Sobredotação e Competências Filosóficas

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ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE PAULA FRASSINETTI
PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Sobredotação e Competências Filosóficas
Uma Perspectiva Transversal
Trabalho realizado no âmbito do Seminário de Projecto
sob a orientação da Professora Doutora Helena Serra
Maria José Carneiro Coelho
Porto, Julho de 2006
Sobredotação e Filosofia
AGRADECIMENTOS
Manifesto os meus agradecimentos à Doutora
Helena Serra que tornou possível este trabalho
e aos amigos pela sua disponibilidade, paciência
e incentivo.
Sobredotação e Filosofia
CARTA DE UM JOVEM SOBREDOTADO1
Q U I N T A - F E I R A ,
S E T E M B R O
1 5 ,
2 0 0 5
Fui uma criança irrequieta. Nada demais, muitas crianças entre 4 e 7 anos
também são. Mas minha inquietação não era somente sair correndo por todos os
lados e deixar meus pais apreensivos. Um fato me colocou diante de uma verdade
que busquei, algum tempo depois, ocultar.
Aconteceu de meu pai, na seleção para uma empresa, ser submetido a um
eletroencefalograma. Como ele me achava agitado demais, me submeteu ao mesmo
teste. O médico deu o diagnóstico, que para meus pais poderia ser tanto uma
bênção quanto uma provação: eu era superdotado.
Superdotado, que palavra engraçada. Colocava-me em uma posição
privilegiada em relação às outras crianças. O que me fazia diferente era meu
pensamento veloz e minha leitura ter se iniciado aos três anos. Meus pais então
tomaram conhecimento do projeto da escola Vilhena Alves, que trabalhava em uma
sala especial com crianças na minha situação. Conheci as “tias” e logo me enturmei
com meus novos colegas.
Na escola onde estudava, um dia fui levado da minha sala na alfabetização
para a sala em frente, a primeira série. Muitas mudanças acontecendo em tempo
muito curto. Isso tudo era muito estranho para mim. Mas havia algo: eu era muito
agressivo. Não tinha paciência em escutar. Fazia apenas aquilo que queria fazer.
Uma criança mimada e cheia de vontades, que era capaz de rasgar um trabalho se
não gostasse dele ou bater em um colega de classe por ele pedir um pedaço do
lanche.
Isso, mais as minhas idéias pouco ortodoxas, foram o suficiente para meus
colegas me taxarem de “doido”, “débil mental” e expressões do mesmo calão. Não
havia um dia que eu não chegasse em casa sem me queixar das provocações ou sem
descrever uma briga de que havia participado.
Ao longo do tempo, conviver com essa minha condição diferente não parecia
tão bom quanto meus pais e as “tias” do Vilhena Alves me diziam. Se ser assim me
causava aborrecimentos, preferia ter nascido igual aos outros. Acostumei-me a
tentar parecer igual aos outros.
1
Esta carta foi escrita por um estudante brasileiro de Biologia a propósito da sobredotação.
Pelo seu conteúdo e interesse, aqui a reproduzimos.
Sobredotação e Filosofia
Era difícil; era tido como o CDF da turma. Embora alguns colegas chegassem
a me perguntar se eu era superdotado, negava veementemente. Ainda assim, tirar
uma nota abaixo do que eu esperava, não necessariamente baixa, me causava
desespero, pois achava que meus pais iriam se decepcionar comigo; na minha
cabeça, a bênção deveria ter um retorno constante, na forma de notas altas. Por
isso, cheguei a chorar com uma nota abaixo das minhas expectativas.
Ser como os outros realmente era complicado. Ter um talento incomum não
me ajudava a ser como os meus amigos e colegas. Por isso, por já estar entediado e
não querer me sentir diferente, parei de freqüentar o Vilhena Alves.
Anos depois, com insistência das antigas “tias” e dos meus pais, que sempre
me incentivaram a investir no meu talento, voltei à escola, para encontrar novas
pessoas e profissionais de outros tempos. Muitos colegas já estavam com a vida
traçada, portas abertas por sua condição especial. Eu acabara de entrar no ensino
médio e queria estudar violão. Dito e feito: eles facilitariam minha matrícula no
Conservatório Carlos Gomes (cujo teste havia me reprovado no ano anterior) e eu
retornaria às aulas.
Não durei mais de um ano nas atividades do Vilhena, mas permaneci por
cinco anos no Conservatório. Hoje, ao contrário do que muitas pessoas esperavam,
não me tornei nem músico nem escritor.
Estou concluindo o curso de Licenciatura em Biologia e pretendo dar aulas
logo que possível. Ao entrar em contato por acaso, há alguns dias, com uma revista
sobre superdotação e um artigo da revista Veja sobre o mesmo assunto, relembrei
o quanto lutei para esconder minha condição, sem saber o quanto é boa.
Talvez não seja tarde demais para aproveitá-la; se puder ajudar outras
crianças e jovens que receberam a mesma palavra engraçada que eu quando
pequeno, agora como professor ficarei mais satisfeito.
Por que escrevi isto? Para alertar pais, familiares e professores sobre a
possibilidade de estarem diante de uma criança superdotada e não saberem como
agir. Restringir, pode ser, mas reprimir nunca. A curiosidade destas crianças é
grande; a minha era constantemente instigada pelas tias do Vilhena. Seria bom ter
uma conversa com elas se houver algo de diferente com esta criança. Pode ter sido
uma bênção".
Dércio Pena Duarte,
estudante da Licenciatura em Biologia pela UFPA, Belém (Brasil)
Sobredotação e Filosofia
1
ÍNDICE
Introdução...............................................................................................................................2
I PARTE
Enquadramento Teórico
Capítulo 1. A Criança e a Sobredotação
1.1.
Abordagem Conceptual .............................................................................................6
1.1.1. Aproximação à noção de Sobredotação ........................................................6
1.1.2. Diferenciação de conceitos: Precocidade, Talento, Prodígio e Génio ..........9
1.1.3. Conceito de Inteligência/Inteligências múltiplas ..........................................10
1.2.
Características/Padrões Comportamentais do Sobredotado ..................................15
1.3.
Problemas dos Sobredotados: a Dissincronia e o efeito Pigmaleão negativo ........17
Capítulo 2. Intervenção no Plano Filosófico
2.1.
Transversalidade das Competências Filosóficas ....................................................21
2.1.1. Conceptualização .........................................................................................22
2.1.2. Crítica/Problematização ...............................................................................23
2.1.3. Argumentação .............................................................................................24
2.2.
Interdisciplinaridade Filosofia/Sobredotação............................................................26
2.2.1. A inteligência lógico-matemática .................................................................27
2.2.2. A inteligência existencial ..............................................................................27
II PARTE
Investigação Empírica
Capítulo 1. Considerações Introdutórias
1.1.3. Objecto e Objectivos de estudo..........................................................................30
1.1.3. Importância do Método .......................................................................................31
1.1.3. Metodologia Adoptada .......................................................................................32
Capítulo 2. Etapas Metodológicas
2.1.
