ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE PAULA FRASSINETTI PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ESPECIAL Sobredotação e Competências Filosóficas Uma Perspectiva Transversal Trabalho realizado no âmbito do Seminário de Projecto sob a orientação da Professora Doutora Helena Serra Maria José Carneiro Coelho Porto, Julho de 2006 Sobredotação e Filosofia AGRADECIMENTOS Manifesto os meus agradecimentos à Doutora Helena Serra que tornou possível este trabalho e aos amigos pela sua disponibilidade, paciência e incentivo. Sobredotação e Filosofia CARTA DE UM JOVEM SOBREDOTADO1 Q U I N T A - F E I R A , S E T E M B R O 1 5 , 2 0 0 5 Fui uma criança irrequieta. Nada demais, muitas crianças entre 4 e 7 anos também são. Mas minha inquietação não era somente sair correndo por todos os lados e deixar meus pais apreensivos. Um fato me colocou diante de uma verdade que busquei, algum tempo depois, ocultar. Aconteceu de meu pai, na seleção para uma empresa, ser submetido a um eletroencefalograma. Como ele me achava agitado demais, me submeteu ao mesmo teste. O médico deu o diagnóstico, que para meus pais poderia ser tanto uma bênção quanto uma provação: eu era superdotado. Superdotado, que palavra engraçada. Colocava-me em uma posição privilegiada em relação às outras crianças. O que me fazia diferente era meu pensamento veloz e minha leitura ter se iniciado aos três anos. Meus pais então tomaram conhecimento do projeto da escola Vilhena Alves, que trabalhava em uma sala especial com crianças na minha situação. Conheci as “tias” e logo me enturmei com meus novos colegas. Na escola onde estudava, um dia fui levado da minha sala na alfabetização para a sala em frente, a primeira série. Muitas mudanças acontecendo em tempo muito curto. Isso tudo era muito estranho para mim. Mas havia algo: eu era muito agressivo. Não tinha paciência em escutar. Fazia apenas aquilo que queria fazer. Uma criança mimada e cheia de vontades, que era capaz de rasgar um trabalho se não gostasse dele ou bater em um colega de classe por ele pedir um pedaço do lanche. Isso, mais as minhas idéias pouco ortodoxas, foram o suficiente para meus colegas me taxarem de “doido”, “débil mental” e expressões do mesmo calão. Não havia um dia que eu não chegasse em casa sem me queixar das provocações ou sem descrever uma briga de que havia participado. Ao longo do tempo, conviver com essa minha condição diferente não parecia tão bom quanto meus pais e as “tias” do Vilhena Alves me diziam. Se ser assim me causava aborrecimentos, preferia ter nascido igual aos outros. Acostumei-me a tentar parecer igual aos outros. 1 Esta carta foi escrita por um estudante brasileiro de Biologia a propósito da sobredotação. Pelo seu conteúdo e interesse, aqui a reproduzimos. Sobredotação e Filosofia Era difícil; era tido como o CDF da turma. Embora alguns colegas chegassem a me perguntar se eu era superdotado, negava veementemente. Ainda assim, tirar uma nota abaixo do que eu esperava, não necessariamente baixa, me causava desespero, pois achava que meus pais iriam se decepcionar comigo; na minha cabeça, a bênção deveria ter um retorno constante, na forma de notas altas. Por isso, cheguei a chorar com uma nota abaixo das minhas expectativas. Ser como os outros realmente era complicado. Ter um talento incomum não me ajudava a ser como os meus amigos e colegas. Por isso, por já estar entediado e não querer me sentir diferente, parei de freqüentar o Vilhena Alves. Anos depois, com insistência das antigas “tias” e dos meus pais, que sempre me incentivaram a investir no meu talento, voltei à escola, para encontrar novas pessoas e profissionais de outros tempos. Muitos colegas já estavam com a vida traçada, portas abertas por sua condição especial. Eu acabara de entrar no ensino médio e queria estudar violão. Dito e feito: eles facilitariam minha matrícula no Conservatório Carlos Gomes (cujo teste havia me reprovado no ano anterior) e eu retornaria às aulas. Não durei mais de um ano nas atividades do Vilhena, mas permaneci por cinco anos no Conservatório. Hoje, ao contrário do que muitas pessoas esperavam, não me tornei nem músico nem escritor. Estou concluindo o curso de Licenciatura em Biologia e pretendo dar aulas logo que possível. Ao entrar em contato por acaso, há alguns dias, com uma revista sobre superdotação e um artigo da revista Veja sobre o mesmo assunto, relembrei o quanto lutei para esconder minha condição, sem saber o quanto é boa. Talvez não seja tarde demais para aproveitá-la; se puder ajudar outras crianças e jovens que receberam a mesma palavra engraçada que eu quando pequeno, agora como professor ficarei mais satisfeito. Por que escrevi isto? Para alertar pais, familiares e professores sobre a possibilidade de estarem diante de uma criança superdotada e não saberem como agir. Restringir, pode ser, mas reprimir nunca. A curiosidade destas crianças é grande; a minha era constantemente instigada pelas tias do Vilhena. Seria bom ter uma conversa com elas se houver algo de diferente com esta criança. Pode ter sido uma bênção". Dércio Pena Duarte, estudante da Licenciatura em Biologia pela UFPA, Belém (Brasil) Sobredotação e Filosofia 1 ÍNDICE Introdução...............................................................................................................................2 I PARTE Enquadramento Teórico Capítulo 1. A Criança e a Sobredotação 1.1. Abordagem Conceptual .............................................................................................6 1.1.1. Aproximação à noção de Sobredotação ........................................................6 1.1.2. Diferenciação de conceitos: Precocidade, Talento, Prodígio e Génio ..........9 1.1.3. Conceito de Inteligência/Inteligências múltiplas ..........................................10 1.2. Características/Padrões Comportamentais do Sobredotado ..................................15 1.3. Problemas dos Sobredotados: a Dissincronia e o efeito Pigmaleão negativo ........17 Capítulo 2. Intervenção no Plano Filosófico 2.1. Transversalidade das Competências Filosóficas ....................................................21 2.1.1. Conceptualização .........................................................................................22 2.1.2. Crítica/Problematização ...............................................................................23 2.1.3. Argumentação .............................................................................................24 2.2. Interdisciplinaridade Filosofia/Sobredotação............................................................26 2.2.1. A inteligência lógico-matemática .................................................................27 2.2.2. A inteligência existencial ..............................................................................27 II PARTE Investigação Empírica Capítulo 1. Considerações Introdutórias 1.1.3. Objecto e Objectivos de estudo..........................................................................30 1.1.3. Importância do Método .......................................................................................31 1.1.3. Metodologia Adoptada .......................................................................................32 Capítulo 2. Etapas Metodológicas 2.1. 2.2. 2.3. 2.4. 2.5. 2.6. Formulação do Problema e das Hipóteses .............................................................35 Explicitação das Noções das Hipóteses .................................................................36 Instrumentos de Recolha de dados .........................................................................37 Selecção da Amostra...............................................................................................38 Procedimentos ........................................................................................................39 Tratamento de dados ..............................................................................................40 Capítulo 3. Intervenção 3.1. 3.2. Estratégias/Actividades............................................................................................41 Antecipação dos Resultados ...................................................................................42 Reflexões Finais ..................................................................................................................43 Sobredotação e Filosofia 2 INTRODUÇÃO “Não há criança nenhuma que não queira aprender” (Correia/ Martins, 2002: 13). O presente trabalho tem como pano de fundo a ideia de educação que a filosofia política da sociedade democrática actual defende, um conceito que se refere ao direito que toda a criança tem de receber ajuda para aprender até os limites das suas capacidades. Efectivamente, é nesta perspectiva que se materializa o enquadramento normativo dos alunos do Ensino Especial. Claro está que este enquadramento não deveria preconizar sobretudo as crianças com Necessidades Educativas Especiais de carácter permanente, isto é, que apresentam incapacidade ou incapacidades resultantes de deficiências de ordem sensorial, motora ou mental, numa ou mais áreas de realização de aprendizagens. A escola que se diz e se quer inclusiva, além de contemplar estas realidades, também deve prestar uma atenção especial às crianças sobredotadas, pois como indivíduos e crianças têm iguais direitos às oportunidades de desenvolvimento completo. Aliás, parece-nos que já se caminha mais nesse sentido se atendermos ao recente Despacho Normativo nº 50/2005 de 9 de Novembro no qual são previstos planos de desenvolvimento e enriquecimento curricular de modo a criarem-se condições para a expressão e crescimento de capacidades excepcionais de aprendizagem. Portanto, se a nível teórico parece haver uma maior consciencialização e sensibilização para uma realidade que existe mas que é diferente, a nível das práticas parece-nos que têm existido alguns entraves à provisão de condições educativas adequadas às necessidades específicas destas crianças. Esses entraves passam pela falta de informação e pela existência de ideias erróneas comummente disseminadas, nomeadamente a de que, por uma espécie de milagre, o sobredotado encontrará meios de desenvolver ao máximo as suas potencialidades mesmo quando submetido aos mesmos procedimentos, esquemas, ritmos de aprendizagem e ensino que os seus companheiros menos dotados; supõe-se, até, que os sobredotados deveriam ser capazes de “se desenvencilhar sozinhos”, e se não o conseguem, é porque não são realmente sobredotados. Claro está que ao perspectivar-se assim a sobredotação está-se a contribuir mais claramente para a inadaptação e insucesso escolar destas crianças e jovens, do que para o seu sucesso e inclusão. Sobredotação e Filosofia 3 Neste enquadramento, e com o propósito de desconstruir e/ou esclarecer ideias, faremos, num primeiro momento, uma aproximação à noção de sobredotação bem como a outras que lhe estão associados, nomeadamente a de precocidade, a de talento, a de inteligência e a de génio. De seguida, atendendo ao facto da escola ser o meio onde o sobredotado pode apresentar a melhor adaptação ou o pior desajuste, isto é, o local onde a sua capacidade acima da média tanto pode contribuir para um desempenho excepcionalmente bom, como também pode levar ao tédio, aborrecimento, rebeldia e consequente insucesso escolar, faremos uma incursão quer pelas suas características e padrões de comportamento, quer pelos problemas e dificuldades que podem manifestar a nível escolar e extra-escolar. De facto, as suas características de personalidade tais como: o perfeccionismo, a auto-critica excessiva, as ideias divergentes e atitudes não conformistas, a super sensibilidade e senso de justiça e os altos padrões de desempenho, levam-no a ser diferente, podendo causar efeitos negativos no seu desempenho académico, na sua relação com os pares e com os adultos. O panorama descrito permite perceber que a criança sobredotada necessita