. Enquadramento de referência.......................................... 1.3.Da metodologia à Hermenêutica..................................... 1.4.As Fontes............................................................................... 26 26 27 28 29 2.Centralidade da Escritura....................................................... 2.1. Centralidade cristológica.................................................. 2.2. Centralidade soteriológica................................................ 2.3. A centralidade da Palavra................................................. 33 35 36 37 3.A Hermenêutica..................................................................... 3.1. Fundamentação da Hermenêutica................................... 3.2. Os objectivos da Hermenêutica....................................... 3.3. O ‘lugar’ do processo hermenêutico................................. 3.4. O ‘modo’ do processo hermenêutico................................ 3.5. A metodologia do processo hermenêutico........................ 3.6. Os ‘destinatários da actualização’ hermenêutica................ 3.7. O ambiente cultural......................................................... 41 43 45 46 46 48 49 54 5 4.Hermenêuticas judaicas: Exegese ou Hermenêutica?............... 4.1. A Hermenêutica do Judaísmo antigo............................... 4.2.A Hermenêutica judaica como processo de ‘reconstrução’ da Escritura..................................................................... 4.3. A pluralidade das fontes................................................... 4.4. A transmissão das ‘Tradições Halákicas’........................... 4.5. A transmissão das ‘Tradições Hagádicas’.......................... 4.6. A fixação do Cânon......................................................... 56 58 5.A Escritura e a Sinagoga.......................................................... 5.1. A ‘centralidade’ da Escritura na Sinagoga......................... 5.2. Os ciclos de leitura da Torah na Sinagoga......................... 5.3. A relação entre Seder (leitura da Lei) e Haftarah............... 70 72 74 76 6.A liturgia sinagogal – o Targum.............................................. 6.1. Os procedimentos targúmicos.......................................... 6.2. O Targum e o Texto Massorético..................................... 6.3. Métodos de interpretação targúmica................................ 80 80 83 85 60 62 63 65 66 7.Os Targumim......................................................................... 87 7.1. Targum Onqelos ou Targum de Babilónia........................ 87 7.2. Targum Pseudo-Jonathan (Yerushalmi)............................ 90 7.3. O Targum como interpretação popular da Escritura........ 93 7.4. A doutrina da Escritura implícita no Targum................... 95 7.5. A actualização da Escritura no Targum............................ 101 8.A Torah como ‘pólo’ hermenêutico da Escritura...................... 103 8.1. A Torah como itinerário da fé bíblica............................... 104 8.2. A Torah e o Judaísmo rabínico......................................... 107 8.3. A Torah: fonte de santidade, justiça e amor...................... 114 9.Interpretação da Escritura nas Escolas: A Lei oral e a Lei escrita... 119 9.1. A Torah oral como tradição de vida.................................. 120 9.2. As Regras (Middot) hermenêuticas de Hillel..................... 123 9.3. As duas funções da Escritura no Judaísmo clássico........... 126 6 10.Os métodos estruturantes da exegese judaica......................... 128 10.1. O Midrash como método estruturante......................... 128 10.2. O método hagádico..................................................... 131 10.3. O método halákico...................................................... 132 10.4. Alguns exemplos de exegeses judaicas........................... 134 11.A Bíblia e os Movimentos (grupos) judaicos......................... 148 11.1. Exegese e Hermenêutica dos Saduceus......................... 148 11.2. Exegese e Hermenêutica dos Fariseus........................... 149 11.3. Exegese e Hermenêutica dos Essénios (Qumran)......... 151 11.4. Os métodos hermenêuticos.......................................... 154 12.A Santificação do ‘Nome’ como código hermenêutico.......... 157 12.1. Fundamentação teológica da identidade judaica........... 158 12.2. O estudo e a prática da Lei – fundamento da identidade judaica.................................................................................. 161 13.A leitura da Escritura na Literatura apocalíptica.................... 