2.2.
2.3.
2.4.
2.5.
2.6.
Formulação do Problema e das Hipóteses .............................................................35
Explicitação das Noções das Hipóteses .................................................................36
Instrumentos de Recolha de dados .........................................................................37
Selecção da Amostra...............................................................................................38
Procedimentos ........................................................................................................39
Tratamento de dados ..............................................................................................40
Capítulo 3. Intervenção
3.1.
3.2.
Estratégias/Actividades............................................................................................41
Antecipação dos Resultados ...................................................................................42
Reflexões Finais ..................................................................................................................43
Sobredotação e Filosofia
2
INTRODUÇÃO
“Não há criança nenhuma que não queira aprender”
(Correia/ Martins, 2002: 13).
O presente trabalho tem como pano de fundo a ideia de educação que a
filosofia política da sociedade democrática actual defende, um conceito que se refere
ao direito que toda a criança tem de receber ajuda para aprender até os limites das
suas capacidades.
Efectivamente, é nesta perspectiva que se materializa o enquadramento
normativo dos alunos do Ensino Especial. Claro está que este enquadramento não
deveria preconizar sobretudo as crianças com Necessidades Educativas Especiais de
carácter permanente, isto é, que apresentam incapacidade ou incapacidades
resultantes de deficiências de ordem sensorial, motora ou mental, numa ou mais áreas
de realização de aprendizagens.
A escola que se diz e se quer inclusiva, além de contemplar estas realidades,
também deve prestar uma atenção especial às crianças sobredotadas, pois como
indivíduos e crianças têm iguais direitos às oportunidades de desenvolvimento
completo. Aliás, parece-nos que já se caminha mais nesse sentido se atendermos ao
recente Despacho Normativo nº 50/2005 de 9 de Novembro no qual são previstos
planos de desenvolvimento e enriquecimento curricular de modo a criarem-se
condições para a expressão e crescimento de capacidades excepcionais de
aprendizagem.
Portanto, se a nível teórico parece haver uma maior consciencialização e
sensibilização para uma realidade que existe mas que é diferente, a nível das práticas
parece-nos que têm existido alguns entraves à provisão de condições educativas
adequadas às necessidades específicas destas crianças. Esses entraves passam pela
falta de informação e pela existência de ideias erróneas comummente disseminadas,
nomeadamente a de que, por uma espécie de milagre, o sobredotado encontrará
meios de desenvolver ao máximo as suas potencialidades mesmo quando submetido
aos mesmos procedimentos, esquemas, ritmos de aprendizagem e ensino que os
seus companheiros menos dotados; supõe-se, até, que os sobredotados deveriam ser
capazes de “se desenvencilhar sozinhos”, e se não o conseguem, é porque não são
realmente sobredotados. Claro está que ao perspectivar-se assim a sobredotação
está-se a contribuir mais claramente para a inadaptação e insucesso escolar destas
crianças e jovens, do que para o seu sucesso e inclusão.
Sobredotação e Filosofia
3
Neste enquadramento, e com o propósito de desconstruir e/ou esclarecer
ideias, faremos, num primeiro momento, uma aproximação à noção de sobredotação
bem como a outras que lhe estão associados, nomeadamente a de precocidade, a de
talento, a de inteligência e a de génio. De seguida, atendendo ao facto da escola ser o
meio onde o sobredotado pode apresentar a melhor adaptação ou o pior desajuste,
isto é, o local onde a sua capacidade acima da média tanto pode contribuir para um
desempenho
excepcionalmente
bom,
como
também
pode
levar
ao
tédio,
aborrecimento, rebeldia e consequente insucesso escolar, faremos uma incursão quer
pelas suas características e padrões de comportamento, quer pelos problemas e
dificuldades que podem manifestar a nível escolar e extra-escolar.
De facto, as suas características de personalidade tais como: o perfeccionismo,
a auto-critica excessiva, as ideias divergentes e atitudes não conformistas, a super
sensibilidade e senso de justiça e os altos padrões de desempenho, levam-no a ser
diferente, podendo causar efeitos negativos no seu desempenho académico, na sua
relação com os pares e com os adultos.
O panorama descrito permite perceber que a criança sobredotada necessita de
um atendimento especial para fazer frente às suas necessidades cognitivas e
emocionais. Esse atendimento poderá passar pela adopção de programas curriculares
mais adaptados e métodos/estratégias educativas que aproveitem e desenvolvam as
suas capacidades de forma harmoniosa, quer em áreas em que sejam especialmente
dotadas quer em áreas fracas. É precisamente neste quadro que tentaremos
prospectar uma pedagogia da sobredotação.
Uma pedagogia que, ao assumir o desafio de construir uma educação
diferente, encaminhada à flexibilização e intervenção intra e extra-escolar destas
crianças e jovens numa acção vincadamente humanizante e inclusiva, permita à
criança explorar plenamente todas as suas potencialidades. Ora, consideramos que
esta acção poderá ser profícua se for trabalhada a partir da transversalidade de
competências filosóficas, designadamente através da conceptualização, da crítica e da
problematização e da argumentação.
Ao considerar-se as principais características do sobredotado, desde logo se
constata que estas crianças e jovens reúnem um conjunto de características que
habitualmente
imprescindíveis
são
estioladas
para a
no
sistema
consecução dos
educativo
objectivos
actual,
mas
que
são
da actividade filosófica,
nomeadamente, um pensamento independente, uma postura aberta a coisas e
situações novas e pouco usuais, o gosto pelos conceitos abstractos e interesse nas
suas relações e uma postura criativa, inventiva e crítica em relação a si e ao que o
rodeia.
Sobredotação e Filosofia
4
Por conseguinte, consideramos que a filosofia, através das suas competências
filosóficas, poderá ter uma importante palavra a dizer no percurso individual e escolar
destas crianças e jovens.
Neste quadro consideramos as IM (Inteligências Múltiplas) de Howard Gardner
pertinentes para a investigação, sobretudo a inteligência lógico-matemática e a
existencial.
Assim, e na linha do programa de Matthew Lipman – Filosofia para crianças –
pretende-se incidir a intervenção quer nos princípios do raciocínio lógico para que os
alunos pensem mais logicamente, criticamente e responsavelmente, quer nas atitudes
de indagação, questionamento, reflexão e argumentação inerentes ao âmbito
existencial.
Portanto, é num contexto de interdisciplinaridade que estamos em crer que a
filosofia, com as suas competências transversais, poderá contribuir para uma alteração
de mentalidades e consequentemente das práticas pedagógicas, o que terá reflexos
na forma como a escola aceita e lida com o diferente. Só neste contexto é que será
possível construir uma escola verdadeiramente inclusiva.
Sobredotação e Filosofia
5
I PARTE
Enquadramento Teórico
Sobredotação e Filosofia
6
CAPÍTULO 1. A CRIANÇA E A SOBREDOTAÇÃO
1.1.
