Sessão sobre Desperdício Alimentar Gulbenkian Base da intervenção de Joaquim Caçoete da Direcção Nacional da CNA em nome da Realimentar - Rede Portuguesa pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional Para além do desperdício alimentar gerado ao nível dos consumidores/famílias e que deve ser combatido através de campanhas de informação que altere hábitos nomeadamente de consumo, confeção de alimentos e mesmo alimentares, julgamos que é mais importante um olhar e uma avaliação para as consequências a este nível das políticas de desregulação da produção e do comércio, da liberalização do comércio e da consequente deslocalização do consumo e da produção agro-alimentar, das próprias políticas de normalização dos produtos alimentares e por fim, de determinados modelos de produção intensivos. Pensamos que é aqui que o poder político mais facilmente pode atuar e onde pode haver as principais reduções ao nível do desperdício de produtos alimentares. Exemplos: Desregulação da produção e do comércio A desregulação da produção que tem sido levada a cabo por sucessivas reformas da PAC – Política Agrícola Comum, tem influência inevitável ao nível do desperdício de alimentos na produção. A destruição de instrumentos públicos de regulação na Europa, como são os casos das quotas e direitos de produção, leva a que deixe de haver uma orientação da produção europeia para as nossas necessidades (sejam elas de consumo interno ou mesmo de comércio externo) e, consequentemente, que sejam produzidos excedentes indiscriminadamente. Quando os produtores não conseguem colocar os seus produtos no mercado e poderíamos falar de inúmeros exemplos como é o caso da batata de Trás-osMontes entre outros, ficam com os seus produtos a apodrecer e outros há que, na falta de mercado, nem sequer chegam a colher as suas produções. Tudo isto é também desperdício. E hoje, mais do que nunca, os produtores nacionais atravessam graves problemas de comercialização como nunca atravessaram e isto apesar do défice agroalimentar do país. Aquilo que dizemos é que, uma política de regulação da produção ao nível da UE, aliada a uma política de preços de intervenção e de stocks públicos poderia quase acabar com o desperdício de alimentos ao nível da produção. Liberalização do comércio mundial e consequente deslocalização do consumo e da produção A eliminação das barreiras aduaneiras/comerciais, entre outras, através dos tratados bilaterais e multilaterais de livre comércio, tem servido, exatamente, para deslocalizar o consumo, ao promover as produções para exportação em detrimento das produções de alimentos básicos locais e ao destruir os circuitos curtos e directos de comercialização. O aumento cada vez maior das distâncias que hoje os alimentos percorrem até chegarem a nossa casa leva a que haja mais perdas ao nível dos transportes e faz com que os alimentos após terem sofrido processos de conservação, cheguem a casa das famílias com curtos prazos de conservação. Quantas vezes já compraram fruta ou legumes que nos hipermercados aparentam um aspecto fresco e dois ou três dias depois de adquiridos já estão a entrar em estado de putrefação? Poderíamos também falar a este nível das perdas e desperdícios ao nível da qualidade nutricional, não só motivada pelo tempo de transporte e processos de conservação, mas também motivada pela colheita antecipada, ou seja, antes do produto atingir o seu estado de maturação óptimo para o consumo humano. A verdade é que a este nível não nos podemos preocupar apenas com o desperdício em termos de quilos de alimentos que vão para o lixo em vez de cumprir o seu verdadeiro objetivo que é a alimentação humana, mas também nos devemos preocupar com o desperdício em termos nutricionais e mesmo organolépticos que, por exemplo, a deslocalização do consumo e da produção provocam e que não é visível aos nossos olhos. Políticas de normalização dos produtos alimentares As políticas de normalização que nada têm que ver com a questão da segurança alimentar são outro factor que tem levado a desperdícios de alimentos dentro da cadeia alimentar. Quem não se recorda que até há pouco tempo (2009) era impossível comercializar determinadas frutas e legumes que não tivessem determinado calibre e não respeitassem determinado tamanho e forma, independentemente de não estar em causa qualquer questão relacionada com segurança alimentar. E como este exemplo muitos outros há que retiram da cadeia alimentar milhares de alimentos muitas vezes mais sãos que os ditos normalizados. Modelos de produção intensivos A desregulação da produção e do comércio e a liberalização do comércio mundial tem levado à expansão da agricultura industrial e inerente marginalização dos sistemas de produção de alimentos diversos de pequena escala. Estes modelos de produção intensivos são insustentáveis e geradores de desperdícios do qual o exemplo mais gritante é o da pecuária intensiva na Europa. A União Europeia é o primeiro importador mundial de proteínas vegetais, pois a agricultura europeia produz somente um quarto das suas necessidades, assim a Europa importa anualmente milhões de toneladas de soja do continente americano, para alimentar os seus sistemas de pecuária intensiva desvinculados da terra, para depois exportar carne e outros produtos de origem pecuária para países terceiros, nomeadamente países do continente Americano. Este é apenas um exemplo da insustentabilidade e do desperdício gerado também por determinados modelos de produção que têm sido estimulados por determinadas políticas regionais e globais. Conclusão Julgamos que existem no campo alimentar diversos tipos de desperdícios aos diferentes níveis, poderíamos até falar do desperdício que existe no caso das culturas dedicadas para produção de biocombustíveis. Acima de tudo pensamos que centrar a discussão no desperdício alimentar ao nível das famílias é escamotear a responsabilidade de todo um conjunto de políticas que levam a que atualmente e segundo a ONU, um terço da produção alimentar mundial seja desperdiçada e não chegue a cumprir o seu verdadeiro papel. Consideramos que o verdadeiro desafio que se coloca é uma reformulação das políticas públicas nacionais e internacionais relacionadas com a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e com o Direito Humano à Alimentação, alteração essa que nos processos de formulação e tomada de decisão deve ter em conta processos amplos de consulta à sociedade civil.