lacta 100 anos, muito prazer

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Lacta 100 anos,
muito prazer
Apresentação
O chocolate primeiro
era um enigma; depois
se tornou moeda; séculos mais tarde se tornaria mania de
nobres e endinheirados, até chegar ao século 21 como uma
iguaria acessível e desejada por quase todos (sim, acredite,
há quem não goste de chocolate!). As suas indústrias giram
bilhões de dólares, empregando milhares de trabalhadores,
de agricultores a técnicos em química ou robótica, de especialistas em embalagens a gourmets. Em torno do fruto do
cacaueiro criou-se, ao longo dos séculos, uma verdadeira
roda da fortuna. A “descoberta” do chocolate é, por si só,
uma epopeia que percorre milênios de história, desde os primeiros sinais de seu uso, entre os olmecas, uma civilização
pré-colombiana que teria vivido entre 1.500 e 400 a.C., próximo ao Golfo do México. Seria preciso muita inventividade e
a colaboração de muitas gerações para que, em algum momento dessa evolução, o segredo do cacau fosse revelado. E,
curiosamente, ele não estava na polpa adocicada do fruto,
mas nas amargas sementes que, após serem torradas, exalavam um aroma delicioso e sugestivo.
Na primeira parte desta publicação o leitor será apresentado aos sucessivos passos até
chegarmos aos tabletes de chocolate dos dias de hoje, passando pela beberagem amarga e
apimentada tão valorizada por olmecas, maias e astecas, e pela bebida adoçada e quente,
servida em requintadas peças de porcelana nos salões mais nobres da Europa.
Por meio de trechos de ficção mesclados à história, o leitor será convidado a seguir os
passos de frei Bernardino de Sahagún, um dos primeiros a relatar o uso do cacahuatl entre
os povos americanos; acompanhará o meticuloso preparo de uma receita exclusiva de chocolate com jasmim criada na Florença renascentista; e, por fim, acompanhará uma dupla
descoberta tecnológica realizada pela família Van Houten, e que propiciaria a transformação
do chocolate líquido em tabletes comestíveis, permitindo, assim, o surgimento das primeiras
indústrias de chocolate.
Uma dessas primeiras indústrias de chocolate é brasileira, nascida há cem anos na cidade
de São Paulo como Societé Anonyme des Chocolats Suisse de S. Paulo. Mas foi com o nome
de Lacta que faria história no Brasil. Essa rica trajetória, relatada na segunda parte, acompanha as transformações pelas quais passou o próprio país, que em um século de rural se
tornaria urbano, de eterna promessa se confirmaria como um dos emergentes deste século
21, de exportador de cacau passaria a ser o sexto maior mercado consumidor de chocolates
do mundo.
Em 1996 a Lacta foi adquirida pela Kraft Foods. Essa aquisição traria novo vigor e visibilidade às consagradas marcas da empresa, capazes de provocar água na boca com sua simples
menção. Por exemplo, Sonho de Valsa, um nome definitivamente associado ao bombom
mais consumido por aqui; Diamante Negro, outra marca que dispensa apresentações; o mesmo vale para Laka, que se tornaria sinônimo de chocolate branco; ou Bis, provavelmente o
primeiro chocolate que as mães costumam dar aos seus filhos por aqui. Além desses quatro
grandes ícones do mercado consumidor brasileiro, centenas de novos modelos de ovos de
Páscoa encantam crianças e adultos a cada ano. A mobilização que antecede este feriado é
intensa e vem se revelando fundamental para a consolidação da indústria do chocolate no
Brasil.
Não é fácil fazer um bom chocolate, mas todos reconhecem quando têm um derretendo na língua. Como o chocolate é percebido pela nossa língua? E desta, como a percepção
atinge o cérebro, desencadeando aquelas sensações de prazer tão conhecidas de todos – os
segundos preciosos que se seguem à degustação do chocolate? O terceiro capítulo especula
sobre os “segredos químicos” do chocolate e se encerra mostrando as etapas que envolvem
a sua fabricação, da fermentação da polpa à temperagem da massa, do acréscimo de outros
ingredientes à pesquisa por novos sabores e formulações.