de um atendimento especial para fazer frente às suas necessidades cognitivas e emocionais. Esse atendimento poderá passar pela adopção de programas curriculares mais adaptados e métodos/estratégias educativas que aproveitem e desenvolvam as suas capacidades de forma harmoniosa, quer em áreas em que sejam especialmente dotadas quer em áreas fracas. É precisamente neste quadro que tentaremos prospectar uma pedagogia da sobredotação. Uma pedagogia que, ao assumir o desafio de construir uma educação diferente, encaminhada à flexibilização e intervenção intra e extra-escolar destas crianças e jovens numa acção vincadamente humanizante e inclusiva, permita à criança explorar plenamente todas as suas potencialidades. Ora, consideramos que esta acção poderá ser profícua se for trabalhada a partir da transversalidade de competências filosóficas, designadamente através da conceptualização, da crítica e da problematização e da argumentação. Ao considerar-se as principais características do sobredotado, desde logo se constata que estas crianças e jovens reúnem um conjunto de características que habitualmente imprescindíveis são estioladas para a no sistema consecução dos educativo objectivos actual, mas que são da actividade filosófica, nomeadamente, um pensamento independente, uma postura aberta a coisas e situações novas e pouco usuais, o gosto pelos conceitos abstractos e interesse nas suas relações e uma postura criativa, inventiva e crítica em relação a si e ao que o rodeia. Sobredotação e Filosofia 4 Por conseguinte, consideramos que a filosofia, através das suas competências filosóficas, poderá ter uma importante palavra a dizer no percurso individual e escolar destas crianças e jovens. Neste quadro consideramos as IM (Inteligências Múltiplas) de Howard Gardner pertinentes para a investigação, sobretudo a inteligência lógico-matemática e a existencial. Assim, e na linha do programa de Matthew Lipman – Filosofia para crianças – pretende-se incidir a intervenção quer nos princípios do raciocínio lógico para que os alunos pensem mais logicamente, criticamente e responsavelmente, quer nas atitudes de indagação, questionamento, reflexão e argumentação inerentes ao âmbito existencial. Portanto, é num contexto de interdisciplinaridade que estamos em crer que a filosofia, com as suas competências transversais, poderá contribuir para uma alteração de mentalidades e consequentemente das práticas pedagógicas, o que terá reflexos na forma como a escola aceita e lida com o diferente. Só neste contexto é que será possível construir uma escola verdadeiramente inclusiva. Sobredotação e Filosofia 5 I PARTE Enquadramento Teórico Sobredotação e Filosofia 6 CAPÍTULO 1. A CRIANÇA E A SOBREDOTAÇÃO 1.1. Abordagem Conceptual As questões da sobredotação são hoje mais frequentemente analisadas. Uma maior consciencialização por parte dos profissionais da educação e da psicologia, juntamente com a opinião pública e a necessidade de respeito pelas diferenças individuais, no quadro de uma sociedade democrática de direitos individuais e sociais, pode apontar-se como a justificação desta mudança. Num quadro actual em que não há um entendimento claro e unânime do que é a sobredotação e como lidar com ela, não por desconhecimento do fenómeno, mas, talvez, por um mau conhecimento ou pela existência de estudos e investigações erróneas que deram lugar a falsos estereótipos que ainda persistem, é fundamental distinguir e compreender as suas características essenciais do que é ou se supõe ser, para se poder determinar uma intervenção psicopedagógica eficaz. Neste contexto interventivo, torna-se fundamental tentar definir, diferenciar e delimitar a noção 2 de sobredotação de outros termos que, apesar de parecerem similares, não são iguais. Efectivamente, cremos que só mediante o conhecimento prévio de determinadas noções, é que será possível prospectar uma abordagem transversal da sobredotação que ultrapasse a teoria e se consubstancie numa prática. 1.1.1. Aproximação à noção de Sobredotação Desde sempre houve dificuldades em definir adequadamente sobredotação, talvez porque, por um lado, se tenha centrado muitas vezes a atenção nas crianças com menos capacidade intelectual e, por outro, porque as pessoas sobredotadas não constituem um grupo homogéneo com um perfil único. Efectivamente, a prática 2 Opta-se pelo o termo “noção” e não o de “conceito” para designar sobredotação, na consciência de que o segundo termo ao implicar uma objectividade e universalidade não se adequa à realidade da sobredotação, pois, na verdade, deparamo-nos com múltiplas definições de sobredotação que variam de acordo com os autores e as épocas. Sobredotação e Filosofia 7 demonstra que têm características diferenciais únicas que resultam das dimensões afectiva, social e cognitiva. Na actualidade assiste-se a um manifesto interesse pela sobredotação, mas sem que por vezes se tente coadunar a teoria com a prática, pois, não raras vezes, se actua como se a sobredotação fosse algo estático, unitário e reconhecido unanimemente, sem se considerar a existência de diversas interpretações e modelos de sobredotação. De facto, por ser um tema polémico e ao mesmo tempo fascinante, tem levado a que vários autores se ocupem desta problemática. A este propósito podemos destacar alguns autores que defendem diferentes perspectivas. A perspectiva monolítica, partilhada por Terman (1925) e Genovard (1982), ao defender que o fenómeno intelectual é formado por uma única capacidade, mede uma só aptidão, a inteligência. Deste modo, limita as diferenças entre o grupo normal e o excepcional à dimensão quantitativa. Portanto, o modelo monolítico definia os sobredotados como indivíduos com um nível de inteligência muito superior à média, os que superam os 130 de QI. Por seu turno, o modelo factorial, representado por Renzulli (1977), defende que a sobredotação é composta por múltiplos componentes, pelo que a sua combinação dá origem a diferentes tipos de inteligência. Neste quadro, Renzulli define a sobredotação mediante o Modelo dos três anéis. Para ele a sobredotação resulta de uma interacção entre três grupos básicos: capacidades gerais acima da média; elevado nível de motivação na tarefa; e alto nível de criatividade. Nesta linha, considera que as crianças sobredotadas seriam aquelas que possuem e são capazes de desenvolver este conjunto de características a aplicálas a qualquer área de realização. Como tal, é necessária a interacção dos três aspectos para que decorra uma realização criativo-produtiva – sobredotação. Assim, no modelo factorial deixa-se de falar da inteligência como uma variável quantitativa e passa-se a falar numa perspectiva qualitativa por ser de natureza complexa. Já para os representantes da perspectiva hierárquica – Sternberg (1986; 1990) e Castelló (1986) –, a sobredotação já não é um atributo unidimensional, mas que pode ser abordado de diversas maneiras. Efectivamente, incluem as concepções monolítica e factorial para referir-se à sobredotação, já que o termo apresenta aspectos quantitativamente e qualitativamente diferentes em relação à normalidade. Como tal, as diferenças entre o grupo excepcional e o normal seriam do tipo quantitativo e qualitativo, o que notoriamente manifesta uma natureza mista. De Sobredotação e Filosofia 8 acordo com isto, o sobredotado seria aquele que apresentaria um rendimento intelectual superior ao que se pode detectar no grupo normal. A estas perspectivas acrescem ainda autores como Torrance (1962), Taylor (1963, 1964, 1978) e Guilford (1967), que colocam a tónica na criatividade como factor determinante da sobredotação, independentemente da capacidade intelectual medida pelos testes de inteligência unitária. Estudos posteriores levados a cabo por Flavell (1979), Jackson y Butterfiel (1990), Borkowski y Peck (1990) e Davidson (1986, 1990), consideram como mais importante a qualidade da informação que se processa bem como o controle sobre as actividades e estratégias mentais como o aspecto mais importante na aprendizagem e, consequentemente, na sobredotação. Por último, refira-se os estudos baseados em aspectos evolutivos e sociais levados a cabo por alguns autores, nomeadamente Gardner 1985, 1995). Este autor desenvolve a teoria das inteligências múltiplas, considerando que não existe um único e monolítico tipo de inteligência que seja essencial para o sucesso na vida, mas que é o resultado de múltiplas capacidades, no sentido de possuirmos diferentes tipos de inteligência. Para ele a cognição não funciona de forma global mas é o produto de actividades modulares, sendo a inteligência o nome global dado à actividade destes diferentes módulos. O facto do modelo de Gardner oferecer uma perspectiva alargada e complexa sobre o desenvolvimento psicológico e os talentos internos das crianças, parece-nos uma perspectiva particularmente interessante quando aplicada ao panorama da sobredotação. Por esta razão lhe dedicaremos maior atenção. Por conseguinte, esta relação da sobredotação com as diferentes teorias ou perspectivas permite ressaltar, em traços largos, um duplo interesse, por um lado, teórico por implicar a combinação das capacidades e funções cognitivas implicadas e, por outro, prático-interventivo na medida em que se orienta para optimização das condições de desenvolvimento e aplicação dessas capacidades. Em termos conclusivos, a aproximação à noção de sobredotação torna possível considerar que de facto não existe unanimidade quanto à sua noção, nem sequer quanto à questão terminológica. Aliás, parafraseando Lombardo (1997:22 e 23), utiliza-se com frequência e de forma indiscriminada termos como sinónimos de sobredotação que em vez de esclarecer aumentam a confusão sobre o tema. Vejamos alguns que importa diferenciar dado o seu frequente uso indiscriminado. Sobredotação e Filosofia 1.1.2. Diferenciação 9 de conceitos: Precocidade, Talento, Prodígio e Génio - Precocidade: designa a criança que tem um desenvolvimento prematuro numa determinada área. Ou seja, é uma criança que tem um comportamento de indivíduos de maior idade do que ela. Apesar de muitos autores utilizarem os dois termos – precocidade e sobredotação – como sinónimos, Lombardo considera que embora se possam manifestar ao mesmo tempo, tal não permite concluir que ambos sejam sinónimos. Pois, se, por um lado, a precocidade faz referência à velocidade no desenvolvimento, o que nos obriga a situá-la numa determinada etapa da vida, já a sobredotação indicaria umas características de personalidade estáveis ao longo das diferentes etapas da vida do indivíduo. Por outro lado, ainda que geralmente as crianças sobredotadas sejam precoces relativamente a alguns comportamentos ou habilidades, nem todas as crianças precoces apresentarão sintomas de sobredotação. - Talento: utiliza-se para designar as pessoas que têm uma aptidão de muito alto nível numa determinada área. Porém, o uso deste termo também não está isento de problemas. Assim, se para alguns autores não parece justificável a separação que se faz entre sobredotação intelectual, criatividade e talento específico, pelo contrário, outros são partidários da distinção dos termos, pois nem todos os sobredotados virão a ser talentosos e o talento poderá acontecer mesmo tendo-se uma capacidade intelectual muito baixa. - Prodígio: refere-se à criança que é capaz de realizar uma actividade fora do comum para a sua idade. Isto é, é capaz de realizar algo num campo específico que exige competências com níveis de realização de um adulto. - Génio: indivíduo de grande superioridade que realiza contribuições muito relevantes, para tal necessita de alta inteligência, forte criatividade, certas características de personalidade e temperamento, grande motivação e um determinado nível sociocultural. Estas características levam a que, por vezes, se caia na errónea comparação entre sobredotado e génio. Esta curta abordagem, permite-nos perceber que a noção de sobredotação tem sido difícil de operacionalizar também devido à flutuação que a sua definição tem sofrido ao longo do tempo. Aliás, a construção de um conceito – preciso e Sobredotação e Filosofia 10 universalmente aceite – constitui uma tarefa difícil, ou mesmo impossível, na medida em que, e de acordo com Alencar, se trata de um “conceito ou constructo psicológico a ser inferido a partir da constelação de traços ou características de uma pessoa (…)” (Alencar, 1986: 21). Efectivamente, apesar da falta de consenso quanto à definição de sobredotação, saliente-se que ao atender estas crianças e jovens, nenhum sistema escolar deve esquecer razões de ordem pragmática e teórica. Como tal, parafraseando Mª. Pereira, os sistemas escolares devem considerar como causas pragmáticas mais importantes, por um lado, os tipos de capacidades que o sistema está interessado em desenvolver e, por outro, as condições económicas disponíveis para a educação destas crianças e jovens. Assim, as condições referidas determinarão não só o conteúdo mas também o critério que vai delimitar o alcance da definição – o critério que vai estabelecer o nível de capacidade requerido para a inclusão de uma criança e jovem num programa de sobredotados. Portanto, parece-nos que, em última análise, a sobredotação estará sempre confinada a uma prática indissociável do conceito de inteligência, razão pela qual nos parece naturalmente profícua uma abordagem ao conceito, em geral e, em particular, à teoria das inteligências de Howard Gardner por desviar-se do plano meramente teórico e centrar-se em situações mais precisas da componente humana. 