Lacta 100 anos, muito prazer Apresentação O chocolate primeiro era um enigma; depois se tornou moeda; séculos mais tarde se tornaria mania de nobres e endinheirados, até chegar ao século 21 como uma iguaria acessível e desejada por quase todos (sim, acredite, há quem não goste de chocolate!). As suas indústrias giram bilhões de dólares, empregando milhares de trabalhadores, de agricultores a técnicos em química ou robótica, de especialistas em embalagens a gourmets. Em torno do fruto do cacaueiro criou-se, ao longo dos séculos, uma verdadeira roda da fortuna. A “descoberta” do chocolate é, por si só, uma epopeia que percorre milênios de história, desde os primeiros sinais de seu uso, entre os olmecas, uma civilização pré-colombiana que teria vivido entre 1.500 e 400 a.C., próximo ao Golfo do México. Seria preciso muita inventividade e a colaboração de muitas gerações para que, em algum momento dessa evolução, o segredo do cacau fosse revelado. E, curiosamente, ele não estava na polpa adocicada do fruto, mas nas amargas sementes que, após serem torradas, exalavam um aroma delicioso e sugestivo. Na primeira parte desta publicação o leitor será apresentado aos sucessivos passos até chegarmos aos tabletes de chocolate dos dias de hoje, passando pela beberagem amarga e apimentada tão valorizada por olmecas, maias e astecas, e pela bebida adoçada e quente, servida em requintadas peças de porcelana nos salões mais nobres da Europa. Por meio de trechos de ficção mesclados à história, o leitor será convidado a seguir os passos de frei Bernardino de Sahagún, um dos primeiros a relatar o uso do cacahuatl entre os povos americanos; acompanhará o meticuloso preparo de uma receita exclusiva de chocolate com jasmim criada na Florença renascentista; e, por fim, acompanhará uma dupla descoberta tecnológica realizada pela família Van Houten, e que propiciaria a transformação do chocolate líquido em tabletes comestíveis, permitindo, assim, o surgimento das primeiras indústrias de chocolate. Uma dessas primeiras indústrias de chocolate é brasileira, nascida há cem anos na cidade de São Paulo como Societé Anonyme des Chocolats Suisse de S. Paulo. Mas foi com o nome de Lacta que faria história no Brasil. Essa rica trajetória, relatada na segunda parte, acompanha as transformações pelas quais passou o próprio país, que em um século de rural se tornaria urbano, de eterna promessa se confirmaria como um dos emergentes deste século 21, de exportador de cacau passaria a ser o sexto maior mercado consumidor de chocolates do mundo. Em 1996 a Lacta foi adquirida pela Kraft Foods. Essa aquisição traria novo vigor e visibilidade às consagradas marcas da empresa, capazes de provocar água na boca com sua simples menção. Por exemplo, Sonho de Valsa, um nome definitivamente associado ao bombom mais consumido por aqui; Diamante Negro, outra marca que dispensa apresentações; o mesmo vale para Laka, que se tornaria sinônimo de chocolate branco; ou Bis, provavelmente o primeiro chocolate que as mães costumam dar aos seus filhos por aqui. Além desses quatro grandes ícones do mercado consumidor brasileiro, centenas de novos modelos de ovos de Páscoa encantam crianças e adultos a cada ano. A mobilização que antecede este feriado é intensa e vem se revelando fundamental para a consolidação da indústria do chocolate no Brasil. Não é fácil fazer um bom chocolate, mas todos reconhecem quando têm um derretendo na língua. Como o chocolate é percebido pela nossa língua? E desta, como a percepção atinge o cérebro, desencadeando aquelas sensações de prazer tão conhecidas de todos – os segundos preciosos que se seguem à degustação do chocolate? O terceiro capítulo especula sobre os “segredos químicos” do chocolate e se encerra mostrando as etapas que envolvem a sua fabricação, da fermentação da polpa à temperagem da massa, do acréscimo de outros ingredientes à pesquisa por novos sabores e formulações. Uma empresa completar um século de existência não é algo corriqueiro – nem aqui, nem no resto do mundo. É um formidável atestado de confiança, renovado dia após dia por consumidores satisfeitos, tanto pela constância na qualidade das marcas tão queridas quanto