Uma empresa completar um século de existência não é algo corriqueiro – nem aqui, nem
no resto do mundo. É um formidável atestado de confiança, renovado dia após dia por consumidores satisfeitos, tanto pela constância na qualidade das marcas tão queridas quanto
pela empresa não se acomodar no sucesso já estabelecido. Consumidores são, por definição,
insaciáveis. Boas indústrias também. Querem sempre alargar novas fronteiras de sabor, propor sensações ainda não experimentadas, criar novas manias. Se elas forem, além de tudo,
deliciosas, que sejam muito bem-vindas. É o que a Lacta espera para seu próximo centenário:
seguir oferecendo suas marcas consagradas por gerações de brasileiros, acrescentando, a
cada ano, novidades no maravilhoso mundo de sabores que nasce, há muitos séculos, da
semente torrada de uma pequena árvore nativa das Américas.
SUMÁRIO
Da
América
para o mundo
Brasilentra na Valsa
| 06
| 34
Primeiras indústrias, primeiros chocolates 35
Uma fábrica para a Lacta
45
A lapidação de um diamante
66
O bombom do Brasil
71
Bis, Bis ...
84
A nova fábrica no Brooklin
88
Como a Páscoa virou Lacta
94
O reflexo branco
105
A Kraft chega ao Brasil
120
Chocolate :
muito prazer
|132
Referência
|157
agradecimentos
|158
Créditos de imagens
|159
ficha técnica
|161
DA
AMÉRICA
PARA O
Cidade de Tlatelolco, Vice-Reino do México, 1540.
Frei Bernardino de Sahagún chamou Alonso,
o noviço recém-chegado da Universidade de Salamanca
QUE VIERA para dar aulas de latim no Colégio real de Santa Cruz, EM
TLATELOLCO. “Vamos dar uma volta PELA cidade, você precisa
conhecer os astecas”, CONVIDOU O FREI. Com o vigor de seus 41 anos, dos
quais os últimos 11 viveRA no México, o religioso JÁ cruzara os
longos caminhos que ligavam o planalto mexicano – ONDE VIVIA O
POVO ASTECA – ao porto de Veracruz e às ricas regiões produtoras de
cacau, situadas mais ao sul DO PAÍS. ESSAS TERRAS ERAM ANTES
PERTENCENTES AOS MAIAS, POVO SUBJUGADO PELO ESPÍRITO GUERREIRO DOS
ASTECAS, E ALI começava uma densa floresta tropical. AGORA
ERAM OS PRÓPRIOS ASTECAS QUE SOFRIAM PARA SE ADAPTAR À REALIDADE
DOS NOVOS CONQUISTADORES, OS EUROPEUS. Sem dúvida o clima da região
antigamente habitada pelos maias era muito diferente do da árida
MUNDO
Tlatelolco, cidade-irmã da Tenochtitlan, a antiga capital
do Império asteca. Ali, a vida girava em torno do grande mercado,
o lugar perfeito para que o jovem missionário fosse apresentado
aos paradoxos de um povo que tentava aprender as novas
regras dos colonizadores e, ao mesmo tempo, lutava para não
perder a herança de seus antepassados.
Fluente em nahuatl, a língua local, frei Bernardino era
bem popular entre os nativos, que já estavam acostumados aos longos e meticulosos interrogatórios conduzidos
por ele ou por alguns de seus melhores alunos do Colégio
Real de Santa Cruz. A escola havia sido a primeira a ser erguida na nova colônia e recebia os filhos da elite asteca e
dos primeiros funcionários públicos e fazendeiros vindos
da Europa que se arriscavam por aquelas terras. O frei
já acumulava na biblioteca do colégio centenas de páginas com descrições detalhadas, depoimentos e muitos
desenhos copiados de livros antigos sobre a população
local e seus costumes. Sua tática, em qualquer lugar que
fosse, era sempre procurar pelos mais velhos, aqueles que
ainda conservavam na memória os mitos fundadores daquele povo, que, por sua vez, parecia caminhar rapidamente para a extinção – ou para a completa assimilação.
Assim que desceram as escadas do colégio, os dois foram cercados por crianças oferecendo abacates, limões,
pimentas e outras pequenas frutas ainda desconhecidas
por Alonso, que gaguejava em espanhol tentando acompanhar os passos vigorosos de Bernardino de Sahagún. O
frei tinha acabado de parar diante de uma barraca naquele instante.
O mercado de Tlatelolco não era nem a sombra do que
fora há cerca de 20 anos, quando Hernán Cortés e seus
600 soldados entraram na cidade vizinha, Tenochititlan:
uma massa compacta de cinco mil barracas e mantas
coloridas estendidas, por onde circulavam diariamente
mais de 50 mil pessoas. Depois das epidemias que dizimaram cerca de um quinto da população e as deposições
e mortes dos imperadores Montezuma II e Cahuatemoc,
a cidade tivera tanto a sua população como a sua importância incrivelmente diminuídas.