Abordagem Conceptual
As questões da sobredotação são hoje mais frequentemente analisadas. Uma
maior consciencialização por parte dos profissionais da educação e da psicologia,
juntamente com a opinião pública e a necessidade de respeito pelas diferenças
individuais, no quadro de uma sociedade democrática de direitos individuais e sociais,
pode apontar-se como a justificação desta mudança.
Num quadro actual em que não há um entendimento claro e unânime do que é
a sobredotação e como lidar com ela, não por desconhecimento do fenómeno, mas,
talvez, por um mau conhecimento ou pela existência de estudos e investigações
erróneas que deram lugar a falsos estereótipos que ainda persistem, é fundamental
distinguir e compreender as suas características essenciais do que é ou se supõe ser,
para se poder determinar uma intervenção psicopedagógica eficaz.
Neste contexto interventivo, torna-se fundamental tentar definir, diferenciar e
delimitar a noção 2 de sobredotação de outros termos que, apesar de parecerem
similares, não são iguais.
Efectivamente,
cremos que só mediante o
conhecimento
prévio
de
determinadas noções, é que será possível prospectar uma abordagem transversal da
sobredotação que ultrapasse a teoria e se consubstancie numa prática.
1.1.1. Aproximação à noção de Sobredotação
Desde sempre houve dificuldades em definir adequadamente sobredotação,
talvez porque, por um lado, se tenha centrado muitas vezes a atenção nas crianças
com menos capacidade intelectual e, por outro, porque as pessoas sobredotadas não
constituem um grupo homogéneo com um perfil único. Efectivamente, a prática
2
Opta-se pelo o termo “noção” e não o de “conceito” para designar sobredotação, na consciência de que
o segundo termo ao implicar uma objectividade e universalidade não se adequa à realidade da
sobredotação, pois, na verdade, deparamo-nos com múltiplas definições de sobredotação que variam de
acordo com os autores e as épocas.
Sobredotação e Filosofia
7
demonstra que têm características diferenciais únicas que resultam das dimensões
afectiva, social e cognitiva.
Na actualidade assiste-se a um manifesto interesse pela sobredotação, mas
sem que por vezes se tente coadunar a teoria com a prática, pois, não raras vezes, se
actua como se a sobredotação fosse algo estático, unitário e reconhecido
unanimemente, sem se considerar a existência de diversas interpretações e modelos
de sobredotação.
De facto, por ser um tema polémico e ao mesmo tempo fascinante, tem levado
a que vários autores se ocupem desta problemática.
A este propósito podemos destacar alguns autores que defendem diferentes
perspectivas.
A perspectiva monolítica, partilhada por Terman (1925) e Genovard (1982), ao
defender que o fenómeno intelectual é formado por uma única capacidade, mede uma
só aptidão, a inteligência. Deste modo, limita as diferenças entre o grupo normal e o
excepcional à dimensão quantitativa.
Portanto, o modelo monolítico definia os sobredotados como indivíduos com
um nível de inteligência muito superior à média, os que superam os 130 de QI.
Por seu turno, o modelo factorial, representado por Renzulli (1977), defende
que a sobredotação é composta por múltiplos componentes, pelo que a sua
combinação dá origem a diferentes tipos de inteligência.
Neste quadro, Renzulli define a sobredotação mediante o Modelo dos três
anéis. Para ele a sobredotação resulta de uma interacção entre três grupos básicos:
capacidades gerais acima da média; elevado nível de motivação na tarefa; e alto nível
de criatividade. Nesta linha, considera que as crianças sobredotadas seriam aquelas
que possuem e são capazes de desenvolver este conjunto de características a aplicálas a qualquer área de realização. Como tal, é necessária a interacção dos três
aspectos para que decorra uma realização criativo-produtiva – sobredotação.
Assim, no modelo factorial deixa-se de falar da inteligência como uma variável
quantitativa e passa-se a falar numa perspectiva qualitativa por ser de natureza
complexa.
Já para os representantes da perspectiva hierárquica – Sternberg (1986; 1990)
e Castelló (1986) –, a sobredotação já não é um atributo unidimensional, mas que
pode ser abordado de diversas maneiras. Efectivamente, incluem as concepções
monolítica e factorial para referir-se à sobredotação, já que o termo apresenta
aspectos quantitativamente e qualitativamente diferentes em relação à normalidade.
Como tal, as diferenças entre o grupo excepcional e o normal seriam do tipo
quantitativo e qualitativo, o que notoriamente manifesta uma natureza mista. De
Sobredotação e Filosofia
8
acordo com isto, o sobredotado seria aquele que apresentaria um rendimento
intelectual superior ao que se pode detectar no grupo normal.
A estas perspectivas acrescem ainda autores como Torrance (1962), Taylor
(1963, 1964, 1978) e Guilford (1967), que colocam a tónica na criatividade como factor
determinante da sobredotação, independentemente da capacidade intelectual medida
pelos testes de inteligência unitária.
Estudos posteriores levados a cabo por Flavell (1979), Jackson y Butterfiel
(1990), Borkowski y Peck (1990) e Davidson (1986, 1990), consideram como mais
importante a qualidade da informação que se processa bem como o controle sobre as
actividades e estratégias mentais como o aspecto mais importante na aprendizagem e,
consequentemente, na sobredotação.
Por último, refira-se os estudos baseados em aspectos evolutivos e sociais
levados a cabo por alguns autores, nomeadamente Gardner 1985, 1995). Este autor
desenvolve a teoria das inteligências múltiplas, considerando que não existe um único
e monolítico tipo de inteligência que seja essencial para o sucesso na vida, mas que é
o resultado de múltiplas capacidades, no sentido de possuirmos diferentes tipos de
inteligência. Para ele a cognição não funciona de forma global mas é o produto de
actividades modulares, sendo a inteligência o nome global dado à actividade destes
diferentes módulos.
O facto do modelo de Gardner oferecer uma perspectiva alargada e complexa
sobre o desenvolvimento psicológico e os talentos internos das crianças, parece-nos
uma perspectiva particularmente interessante quando aplicada ao panorama da
sobredotação. Por esta razão lhe dedicaremos maior atenção.
Por conseguinte, esta relação da sobredotação com as diferentes teorias ou
perspectivas permite ressaltar, em traços largos, um duplo interesse, por um lado,
teórico por implicar a combinação das capacidades e funções cognitivas implicadas e,
por outro, prático-interventivo na medida em que se orienta para optimização das
condições de desenvolvimento e aplicação dessas capacidades.
Em termos conclusivos, a aproximação à noção de sobredotação torna
possível considerar que de facto não existe unanimidade quanto à sua noção, nem
sequer quanto à questão terminológica. Aliás, parafraseando Lombardo (1997:22 e
23), utiliza-se com frequência e de forma indiscriminada termos como sinónimos de
sobredotação que em vez de esclarecer aumentam a confusão sobre o tema. Vejamos
alguns que importa diferenciar dado o seu frequente uso indiscriminado.