165 13.1. Da Lei (Torah) escrita à Lei oral................................... 166 13.2. Fundamentação bíblica dos textos apocalípticos........... 167 13.3. Princípios teológicos dos textos apocalípticos............... 168 13.4. O sentido da História.................................................. 170 13.5. Importância da Literatura apocalíptica......................... 171 14.A Teologia da Literatura judaica apócrifa.............................. 176 14.1. A questão de Deus nos escritos apócrifos..................... 176 14.2. A salvação dos gentios e de Israel................................. 178 14.3. A justiça retributiva de Deus........................................ 180 14.4. O ‘mundo presente e futuro’........................................ 181 7 Apêndice I As regras de Hillel e outros recursos exegéticos do judaísmo........ 183 Apêndice II Percursos e Instrumentos de uma Metodologia bíblica................ 188 a) Etapas e percursos................................................................... 188 b) Dicionários e Enciclopédias de conceitos fundamentais.......... 191 c) Histórias do mundo bíblico e do Judaísmo............................. 193 Anexo Vocabulário específico da literatura judaica................................. 195 Bibliografia................................................................................. 199 8 Apresentação A Hermenêutica representa um dos mais notáveis domínios do pensamento ao longo dos séculos, dela tendo-se ocupado notáveis pensadores que vão desde Aristóteles a Heidegger, sem esquecer Schleiermacher, Gadamer e, mais recentemente, o nome incontornável de Paul Ricoeur. A Hermenêutica está presente e tem um lugar especial em todos os campos do saber, mas é sobretudo nas áreas e nas ciências humanas que a sua presença e importância se torna imprescindível. Da filosofia ao direito, da sociologia à teologia, da história às ciências bíblicas, a Hermenêutica não é apenas uma componente das questões da linguagem e nem se reduz a uma metodologia científica. Muito mais que isso, ela é uma peça fundamental na busca do sentido e na compreensão dos conteúdos que todas as ciências encerram em si. Desvendar esses mesmos conteúdos ou abrir-nos caminho para os compreender é um dos objectivos fundamentais da ciência hermenêutica. Uma das áreas mais ricas e importantes no âmbito dos estudos bíblicos é aquele que diz respeito à Hermenêutica enquanto busca e compreensão do sentido da Palavra. Sendo a Palavra de Deus uma realidade viva em busca de sentido permanente para iluminar o Homem e as Comunidades crentes, essa Palavra faz-se significante em todas as gerações e assume-se como Palavra de sempre. O seu ‘dizer’ carece de contexto e de interlocutores, ou seja, é uma Palavra em busca de sentido, um sentido que dê vida aos crentes, sejam eles singulares ou comunidades. Esta busca de sentido cruzou a história e está presente em todas as comunidades que se encontram com a Palavra, que fazem da Palavra fundamento e expressão crente do seu agir. A Palavra deixa-se assim envolver numa gramática de questões que lhe são postas pelas comunidades e abre-se a uma pluralidade de sentidos 9 Apresentação que lhe são requeridos por aqueles que se sentem interrogados por ela. É neste cruzamento de Palavra versus sentido que acontece a Hermenêutica bíblica, marcada pela história (acontecimentos) e disposta a iluminar essa mesma história que a interroga e confronta. Este trabalho pretende, antes de mais, traçar uma panorâmica, mesmo que breve e sucinta, sobre o percurso histórico da Palavra e, ao mesmo tempo, colocar em evidência alguns dos eixos que esse percurso seguiu na própria formulação do seu sentido. Esta problemática vem assumindo cada vez maior relevância, tal como se pode constatar pelos próprios documentos da Igreja, mormente da Pontifícia Comissão Bíblica, como são os textos de A Interpretação da Bíblia na Igreja (1994), O Povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã (Maio de 2001) e agora, recentemente, com a publicação da Verbum Domini, na sequência do Sínodo dos Bispos de 2008. Ao contrário do que habitualmente sucede ao fazermos da Sagrada Escritura um referencial de receitas e um manual de doutrinas, a Hermenêutica ajuda-nos a sentir a Bíblia como a experiência do Povo de Deus, num diálogo de permanente procura e resposta, que dá sentido à nossa vivência e caminhada de fé. A distância cultural entre o tempo da Bíblia e o tempo da nossa experiência, exige de nós uma perspectiva pró-activa na busca do sentido do texto e da sua significação para a vivência da fé. Por isso, a Hermenêutica leva-nos a fazer um percurso com a Escritura que remonta ao tempo da sua composição, tem o seu