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08
Ainda assim, o movimento na feira era intenso e
Alonso se espantou com a quantidade e variedade de
produtos: flores e frutos exóticos, finos tecidos de algodão, cestos trançados de palha, cabaças, cuias e utensílios domésticos feitos de madeira, cascas de tartaruga e
afiadas machadinhas de pedra – algumas delas usadas
em rituais de sacrifícios humanos, agora proibidos após
a chegada dos espanhóis. A paisagem era ainda composta por braseiros, sobre os quais sempre havia algum
alimento sendo oferecido, de milhos coloridos a lagartas,
animal que naquela terra era considerado uma iguaria.
Um aroma forte emanava daquela pequena barraca onde os dois haviam parado. O frei trocou algumas
palavras com a vendedora, enquanto esta lhe mostrava
alternadamente diferentes grãos escuros, parecidos com
amêndoas, que Alonso jamais vira antes. Depois de cheirar vários tipos, Bernardino escolheu um deles, mostrando-o para o pupilo: aquilo era cacau. Enquanto a vendedora de longos cabelos negros e pele castigada pelo
sol dava ordens a uma criança, que correu para buscar
alguma especiaria na barraca vizinha, Bernardino dirigiu-se novamente para Alonso: “Está na hora de conhecer
a bebida mais importante dessa terra: o cacahuatl. E se
você andou se esforçando nas aulas de nahuatl, deve saber do que estou falando”. O noviço rapidamente confirmou sua fama de aluno aplicado, informada por seus
superiores do convento de Salamanca: “Já sei que atl é
água, frei, mas o resto da palavra deve ser essa semente
escura que o senhor cheirou”.
Agito no mercado: entre frutas, flores e produtos exóticos, o forte aroma do
cacahuatl pairava pelo comércio. (Afresco, 2007)
Bernardino de Sahagún pegou uma das sementes e
apresentou-a a Alonso: “IsTo aqui, para esse povo,
é mais do que uma bebida muito fina e cara: é dinheiro!
Há menos de 30 anos, antes da nossa chegada, com
cem boas sementes desTas se comprava um escravo!
Trinta delas valiam um peru”, riu o frei,
devolvendo a semente à vendedora, que a juntou ao
punhado que separara para preparar a bebida.
Alonso acompanhou com os olhos a cacahuatera, que
se ajoelhou diante de uma espécie de mesa baixa, feita
de pedra, com formato côncavo, a qual frei Bernardino
acabara de chamar de metate. Com a ajuda de uma pedra menor, mais arredondada, a vendedora moeu as sementes com cuidado para que as partículas não se perdessem, revirando-as com uma espátula, até reduzi-las a
pó. Depois acrescentou uma pasta esbranquiçada, que
Alonso rapidamente reconheceu como sendo de milho,
alimento do qual ele forçosamente teria de aprender a
gostar. Tudo ali girava em torno do milho e daquele tal
de cacau, que agora estava prestes a experimentar.
Mas ainda havia mais trabalho pela frente: a vendedora agora transferia aquela massa escura para duas vasilhas feitas de cabaça, ricamente desenhadas. Era preciso
reconhecer que esses selvagens tinham senso artístico,
pensou Alonso, sem ousar se referir nesses termos a seu
superior, que parecia nutrir uma curiosidade sem fim
por eles. Em uma das cabaças, viu que a mulher colocou
pétalas de uma flor branca e amarela – que mais tarde
descobriria se chamar izquixochitl. Seu aroma era semelhante ao das rosas, e era o tempero preferido de frei
Bernardino de Sahagún e de muitos astecas. A mulher
também acrescentou à mistura o que Alonso julgou serem pimentas vermelhas e verdes. Na outra cabaça – que
descobriu que estava sendo preparada para ele –, a mulher triturou algumas sementes que deixaram sua mão
completamente vermelha: era urucum, conhecido ali
como achiote, outra novidade do Novo Mundo. Juntou
outro punhado de pimentas e socou tudo, acrescentando água fria.
Depois, a vendedora pegou uma vasilha vazia e lançou aquela beberagem, uma escura e outra vermelha
como sangue, de um vaso para outro, alternadamente, o
que aos poucos provocou o surgimento de uma densa
espuma nos dois líquidos. O ritual chamou a atenção de
muitos passantes, gente pobre que circulava pelo mercado de Tlatelolco buscando conseguir favas de feijão
ou tortillas em troca de algum serviço. Para eles, um
cacahuatl era uma bebida inacessível, mas eles podiam,
pelo menos, acompanhar a sua preparação.