Sobredotação e Filosofia
1.1.2. Diferenciação
9
de
conceitos:
Precocidade,
Talento,
Prodígio e Génio
- Precocidade: designa a criança que tem um desenvolvimento prematuro
numa determinada área. Ou seja, é uma criança que tem um comportamento de
indivíduos de maior idade do que ela.
Apesar de muitos autores utilizarem os dois termos – precocidade e
sobredotação – como sinónimos, Lombardo considera que embora se possam
manifestar ao mesmo tempo, tal não permite concluir que ambos sejam sinónimos.
Pois, se, por um lado, a precocidade faz referência à velocidade no desenvolvimento,
o que nos obriga a situá-la numa determinada etapa da vida, já a sobredotação
indicaria umas características de personalidade estáveis ao longo das diferentes
etapas da vida do indivíduo. Por outro lado, ainda que geralmente as crianças
sobredotadas sejam precoces relativamente a alguns comportamentos ou habilidades,
nem todas as crianças precoces apresentarão sintomas de sobredotação.
- Talento: utiliza-se para designar as pessoas que têm uma aptidão de muito
alto nível numa determinada área.
Porém, o uso deste termo também não está isento de problemas. Assim, se
para alguns autores não parece justificável a separação que se faz entre sobredotação
intelectual, criatividade e talento específico, pelo contrário, outros são partidários da
distinção dos termos, pois nem todos os sobredotados virão a ser talentosos e o
talento poderá acontecer mesmo tendo-se uma capacidade intelectual muito baixa.
- Prodígio: refere-se à criança que é capaz de realizar uma actividade fora do
comum para a sua idade. Isto é, é capaz de realizar algo num campo específico que
exige competências com níveis de realização de um adulto.
- Génio: indivíduo de grande superioridade que realiza contribuições muito
relevantes, para tal necessita de alta inteligência, forte criatividade, certas
características de personalidade e temperamento, grande motivação e um
determinado nível sociocultural. Estas características levam a que, por vezes, se caia
na errónea comparação entre sobredotado e génio.
Esta curta abordagem, permite-nos perceber que a noção de sobredotação tem
sido difícil de operacionalizar também devido à flutuação que a sua definição tem
sofrido ao longo do tempo. Aliás, a construção de um conceito – preciso e
Sobredotação e Filosofia
10
universalmente aceite – constitui uma tarefa difícil, ou mesmo impossível, na medida
em que, e de acordo com Alencar, se trata de um “conceito ou constructo psicológico a
ser inferido a partir da constelação de traços ou características de uma pessoa (…)”
(Alencar, 1986: 21).
Efectivamente, apesar da falta de consenso quanto à definição de
sobredotação, saliente-se que ao atender estas crianças e jovens, nenhum sistema
escolar deve esquecer razões de ordem pragmática e teórica. Como tal,
parafraseando Mª. Pereira, os sistemas escolares devem considerar como causas
pragmáticas mais importantes, por um lado, os tipos de capacidades que o sistema
está interessado em desenvolver e, por outro, as condições económicas disponíveis
para a educação destas crianças e jovens. Assim, as condições referidas
determinarão não só o conteúdo mas também o critério que vai delimitar o alcance da
definição – o critério que vai estabelecer o nível de capacidade requerido para a
inclusão de uma criança e jovem num programa de sobredotados.
Portanto, parece-nos que, em última análise, a sobredotação estará sempre
confinada a uma prática indissociável do conceito de inteligência, razão pela qual nos
parece naturalmente profícua uma abordagem ao conceito, em geral e, em particular,
à teoria das inteligências de Howard Gardner por desviar-se do plano meramente
teórico e centrar-se em situações mais precisas da componente humana.
1.1.3. Conceito de Inteligência/Inteligências Múltiplas
Desde sempre houve um interesse pelas capacidades humanas, no entanto só
a partir de 1869, com Galton, é que se empreenderam investigações e estudos neste
âmbito. De facto, ao longo da história, o traço mais comummente utilizado para definir
e identificar as pessoas sobredotadas tem sido o seu elevado nível de inteligência.
Portanto, sendo o critério da inteligência o mais utilizado, parece-nos lógica a
explicação de Carmen Valle a propósito da sobredotação, “un estado intelectual, una
forma específica o modalidad de funcionamiento del intelecto que necesita, para su
mejor entendimiento, estar apoyada en una sólida teoría intelectiva” (Valle, 2001: 11).
Daqui resulta que, para se entender o fenómeno de sobredotação, se tenha de
entender primeiro o de inteligência.
Efectivamente, a questão da inteligência será, provavelmente, não só das
áreas mais interessantes de estudo e de discussão, como das mais controversas. O
facto de ser considerada como um conjunto de características e de capacidades
cognitivas que não podem ser directamente observadas, tem dificultado a sua
Sobredotação e Filosofia
11
definição. É que afinal, “a inteligência não é uma questão teórica. Ela tem implicações
nas formas como nos vemos a nós próprios e aos outros, especialmente aos outros
«diferentes de nós», seja em termos de capacidades, de classes sociais ou de cor de
pele” (Costa, et. al., 2005: 236).
De facto, se atendermos ao quotidiano, todos utilizamos este conceito com o
maior dos ‘à-vontade’; todos temos e usamos teorias da inteligência para categorizar o
comportamento, o nosso e o dos outros, usando termos como «esperto», «brilhante»,
«estúpido», «ignorante», «obtuso», etc.
Por conseguinte, apesar de globalmente se poder definir inteligência como “a
capacidade de qualquer ser de regular e de ajustar o seu comportamento às
circunstâncias internas e externas, aos problemas e desafios que o meio coloca”
(Costa, et. al., 2005: 237), continua a não existir um consenso entre os investigadores.
No entanto, desde logo se pode tirar duas conclusões que parecem claras: a
de que a inteligência se pode desenvolver e a de que é uma capacidade que serve
para conhecer ou compreender.
Todavia nem sempre foi assim. Durante muito tempo a noção de “inteligência”
foi confinada à medição objectiva e reduzida a um simples número ou escore de QI.
Contudo, no quadro actual esta ideia mais tradicionalista de inteligência – traço fixo
estabelecido pela genética passível de ser medido mas impossível de ser modificado –
está cada vez mais distante. Como afirma Zenita Gunthter, a
“inteligência é presentemente um conceito em mudança”, (…) é hoje considerada
como um conjunto integrado de várias capacidades cognitivas, socioemocionais,
perceptuais, físicas, fisiológicas e até intuitivas, funcionando em (…) harmonia
com o quadro de referência e posicionamento geral da pessoa” (Gunthter, 2000:
66).
Nesta perspectiva, é a interacção entre o plano genético individual e os
elementos presentes no ambiente em que o indivíduo vive que resultam na função
mental a que se chama inteligência. Quando essa interacção é enriquecedora e
estimulante os resultados permitem altos níveis de funcionamento – sobredotação.