pela empresa não se acomodar no sucesso já estabelecido. Consumidores são, por definição, insaciáveis. Boas indústrias também. Querem sempre alargar novas fronteiras de sabor, propor sensações ainda não experimentadas, criar novas manias. Se elas forem, além de tudo, deliciosas, que sejam muito bem-vindas. É o que a Lacta espera para seu próximo centenário: seguir oferecendo suas marcas consagradas por gerações de brasileiros, acrescentando, a cada ano, novidades no maravilhoso mundo de sabores que nasce, há muitos séculos, da semente torrada de uma pequena árvore nativa das Américas. SUMÁRIO Da América para o mundo Brasilentra na Valsa | 06 | 34 Primeiras indústrias, primeiros chocolates 35 Uma fábrica para a Lacta 45 A lapidação de um diamante 66 O bombom do Brasil 71 Bis, Bis ... 84 A nova fábrica no Brooklin 88 Como a Páscoa virou Lacta 94 O reflexo branco 105 A Kraft chega ao Brasil 120 Chocolate : muito prazer |132 Referência |157 agradecimentos |158 Créditos de imagens |159 ficha técnica |161 DA AMÉRICA PARA O Cidade de Tlatelolco, Vice-Reino do México, 1540. Frei Bernardino de Sahagún chamou Alonso, o noviço recém-chegado da Universidade de Salamanca QUE VIERA para dar aulas de latim no Colégio real de Santa Cruz, EM TLATELOLCO. “Vamos dar uma volta PELA cidade, você precisa conhecer os astecas”, CONVIDOU O FREI. Com o vigor de seus 41 anos, dos quais os últimos 11 viveRA no México, o religioso JÁ cruzara os longos caminhos que ligavam o planalto mexicano – ONDE VIVIA O POVO ASTECA – ao porto de Veracruz e às ricas regiões produtoras de cacau, situadas mais ao sul DO PAÍS. ESSAS TERRAS ERAM ANTES PERTENCENTES AOS MAIAS, POVO SUBJUGADO PELO ESPÍRITO GUERREIRO DOS ASTECAS, E ALI começava uma densa floresta tropical. AGORA ERAM OS PRÓPRIOS ASTECAS QUE SOFRIAM PARA SE ADAPTAR À REALIDADE DOS NOVOS CONQUISTADORES, OS EUROPEUS. Sem dúvida o clima da região antigamente habitada pelos maias era muito diferente do da árida MUNDO Tlatelolco, cidade-irmã da Tenochtitlan, a antiga capital do Império asteca. Ali, a vida girava em torno do grande mercado, o lugar perfeito para que o jovem missionário fosse apresentado aos paradoxos de um povo que tentava aprender as novas regras dos colonizadores e, ao mesmo tempo, lutava para não perder a herança de seus antepassados. Fluente em nahuatl, a língua local, frei Bernardino era bem popular entre os nativos, que já estavam acostumados aos longos e meticulosos interrogatórios conduzidos por ele ou por alguns de seus melhores alunos do Colégio Real de Santa Cruz. A escola havia sido a primeira a ser erguida na nova colônia e recebia os filhos da elite asteca e dos primeiros funcionários públicos e fazendeiros vindos da Europa que se arriscavam por aquelas terras. O frei já acumulava na biblioteca do colégio centenas de páginas com descrições detalhadas, depoimentos e muitos desenhos copiados de livros antigos sobre a população local e seus costumes. Sua tática, em qualquer lugar que fosse, era sempre procurar pelos mais velhos, aqueles que ainda conservavam na memória os mitos fundadores daquele povo, que, por sua vez, parecia caminhar rapidamente para a extinção – ou para a completa assimilação. Assim que desceram as escadas do colégio, os dois foram cercados por crianças oferecendo abacates, limões, pimentas e outras pequenas frutas ainda desconhecidas por Alonso, que gaguejava em espanhol tentando acompanhar os passos vigorosos de Bernardino de Sahagún. O frei tinha acabado de parar diante de uma barraca naquele instante. O mercado de Tlatelolco não era nem a sombra do que fora há cerca de 20 anos, quando Hernán Cortés e seus 600 soldados entraram na cidade vizinha, Tenochititlan: uma massa compacta de cinco mil barracas e mantas coloridas estendidas, por onde circulavam diariamente mais de 50 mil pessoas. Depois das epidemias que dizimaram cerca de um quinto da população e as deposições e mortes dos imperadores Montezuma II e Cahuatemoc, a cidade tivera tanto a sua população como a sua importância incrivelmente diminuídas. Lacta 100 anos, muito prazer 08 Ainda assim, o movimento na feira era intenso e Alonso se espantou com a quantidade e variedade de produtos: flores