1.1.3. Conceito de Inteligência/Inteligências Múltiplas Desde sempre houve um interesse pelas capacidades humanas, no entanto só a partir de 1869, com Galton, é que se empreenderam investigações e estudos neste âmbito. De facto, ao longo da história, o traço mais comummente utilizado para definir e identificar as pessoas sobredotadas tem sido o seu elevado nível de inteligência. Portanto, sendo o critério da inteligência o mais utilizado, parece-nos lógica a explicação de Carmen Valle a propósito da sobredotação, “un estado intelectual, una forma específica o modalidad de funcionamiento del intelecto que necesita, para su mejor entendimiento, estar apoyada en una sólida teoría intelectiva” (Valle, 2001: 11). Daqui resulta que, para se entender o fenómeno de sobredotação, se tenha de entender primeiro o de inteligência. Efectivamente, a questão da inteligência será, provavelmente, não só das áreas mais interessantes de estudo e de discussão, como das mais controversas. O facto de ser considerada como um conjunto de características e de capacidades cognitivas que não podem ser directamente observadas, tem dificultado a sua Sobredotação e Filosofia 11 definição. É que afinal, “a inteligência não é uma questão teórica. Ela tem implicações nas formas como nos vemos a nós próprios e aos outros, especialmente aos outros «diferentes de nós», seja em termos de capacidades, de classes sociais ou de cor de pele” (Costa, et. al., 2005: 236). De facto, se atendermos ao quotidiano, todos utilizamos este conceito com o maior dos ‘à-vontade’; todos temos e usamos teorias da inteligência para categorizar o comportamento, o nosso e o dos outros, usando termos como «esperto», «brilhante», «estúpido», «ignorante», «obtuso», etc. Por conseguinte, apesar de globalmente se poder definir inteligência como “a capacidade de qualquer ser de regular e de ajustar o seu comportamento às circunstâncias internas e externas, aos problemas e desafios que o meio coloca” (Costa, et. al., 2005: 237), continua a não existir um consenso entre os investigadores. No entanto, desde logo se pode tirar duas conclusões que parecem claras: a de que a inteligência se pode desenvolver e a de que é uma capacidade que serve para conhecer ou compreender. Todavia nem sempre foi assim. Durante muito tempo a noção de “inteligência” foi confinada à medição objectiva e reduzida a um simples número ou escore de QI. Contudo, no quadro actual esta ideia mais tradicionalista de inteligência – traço fixo estabelecido pela genética passível de ser medido mas impossível de ser modificado – está cada vez mais distante. Como afirma Zenita Gunthter, a “inteligência é presentemente um conceito em mudança”, (…) é hoje considerada como um conjunto integrado de várias capacidades cognitivas, socioemocionais, perceptuais, físicas, fisiológicas e até intuitivas, funcionando em (…) harmonia com o quadro de referência e posicionamento geral da pessoa” (Gunthter, 2000: 66). Nesta perspectiva, é a interacção entre o plano genético individual e os elementos presentes no ambiente em que o indivíduo vive que resultam na função mental a que se chama inteligência. Quando essa interacção é enriquecedora e estimulante os resultados permitem altos níveis de funcionamento – sobredotação. Howard Gardner (ver Thomas Armstrong, 2001) também desafiou a ideia tradicional de inteligência, e tentou ampliar o alcance do potencial humano além do escore QI. Mas foi mais longe ao propor uma nova teoria ou perspectiva mais ampla e pragmática, segundo a qual toda a pessoa nasce com um potencial para desenvolver múltiplas inteligências – IM. Começou por considerar a existência de pelo menos sete inteligências básicas, mas mais recentemente acrescentou uma oitava e discutiu a possibilidade de uma nona3. A sua teoria sugere a existência de distintas maneiras de 3 Gardner ainda não a qualificou e inclui inteiramente esta inteligência na Teoria das IM porque considera que ainda não existe um ajuste completo aos critérios para uma inteligência. Sobredotação e Filosofia 12 perceber e conhecer o mundo. Assim, agrupou tais capacidades em oito categorias distintas que passaremos a enunciar de forma sucinta. - A inteligência linguística; relativa à capacidade de usar palavras de forma efectiva, quer oralmente quer escrevendo. - A inteligência lógico-matemática; a capacidade de usar os números de forma efectiva e para raciocinar bem. - A inteligência espacial; a capacidade de perceber com precisão o mundo visuo-espacial e de realizar transformações sobre essas percepções. - A inteligência corporal-cinestésica; consiste na perícia no uso de todo o corpo para expressar ideias e sentimentos e facilidade no uso das mãos para produzir ou transformar coisas. - A inteligência musical; a capacidade de perceber, discriminar, transformar e expressar formas musicais. - A inteligência interpessoal; capacidade para perceber e distinguir o humor, intenções, motivações e sentimentos de outras pessoas. - A inteligência intrapessoal; consiste no autoconhecimento e a capacidade de agir adaptativamente com base neste conhecimento. - A inteligência naturalista; perícia no reconhecimento e classificação das numerosas espécies do meio ambiente do indivíduo. - A estas oito inteligências consideradas por Gardner podemos acrescentar uma nona que ainda não está inteiramente incluída na Teoria das IM: a inteligência existencial. Esta pode ser definida como uma preocupação com as questões básicas da vida. Saliente-se que dado o peculiar interesse que esta inteligência e a inteligência lógico-matemática podem assumir num plano transversal entre sobredotação e as competências filosóficas, isto é, num quadro em que a filosofia é “pensamento lógico no contexto de aquisição de destrezas básicas, numa exigência de indagação racional, de coerência e de análise crítica fundamentadoras das tomadas de decisão (…)” (Rolla 2004: 23), dedicar-lhes-emos particular atenção no segundo capítulo do presente trabalho. Todavia, com o propósito de permitir uma explanação mais detalhada de cada uma das inteligências, à excepção da existencial, constituiu-se um quadro4 formado pelas estruturas cerebrais que estão envolvidas em cada uma. 4 Quadro elaborado com base no mapa resumido de Thomas Armstrong sobre a Teoria das IM (2001: 16-18). Sobredotação e Filosofia 13 Estruturas Cerebrais presentes nas IM Inteligência Componentes Centrais Linguística • Sensibilidade aos sons, estrutura, significados e funções das palavras e da linguagem. LógicoMatemática • Capacidade de discernir, padrões lógicos ou numéricos; capacidade de lidar com longas cadeias de raciocínio. Espacial CorporalCinestésica Musical Interpessoal Intrapessoal • Capacidade de perceber com exactidão o mundo visuo-espacial e de realizar transformações nas próprias percepções iniciais. • Capacidade de controlar os movimentos do próprio corpo e de manipular objectos com habilidade. • Capacidade de produzir e apreciar ritmo, tom e timbre; apreciação das formas de expressividade musical. • Capacidade de discernir e responder adequadamente aos estados de humor, motivações e desejos de outras pessoas. • Acesso à própria vida de sentimento e capacidade de discriminar as próprias emoções; conhecimento das forças e fraquezas pessoais. • Perícia em distinguir entre membros de Sistemas Simbólicos • Linguagens fonéticas (por exemplo, Inglês). Sistemas Neurológicos • Lobos frontal e temporal esquerdo (área de Broca/Wernicke) • Linguagens de computador. • Lobo parietal esquerdo, hemisfério direito • Linguagens ideográficas (por exemplo chinês). • Regiões posteriores do hemisfério direito Factores de Desenvolvimento • “Explode” na infância inicial e permanece até à velhice. • Atinge o seu auge na adolescência e no início da idade adulta, mas as introspecções matemáticas superiores declinam depois dos 40 anos. • O pensamento topológico na infância inicial é substituído pelo paradigma euclidiano por volta dos 9-10 anos de idade. A veia artística continua forte na velhice. • Linguagem de sinais. • Cerebelo, gânglios basais, córtex motor • Variam em função da componente ou do domínio. • Sistemas notacionais musicais, código Morse. • Lobo temporal direito • É a inteligência que se desenvolve mais precocemente. • Lobos frontais, lobo temporal, sistema límbico • A vinculação durante os três primeiros anos é crucial. • Lobos frontais, lobos parietais, sistema límbico. • A formação da fronteira entre o self e o outro nos três primeiros anos é crucial. • Áreas do lobo • Surge em crianças • Sinais sociais (por exemplo, gestos e expressões faciais). • Símbolos do self (por exemplo, nos sonhos e trabalhos artísticos). • Sistemas de Sobredotação e Filosofia Naturalista uma espécie, em reconhecer a existência de outras espécies próximas e em mapear as relações entre várias espécies. 14 classificação de espécies; mapas de habitat. parietal esquerdo são importantes para distinguir entre seres “vivos” e “inanimados”. muito jovens; a escolarização ou experiência aumenta a perícia formal ou informal. A propósito deste modelo Gardner, importa realçar alguns aspectos, nomeadamente o facto de toda a pessoa possuir as oito inteligências, se bem que funcionem juntas e de maneira única em cada pessoa; que a maioria pode desenvolver cada uma num nível razoável de desempenho desde que recebam estímulo, enriquecimento e instrução apropriados; que as inteligências funcionam sempre numa base interactiva e contextualizada; e que existem muitas maneiras de ser inteligente em cada categoria, não existindo um conjunto-padrão de atributos para se ser considerado inteligente em determinada área. Saliente-se que, apesar de ser pertinente, esta abordagem de Gardner das Inteligências Múltiplas não é certamente o primeiro modelo a tratar da noção de inteligência. Efectivamente, desde as épocas mais antigas até às mais recentes, esta tem sido alvo de atenção. Mais recentemente, surgiram teorias de inteligência que variaram entre o “g” de Spearman à Estrutura do Intelecto de Guilford. Neste âmbito, tentar correlacionar a teoria das IM com modelos como o MyersBriggs – teoria da personalidade baseada na formulação teórica de Carl Jung dos diferentes tipos de personalidade – revela-se infrutífera dado o carácter diferencial da Teoria das IM. De facto, contrariamente aos outros modelos que põem a tónica no processo, esta constitui-se como um modelo cognitivo que tenta descrever como os indivíduos usam as suas inteligências para resolver problemas e criar produtos, isto é, como a mente humana pode operar sobre os conteúdos do mundo. Portanto, como afirma Thomas Armstrong “embora possamos identificar relações e conexões, os nossos esforços podem assemelhar-se aos dos Homens Cegos e o Elefante: cada modelo tocando num aspecto diferente do aprendiz total” (2001: 24). Consideramos que será precisamente nestas situações mais precisas da componente humana que o sobredotado deve ser considerado, na medida em que a teoria das IM abre as portas para uma grande variedade de estratégias de ensino inovadoras que podem ser implementadas na sala de aula e de acordo com os diferentes alunos. É precisamente nesta linha, e atendendo ao objectivo da investigação – proporcionar ao sobredotado ambientes e contextos enriquecedores e motivadores através da actividade filosófica –, que consideramos a transversalidade das competências filosóficas. Saliente-se que com esta intervenção Sobredotação e Filosofia 15 “não se pretende que os alunos aprendam filosofias mas a filosofar; que não aprendam as ideias dos outros, mas a idear; que não aprendam as reflexões dos outros, mas a reflectir; e que não aprendam as acções dos outros, mas a agir” (Rolla 2004: 25). 