centro em Jesus Cristo e no Seu mistério pascal para se tornar significante para cada um de nós e para a Comunidade eclesial, enquanto depositária da Palavra de Deus e que por ela se deixa interpelar. Neste percurso, a centralidade cristológica deve estar sempre presente e é ela que medeia os dois extremos deste processo: o texto e o leitor crente. Este processo não é uma novidade da Igreja; ela recebeu-o já da tradição judaica que, a partir da Escritura construiu um universo de leituras crentes, com gramáticas próprias, mas todas elas ávidas de sentido e de expressões vivenciais de fidelidade à Palavra. São assim as inúmeras leituras judaicas do Antigo Testamento que nos abrem caminhos que ajudaram a própria Comunidade cristã a ler e a acreditar a vida de Jesus. Bastaria para tanto aludir, mesmo que de passagem, à interpretação targúmica da Sinagoga, ao Midrash interpretativo da Escola rabínica (Beth haMidrash), ao comentário dos Essénios de Qumran, ao recurso alusivo dos 10 Apresentação textos apócrifos, às constantes citações normativas dos tratados da Mishná e do Talmud, incluindo a própria leitura que os tradutores da Septuaginta já tinham vivido e que testemunha igualmente uma pluralidade de percepções hermenêuticas, todas elas motivadas na busca e na compreensão do autêntico sentido da Palavra que traduza a fidelidade da comunidade crente à aliança com Deus. 1. O que é a Hermenêutica? Antes de abordarmos os contributos específicos da Verbum Domini para a questão da Hermenêutica, impõem-se algumas considerações de carácter geral sobre o tema em si. Importa dizer, antes de mais, que não estamos perante uma questão clássica que diga apenas respeito aos estudos bíblicos nem se reduz a um problema de metodologias de abordagem da Escritura. A Hermenêutica é muito mais que isso. A Verbum Domini, na sequência da Dei Verbum, aponta-nos um conjunto de elementos e de atitudes que devemos assumir na descoberta do verdadeiro sentido da Escritura, da relação intrínseca entre Palavra e Fé, acerca do ‘lugar’ teológico onde esta relação acontece e qual deve ser o centro que medeia essa relação e lhe confere sentido. Podemos dizer, tomando uma imagem que me parece bem expressiva, que a Hermenêutica pode comparar-se a uma árvore frondosa que tem como suporte fortes raízes e um tronco consistente, embora aquilo que nos chama a atenção é a sua copa e os frutos que produz. Das raízes veterotestamentárias emergiu o verdadeiro tronco que é Jesus Cristo de onde brotam os frutos e as folhas medicinais que nos curam e nos reconciliam com o Pai. São esses frutos e essas folhas que procuramos através do processo hermenêutico, reencontrando o sentido dos frutos que o tronco, o mistério pascal, nos oferece. Mas há que procurá-los entre as ramagens das palavras, das imagens, das figurações, dos contextos sociais e vivenciais de cada um, tendo presente a realidade que o hagiógrafo acreditou, viveu e nos transmitiu. Cada texto da Escritura encerra, em si mesmo, uma espécie de percurso ‘trifásico’ (em três tempos): é algo acreditado, vivido e testemunhado. É o sentido do testemunho do ontem que importa descobrir para que possa continuar a ser hoje caminho e proposta de salvação. O que a Verbum Domini nos oferece é um conjunto alargado de orientações que nos possibilitam descobrir e acolher esse testemunho. 11 Apresentação Neste contexto, podemos dizer que a Exortação Verbum Domini nada acrescenta ao que a Dei Verbum havia já proposto no seu n.º 12 quando, numa das afirmações mais consistentes e mais expressivas, nos diz de forma clara e explícita: “Como, porém, Deus falou na Sagrada Escritura por meio de homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras”1. Partindo desta afirmação, imediatamente podemos deduzir que aos crentes, eles que são os intérpretes da Palavra, mormente aos Pastores na Comunhão da Igreja, cabe-lhes uma importante tarefa na busca do sentido da Palavra e na explicitação do seu significado na vida da Igreja. Embora saibamos que nesta tarefa têm uma função importante o Magistério e aqueles que se dedicam ao estudo da Palavra de Deus, na verdade o serviço hermenêutico da Palavra não se esgota neles, pois ela é missão de toda a Igreja, de cada comunidade e de todos os crentes. A Verbum Domini reforça essa responsabilidade e oferece-nos o contexto em que ela deve decorrer quando afirma: ‘só pode ser feita na Fé eclesial que tem o seu paradigma no sim de Maria’2. Que sentido tem aqui a expressão ‘na Fé eclesial’? É sobre isso que nos vamos debruçar agora, fazendo como que um regresso às origens da tradição cristã. 1 2 12 Cf. Dei Verbum, n.º 12. Verbum Domini, n.º 29.