e frutos exóticos, finos tecidos de algodão, cestos trançados de palha, cabaças, cuias e utensílios domésticos feitos de madeira, cascas de tartaruga e afiadas machadinhas de pedra – algumas delas usadas em rituais de sacrifícios humanos, agora proibidos após a chegada dos espanhóis. A paisagem era ainda composta por braseiros, sobre os quais sempre havia algum alimento sendo oferecido, de milhos coloridos a lagartas, animal que naquela terra era considerado uma iguaria. Um aroma forte emanava daquela pequena barraca onde os dois haviam parado. O frei trocou algumas palavras com a vendedora, enquanto esta lhe mostrava alternadamente diferentes grãos escuros, parecidos com amêndoas, que Alonso jamais vira antes. Depois de cheirar vários tipos, Bernardino escolheu um deles, mostrando-o para o pupilo: aquilo era cacau. Enquanto a vendedora de longos cabelos negros e pele castigada pelo sol dava ordens a uma criança, que correu para buscar alguma especiaria na barraca vizinha, Bernardino dirigiu-se novamente para Alonso: “Está na hora de conhecer a bebida mais importante dessa terra: o cacahuatl. E se você andou se esforçando nas aulas de nahuatl, deve saber do que estou falando”. O noviço rapidamente confirmou sua fama de aluno aplicado, informada por seus superiores do convento de Salamanca: “Já sei que atl é água, frei, mas o resto da palavra deve ser essa semente escura que o senhor cheirou”. Agito no mercado: entre frutas, flores e produtos exóticos, o forte aroma do cacahuatl pairava pelo comércio. (Afresco, 2007) Bernardino de Sahagún pegou uma das sementes e apresentou-a a Alonso: “IsTo aqui, para esse povo, é mais do que uma bebida muito fina e cara: é dinheiro! Há menos de 30 anos, antes da nossa chegada, com cem boas sementes desTas se comprava um escravo! Trinta delas valiam um peru”, riu o frei, devolvendo a semente à vendedora, que a juntou ao punhado que separara para preparar a bebida. Alonso acompanhou com os olhos a cacahuatera, que se ajoelhou diante de uma espécie de mesa baixa, feita de pedra, com formato côncavo, a qual frei Bernardino acabara de chamar de metate. Com a ajuda de uma pedra menor, mais arredondada, a vendedora moeu as sementes com cuidado para que as partículas não se perdessem, revirando-as com uma espátula, até reduzi-las a pó. Depois acrescentou uma pasta esbranquiçada, que Alonso rapidamente reconheceu como sendo de milho, alimento do qual ele forçosamente teria de aprender a gostar. Tudo ali girava em torno do milho e daquele tal de cacau, que agora estava prestes a experimentar. Mas ainda havia mais trabalho pela frente: a vendedora agora transferia aquela massa escura para duas vasilhas feitas de cabaça, ricamente desenhadas. Era preciso reconhecer que esses selvagens tinham senso artístico, pensou Alonso, sem ousar se referir nesses termos a seu superior, que parecia nutrir uma curiosidade sem fim por eles. Em uma das cabaças, viu que a mulher colocou pétalas de uma flor branca e amarela – que mais tarde descobriria se chamar izquixochitl. Seu aroma era semelhante ao das rosas, e era o tempero preferido de frei Bernardino de Sahagún e de muitos astecas. A mulher também acrescentou à mistura o que Alonso julgou serem pimentas vermelhas e verdes. Na outra cabaça – que descobriu que estava sendo preparada para ele –, a mulher triturou algumas sementes que deixaram sua mão completamente vermelha: era urucum, conhecido ali como achiote, outra novidade do Novo Mundo. Juntou outro punhado de pimentas e socou tudo, acrescentando água fria. Depois, a vendedora pegou uma vasilha vazia e lançou aquela beberagem, uma escura e outra vermelha como sangue, de um vaso para outro, alternadamente, o que aos poucos provocou o surgimento de uma densa espuma nos dois líquidos. O ritual chamou a atenção de muitos passantes, gente pobre que circulava pelo mercado de Tlatelolco buscando conseguir favas de feijão ou tortillas em troca de algum serviço. Para eles, um cacahuatl era uma bebida inacessível, mas eles podiam, pelo menos, acompanhar a sua preparação. Por fim, os dois receberam suas bebidas. Alonso observou como seu mestre fazia e buscou repetir seus gestos: pegou a cabaça com as duas mãos, buscando acomodar na esquerda uma pequena vareta. “O aquauitl é usado para manter a espuma dessa bebida maravilhosa. Você vai ver que, bebendo isso, só terá fome depois da hora do Ângelus. Bem-vindo ao México!”