1.2. Características/Padrões Comportamentais do Sobredotado Cientes do facto dos sobredotados não constituírem um grupo homogéneo, mas heterogéneo com vicissitudes próprias de qualquer criança e jovem, leva-nos a não considerar um perfil único do sobredotado. Ora, numa sociedade e num sistema escolar onde muitas vezes se assiste a um escamotear das especificidades destas crianças e jovens, a sua identificação e estimulação reveste-se de especial importância e interesse para um sistema que se quer e deseja inclusivo. Como tal, em primeiro lugar, importa empreender uma análise das suas peculiaridades diferenciais para, de seguida, lhes poder proporcionar uma educação mais adequada às suas necessidades e motivações. Neste âmbito, das muitas características propostas por diferentes autores, seleccionamos apenas algumas que, no nosso entender, se afiguram essenciais na educação destas crianças e jovens, ainda que admitamos que qualquer escolha, e esta em particular, é sempre arriscada e, mais ainda, quando incide em algo tão transcendental como as características da sobredotação. Mas, escolher é renunciar, e renunciar implica sempre comprometimento. Nesta linha, optamos por agrupar5 as características em quatro grupos centrais: as intelectuais, as educativas; as da criatividade e as de personalidade/sociais, para através de uma possível lista de condutas observáveis se perceberem quais são as altas capacidades que se manifestam. Características e Condutas gerais do sobredotado Intelectuais Educativas • Aprendizagem precoce e sem ajuda. • Bom rendimento académico na maioria das situações. • Interesse pela aquisição de • Facilidade em fazer novas 5 Criatividade/Pensamento Divergente Personalidade/Sociais • Independência de pensamento, com tendência à não conformidade. • Capacidade para assumir as perspectivas dos outros. • Manifestação de opiniões • Sensibilidade face às Quadro elaborado com base nas características dos sobredotados referidas por Mª Cármen Del Blanco Valle (2001: 39-46). Sobredotação e Filosofia aprendizagens. • Compreensão de informação e conceitos novos. novos conhecimentos • Interesse e motivação por uma das diversas áreas de investigação intelectual. 16 contrárias às habituais. • Capacidade de iniciativa. necessidades dos outros. • Elevada auto-estima. Características e Condutas gerais do sobredotado (continuação) Intelectuais • Capacidade em utilizar novos conhecimentos na resolução de problemas, práticos e teóricos. • Formulação de princípios e generalização por transferência de aprendizagens. • Compreensão de ideias complexas e abstractas. Educativas Criatividade/Pensamento Divergente Personalidade/Sociais • Expectativas altas, desejo de superação. • Originalidade. • Capacidade para resolver problemas dos outros. • Perfeccionismo na execução de tarefas. • Imaginação e fantasia. • Capacidade de tomar decisões. • Criação de ideias e processos novos. • Audácia e iniciativa. • Soluções criativas de problemas, mediante a utilização de materiais e recursos comuns. • Tenacidade e persistência na busca de metas e objectivos. • Compreensão e aceitação da autoridade, ainda que seja critico dela. • Habilidade para argumentar, perguntar e raciocinar. • Curiosidade intelectual. • Capacidade de memória: retenção fácil e evocação rápida e precisa. • Capacidade de aprendizagem autodirigido. • Curiosidade elevada ante um grande número de coisas. • Motivação intrínseca (fazer algo por gosto) e a sobressair. • Preocupação com o comportamento moral e ético adequado. • Grande sentido de humor. A respeito das características intelectuais entre os sobredotados e os que não são importa salientar, na linha de DarK y Benbow (1993) 6 , que as diferenças se produzem tanto quantitativamente como qualitativamente, quer tanto na sua natureza como nas estratégias de resolução de problemas; que os sobredotados são mais precoces, podendo realizar funções mentais próprias de sujeitos normais de idade mais avançada e resolver problemas mediante estratégias metacognitivas mais 6 Cit. in VALLE, (2001: 39). Sobredotação e Filosofia 17 maduras, empregando mais tempo no processo de planificação e chegando antes à solução do problema. Quanto às características educativas refira-se que, a maioria dos sobredotados gosta da escola e de aprender, contudo não é surpresa que passem despercebidos e até que sejam mal vistos pelos próprios professores devido ao seu constante interesse em perguntar tudo, o seu inusual conhecimento de muitos assuntos e o seu aborrecimento ante tarefas que não despertam o seu interesse. Daí que, a sobredotação não seja sinónimo de êxito académico, mas é um factor que pode indicar como a criança e jovem deve ser ajudada e estimulada para alcançar esse êxito. A criatividade desempenha um papel fundamental neste êxito académico, daí que a escola deva estimular o desenvolvimento da criatividade destas crianças. É por isso importante que o professor deva estimular o aluno a fazer perguntas, a ter um pensamento independente, a produzir novos conhecimentos e a utilizá-los. Claro que subjacente a estas características não se podia deixar de considerar as de personalidade/sociais. Efectivamente, a personalidade ao fazer referência a atitudes e comportamentos emotivos e afectivos em relação aos seus próprios sentimentos e aos dos outros, tem uma grande relação com as funções cognitivas. Como tal, os traços de personalidade dos sobredotados devem ser tidos em conta aquando se define os objectivos académicos. De facto, a escola é o meio onde o sobredotado pode apresentar a melhor adaptação ou o pior desajuste, isto é, a sua capacidade acima da média tanto pode contribuir para um desempenho excepcionalmente bom, como também pode levar ao tédio, aborrecimento, rebeldia e consequente insucesso escolar. De facto, as suas características de personalidade tais como, o perfeccionismo, a auto-critica excessiva, as ideias divergentes e atitudes não conformistas, a super sensibilidade e senso de justiça, e os altos padrões de desempenho, levam-no a ser diferente, podendo causar efeitos negativos no seu desempenho académico, na sua relação com os pares e com os adultos. Ora, neste quadro impõe-se analisar dois dos principais problemas que o sobredotado pode apresentar e que podem ser determinantes no seu perfil – a dissincronia evolutiva e o efeito pigmaleão negativo. 1.3. Problemas dos Sobredotados: a Dissincronia e o efeito Pigmaleão negativo Sobredotação e Filosofia 18 Se bem que a sobredotação não tenha que degenerar necessariamente em problemas, estes podem acontecer se a criança e jovem não estiver integrada num contexto adequado. Na linha de Terrassier (1989: 28-40), pode identificar-se dois possíveis problemas: a dissincronia evolutiva e o efeito pigmaleão negativo. A dissincronia evolutiva refere-se à discrepância que existe entre o rápido desenvolvimento da capacidade intelectual e outras áreas de evoluem de forma normal. Este fenómeno pode originar problemas de identificação dos sobredotados e repercutir-se negativamente ao nível da aprendizagem e, sobretudo, desfasamentos e transtornos na criança nos mais variados aspectos. As irregularidades podem ser ao nível do funcionamento externo e interno. No funcionamento externo, a dissincronia resulta de um desfasamento entre a norma interna do desenvolvimento precoce e a norma social que está adequada à maioria das crianças. Esta situação pode conduzir à dissincronia escolar-social e à familiar. A primeira resulta da diferença de velocidade existente entre o currículo escolar e a capacidade intelectual da criança. A segunda resulta da discrepância que pode existir entre o contexto familiar e as potencialidades do sobredotado. No funcionamento interno a dissincronia refere-se à desigualdade dos ritmos de desenvolvimento interno das crianças e jovens sobredotadas. Esta pode ser de diferentes tipos: - Dissincronia intelectual e psicomotora: precocidade dos sobredotados em relação às crianças normais para andar e falar. Também podem ser precoces na leitura. - Dissincronia da linguagem e do raciocínio: tem um pensamento mais rápido do que a sua capacidade expressiva. - Dissincronia afectivo-intelectual: as suas capacidades intelectuais tornam-nos capazes de adquirir e processar mais informação, enquanto que o nível afectivo e emocional é menor. Por isso é natural que analisem racionalmente a informação que recebem e lhe retire tudo o que tenha de afectivo. O efeito pigmaleão negativo consiste no facto das expectativas que pais e professores têm sobre a criança e jovem poderem influenciar os seus resultados escolares. Ou seja, este efeito produz-se quando professores e pais ignoram a precocidade intelectual da criança e esperam e conduzem-na a comportar-se dentro a “normalidade”. Esta situação pode originar dois tipos de efeitos: o efeito externo e o interno. Enquanto o primeiro é originado pela incompreensão dos pais, professores e companheiros, isto é, estes ao não valorarem as suas necessidades diferenciais e ao tentarem ajustá-las à norma, provocam-lhes a negação das suas capacidades. O Sobredotação e Filosofia 19 segundo efeito – o interno – resulta da tentativa de ajuste do sobredotado ao que se espera dele, o que causa uma imagem de si mesmo de fracasso e de frustração, pois está a negar as suas verdadeiras capacidades e interesses. Por conseguinte, é fundamental estar atento a uma combinação de sinais, porque, efectivamente, a criança e jovem que aprende rápido a ler, que exibe habilidade para determinado instrumento musical, ou expressão verbal mais elaborada do que a normal para sua faixa etária, que chama a atenção pela sua capacidade de argumentação, pela memória excepcional, pela atenção e curiosidade pouco comuns, pelo raciocínio ágil pela extrema curiosidade, pode esconder a face de um sobredotado que requer atenção e eventual acompanhamento terapêutico para que não se torne um adulto com problemas amanhã. Na prática, algumas destas crianças necessita de apoio terapêutico para desenvolver com harmonia suas potencialidades. Portanto, para que estas crianças e jovens sobredotadas tenham um desenvolvimento o mais equilibrado e pleno possível das suas capacidades intelectuais é fundamental que a família e a sociedade, em geral, e a escola em particular, lhes proporcione algumas condições, nomeadamente ao nível de um ambiente de tolerância e de compreensão, no qual elas se vejam como normais embora com especificidades muito próprias, ao nível de novos hábitos de pensar, de exercício da memória, de desenvolvimento da atenção, de busca da clareza na interpretação de informações e o nível do estímulo do raciocínio interpretativo e crítico (discernimento). Desta forma