Por fim, os dois receberam suas bebidas. Alonso observou como seu mestre fazia e buscou repetir seus gestos: pegou a cabaça com as duas mãos, buscando acomodar na esquerda uma pequena vareta. “O aquauitl é
usado para manter a espuma dessa bebida maravilhosa.
Você vai ver que, bebendo isso, só terá fome depois da
hora do Ângelus. Bem-vindo ao México!”. Dizendo isso,
frei Bernardino de Sahagún, o cronista que ao longo de 30
anos de trabalho dedicado produziria mais de 2.400 páginas, propiciando a mais extensa visão daquela sociedade asteca que desaparecia diante dos seus olhos, bebeu
com prazer sua cumbuca, chegando a respingar um pouco do líquido em sua barba, um detalhe de sua aparência
que chamava muita atenção naquele lugar. Tomando coragem, Alonso sorveu um grande gole da famosa “água
de cacau” e, quase imediatamente, cuspiu a beberagem
com espalhafato.
“Mas é amargo como o diabo! E queima a boca! Por
Deus, como se pode gostar disso?”
Frei Bernardino riu enquanto pedia para a vendedora
corrigir aquele cacahuatl, fazendo-o à moda criolla, ou
seja, acrescentando melado de cana à mistura. Desta vez,
Alonso consentiu: “É mesmo uma ótima bebida, apesar
de bastante amarga”.
Ao que o frei respondeu com um tom professoral:
“Quem disse a você que o diabo é amargo? Talvez ele prefira se esconder no açúcar...”.
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Lacta 100 anos, muito prazer
UMA BEBIDA
DOS
DEUSES
Sementes que valem ouro: mais do que matéria-prima para a bebida,
o cacau entre os astecas e maias era também moeda de troca.
A vendedora asteca do mercado de Tlatelolco era herdeira de uma relação muito especial
que os primeiros habitantes do continente americano haviam estabelecido com dois produtos essenciais de sua culinária: o milho e o cacau. Os dois alimentos já eram apreciados há
muito tempo, desde a época dos olmecas, que viveram entre 1.500 e 400 a.C. na região onde
hoje se localiza o México. Eles foram os primeiros a fazer uso desses ingredientes, sendo que
o cacau provavelmente era consumido apenas na forma de suco de polpa, que não guarda
nenhuma semelhança com o gosto do chocolate. Era, naquela época, nada mais que uma
fruta de uma árvore pequena da floresta, que oferecia um suco refrescante e esbranquiçado
conhecido como kakawa, palavra que, mais tarde, se transformaria em “cacau”.
Os olmecas deixaram como marcas de sua civilização grandes esculturas em regiões do
Obtida a massa de cacau, o milho foi adicionado para
tornar a bebida mais consistente, e as especiarias foram
acrescentadas para equilibrar, com seus aromas e sabores, o forte amargor das sementes torradas e moídas. Ao
longo do tempo, os maias aprenderam a condimentar o
cacau com baunilha, pimentas das mais variadas formas
e intensidades de ardor, além de algumas vezes adoçarem a bebida com mel de abelhas.
O arqueólogo Cameron McNeil, estudando vasos
maias descobertos na atual Honduras, encontrou dois
deles contendo respectivamente ossos de peixe e de peru,
os quais continham traços de cacau. As análises comprovaram que o cacau era usado como tempero de alimentos desde 450 a.C.
A razão para que essa mistura amarga tenha caído no
gosto da população da época só veio a ser descoberta no
século 20: a semente de cacau (e não sua polpa) possui
alcaloides, cafeína e teobromina, substâncias que combinam perfeitamente com nossos neurorreceptores cerebrais, estimulando ondas de satisfação e os sentidos. Mas,
mesmo sem saber da existência desses componentes, os
maias percebiam que aquela bebida funcionava muito
bem como revigorante.
Golfo do México, mas nenhum documento escrito. Além do milho, cultivavam feijões, vários tipos de abóboras, uma grande variedade de pimentas e abacates. O cacau brotava nas
matas mais densas e úmidas, com os frutos nascendo diretamente de seus galhos, sempre ao
abrigo de árvores maiores.
Embora o milho fosse cultivado no continente americano desde 5.000 a.C., uma importante descoberta aconteceu em algum período do segundo milênio antes da era cristã, proporcionando a este cereal uma relevância que só se rivalizaria, no futuro, com a do cacau: a
invenção do processo de nixtamalização, que consiste em cozinhá-lo com um pouco de cal,
cinzas de madeira ou conchas, deixando os grãos imersos em líquido de um dia para o outro.