. Dizendo isso, frei Bernardino de Sahagún, o cronista que ao longo de 30 anos de trabalho dedicado produziria mais de 2.400 páginas, propiciando a mais extensa visão daquela sociedade asteca que desaparecia diante dos seus olhos, bebeu com prazer sua cumbuca, chegando a respingar um pouco do líquido em sua barba, um detalhe de sua aparência que chamava muita atenção naquele lugar. Tomando coragem, Alonso sorveu um grande gole da famosa “água de cacau” e, quase imediatamente, cuspiu a beberagem com espalhafato. “Mas é amargo como o diabo! E queima a boca! Por Deus, como se pode gostar disso?” Frei Bernardino riu enquanto pedia para a vendedora corrigir aquele cacahuatl, fazendo-o à moda criolla, ou seja, acrescentando melado de cana à mistura. Desta vez, Alonso consentiu: “É mesmo uma ótima bebida, apesar de bastante amarga”. Ao que o frei respondeu com um tom professoral: “Quem disse a você que o diabo é amargo? Talvez ele prefira se esconder no açúcar...”. 11 Lacta 100 anos, muito prazer UMA BEBIDA DOS DEUSES Sementes que valem ouro: mais do que matéria-prima para a bebida, o cacau entre os astecas e maias era também moeda de troca. A vendedora asteca do mercado de Tlatelolco era herdeira de uma relação muito especial que os primeiros habitantes do continente americano haviam estabelecido com dois produtos essenciais de sua culinária: o milho e o cacau. Os dois alimentos já eram apreciados há muito tempo, desde a época dos olmecas, que viveram entre 1.500 e 400 a.C. na região onde hoje se localiza o México. Eles foram os primeiros a fazer uso desses ingredientes, sendo que o cacau provavelmente era consumido apenas na forma de suco de polpa, que não guarda nenhuma semelhança com o gosto do chocolate. Era, naquela época, nada mais que uma fruta de uma árvore pequena da floresta, que oferecia um suco refrescante e esbranquiçado conhecido como kakawa, palavra que, mais tarde, se transformaria em “cacau”. Os olmecas deixaram como marcas de sua civilização grandes esculturas em regiões do Obtida a massa de cacau, o milho foi adicionado para tornar a bebida mais consistente, e as especiarias foram acrescentadas para equilibrar, com seus aromas e sabores, o forte amargor das sementes torradas e moídas. Ao longo do tempo, os maias aprenderam a condimentar o cacau com baunilha, pimentas das mais variadas formas e intensidades de ardor, além de algumas vezes adoçarem a bebida com mel de abelhas. O arqueólogo Cameron McNeil, estudando vasos maias descobertos na atual Honduras, encontrou dois deles contendo respectivamente ossos de peixe e de peru, os quais continham traços de cacau. As análises comprovaram que o cacau era usado como tempero de alimentos desde 450 a.C. A razão para que essa mistura amarga tenha caído no gosto da população da época só veio a ser descoberta no século 20: a semente de cacau (e não sua polpa) possui alcaloides, cafeína e teobromina, substâncias que combinam perfeitamente com nossos neurorreceptores cerebrais, estimulando ondas de satisfação e os sentidos. Mas, mesmo sem saber da existência desses componentes, os maias percebiam que aquela bebida funcionava muito bem como revigorante. Golfo do México, mas nenhum documento escrito. Além do milho, cultivavam feijões, vários tipos de abóboras, uma grande variedade de pimentas e abacates. O cacau brotava nas matas mais densas e úmidas, com os frutos nascendo diretamente de seus galhos, sempre ao abrigo de árvores maiores. Embora o milho fosse cultivado no continente americano desde 5.000 a.C., uma importante descoberta aconteceu em algum período do segundo milênio antes da era cristã, proporcionando a este cereal uma relevância que só se rivalizaria, no futuro, com a do cacau: a invenção do processo de nixtamalização, que consiste em cozinhá-lo com um pouco de cal, cinzas de madeira ou conchas, deixando os grãos imersos em líquido de um dia para o outro. Isso permitia que a casca transparente que protege o grão se desgrudasse. O