é que, segundo Nelson Lima, será possível superar os erros da Escola actual face aos alunos, em geral, e aos sobredotados, em particular. “O ensino que é fornecido aos nossos filhos assenta naquilo que eu chamo de «os 10 erros monumentais» do sistema actual: não educa para a autonomia do pensamento; inibe o pensamento criativo; institui o medo de errar; promove a submissão intelectual às crenças vigentes, incluindo as científicas; insiste num único tipo de pensamento: o pensamento lógico-matemático; exclui o aluno do processo de construção do conhecimento; ignora as inteligências múltiplas do Homem; apela à aprendizagem pela memorização pura e simples; reforça a ‘autoridade’ do professor como ‘mestre’ detentor da Verdade; e limita o crescimento do EU” (in www.institutodainteligencia.blogspot.com, 2005: 4ª feira, 21 Setembro). Ora, num quadro onde é premente favorecer o pleno desenvolvimento e enriquecimento das potencialidades do sobredotado, parece-nos que a filosofia, na sua dimensão transversal, poderá ser uma mais valia. Efectivamente, sendo a filosofia uma actividade que por excelência visa promover condições que viabilizem uma autonomia do pensar, e que passam indissociavelmente pelo desenvolvimento de algumas operações fundamentais como a Sobredotação e Filosofia conceptualização, 20 a critica/problematização e a argumentação, parece-nos naturalmente profícuo o contributo que este saber poderá oferecer. Como tal, poderá ajudar a enriquecer e a estimular o desenvolvimento das capacidades e potencialidades dos sobredotados e contribuir para uma mudança de atitudes e sentimentos mais negativos em relação aos próprios sujeitos, em relação à escola e ao trabalho escolar. Por conseguinte, uma intervenção a este nível será pertinente e proveitosa na medida em que poderá ajudar, o sobredotado, a atingir um novo equilíbrio eu-mundo, tão importante para o seu desenvolvimento integral como pessoa. Vejamos, então, como se poderá processar esta intervenção a nível filosófico. Sobredotação e Filosofia 21 CAPÍTULO 2. INTERVENÇÃO NO PLANO FILOSÓFICO Começamos por uma questão pertinente: Filosofia para crianças sobredotadas porquê? A resposta subjaz naturalmente se atendermos ao objectivo principal da filosofia – o de “ensinar a pensar melhor". Na linha do neuropsicólogo Nelson S. Lima, a filosofia para crianças, em geral, e para o sobredotado em particular, não deve ser considerada numa perspectiva meramente escolarizadora, pois não é falar de Platão. De facto, é um procedimento que ultrapassa a dimensão meramente teórica, e se consubstancia numa prática através do enriquecimento do intelecto. Num quadro em que a inteligência é concebida não como algo que se adquire e fica estática, mas que, pelo contrário, é dotada de plasticidade, urge estimulá-la, principalmente no caso dos sobredotados. Efectivamente, sendo a sobredotação uma realidade com necessidades e carências específicas em relação às crianças ditas “normais”, sobretudo a nível de estímulos intelectuais, consideramos que a filosofia, através das suas competências transversais, poderá ser um instrumento privilegiado para oferecer aprendizagens enriquecedoras, estimulantes e significativas. Neste sentido, consideramos que a filosofia, enquanto arte de pensar por excelência, ao ser utilizada para exercitar o intelecto dos sobredotados, permitirá “libertar” o pensamento e abrir caminho ao desenvolvimento e/ou fortalecimento de novas atitudes: mais críticas, criativas e mais ajustadas à sua condição de “diferentes”. 2.1. Transversalidade das competências filosóficas Começaremos por referir que as competências filosóficas, não são exclusivas da filosofia, mas revestem-se de um carácter transversal. Deve entender-se a competência transversal como um comportamento ou aptidão que não está directamente vinculada a uma determinada área ou disciplina, mas que é exigida nas diferentes aprendizagens escolares e extra-escolares. Assim, a Sobredotação e Filosofia 22 designação de transversal, deriva do facto de serem competências que cruzam ou atravessam todas as áreas de aprendizagem. Efectivamente, por vezes, a própria literatura pedagógica chama a estas competências aprendizagens nucleares, uma vez que elas se constituem como aprendizagens centrais e determinantes que visam desenvolver processos que contribuem para que os alunos sejam progressivamente mais activos e autónomos na sua própria aprendizagem. Na linha de Michel Tozzi7 centramos as actividades de reflexão filosófica em três operações fundamentais: a conceptualização, a crítica/problematização e a argumentação. Em conjunto, estas operações definem uma aprendizagem dinâmica do filosofar e centrada no progresso dos alunos. 2.1.1. Conceptualização A aprendizagem filosófica supõe a tarefa de conceptualização, isto é, de se definir com rigor e articular os conceitos. Esta aprendizagem revela-se fundamental, na medida em que é ela que nos permitirá pensar novas ideias de maneira consistente e rigorosa. É precisamente este âmbito que confere à filosofia toda a sua originalidade. Por conseguinte, é necessário clarificar e definir com rigor os conceitos, ver as suas diferentes significações. Uma forma prática de o fazer consiste, por exemplo, em clarificar a etimologia de uma palavra. Outra será a de explorar todos os significados do campo lexical ou ainda analisar as palavras vizinhas, opostas ou ainda construir redes de conceitos. Considerando que no sentido mais estrito do termo, a etimologia é o estudo da verdadeira significação das palavras, isto é, determina a origem das palavras a partir do seu étimo – da sua origem, o recurso da filosofia à etimologia justifica-se pelo seu próprio objectivo – tornar mais claro o significado das suas posições. Por isso, o recurso à origem das palavras pode ser muitas vezes o primeiro exercício de conceptualização. Portanto, só no exercício de clarificação e de deslindamento do conteúdo implícito das suas palavras, é que a filosofia dará matéria ao pensar e será reflexão pela linguagem sobre a linguagem. Outra forma de clarificação das questões/conceitos é obtida através da exploração dos diferentes campos lexicais em que se pode aplicar os conceitos. Esta 7 Michel Tozzi é um pensador francês nascido em 1943 em Nîmes. Exerce funções como director do Departamento de Ciências da Educação na Universidade de Montpelier e tem dedicado a maior parte da sua vida ao estudo das questões da Didáctica da Filosofia. Sobredotação e Filosofia 23 exploração consubstancia-se na capacidade de encontrar um elemento comum subjacente às diferenças que possam existir. Exemplifiquemos: o conceito de lei é polissémico, pode, portanto, ser usado com diferentes sentidos. Todavia, apesar da diferença, podemos encontrar um elemento comum: a lei implica a noção de ordem à qual nos devemos submeter. É precisamente esta ideia que deve ser transportada para o campo da filosofia. Esta clarificação ou aproximação ao sentido da palavra ou palavras deverá ser ainda complementada com o estabelecimento de relações, por semelhança ou por oposição, e a formação de redes de conceitos. No âmbito filosófico, esta tarefa tornase fundamental, uma vez que é a formação de redes de conceitos que permite, por um lado, tomar um deles como nuclear e, por outro, fazer associações com outro conjunto de conceitos fins ou que estão facilmente associados. Neste contexto, o termo “rede” deve ser entendido no sentido de um conjunto que se interliga ou entrecruza. 2.1.2. Crítica/Problematização Iniciamos a exploração desta competência tomando como ponto de partida uma afirmação de Edgar Morin, “a filosofia deve evidentemente contribuir para o desenvolvimento do espírito problematizador. A filosofia é, antes de mais, uma força de interrogação e de reflexão que trata dos grandes problemas do conhecimento humano.” Como tal, a reflexão filosófica implica a problematização, pois sem ela não existirá filosofia. De facto, sobre que filosofaremos se não houver qualquer problema para filosofar? A compreensão desta reflexão necessita da inteligência dos problemas que se coloca e tenta resolver e inclui a capacidade de questionar o questionamento. Se a interrogação estabelece e esboça o problema, desencadeia, também a reflexão: o pensamento que regressa a si depois do primeiro afrontamento com o problema. Neste enquadramento, uma das primeiras aprendizagens será a de aprender a problematizar. Esta atitude implica a consciência das dimensões crítica e prospectiva do pensamento: crítica, porque é pela reflexão que se torna possível avaliar continuamente, pôr em causa, desconstruir os dados da experiência imediata, as necessidades e interesses, os saberes e os poderes; prospectiva, enquanto, pela reflexão, se recusa o fechamento no hic et nunc – aqui e agora – no urgente e no Sobredotação e Filosofia 24 efémero, mas, pelo contrário, se abre para o futuro e para o projecto – condição de humanidade e de sentido. Portanto, é pela reflexão que o ser humano pode identificar o seu intransferível modo de ser e, a partir dele, perspectivar o mundo e a vida de uma maneira eminentemente pessoal, quer dizer, filosófica. Como tal, a filosofia ultrapassa um modo de pensar e saber, concretiza-se num iniludível modo de viver, numa sabedoria que ultrapassa a experiência e se ancora na reflexão. 2.1.3. Argumentação A reflexão filosófica integra a argumentação. De facto, a aprendizagem filosófica supõe aprender a argumentar. As intervenções e escritos não se devem limitar à simples expressão de uma opinião, mas conduzem, muitas vezes a um processo crítico de argumentação. Quando argumentamos, defendemos o nosso ponto de vista e devemos ser capazes de o justificar racionalmente. O ideal seria que a filosofia fosse um precioso contributo que ajudasse na libertação dos discursos centrados em lugares-comuns, das escolhas e preferências muitas vezes irracionais, e muitas vezes ditadas por influências pouco fundamentadas. Como se pode que tais justificações não sejam, muitas vezes, uma mera reprodução de pensamentos e ideias dos outros? Esta dificuldade pode ser colmatada com o treinamento das capacidades argumentativas. De acordo com uma definição muito sumária, podemos dizer que argumentar é defender uma ideia, uma opinião, apresentando um conjunto de razões que justifiquem essa tomada de posição. Efectivamente, a argumentação tem uma enorme importância no dia-a-dia, pois muitas vezes somos obrigados, pelas circunstâncias, a apresentar as razões e justificações dos comportamentos e posições. Apesar de haver situações em que não é preciso argumentar, outras há em que é fundamental. São estas que verdadeiramente interessam à filosofia, uma vez que constituem o terreno por excelência para o exercício do discurso argumentativo. A este propósito refira-se algumas das grandes questões que, provavelmente, nos preocupam enquanto seres humanos: Devemos ou não autorizar o aborto? Devemos aceitar que existem raças superiores e raças inferiores? “Quem somos nós?”, Qual o sentido disso tudo?”, “Existe significado para a vida?”. Sobredotação e Filosofia 25 Portanto, sejam questões mais ou menos abstractas e de carácter existencial, são questões relativamente às quais podemos apresentar um razoável conjunto de argumentos, uma vez que se trata de questões relativamente às quais não é possível ter certezas absolutas. Pelo contrário, pressupõe sempre a livre discussão assente na verosimilhança8. Portanto, ao considerar-se as principais características do sobredotado que habitualmente são estioladas no sistema educativo actual, verifica-se que estas se constituem como um terreno fértil para o desenvolvimento e treino das competências filosóficas e consequente enriquecimento e estímulo das suas capacidades. Ora, é precisamente neste enquadramento que se estabelece, de forma natural, a interdisciplinaridade entre a filosofia e a sobredotação e que nos propomos analisar de seguida. 