Howard Gardner (ver Thomas Armstrong, 2001) também desafiou a ideia
tradicional de inteligência, e tentou ampliar o alcance do potencial humano além do
escore QI. Mas foi mais longe ao propor uma nova teoria ou perspectiva mais ampla e
pragmática, segundo a qual toda a pessoa nasce com um potencial para desenvolver
múltiplas inteligências – IM. Começou por considerar a existência de pelo menos sete
inteligências básicas, mas mais recentemente acrescentou uma oitava e discutiu a
possibilidade de uma nona3. A sua teoria sugere a existência de distintas maneiras de
3
Gardner ainda não a qualificou e inclui inteiramente esta inteligência na Teoria das IM porque considera
que ainda não existe um ajuste completo aos critérios para uma inteligência.
Sobredotação e Filosofia
12
perceber e conhecer o mundo. Assim, agrupou tais capacidades em oito categorias
distintas que passaremos a enunciar de forma sucinta.
- A inteligência linguística; relativa à capacidade de usar palavras de forma
efectiva, quer oralmente quer escrevendo.
- A inteligência lógico-matemática; a capacidade de usar os números de forma
efectiva e para raciocinar bem.
- A inteligência espacial; a capacidade de perceber com precisão o mundo
visuo-espacial e de realizar transformações sobre essas percepções.
- A inteligência corporal-cinestésica; consiste na perícia no uso de todo o corpo
para expressar ideias e sentimentos e facilidade no uso das mãos para produzir ou
transformar coisas.
- A inteligência musical; a capacidade de perceber, discriminar, transformar e
expressar formas musicais.
- A inteligência interpessoal; capacidade para perceber e distinguir o humor,
intenções, motivações e sentimentos de outras pessoas.
- A inteligência intrapessoal; consiste no autoconhecimento e a capacidade de
agir adaptativamente com base neste conhecimento.
- A inteligência naturalista; perícia no reconhecimento e classificação das
numerosas espécies do meio ambiente do indivíduo.
- A estas oito inteligências consideradas por Gardner podemos acrescentar
uma nona que ainda não está inteiramente incluída na Teoria das IM: a inteligência
existencial. Esta pode ser definida como uma preocupação com as questões básicas
da vida.
Saliente-se que dado o peculiar interesse que esta inteligência e a inteligência
lógico-matemática podem assumir num plano transversal entre sobredotação e as
competências filosóficas, isto é, num quadro em que a filosofia é “pensamento lógico
no contexto de aquisição de destrezas básicas, numa exigência de indagação racional,
de coerência e de análise crítica fundamentadoras das tomadas de decisão (…)”
(Rolla 2004: 23), dedicar-lhes-emos particular atenção no segundo capítulo do
presente trabalho.
Todavia, com o propósito de permitir uma explanação mais detalhada de cada
uma das inteligências, à excepção da existencial, constituiu-se um quadro4 formado
pelas estruturas cerebrais que estão envolvidas em cada uma.
4
Quadro elaborado com base no mapa resumido de Thomas Armstrong sobre a Teoria das IM (2001: 16-18).
Sobredotação e Filosofia
13
Estruturas Cerebrais presentes nas IM
Inteligência
Componentes
Centrais
Linguística
• Sensibilidade aos
sons, estrutura,
significados e
funções das palavras
e da linguagem.
LógicoMatemática
• Capacidade de
discernir, padrões
lógicos ou
numéricos;
capacidade de lidar
com longas cadeias
de raciocínio.
Espacial
CorporalCinestésica
Musical
Interpessoal
Intrapessoal
• Capacidade de
perceber com
exactidão o mundo
visuo-espacial e de
realizar
transformações nas
próprias percepções
iniciais.
• Capacidade de
controlar os
movimentos do
próprio corpo e de
manipular objectos
com habilidade.
• Capacidade de
produzir e apreciar
ritmo, tom e timbre;
apreciação das
formas de
expressividade
musical.
• Capacidade de
discernir e responder
adequadamente aos
estados de humor,
motivações e desejos
de outras pessoas.
• Acesso à própria vida
de sentimento e
capacidade de
discriminar as
próprias emoções;
conhecimento das
forças e fraquezas
pessoais.
• Perícia em distinguir
entre membros de
Sistemas
Simbólicos
• Linguagens
fonéticas
(por
exemplo,
Inglês).
Sistemas
Neurológicos
• Lobos frontal e
temporal
esquerdo (área
de
Broca/Wernicke)
• Linguagens
de
computador.
• Lobo parietal
esquerdo,
hemisfério direito
• Linguagens
ideográficas
(por
exemplo
chinês).
• Regiões
posteriores do
hemisfério direito
Factores de
Desenvolvimento
• “Explode” na
infância inicial e
permanece até à
velhice.
• Atinge o seu auge
na adolescência e
no início da idade
adulta, mas as
introspecções
matemáticas
superiores
declinam depois
dos 40 anos.
• O pensamento
topológico na
infância inicial é
substituído pelo
paradigma
euclidiano por volta
dos 9-10 anos de
idade. A veia
artística continua
forte na velhice.
• Linguagem
de sinais.
• Cerebelo,
gânglios basais,
córtex motor
• Variam em função
da componente ou
do domínio.
• Sistemas
notacionais
musicais,
código
Morse.
• Lobo temporal
direito
• É a inteligência que
se desenvolve mais
precocemente.
• Lobos frontais,
lobo temporal,
sistema límbico
• A vinculação
durante os três
primeiros anos é
crucial.
• Lobos frontais,
lobos parietais,
sistema límbico.
• A formação da
fronteira entre o
self e o outro nos
três primeiros anos
é crucial.
• Áreas do lobo
• Surge em crianças
• Sinais
sociais (por
exemplo,
gestos e
expressões
faciais).
• Símbolos do
self (por
exemplo,
nos sonhos
e trabalhos
artísticos).
• Sistemas de
Sobredotação e Filosofia
Naturalista
uma espécie, em
reconhecer a
existência de outras
espécies próximas e
em mapear as
relações entre várias
espécies.
14
classificação
de espécies;
mapas de
habitat.
parietal esquerdo
são importantes
para distinguir
entre seres
“vivos” e
“inanimados”.
muito jovens; a
escolarização ou
experiência
aumenta a perícia
formal ou informal.
A propósito deste modelo Gardner, importa realçar alguns aspectos,
nomeadamente o facto de toda a pessoa possuir as oito inteligências, se bem que
funcionem juntas e de maneira única em cada pessoa; que a maioria pode
desenvolver cada uma num nível razoável de desempenho desde que recebam
estímulo, enriquecimento e instrução apropriados; que as inteligências funcionam
sempre numa base interactiva e contextualizada; e que existem muitas maneiras de
ser inteligente em cada categoria, não existindo um conjunto-padrão de atributos para
se ser considerado inteligente em determinada área.
Saliente-se que, apesar de ser pertinente, esta abordagem de Gardner das
Inteligências Múltiplas não é certamente o primeiro modelo a tratar da noção de
inteligência. Efectivamente, desde as épocas mais antigas até às mais recentes, esta
tem sido alvo de atenção. Mais recentemente, surgiram teorias de inteligência que
variaram entre o “g” de Spearman à Estrutura do Intelecto de Guilford.