resultado desse processo é o nixtamalli (nextli = cinzas; tamalli = farinha de milho), uma massa de milho macia e fácil de ser trabalhada com as mãos. Essa descoberta foi tão importante que o milho se tornou o principal ingrediente da alimentação de todos os povos da América Central. Graças a ela, os povos americanos haviam desenvolvido o pão, uma base de amido complementada com uma proteína – que podia ser peru, peixe, coelhos e até cachorros. Esses povos não conheciam vacas, nem porcos ou galinhas. Esses animais haviam chegado com os espanhóis, junto dos canhões, dos cavalos, da cruz... e da varíola. Com o cacau aconteceu o mesmo que o milho: foram reveladas potencialidades até então despercebidas naquele fruto. A “face oculta” do cacau foi provavelmente desvelada pelos O cacau entre os maias maias, povo sucedâneo aos olmecas na mesma região onde cresciam os cacaueiros. Segundo conjecturam Sophie e Michael Coe no livro The True History of Chocolate, em algum momento perdido na antiguidade pré-colombiana, certo cozinheiro maia, curioso com o gosto amargo e adstringente deixado na boca pelas sementes do cacau, decidiu mantê-las fermentando em sua própria polpa, talvez com o intuito de criar uma versão de chicha, a bebida alcoólica produzida a partir da fermentação da saliva no caldo com milho. Só que, em vez de a fermentação gerar outra bebida, as sementes absorveram parte do líquido. O próximo passo foi torrar essas sementes fermentadas até que delas exalasse um cheiro bastante marcante. Nessa etapa, certamente, já se estava bem próximo de se conseguir um pó que pudesse ser moído e misturado à água. Lacta 100 anos, muito prazer 14 Estátua maia apresentando o cacau: a oferta de alimento aos deuses era um dos elementos tradicionais da religião maia. Entre os anos 250 e 900 d.C. a civilização maia viveu seu apogeu, com diversas cidades-estado em permanente estado de guerra, disputando a hegemonia umas com as outras. Cada uma buscava erguer pirâmides e cidades mais imponentes do que a outra, com templos, palácios, esculturas e murais magníficos; além disso, criaram um calendário lunar bastante preciso. Uma delicada cerâmica deixou diversos testemunhos do esplendor da civilização maia. Entre o povo maia, a bebida feita com sementes torradas de cacau era consumida especialmente nas festas chamadas “lava-pés”, oferecidas por algum pochteca, a poderosa classe dos comerciantes, para celebrar a chegada de uma caravana. O anfitrião, tendo notificado seus parceiros, sócios e clientes sobre a chegada em segurança das mercadorias vindas de lugares distantes, convidava os principais habitantes de sua vila para um jantar cerimonial, com comidas requintadas e oferendas aos deuses do fogo e do comércio (que, não por coincidência, era o mesmo deus do cacau!). Nessas festas, o cacau recebia atenção especial e era servido em cabaças ao final da 15 Lacta 100 anos, muito prazer refeição, junto com um canudo de tabaco para fumar. Uma dessas festas foi presenciada – e, claro, ricamente documentada – pelo atento frei Bernardino de Sahagún. O consumo da bebida de cacau entre os maias vem se revelando por meio das recentes pesquisas mais ancestral do que se supunha. Uma das descobertas mais notáveis aconteceu em 1984, em Río Azul, na Guatemala: encontrou-se uma tumba com equipamentos para o consumo da bebida. Em algum momento do século 6, o corpo de um governante de meia-idade foi deixado em sua tumba junto com 14 vasos, incluindo alguns cilíndricos e outros com três pés. Foram encontrados também alguns anéis que possuíam um recipiente em seu interior, indicando que continha algum tipo de líquido. Um deles era dotado de uma alça, onde se pôde identificar o hieróglifo equivalente à palavra “cacau”. Quando esses vasos foram examinados nos laboratórios da fábrica de chocolates Hershey´s, nos Estados Unidos, descobriu-se que continham teobromina e cafeína, duas substâncias que juntas são encontradas unicamente no cacau, dentre todas as espécies de plantas conhecidas pelos primeiros americanos. Outras pesquisas revelaram vestígios da planta em vasos datados de 1.900 a.C. na região onde atualmente é Chiapas, no México. A própria origem do