8 A palavra “verosimilhança” deriva de verosímil que significa o que parece verdadeiro, plausível, provável, daí que digamos que algo tem verosimilhança quando parece verdadeiro. Sobredotação e Filosofia 2.2. 26 Interdisciplinaridade Filosofia/Sobredotação Sendo já ponto assente de que o sobredotado necessita de um atendimento especial para fazer frente às suas necessidades cognitivas e emocionais. Consideramos que esse atendimento poderá passar pela adopção de programas curriculares mais adaptados e métodos/estratégias educativas que aproveitem e desenvolvam as suas capacidades de forma harmoniosa, quer em áreas em que sejam especialmente dotadas quer em áreas mais fracas. Só assim, segundo Joan Freeman e Zenita Guenther (2000: 11), é que se poderá ajudar a reconhecer, compreender, identificar, orientar e estimular o desenvolvimento de crianças e jovens com sinais de capacidades e potencial acima da média. É que, e tal como qualquer criança, as crianças sobredotadas também precisam de aprender, mas há que reconhecer que este processo não deve passar por uma adaptação do aluno à escola, na medida em esta está pensada para a “normalidade”, mas deverá antes passar por uma adaptação da escola e dos seus currículos aos alunos com capacidades acima da média. Neste quadro, é fundamental prospectar uma pedagogia que assuma o desafio de construir uma educação diferente, encaminhada à flexibilização e intervenção intra e extra-escolar destas crianças e jovens. Assim, só mediante uma acção vincadamente humanizante e inclusiva, é que criança poderá explorar plenamente todas as suas potencialidades. É precisamente no âmbito de enriquecimento curricular ou extra curricular, que consideramos que a transversalidade/interdisciplinaridade das competências filosóficas se poderão constituir como um instrumento privilegiado de trabalho. Efectivamente, se considerar-mos as principais características do sobredotado, capacidade de pensamento independente, uma postura aberta a coisas e situações novas e pouco usuais, o gosto pelos conceitos abstractos e interesse nas suas relações, uma postura criativa, inventiva e crítica em relação a si a ao que o rodeia, curiosidade intelectual, e habilidade para argumentar, perguntar e raciocinar, desde logo subjaz a sua interdisciplinaridade com as competências filosóficas. Assim, num quadro rico e privilegiado para uma acção vincadamente filosófica em que a inteligência do sujeito, na linha de Howard Gardner, é considerada como um potencial múltiplo, optamos por centrar a intervenção na inteligência lógico-matemática e na existencial. A primeira porque, na linha do programa de Matthew Lipman – Sobredotação e Filosofia 27 Filosofia para crianças – se pode incidir a intervenção nos princípios do raciocínio lógico para que os alunos pensem mais logicamente, criticamente e responsavelmente. E a segunda, porque ao ser uma preocupação com as questões básicas da vida, parece-nos que deixa espaço para uma intervenção explicitamente filosófica. Assim, partindo da análise das especificidades de cada inteligência – lógicomatemática e existencial – tentaremos esboçar, na segunda parte deste trabalho, alguns traços metodológicos que ao apontarem a possibilidade de uma relação transversal entre a sobredotação e as competências filosóficas, possam contribuir para o estímulo e enriquecimento das potencialidades do sobredotado. 2.2.1. A inteligência lógico-matemática Esta inteligência revela-se na capacidade mental do ser humano apreender e guardar e aplicar relações, nomeadamente numéricas, quantitativas e simbólicas e de as usar no quotidiano de forma efectiva para raciocinar bem e resolver problemas. Ao incluir sensibilidade a padrões e relacionamentos lógicos, afirmações e proposições (se-então, causa-efeito), funções e abstracções, revela a capacidade do indivíduo criar soluções factíveis. Essas soluções são rapidamente formuladas pela mente e apresentam coerência antes mesmo de serem representadas materialmente. Os processos que permitem este tipo de inteligência incluem: categorizações, classificações, inferências, generalizações, cálculos e testagem de hipóteses. 2.2.2. A inteligência existencial A habilidade principal desta inteligência humana surge, segundo Gardner, da capacidade humana de “se situar em relação aos limites extremos do mundo como o infinito e o infinitesimal” (cit. in Armstrong, 2001:164). Saliente-se que este ‘situar’ decorre do facto de ser inerente à condição humana de existir e representar o mundo com significados sobre a vida, a morte, o destino do mundo, o porquê do amor e o significado da felicidade. Ao tratar-se de uma inteligência que se preocupa com a busca de respostas a questões básicas da vida, tais como “Quem somos nós?”, “Existe significado para a vida?”, e “Qual o sentido da morte?”, lida com informações sobre a condição humana que criam conhecimentos que se implicam na orientação da vida social. Sobredotação e Filosofia 28 Os indivíduos que desenvolvem esse tipo de inteligência assumem papéis explicitamente filosóficos, científicos e religiosos; labutam na a elaboração de princípios orientadores das sociedades; e tentam desconstruir paradigmas com a elaboração de novas noções que validem os acontecimentos sociais. Portanto, é nos âmbitos lógico-matemático e existencial aos quais são inerentes e exigidas atitudes de indagação, questionamento e reflexão, que nos propomos contribuir para a ampliação e enriquecimento das capacidades dos sobredotados. Consideramos que, só mediante uma intervenção num plano interdisciplinar, neste caso filosófico, é que será possível responder às necessidades de aceleração e de complexificação essenciais no processo de ensino-aprendizagem dos sobredotados. Esta complexificação assenta, nas palavras de Helena Serra, “na ampliação e enriquecimento dos conteúdos curriculares pelo estudo de questões, problemas e temas que pressuponham relações entre ideias, conexões com outros assuntos, adopção de diferentes pontos de vista, prática de interdisciplinaridade (…)” (2004: 28). Efectivamente, é pressupondo um quadro de interdisciplinaridade/transversalidade que veiculamos a relação entre sobredotação e filosofia a uma dimensão exploratória. Sobredotação e Filosofia 29 II PARTE Investigação Empírica Sobredotação e Filosofia 30 CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS 1.1. Objecto e Objectivos de Estudo Tomando como objecto de estudo a realidade das crianças e jovens sobredotadas, e adoptando como pergunta de partida a de saber de que forma a sobredotação e as competências filosóficas podem ser abordadas numa perspectiva transversal, remete-se, naturalmente, a investigação para o âmbito das ciências sociais. Aliás, não podia deixar de o ser, na medida em que se centra numa abordagem da inter-relação entre a sobredotação e a filosofia, isto é, assenta, acima de tudo, na tentativa de conceber para tentar pôr em prática um dispositivo que, por um lado, elucide mais eficazmente a realidade em estudo e, que por outro, contribua para uma atitude mais interdisciplinar e assertiva por parte de todos intervenientes no processo de ensino-aprendizagem dos sobredotados. Portanto, é neste contexto de interdisciplinaridade, e convictos de que a filosofia, com as suas competências transversais, poderá contribuir para uma alteração das práticas pedagógicas em relação aos sobredotados, que consideramos que um dos principais objectivos da investigação deverá ser o contributo que pode dar no sentido de uma verdadeira inclusão9 desses alunos na realidade educativa. Assim, aliando características intrínsecas do sobredotado às competências filosóficas pretende-se demonstrar a sua interdisciplinaridade/transversalidade e, simultaneamente, proporcionar ambientes estimulantes e contextos enriquecedores no sentido destes poderem usufruir de uma educação diferenciada e potenciadora das suas capacidades. Por conseguinte, através da estimulação do pensamento abstracto, crítico e lógico, da imaginação e especulação, da capacidade persuasiva e argumentativa e da formação, clarificação e relacionação de conceitos, pretende-se consubstanciar no plano prático os objectivos enunciados. Claro que a exequibilidade destes pressupostos assenta, naturalmente, em certos procedimentos metodológicos, sendo precisamente estes que nos propomos desenvolver e apresentar de seguida. 9 É a estruturação do programa da escola de forma a dar resposta à diversidade dos alunos que atende. Sobredotação e Filosofia 31 Claro está que a par destas motivações, expectativas e objectivos orientadores e desejáveis de concretização prática, estamos cientes que teremos de lidar não só com benefícios ou vantagens, mas também com problemas e dificuldades inerentes à investigação. Neste quadro, se por um lado, se espera que uma das vantagens vá no sentido de contribuir para impulsionar e dinamizar o desenvolvimento pleno das potencialidades destas crianças e jovens, nomeadamente ao nível de uma melhor adaptação, interesse e empenho nas actividades escolares, por outro lado, um dos mais importantes problemas com que poderemos ter de lidar poderá ser a falta de motivação e interesse dos próprios alunos, assim como a pouca disponibilidade para lidarem com os novos desafios inerentes ao projecto. Embora cientes destas dificuldades, esperamos que este projecto promova novas perspectivas e posturas face à realidade da sobredotação. Partindo destes pressupostos, impõe-se naturalmente a questão: Que fazemos quando queremos saber ou conhecer algo? Perguntamos. Mas este processo de indagação pelo conhecimento não é aleatório, obedece a regras rigorosas, com procedimentos regulares claramente definidos e passíveis de repetição. Estas regras constituem o método. Vejamos então, que papel assume nos processos investigativos. 1.2. Importância do Método Todo e qualquer método constitui-se como um instrumento, um guia ou o caminho que se segue para alcançar um objectivo previamente estabelecido. Como tal, o método é crucial na medida em que é o responsável pela eficácia da investigação, dá credibilidade aos resultados obtidos e é um dos critérios que permite distinguir os conhecimentos verdadeiramente científicos dos que o não são. Agora impõe-se a pergunta: será que podemos afirmar que há um método científico único? Sim e não. Sim, se entendermos por método científico o conjunto de procedimentos ordenados e sistematizados para ser adoptado pelo pesquisador na sua investigação. Não, se considerarmos concretamente os procedimentos a adoptar em cada ciência em particular. Por conseguinte, a este propósito, saliente-se que não há um método único que possa ser mecanicamente aplicado às diferentes áreas de investigação. Efectivamente, ao determinar o seu campo de investigação, cada ciência define uma perspectiva própria e um conjunto de objectivos e de procedimentos (métodos e Sobredotação e Filosofia 32 técnicas) que lhe permitirão construir uma visão específica da realidade que se propõe estudar. Neste âmbito, parece óbvio que os procedimentos usados numa investigação em ciências sociais e humanas serão diferentes dos usados noutros domínios de investigação. Assim, partindo do pressuposto de que diferentes investigações exigem diferentes considerações epistemológicas acerca da natureza do conhecimento científico e de como adquiri-lo, faremos, de seguida, uma breve resenha pelas metodologias quantitativa e qualitativa, para melhor fundamentarmos a metodologia seleccionada para a investigação. 