Neste âmbito, tentar correlacionar a teoria das IM com modelos como o MyersBriggs – teoria da personalidade baseada na formulação teórica de Carl Jung dos
diferentes tipos de personalidade – revela-se infrutífera dado o carácter diferencial da
Teoria das IM. De facto, contrariamente aos outros modelos que põem a tónica no
processo, esta constitui-se como um modelo cognitivo que tenta descrever como os
indivíduos usam as suas inteligências para resolver problemas e criar produtos, isto é,
como a mente humana pode operar sobre os conteúdos do mundo.
Portanto, como afirma Thomas Armstrong “embora possamos identificar
relações e conexões, os nossos esforços podem assemelhar-se aos dos Homens
Cegos e o Elefante: cada modelo tocando num aspecto diferente do aprendiz total”
(2001: 24).
Consideramos que será precisamente nestas situações mais precisas da
componente humana que o sobredotado deve ser considerado, na medida em que a
teoria das IM abre as portas para uma grande variedade de estratégias de ensino
inovadoras que podem ser implementadas na sala de aula e de acordo com os
diferentes alunos.
É precisamente nesta linha, e atendendo ao objectivo da investigação –
proporcionar ao sobredotado ambientes e contextos enriquecedores e motivadores
através da actividade filosófica –, que consideramos a transversalidade das
competências filosóficas. Saliente-se que com esta intervenção
Sobredotação e Filosofia
15
“não se pretende que os alunos aprendam filosofias mas a filosofar; que não
aprendam as ideias dos outros, mas a idear; que não aprendam as reflexões dos
outros, mas a reflectir; e que não aprendam as acções dos outros, mas a agir”
(Rolla 2004: 25).
1.2.
Características/Padrões Comportamentais do
Sobredotado
Cientes do facto dos sobredotados não constituírem um grupo homogéneo,
mas heterogéneo com vicissitudes próprias de qualquer criança e jovem, leva-nos a
não considerar um perfil único do sobredotado.
Ora, numa sociedade e num sistema escolar onde muitas vezes se assiste a
um escamotear das especificidades destas crianças e jovens, a sua identificação e
estimulação reveste-se de especial importância e interesse para um sistema que se
quer e deseja inclusivo. Como tal, em primeiro lugar, importa empreender uma análise
das suas peculiaridades diferenciais para, de seguida, lhes poder proporcionar uma
educação mais adequada às suas necessidades e motivações.
Neste âmbito, das muitas características propostas por diferentes autores,
seleccionamos apenas algumas que, no nosso entender, se afiguram essenciais na
educação destas crianças e jovens, ainda que admitamos que qualquer escolha, e
esta em particular, é sempre arriscada e, mais ainda, quando incide em algo tão
transcendental como as características da sobredotação. Mas, escolher é renunciar, e
renunciar implica sempre comprometimento.
Nesta linha, optamos por agrupar5 as características em quatro grupos centrais:
as intelectuais, as educativas; as da criatividade e as de personalidade/sociais, para
através de uma possível lista de condutas observáveis se perceberem quais são as
altas capacidades que se manifestam.
Características e Condutas gerais do sobredotado
Intelectuais
Educativas
• Aprendizagem
precoce e sem
ajuda.
• Bom
rendimento
académico na
maioria das
situações.
• Interesse pela
aquisição de
• Facilidade em
fazer novas
5
Criatividade/Pensamento
Divergente
Personalidade/Sociais
• Independência de
pensamento, com tendência à
não conformidade.
• Capacidade para assumir
as perspectivas dos
outros.
• Manifestação de opiniões
• Sensibilidade face às
Quadro elaborado com base nas características dos sobredotados referidas por Mª Cármen Del Blanco
Valle (2001: 39-46).
Sobredotação e Filosofia
aprendizagens.
• Compreensão
de informação
e conceitos
novos.
novos
conhecimentos
• Interesse e
motivação por
uma das
diversas áreas
de investigação
intelectual.
16
contrárias às habituais.
• Capacidade de iniciativa.
necessidades dos outros.
• Elevada auto-estima.
Características e Condutas gerais do sobredotado (continuação)
Intelectuais
• Capacidade
em utilizar
novos
conhecimentos
na resolução
de problemas,
práticos e
teóricos.
• Formulação de
princípios e
generalização
por
transferência
de
aprendizagens.
• Compreensão
de ideias
complexas e
abstractas.
Educativas
Criatividade/Pensamento
Divergente
Personalidade/Sociais
• Expectativas
altas, desejo de
superação.
• Originalidade.
• Capacidade para resolver
problemas dos outros.
• Perfeccionismo
na execução de
tarefas.
• Imaginação e fantasia.
• Capacidade de tomar
decisões.
• Criação de ideias e processos
novos.
• Audácia e iniciativa.
• Soluções criativas de
problemas, mediante a
utilização de materiais e
recursos comuns.
• Tenacidade e persistência
na busca de metas e
objectivos.
• Compreensão e
aceitação da
autoridade,
ainda que seja
critico dela.
• Habilidade
para
argumentar,
perguntar e
raciocinar.
• Curiosidade
intelectual.
• Capacidade de
memória:
retenção fácil e
evocação
rápida e
precisa.
• Capacidade de aprendizagem
autodirigido.
• Curiosidade elevada ante um
grande número de coisas.
• Motivação intrínseca
(fazer algo por gosto) e a
sobressair.
• Preocupação com o
comportamento moral e
ético adequado.
• Grande sentido de humor.
A respeito das características intelectuais entre os sobredotados e os que não
são importa salientar, na linha de DarK y Benbow (1993) 6 , que as diferenças se
produzem tanto quantitativamente como qualitativamente, quer tanto na sua natureza
como nas estratégias de resolução de problemas; que os sobredotados são mais
precoces, podendo realizar funções mentais próprias de sujeitos normais de idade
mais avançada e resolver problemas mediante estratégias metacognitivas mais
6
Cit. in VALLE, (2001: 39).
Sobredotação e Filosofia
17
maduras, empregando mais tempo no processo de planificação e chegando antes à
solução do problema.
Quanto às características educativas refira-se que, a maioria dos sobredotados
gosta da escola e de aprender, contudo não é surpresa que passem despercebidos e
até que sejam mal vistos pelos próprios professores devido ao seu constante interesse
em perguntar tudo, o seu inusual conhecimento de muitos assuntos e o seu
aborrecimento ante tarefas que não despertam o seu interesse. Daí que, a
sobredotação não seja sinónimo de êxito académico, mas é um factor que pode
indicar como a criança e jovem deve ser ajudada e estimulada para alcançar esse
êxito.
A criatividade desempenha um papel fundamental neste êxito académico, daí
que a escola deva estimular o desenvolvimento da criatividade destas crianças. É por
isso importante que o professor deva estimular o aluno a fazer perguntas, a ter um
pensamento independente, a produzir novos conhecimentos e a utilizá-los.