nome “chocolate”, tanto pode ter sido derivada dos astecas, onde a bebida era conhecida como cacahuatl, quanto dos maias. Segundo o especialista em cultura maia, Dennis Tedlock, citado no livro The True History of Chocolate, durante os banquetes e dias festivos era comum os vizinhos se convidarem para chokola’j, uma expressão que significa “beber chocolate junto”. Mas o futuro do cacau seria ainda mais grandioso do que seu passado. E com uma influência muito mais abrangente do que poderiam supor o frei Bernardino e seu discípulo, ainda concentrados em suas cuias de cacahuatl no mercado de Tlatelolco. Chegou a hora da preciosa semente cruzar o Oceano Atlântico para conquistar o Novo Mundo. Mas, antes disso, o cacahuatl precisaria passar por uma pequena transformação: tornar-se doce. A Doce costume: a pintura de Jean Troy Francois mostra o hábito recém-adquirido entre as mulheres criollas de tomar o chocolate quente e adoçado. (Gravura em metal, 1723) Chocolate todo dia: o consumo da bebida era observado até mesmo em plena missa, quando as senhoras de origem europeia eram servidas por seus empregados. (Óleo sobre tela, séc. 18) “europeização” do cacau A transformação aconteceu em Chiapa Real – hoje San Cristóbal de las Casas, no México –, uma cidade colonial cercada por centenas de vilas habitadas por descendentes dos maias, que não tinham permissão para permanecer na cidade até a noite. A província de Chiapas, desde a época de domínio asteca, era uma das grandes produtoras de cacau, especialmente a região de Soconusco, próxima à costa banhada pelo Oceano Pacífico na atual divisa entre o México e a Guatemala. Essa região foi tomada dos maias pelos astecas em 1502, e seu maior interesse era justamente o acesso às plantações de cacau de alta qualidade de Soconusco. O tributo de guerra cobrado aos maias foi estabelecido em cacau: 200 fardos anuais de sementes e 800 cabaças de chocolate para beber eram levadas até os armazéns reais em Tenochtitlan, capital asteca. De acordo com o cronista espanhol frei Toribio de Benavente, um fardo de cacau era o equivalente a 24 mil amêndoas, e representava o máximo de peso que um carregador conseguia levar às costas. As civilizações pré-colombianas não possuíam nenhum tipo de veículo ou animal de tração. Todas as distâncias eram percorridas a pé. O bispo de Chiapa Real, segundo o relato do viajante Thomas Gage, que andou pela região entre 1625 e 1637 como missionário dominicano, incomodou-se com o hábito de algumas damas da sociedade criolla – nome dado às famílias originárias da Espanha que habitavam a “Nova” Espanha – de consumirem seu chocolate, servido quente e adoçado em plena missa. O religioso achou aquela atitude desrespeitosa, embora as damas alegassem que se sentiam muito fracas para enfrentar as longas orações e suas homilias sem a ajuda de uma xícara da bebida trazida por serviçais. O bispo tentou primeiro exortar os fiéis a abandonarem esse mau hábito. Exasperado por ver suas queixas caírem no vazio, fixou na porta da Catedral um comunicado excomungando todo aquele que comesse ou bebesse na casa do Senhor durante os serviços religiosos. Gage e seu superior dominicano tentaram demover o bispo de sua intenção, mas foi inútil. As damas criollas, revoltadas, passaram a frequentar as missas dos conventos, provocando abertamente um boicote às ministradas pelo bispo que, por sua vez, passou a ameaçar de excomunhão aqueles que se recusassem a frequentar os ofícios religiosos realizados na Catedral. Pouco tempo depois, o bispo adoeceu, justamente após beber uma xícara de chocolate trazida por uma de suas pajens. O gosto forte do chocolate, adoçado à moda criolla, ajudou a disfarçar o veneno que foi lançado à bebida, como vingança pelas ameaças de excomunhão. O episódio originou um dito popular que se espalhou ao longo do século 17 pela Colônia: “Tome cuidado com o chocolate de Chiapas”. O episódio retrata o quanto o chocolate, bebida americana feita a base de sementes de cacau e conhecida entre os nativos como cacahuatl, já devidamente adoçado com cana-de-açúcar e temperado com baunilha e pimentas, havia conquistado rapidamente os espanhóis. 17 Lacta 100 anos, muito prazer