1.3. Metodologia Adoptada Os procedimentos da pesquisa educacional são, efectivamente, determinados pelo tipo de pressupostos considerados. Assim, de uma forma simples podemos dividir estes procedimentos em dois tipos de paradigmas10: o quantitativo e o qualitativo. Enquanto o primeiro está, tradicionalmente, associado ao positivismo, assenta na assumpção de que o meio social constitui uma realidade independente e relativamente constante no tempo e lugar, por seu turno, o segundo, que se associa ao pós-positivismo, considera que os factos do meio social são construídos pelas interpretações dos indivíduos sendo, por isso, transitórias e situacionais. Daqui resulta a designação de Paradigma interpretativo, pois de acordo com Léon Bennier, “não existe melhor porta de entrada para as realidades humanas e as práticas sociais do que as interpretações que os seres humanos formulam” (cit. in Lessard-Herbert (1994: 14). Portanto, para o quadro positivista, que considera que a descoberta e a verificação de leis gerais fundamentando-se exclusivamente na observação exterior objectiva, apenas o mundo dos factos é cientificamente analisável. O mundo social e humano, na sua essência, é tido como inacessível, isto é, o mundo subjectivo da consciência e dos valores escapa a toda e a qualquer tentativa de cientificação, é considerado como não tendo interesse significativo em si mesmo. Já o paradigma qualitativo põe a tónica no interesse conferido pelos investigadores às acções nas quais se empenham, a que Erickson (1986) chama de «investigação interpretativa». Neste quadro, a interpretação desempenha um papel-chave na vida e nos fenómenos sociais, na medida em que os significados que os sujeitos criam estão 10 Modelo de pensar e de descrever a realidade, de interpretar e explicar o mundo. Sobredotação e Filosofia 33 ligados à variabilidade subjacente às percepções das suas interacções sociais. Como tal, parafraseando Erickson, a investigação incidirá sobre o modo como se desenvolvem e mantêm os sistemas de significado e não sobre os comportamentos observáveis. Efectivamente, se atendermos à tradição da investigação qualitativa em causas sociais, verifica-se que consiste, essencialmente, em estudar e em interagir com as pessoas no seu terreno, através da sua linguagem, sem recorrer a um afastamento, o que acarretaria o emprego de formas simbólicas, estranhas ao seu meio. Além do mais, o próprio termo “qualitativo” sublinha a importância que o carácter de proximidade entre o investigador e os participantes têm no processo investigacional. Portanto, a propósito das duas metodologias analisadas de forma sucinta, saliente-se que, apesar de terem como subjacente dois paradigmas diferentes, na prática podem utilizar-se as duas pois complementam-se. Por exemplo, pode começar-se com um estudo exploratório qualitativo, depois recorrer a uma técnica quantitativa de recolha de dados para depois testar o modelo na realidade. Ou, então, após um estudo quantitativo podem ter-se detectado relações entre variáveis difíceis de discriminar e isolar e, daí, partir para um estudo qualitativo. Efectivamente, e parafraseando Bruce Biddle e Donald Anderson, não é adequado comparar a eficácia das duas metodologias, visto cada uma ter diferentes objectivos, e muitas vezes precisamos de ambas. Ora, ao perspectivar-se no campo de uma abordagem transversal da sobredotação e das competências filosóficas, o presente trabalho exige a procura de processos de objectivação que permitam construir um quadro mais compreensivo e explicativo dos sujeitos para assim se conhecer as suas reflexões, interpretações, motivações e interesses acerca da realidade que os envolve. Neste quadro de subjectividade, consideramos que a metodologia que melhor poderá permitir estudar interpretar e compreender a realidade da sobredotação será a qualitativa. De facto, segundo Van der Manen, “a investigação no campo da Educação só dificilmente é verificativa; ela não se pode verdadeiramente submeter às exigências de uma perspectiva quantitativa. Se se pretender que a investigação seja consistente com as características do objecto e com os obstáculos do campo, ela será sempre explorativacompreensiva” (cit. in Lessard-Herbert (1994: 2). Trata-se, por isso, de uma metodologia que, além de permitir lidar com os participantes no seu contexto, privilegiando os processos, também visa centrar os seus procedimentos na mudança. O que em última análise pressupõe uma Sobredotação e Filosofia 34 investigação pedagógica na medida em que o investigador, como agente da prática pedagógica, pretende utilizar esta abordagem para optimizar o seu plano de acção. Neste contexto, considera-se que o estudo de caso do tipo observacional, será aquele que mais fielmente nos permitirá alcançar os objectivos traçados. Assim, a partir de um conjunto de instrumentos, designadamente inquéritos e documentos que privilegiem as competências filosóficas, nomeadamente as classificações e categorizações, a resolução de dilemas e o questionamento socrático, pretende-se contribuir e proporcionar às crianças e jovens sobredotados ambientes e contextos estimulantes, enriquecedores e motivadores, para desenvolverem plenamente as suas potencialidades. Sobredotação e Filosofia 35 CAPÍTULO 2. ETAPAS METODOLÓGICAS 2.1. Formulação do Problema e das Hipóteses Terminamos o capítulo anterior vendo como proceder à exploração e execução dos propósitos do trabalho. Trata-se agora de precisar e formular uma problemática bem como as hipóteses relacionadas com a pergunta de partida: de que forma a sobredotação e as competências filosóficas podem ser abordadas numa perspectiva transversal? Efectivamente, é à luz da problemática escolhida que a pergunta de partida ganhará o sentido particular e preciso, bem como a orientação específica na qual se procurará uma resposta, isto é, a finalidade do projecto. Por conseguinte, ao escolhermos a problemática estaremos, ao mesmo tempo, a tentar definir com mais precisão e a optar por um determinado modo de abordagem do objecto de estudo da investigação. Assim, e dado que estes planos se cruzam, pode-se produzir várias possibilidades de afrontar a questão e conceber outras abordagens possíveis. Vejamos então como escolher concretamente a nossa problemática. Tendo em linha de conta a orientação esboçada pela pergunta de partida, constitui-se como problema o modo como poderemos encontrar respostas específicas às necessidades, interesses e motivações das crianças e jovens sobredotados, num quadro de enriquecimento das inteligências lógico-matemática e existencial. Ora, esta problematização para ser elucidada tem de ser desenvolvida e confrontada com a realidade, é que a mera conceptualização nada dizem sobre a maneira de a estudar e compreender. Tal função é assegurada pelas hipóteses. Constituem-se, de certo modo, como respostas provisórias e relativamente sumárias que inspirarão a fase subsequente da investigação, a recolha e análise dos dados que serão, posteriormente, testados, corrigidos e aprofundados. De facto, a organização de uma investigação em torno de hipóteses de trabalho constitui a melhor forma de conduzir com ordem e rigor a descoberta. Atendendo à pergunta de partida e à problemática já formulada, julgamos que algumas hipóteses surgem de forma natural. Assim, consideramos que: Sobredotação e Filosofia 36 1. As crianças e jovens sobredotados, dadas as suas características intelectuais e mediante uma intervenção diferenciada, não sentirão a necessidade de reprimir as suas capacidades excepcionais. 2. As crianças e jovens sobredotados, dadas as suas características intelectuais e mediante uma intervenção diferenciada, sentir-se-ão mais acompanhadas e respeitadas pelo sistema escolar. 3. As crianças e jovens sobredotados, dadas as suas características intelectuais e mediante uma intervenção diferenciada, sentir-se-ão mais motivadas pelo estudo e pela indagação. Portanto, as hipóteses são efectivamente cruciais em qualquer investigação. Estas apresentam-se, como afirma Raymond Quivy, “como movimentos de vaivém entre uma reflexão teórica e um trabalho empírico. As hipóteses constituem as charneiras deste movimento; dão-lhe a sua amplitude e asseguram a coerência entre as partes do trabalho” (1992: 120). Claro que para prosseguir a investigação não basta determinar o tipo de dados que deverão ser considerados, é fundamental circunscrever o campo das noções subjacentes às hipóteses estabelecidas. 2.2. Explicitação das Noções das Hipóteses Sendo que ao construirmos hipóteses não estamos simplesmente a imaginar uma relação entre dois termos ou duas variáveis isoladas, trata-se sim, de uma operação mais complexa: explicitar a lógica das relações que unem as noções evocadas: crianças e jovens sobredotados, características intelectuais, intervenção diferenciada, repressão das suas capacidades excepcionais e motivação. Efectivamente, estas noções evocadas em cada hipótese são uma construção abstracta que visam dar conta do real. Claro que nelas não estão contidos todos os aspectos da realidade em questão, mas apenas aqueles que se consideram essenciais para a realidade em estudo. Por conseguinte, vejamos quais as dimensões que constituem as várias noções utilizadas para, de seguida, se precisar os instrumentos e indicadores que permitirão a sua medição. Assim, quando nas hipóteses enunciadas fazemos uso das noções “crianças e jovens sobredotados” e “características intelectuais”, recuperamos, por um lado, a noção de sobredotação anteriormente explorada: conjunto de características diferenciais únicas que resultam das dimensões afectiva, social, cognitiva, e que Sobredotação e Filosofia 37 devem ser, na linha de Alencar, inferidas a partir das especificidades de cada indivíduo e, por outro, torna-se, mais uma vez presentes as suas capacidades intelectuais, nomeadamente: a facilidade na compreensão de informação e conceitos novos e em fazer novas aprendizagens, a facilidade na compreensão de ideias complexas e abstractas, a habilidade para argumentar, perguntar e raciocinar e a curiosidade intelectual. De seguida a tónica é colocada na noção de “intervenção diferenciada”, para tentar destacar em que medida as crianças sobredotadas têm necessidade de contextos escolares e familiares estimulantes e enriquecidos de forma a conseguirem mostrar-se na sua plenitude e a poder explorar e desenvolver ao mais alto nível todas as suas potencialidades. Neste âmbito, consideramos que uma intervenção no plano das competências filosóficas, em geral, e, em particular, ao nível das inteligências lógico-matemática e existencial, será um meio capaz de responder adequadamente às diferentes capacidades, interesses e necessidades do aluno, sobretudo num quadro prático onde muitas destas capacidades podem ser reprimidas, dissimuladas e escondidas pela criança na tentativa de que, ao assemelhar-se aos colegas, seja aceite e assim não esteja sujeita à sua hostilidade. A este contexto subjaz, naturalmente, a noção de motivação. De modo efectivo, ela constitui-se não só como um dos objectivos de toda a intervenção, mas também de toda a investigação: contribuir para que as crianças e jovens sobredotados se sintam motivados pela e para a aprendizagem. Por conseguinte, uma vez explicitadas e/ou esclarecidas as dimensões das noções constituintes das hipóteses, poderemos agora precisar os indicadores/sinais a partir dos quais estas dimensões poderão ser trabalhadas, pois, tendo em vista os objectivos traçados, são eles que apontarão o caminho a seguir. Porém, só mediante a construção de instrumentos de recolha de dados pertinentes, é que se poderá desenhar a verificação das hipóteses avançadas e a especificação dos conceitos a elas subjacentes. 