Claro que subjacente a estas características não se podia deixar de considerar
as de personalidade/sociais. Efectivamente, a personalidade ao fazer referência a
atitudes e comportamentos emotivos e afectivos em relação aos seus próprios
sentimentos e aos dos outros, tem uma grande relação com as funções cognitivas.
Como tal, os traços de personalidade dos sobredotados devem ser tidos em conta
aquando se define os objectivos académicos.
De facto, a escola é o meio onde o sobredotado pode apresentar a melhor
adaptação ou o pior desajuste, isto é, a sua capacidade acima da média tanto pode
contribuir para um desempenho excepcionalmente bom, como também pode levar ao
tédio, aborrecimento, rebeldia e consequente insucesso escolar. De facto, as suas
características de personalidade tais como, o perfeccionismo, a auto-critica excessiva,
as ideias divergentes e atitudes não conformistas, a super sensibilidade e senso de
justiça, e os altos padrões de desempenho, levam-no a ser diferente, podendo causar
efeitos negativos no seu desempenho académico, na sua relação com os pares e com
os adultos. Ora, neste quadro impõe-se analisar dois dos principais problemas que o
sobredotado pode apresentar e que podem ser determinantes no seu perfil – a
dissincronia evolutiva e o efeito pigmaleão negativo.
1.3.
Problemas dos Sobredotados: a Dissincronia e
o efeito Pigmaleão negativo
Sobredotação e Filosofia
18
Se bem que a sobredotação não tenha que degenerar necessariamente em
problemas, estes podem acontecer se a criança e jovem não estiver integrada num
contexto adequado. Na linha de Terrassier (1989: 28-40), pode identificar-se dois
possíveis problemas: a dissincronia evolutiva e o efeito pigmaleão negativo.
A dissincronia evolutiva refere-se à discrepância que existe entre o rápido
desenvolvimento da capacidade intelectual e outras áreas de evoluem de forma
normal. Este fenómeno pode originar problemas de identificação dos sobredotados e
repercutir-se negativamente ao nível da aprendizagem e, sobretudo, desfasamentos e
transtornos na criança nos mais variados aspectos.
As irregularidades podem ser ao nível do funcionamento externo e interno.
No funcionamento externo, a dissincronia resulta de um desfasamento entre a
norma interna do desenvolvimento precoce e a norma social que está adequada à
maioria das crianças. Esta situação pode conduzir à dissincronia escolar-social e à
familiar. A primeira resulta da diferença de velocidade existente entre o currículo
escolar e a capacidade intelectual da criança. A segunda resulta da discrepância que
pode existir entre o contexto familiar e as potencialidades do sobredotado.
No funcionamento interno a dissincronia refere-se à desigualdade dos ritmos
de desenvolvimento interno das crianças e jovens sobredotadas. Esta pode ser de
diferentes tipos:
- Dissincronia intelectual e psicomotora: precocidade dos sobredotados em
relação às crianças normais para andar e falar. Também podem ser precoces na
leitura.
- Dissincronia da linguagem e do raciocínio: tem um pensamento mais rápido
do que a sua capacidade expressiva.
- Dissincronia afectivo-intelectual: as suas capacidades intelectuais tornam-nos
capazes de adquirir e processar mais informação, enquanto que o nível afectivo e
emocional é menor. Por isso é natural que analisem racionalmente a informação que
recebem e lhe retire tudo o que tenha de afectivo.
O efeito pigmaleão negativo consiste no facto das expectativas que pais e
professores têm sobre a criança e jovem poderem influenciar os seus resultados
escolares. Ou seja, este efeito produz-se quando professores e pais ignoram a
precocidade intelectual da criança e esperam e conduzem-na a comportar-se dentro a
“normalidade”. Esta situação pode originar dois tipos de efeitos: o efeito externo e o
interno.
Enquanto o primeiro é originado pela incompreensão dos pais, professores e
companheiros, isto é, estes ao não valorarem as suas necessidades diferenciais e ao
tentarem ajustá-las à norma, provocam-lhes a negação das suas capacidades. O
Sobredotação e Filosofia
19
segundo efeito – o interno – resulta da tentativa de ajuste do sobredotado ao que se
espera dele, o que causa uma imagem de si mesmo de fracasso e de frustração, pois
está a negar as suas verdadeiras capacidades e interesses.
Por conseguinte, é fundamental estar atento a uma combinação de sinais,
porque, efectivamente, a criança e jovem que aprende rápido a ler, que exibe
habilidade para determinado instrumento musical, ou expressão verbal mais elaborada
do que a normal para sua faixa etária, que chama a atenção pela sua capacidade de
argumentação, pela memória excepcional, pela atenção e curiosidade pouco comuns,
pelo raciocínio ágil pela extrema curiosidade, pode esconder a face de um
sobredotado que requer atenção e eventual acompanhamento terapêutico para que
não se torne um adulto com problemas amanhã.
Na prática, algumas destas crianças necessita de apoio terapêutico para
desenvolver com harmonia suas potencialidades.
Portanto, para que estas crianças e jovens sobredotadas tenham um
desenvolvimento o mais equilibrado e pleno possível das suas capacidades
intelectuais é fundamental que a família e a sociedade, em geral, e a escola em
particular, lhes proporcione algumas condições, nomeadamente ao nível de um
ambiente de tolerância e de compreensão, no qual elas se vejam como normais
embora com especificidades muito próprias, ao nível de novos hábitos de pensar, de
exercício da memória, de desenvolvimento da atenção, de busca da clareza na
interpretação de informações e o nível do estímulo do raciocínio interpretativo e crítico
(discernimento).
Desta forma é que, segundo Nelson Lima, será possível superar os erros da
Escola actual face aos alunos, em geral, e aos sobredotados, em particular.
“O ensino que é fornecido aos nossos filhos assenta naquilo que eu chamo de «os
10 erros monumentais» do sistema actual: não educa para a autonomia do
pensamento; inibe o pensamento criativo; institui o medo de errar; promove a
submissão intelectual às crenças vigentes, incluindo as científicas; insiste num
único tipo de pensamento: o pensamento lógico-matemático; exclui o aluno do
processo de construção do conhecimento; ignora as inteligências múltiplas do
Homem; apela à aprendizagem pela memorização pura e simples; reforça a
‘autoridade’ do professor como ‘mestre’ detentor da Verdade; e limita o
crescimento do EU” (in www.institutodainteligencia.blogspot.com, 2005: 4ª feira, 21
Setembro).
Ora, num quadro onde é premente favorecer o pleno desenvolvimento e
enriquecimento das potencialidades do sobredotado, parece-nos que a filosofia, na
sua dimensão transversal, poderá ser uma mais valia.
Efectivamente, sendo a filosofia uma actividade que por excelência visa
promover condições que viabilizem uma autonomia do pensar, e que passam
indissociavelmente pelo desenvolvimento de algumas operações fundamentais como a
Sobredotação e Filosofia
conceptualização,
20
a
critica/problematização
e
a
argumentação,
parece-nos
naturalmente profícuo o contributo que este saber poderá oferecer. Como tal, poderá
ajudar a enriquecer e a estimular o desenvolvimento das capacidades e
potencialidades dos sobredotados e contribuir para uma mudança de atitudes e
sentimentos mais negativos em relação aos próprios sujeitos, em relação à escola e
ao trabalho escolar.