Isso permitia que a casca transparente que protege o grão se desgrudasse. O resultado desse
processo é o nixtamalli (nextli = cinzas; tamalli = farinha de milho), uma massa de milho
macia e fácil de ser trabalhada com as mãos.
Essa descoberta foi tão importante que o milho se tornou o principal ingrediente da alimentação de todos os povos da América Central. Graças a ela, os povos americanos haviam
desenvolvido o pão, uma base de amido complementada com uma proteína – que podia
ser peru, peixe, coelhos e até cachorros. Esses povos não conheciam vacas, nem porcos ou
galinhas. Esses animais haviam chegado com os espanhóis, junto dos canhões, dos cavalos,
da cruz... e da varíola.
Com o cacau aconteceu o mesmo que o milho: foram reveladas potencialidades até então despercebidas naquele fruto. A “face oculta” do cacau foi provavelmente desvelada pelos
O
cacau entre
os maias
maias, povo sucedâneo aos olmecas na mesma região onde cresciam os cacaueiros. Segundo
conjecturam Sophie e Michael Coe no livro The True History of Chocolate, em algum momento perdido na antiguidade pré-colombiana, certo cozinheiro maia, curioso com o gosto
amargo e adstringente deixado na boca pelas sementes do cacau, decidiu mantê-las fermentando em sua própria polpa, talvez com o intuito de criar uma versão de chicha, a bebida
alcoólica produzida a partir da fermentação da saliva no caldo com milho. Só que, em vez de
a fermentação gerar outra bebida, as sementes absorveram parte do líquido. O próximo passo foi torrar essas sementes fermentadas até que delas exalasse um cheiro bastante marcante.
Nessa etapa, certamente, já se estava bem próximo de se conseguir um pó que pudesse ser
moído e misturado à água.
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Estátua maia apresentando o cacau: a oferta
de alimento aos deuses era um dos elementos
tradicionais da religião maia.
Entre os anos 250 e 900 d.C. a civilização maia viveu seu
apogeu, com diversas cidades-estado em permanente
estado de guerra, disputando a hegemonia umas com
as outras. Cada uma buscava erguer pirâmides e cidades
mais imponentes do que a outra, com templos, palácios,
esculturas e murais magníficos; além disso, criaram um
calendário lunar bastante preciso. Uma delicada cerâmica deixou diversos testemunhos do esplendor da civilização maia.
Entre o povo maia, a bebida feita com sementes torradas de cacau era consumida especialmente nas festas
chamadas “lava-pés”, oferecidas por algum pochteca, a
poderosa classe dos comerciantes, para celebrar a chegada de uma caravana. O anfitrião, tendo notificado seus
parceiros, sócios e clientes sobre a chegada em segurança
das mercadorias vindas de lugares distantes, convidava
os principais habitantes de sua vila para um jantar cerimonial, com comidas requintadas e oferendas aos deuses
do fogo e do comércio (que, não por coincidência, era
o mesmo deus do cacau!). Nessas festas, o cacau recebia atenção especial e era servido em cabaças ao final da
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Lacta 100 anos, muito prazer
refeição, junto com um canudo de tabaco para fumar.
Uma dessas festas foi presenciada – e, claro, ricamente
documentada – pelo atento frei Bernardino de Sahagún.
O consumo da bebida de cacau entre os maias vem se
revelando por meio das recentes pesquisas mais ancestral
do que se supunha. Uma das descobertas mais notáveis
aconteceu em 1984, em Río Azul, na Guatemala: encontrou-se uma tumba com equipamentos para o consumo
da bebida. Em algum momento do século 6, o corpo de
um governante de meia-idade foi deixado em sua tumba
junto com 14 vasos, incluindo alguns cilíndricos e outros
com três pés. Foram encontrados também alguns anéis
que possuíam um recipiente em seu interior, indicando
que continha algum tipo de líquido. Um deles era dotado de uma alça, onde se pôde identificar o hieróglifo
equivalente à palavra “cacau”. Quando esses vasos foram
examinados nos laboratórios da fábrica de chocolates
Hershey´s, nos Estados Unidos, descobriu-se que continham teobromina e cafeína, duas substâncias que juntas
são encontradas unicamente no cacau, dentre todas as
espécies de plantas conhecidas pelos primeiros americanos. Outras pesquisas revelaram vestígios da planta em
vasos datados de 1.900 a.C. na região onde atualmente é
Chiapas, no México.