2.3. Instrumentos de Recolha de Dados Tendo por base os intentos previamente estabelecidos, na linha de Joseph S. Renzulli, optou-se pela construção, elaboração e aplicação de três inquéritos por questionários, às crianças e jovens sobredotados, aos pais e aos professores. Sobredotação e Filosofia 38 Escolheu-se este instrumento de recolha de informações dado o seu o seu carácter formal e preciso se prestar a uma utilização prático-pedagógica. A – Inquérito às crianças e jovens sobredotados* Este inquérito tem como objectivo fundamental auscultar os seus interesses e motivações bem como conhecer a percepção que eles têm de si mesmo, nomeadamente a nível cognitivo. B – Inquérito aos pais* Dado que as representações que os pais têm dos filhos se repercutem aos mais variados níveis: afectivo-emocional, social e escolar, pareceu-nos naturalmente profícua a sua colaboração. C – Inquérito aos professores* Para se alcançar um conhecimento mais profundo da realidade em estudo, não podíamos deixar de auscultar a opinião dos professores. Considera-se que o professor é um elemento essencial no processo educativo, na medida em que dele depende parte do sucesso ou insucesso educativo da criança, será um elemento incontornável para se conhecer as suas opiniões quanto à criança, quanto ao seu atendimento pela escola e quanto aos estímulos que lhe são proporcionados. Atendendo ao contexto específico em estudo, consideramos imprescindível fazer, de seguida, uma auscultação dos principais agentes envolvidos, na medida em que as suas respostas se revelam fundamentais para a consecução dos objectivos estabelecidos. 2.4. Selecção da Amostra Convictos de que as competências filosóficas poderão contribuir de modo pertinente para o desenvolvimento e estímulo das potencialidades dos sobredotados, isto é, para alcançar os objectivos traçados, seleccionamos uma amostra de crianças e jovens cujas idades estão compreendidas entre 12 e os 16 anos. O interesse por esta amostra prende-se com o facto de serem jovens que, à partida, já se encontrarão no último estádio de desenvolvimento cognitivo considerado por Piaget – estádio das operações formais. Este estádio caracteriza-se pelo aparecimento de um novo tipo de pensamento: um pensamento abstracto, lógico e formal. Diferentemente do estádio das operações concretas – operar com suporte no concreto –, a criança já é capaz de resolver problemas e realizar operações formais. * Anexo I Anexo II * Anexo III * Sobredotação e Filosofia 39 Coloca mentalmente as hipóteses, deduzindo as consequências: raciocínio hipotéticodedutivo11. Pensa abstractamente, formula e verifica hipóteses. Ora estas capacidades, que abrem caminho à reflexão filosófica, afiguram-se essenciais para, através das inteligências lógico-matemática e existencial, se estimular e potenciar as capacidades intelectuais do sobredotado. Portanto, é precisamente a partir deste pressuposto que se impõe verificar se a criança e jovem, que neste estádio já é capaz de raciocinar sobre hipóteses abstractas, apresentar e defender pontos de vista por via lógico-argumentativa, e capaz de ter preocupações e questões de ordem existencial, será receptiva e permeável a estímulos no plano filosófico. Claro que neste processo não podíamos deixar de considerar outros agentes, nomeadamente os pais e os professores da criança e jovem, na medida em que, dada sua relação proximal, em contexto familiar e escolar respectivamente, poderão fornecer indicadores valiosos para melhor se poder delinear uma acção filosófico-interventiva. 2.5. Procedimentos Criados os inquéritos, de seguida foram veiculadas condições de aplicabilidade de forma a permitir fazer a triangulação entre as respostas obtidas das diferentes fontes: sobredotados, pais e professores, e desse modo pôr em andamento toda a investigação empírica. Assim, a recolha dos dados por questionários obedeceu a algumas condições de realização previamente estabelecidas para garantir que não houvesse enviesamentos dos dados recolhidos. Antes da distribuição genérica dos questionários, foi efectuado um pré-teste com a colaboração de um aluno e respectivo encarregado de educação e de um professor, de forma a evidenciar as possíveis deficiências das questões constantes nos inquéritos. A este procedimento seguiu-se a entrega pessoal dos questionários às crianças e aos professores. Foi ainda obtida a colaboração dos directores de turma no sentido de serem distribuídos os questionários aos pais das crianças. Foi explicado, oralmente e por escrito, o que se pretendia dos inquiridos, o fim a que se destinavam os dados obtidos bem como o prazo para preenchimento e entrega dos respectivos 11 Um processo de raciocínio através do qual uma regra geral é inferida a partir de casos específicos e do uso de observações, conhecimentos, experiências e crenças. Sobredotação e Filosofia 40 questionários. Acrescente-se ainda que se deu a conhecer à amostra a condição de anonimato e de confidencialidade a que estariam sujeitos os dados recolhidos. No que diz respeito aos alunos, depois de obtidas informações sobre a distribuição da componente lectiva e a carga horária, os inquéritos foram realizados durante 90 minutos e em contextos individuais e reservados, previamente combinados. Foram efectuados em ambiente de silêncio e tranquilidade para garantir as condições que se consideram mais adequadas à sua realização. No que concerne aos professores, foi convencionado o prazo de três dias para o preenchimento e entrega, em mão, ao avaliador dos respectivos inquéritos. Quanto aos pais, também foi convencionado o mesmo prazo, mas fazendo-se a entrega dos inquéritos através do director de turma da criança. Portanto, uma vez consertados os procedimentos tratou-se, em seguida, de verificar se as informações recolhidas corresponderiam aos resultados veiculados pelas hipóteses. 2.6. Tratamento de Dados Após a recolha dos dados considerados nos respectivos inquéritos, procedeu- se ao respectivo tratamento. Para facilitar e agilizar este processo de análise construíram-se e elaboraramse, na linha de Joseph S. Renzulli, escalas de tratamento e análise das características comportamentais de crianças e jovens sobredotados, observadas pelos próprios e pelos pais e pelos professores*. Uma vez efectuado o tratamento e análise do conteúdo dos dados recolhidos e tendo-se concluído que a criança necessita, de forma efectiva, de uma intervenção diferenciada orientada, principalmente, para a estimulação e enriquecimento das suas competências lógico-matemáticas e existenciais, intentaremos delinear algumas linhas orientadoras das estratégias e actividades para a intervenção. * Anexo IV Sobredotação e Filosofia 41 CAPÍTULO 3. INTERVENÇÃO 3.1. Estratégias/Actividades O facto destas crianças e jovens sobredotadas apresentarem uma série de características intelectuo-comportamentais nem sempre consideradas nos programas e currículos educativos, torna necessário tomar medidas que tenham em conta estas diferenças de capacidades, para assim lhes permitir alcançar o melhor desenvolvimento de todas as suas potencialidades. A nível da intervenção educativa a resposta pode ser encontrada na utilização de algumas estratégias, nomeadamente a aceleração, o agrupamento e o enriquecimento curricular. Situando a investigação no âmbito filosófico, e atendendo à avaliação dos dados recolhidos junto dos principais intervenientes – o sobredotado, os pais e os professores – a estratégia que nos propomos desenvolver é a de enriquecimento A opção por esta estratégia prende-se com o facto de se considerar que ela é a que melhor permitirá estabelecer parâmetros de intervenção mais adequados de forma a serem evitados desajustes emocionais, inibição intelectual, e do que é mais importante: “respetar el derecho a la diversidad y a la igualdad de oportunidades, dando a cada alumno/a lo que necesita para um adecuado desarrollo” (Alonso y Benito, 1996: 206). Neste enquadramento, considera-se que o enriquecimento, no plano de uma acção filosófico-interventiva, deverá passar pelo planeamento e definição de estratégias/actividades transversais aos domínios em estudo: sobredotação e filosofia*. Assim, a partir da conformidade entre estratégias/actividades filosóficas e os interesses e motivações do sobredotado, consideramos que a resolução de problemas lógicos e de exercícios de pensamento crítico, a análise de casos/dilemas e o estabelecimento de suposições, poderão servir de instrumentos facilitadores ao estímulo das suas inteligências lógico-matemática e existencial* e, consequentemente, contribuir para enriquecer suas potencialidades intelectuais. * * Anexo V Anexo VI e VII Sobredotação e Filosofia 3.2. 42 Antecipação dos Resultados A exequibilidade dos pressupostos teóricos nos quais assenta este projecto, depende grandemente das práticas educativas bem como das políticas educativas orientadas para a inclusão bem sucedida de todas as crianças. Assim, se em termos legislativos é afirmado o direito de todos à educação, na prática é possível detectar-se problemas e inconsistências, designadamente a nível humano e material. Como tal, se por um lado a escola não possui espaços específicos nem meios financeiros para poder prestar um acompanhamento mais individualizado às crianças, em geral, e às crianças e jovens sobredotados, em particular, por outro lado, deparamo-nos com uma falta de preparação para lidar com as especificidades dos alunos, em particular dos sobredotados. Assim, se é verdade que ainda existe pouca sensibilidade face à realidade da sobredotação, quer por parte dos professores quer por parte dos pais, também não é menos verdade que muito se tem feito no sentido de se melhorar a percepção desta realidade. Portanto, num quadro educativo onde muitas vezes as dificuldades e burocracias se sobrepõem aos interesses dos alunos e, consequentemente, ao objectivo prioritário da construção de uma escola mais humanizada, impõe-se construir com sucesso uma escola inclusiva assente em pressupostos diferenciados consoante as realidades imensamente abrangentes que abarca. Sobredotação e Filosofia 43 REFLEXÕES FINAIS Imbuídos no espírito de uma sociedade contemporânea que teoricamente faz a apologia da inclusão – ‘todos diferentes mas todos iguais’ – mas que na prática é reveladora de comportamentos e atitudes de exclusão que acentuam as diferenças, a escola, em geral, e os intervenientes educativos, em particular, devem ter uma palavra a dizer. Ora, foi com base neste propósito que orientamos a acção. Assim, acreditando que a versatilidade e transversalidade inerentes ao campo filosófico poderia contribuir de forma efectiva para complementar e enriquecer os percursos das crianças e jovens sobredotados a nível individual e ao nível dos seus desempenhos escolares, propusemos algumas actividades com vista a uma intervenção diferenciada. A este propósito, não deixamos de notar que a falta de um feedback da aplicabilidade prático-interventiva não permitiu ir além de meras conjecturas e, consequentemente, fazer reajustes à intervenção. Assim, embora cientes das limitações inerentes aos domínios teóricos e práticos do trabalho, pretendeu-se abordar a transversalidade entre a sobredotação e a filosofia no campo da estimulação das inteligências lógico-matemática e existencial, não de forma estanque, mas pelo contrário, ‘dar um pequeno passo’ em direcção a uma intervenção mais alargada – que contemple outras inteligências. Neste quadro, cremos que só mediante uma acção diferenciada capaz de assumir o desafio de construir uma educação diferente, encaminhada à flexibilização e intervenção intra e extra-escolar destas crianças e jovens, é que será possível construir uma escola realmente inclusiva – “uma escola onde toda a criança é respeitada e encorajada a aprender até ao limite das suas capacidades” (Correia/ Martins, 2002: 13). Efectivamente, através dos seus profissionais, a escola deve cultivar cada vez mais uma filosofia inclusiva, isto é, uma filosofia que cada vez mais insira no seu seio todos os alunos, sejam quais forem as suas características e necessidades. Por conseguinte, ressalte-se que educar na diversidade não deve ser apenas uma frase feita, mas uma realidade que devemos ir construindo pouco a pouco numa acção multidisciplinar. Pois só mediante uma acção vincadamente humanizante e inclusiva é que a criança poderá explorar plenamente todas as suas potencialidades. Sobredotação e Filosofia BIBLIOGRAFIA ALENCAR, E. S. (1986), Psicologia e educação do sobredotado, São Paulo, EPU. ALMEIDA, Leandro S. (1994), Inteligência: Definição e Medida, Aveiro, CIDINE. ALMEIDA, Leandro. S e outros (orgs.) (2000), Alunos sobredotados: Contributos para a sua identificação e apoio, Braga, ANEIS. 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