A própria origem do nome “chocolate”, tanto pode
ter sido derivada dos astecas, onde a bebida era conhecida como cacahuatl, quanto dos maias. Segundo o especialista em cultura maia, Dennis Tedlock, citado no
livro The True History of Chocolate, durante os banquetes
e dias festivos era comum os vizinhos se convidarem para
chokola’j, uma expressão que significa “beber chocolate
junto”.
Mas o futuro do cacau seria ainda mais grandioso
do que seu passado. E com uma influência muito mais
abrangente do que poderiam supor o frei Bernardino e
seu discípulo, ainda concentrados em suas cuias de cacahuatl no mercado de Tlatelolco. Chegou a hora da preciosa semente cruzar o Oceano Atlântico para conquistar
o Novo Mundo. Mas, antes disso, o cacahuatl precisaria
passar por uma pequena transformação: tornar-se doce.
A
Doce costume: a pintura de Jean Troy Francois mostra o hábito
recém-adquirido entre as mulheres criollas de tomar o chocolate
quente e adoçado. (Gravura em metal, 1723)
Chocolate todo dia: o consumo da bebida era observado até mesmo
em plena missa, quando as senhoras de origem europeia eram servidas por seus empregados. (Óleo sobre tela, séc. 18)
“europeização” do cacau
A transformação aconteceu em Chiapa Real – hoje San
Cristóbal de las Casas, no México –, uma cidade colonial
cercada por centenas de vilas habitadas por descendentes dos maias, que não tinham permissão para permanecer na cidade até a noite. A província de Chiapas, desde
a época de domínio asteca, era uma das grandes produtoras de cacau, especialmente a região de Soconusco,
próxima à costa banhada pelo Oceano Pacífico na atual
divisa entre o México e a Guatemala.
Essa região foi tomada dos maias pelos astecas em
1502, e seu maior interesse era justamente o acesso às
plantações de cacau de alta qualidade de Soconusco. O
tributo de guerra cobrado aos maias foi estabelecido em
cacau: 200 fardos anuais de sementes e 800 cabaças de
chocolate para beber eram levadas até os armazéns reais
em Tenochtitlan, capital asteca. De acordo com o cronista espanhol frei Toribio de Benavente, um fardo de cacau
era o equivalente a 24 mil amêndoas, e representava o
máximo de peso que um carregador conseguia levar às
costas. As civilizações pré-colombianas não possuíam
nenhum tipo de veículo ou animal de tração. Todas as
distâncias eram percorridas a pé.
O bispo de Chiapa Real, segundo o relato do viajante Thomas Gage, que andou pela região entre 1625 e 1637
como missionário dominicano, incomodou-se com o hábito de algumas damas da sociedade criolla – nome dado
às famílias originárias da Espanha que habitavam a “Nova”
Espanha – de consumirem seu chocolate, servido quente e adoçado em plena missa. O religioso achou aquela
atitude desrespeitosa, embora as damas alegassem que
se sentiam muito fracas para enfrentar as longas orações
e suas homilias sem a ajuda de uma xícara da bebida trazida por serviçais. O bispo tentou primeiro exortar os fiéis a abandonarem esse mau hábito. Exasperado por ver
suas queixas caírem no vazio, fixou na porta da Catedral
um comunicado excomungando todo aquele que comesse ou bebesse na casa do Senhor durante os serviços
religiosos. Gage e seu superior dominicano tentaram demover o bispo de sua intenção, mas foi inútil. As damas
criollas, revoltadas, passaram a frequentar as missas dos
conventos, provocando abertamente um boicote às ministradas pelo bispo que, por sua vez, passou a ameaçar
de excomunhão aqueles que se recusassem a frequentar
os ofícios religiosos realizados na Catedral.
Pouco tempo depois, o bispo adoeceu, justamente
após beber uma xícara de chocolate trazida por uma de
suas pajens. O gosto forte do chocolate, adoçado à moda
criolla, ajudou a disfarçar o veneno que foi lançado à bebida, como vingança pelas ameaças de excomunhão. O
episódio originou um dito popular que se espalhou ao
longo do século 17 pela Colônia: “Tome cuidado com o
chocolate de Chiapas”.
O episódio retrata o quanto o chocolate, bebida americana feita a base de sementes de cacau e conhecida
entre os nativos como cacahuatl, já devidamente adoçado com cana-de-açúcar e temperado com baunilha e
pimentas, havia conquistado rapidamente os espanhóis.
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