Por conseguinte, uma intervenção a este nível será pertinente e proveitosa na
medida em que poderá ajudar, o sobredotado, a atingir um novo equilíbrio eu-mundo,
tão importante para o seu desenvolvimento integral como pessoa.
Vejamos, então, como se poderá processar esta intervenção a nível filosófico.
Sobredotação e Filosofia
21
CAPÍTULO 2. INTERVENÇÃO NO PLANO
FILOSÓFICO
Começamos por uma questão pertinente: Filosofia para crianças sobredotadas
porquê?
A resposta subjaz naturalmente se atendermos ao objectivo principal da
filosofia – o de “ensinar a pensar melhor".
Na linha do neuropsicólogo Nelson S. Lima, a filosofia para crianças, em geral,
e para o sobredotado em particular, não deve ser considerada numa perspectiva
meramente escolarizadora, pois não é falar de Platão. De facto, é um procedimento
que ultrapassa a dimensão meramente teórica, e se consubstancia numa prática
através do enriquecimento do intelecto.
Num quadro em que a inteligência é concebida não como algo que se adquire
e fica estática, mas que, pelo contrário, é dotada de plasticidade, urge estimulá-la,
principalmente no caso dos sobredotados.
Efectivamente, sendo a sobredotação uma realidade com necessidades e
carências específicas em relação às crianças ditas “normais”, sobretudo a nível de
estímulos intelectuais, consideramos que a filosofia, através das suas competências
transversais, poderá ser um instrumento privilegiado para oferecer aprendizagens
enriquecedoras, estimulantes e significativas.
Neste sentido, consideramos que a filosofia, enquanto arte de pensar por
excelência, ao ser utilizada para exercitar o intelecto dos sobredotados, permitirá
“libertar” o pensamento e abrir caminho ao desenvolvimento e/ou fortalecimento de
novas atitudes: mais críticas, criativas e mais ajustadas à sua condição de “diferentes”.
2.1.
Transversalidade das competências filosóficas
Começaremos por referir que as competências filosóficas, não são exclusivas
da filosofia, mas revestem-se de um carácter transversal.
Deve entender-se a competência transversal como um comportamento ou
aptidão que não está directamente vinculada a uma determinada área ou disciplina,
mas que é exigida nas diferentes aprendizagens escolares e extra-escolares. Assim, a
Sobredotação e Filosofia
22
designação de transversal, deriva do facto de serem competências que cruzam ou
atravessam todas as áreas de aprendizagem.
Efectivamente, por vezes, a própria literatura pedagógica chama a estas
competências aprendizagens nucleares, uma vez que elas se constituem como
aprendizagens centrais e determinantes que visam desenvolver processos que
contribuem para que os alunos sejam progressivamente mais activos e autónomos na
sua própria aprendizagem.
Na linha de Michel Tozzi7 centramos as actividades de reflexão filosófica em
três operações fundamentais: a conceptualização, a crítica/problematização e a
argumentação. Em conjunto, estas operações definem uma aprendizagem dinâmica
do filosofar e centrada no progresso dos alunos.
2.1.1. Conceptualização
A aprendizagem filosófica supõe a tarefa de conceptualização, isto é, de se
definir com rigor e articular os conceitos. Esta aprendizagem revela-se fundamental,
na medida em que é ela que nos permitirá pensar novas ideias de maneira consistente
e rigorosa. É precisamente este âmbito que confere à filosofia toda a sua originalidade.
Por conseguinte, é necessário clarificar e definir com rigor os conceitos, ver as
suas diferentes significações. Uma forma prática de o fazer consiste, por exemplo, em
clarificar a etimologia de uma palavra. Outra será a de explorar todos os significados
do campo lexical ou ainda analisar as palavras vizinhas, opostas ou ainda construir
redes de conceitos.
Considerando que no sentido mais estrito do termo, a etimologia é o estudo da
verdadeira significação das palavras, isto é, determina a origem das palavras a partir
do seu étimo – da sua origem, o recurso da filosofia à etimologia justifica-se pelo seu
próprio objectivo – tornar mais claro o significado das suas posições. Por isso, o
recurso à origem das palavras pode ser muitas vezes o primeiro exercício de
conceptualização.
Portanto, só no exercício de clarificação e de deslindamento do conteúdo
implícito das suas palavras, é que a filosofia dará matéria ao pensar e será reflexão
pela linguagem sobre a linguagem.
Outra forma de clarificação das questões/conceitos é obtida através da
exploração dos diferentes campos lexicais em que se pode aplicar os conceitos. Esta
7
Michel Tozzi é um pensador francês nascido em 1943 em Nîmes. Exerce funções como director do
Departamento de Ciências da Educação na Universidade de Montpelier e tem dedicado a maior parte da
sua vida ao estudo das questões da Didáctica da Filosofia.
Sobredotação e Filosofia
23
exploração consubstancia-se na capacidade de encontrar um elemento comum
subjacente às diferenças que possam existir. Exemplifiquemos: o conceito de lei é
polissémico, pode, portanto, ser usado com diferentes sentidos. Todavia, apesar da
diferença, podemos encontrar um elemento comum: a lei implica a noção de ordem à
qual nos devemos submeter.
É precisamente esta ideia que deve ser transportada para o campo da filosofia.
Esta clarificação ou aproximação ao sentido da palavra ou palavras deverá ser
ainda complementada com o estabelecimento de relações, por semelhança ou por
oposição, e a formação de redes de conceitos. No âmbito filosófico, esta tarefa tornase fundamental, uma vez que é a formação de redes de conceitos que permite, por um
lado, tomar um deles como nuclear e, por outro, fazer associações com outro conjunto
de conceitos fins ou que estão facilmente associados. Neste contexto, o termo “rede”
deve ser entendido no sentido de um conjunto que se interliga ou entrecruza.
2.1.2. Crítica/Problematização
Iniciamos a exploração desta competência tomando como ponto de partida
uma afirmação de Edgar Morin, “a filosofia deve evidentemente contribuir para o
desenvolvimento do espírito problematizador. A filosofia é, antes de mais, uma força
de interrogação e de reflexão que trata dos grandes problemas do conhecimento
humano.”
Como tal, a reflexão filosófica implica a problematização, pois sem ela não
existirá filosofia.
De facto, sobre que filosofaremos se não houver qualquer problema para
filosofar? A compreensão desta reflexão necessita da inteligência dos problemas que
se coloca e tenta resolver e inclui a capacidade de questionar o questionamento.
Se a interrogação estabelece e esboça o problema, desencadeia, também a
reflexão: o pensamento que regressa a si depois do primeiro afrontamento com o
problema.
Neste enquadramento, uma das primeiras aprendizagens será a de aprender a
problematizar. Esta atitude implica a consciência das dimensões crítica e prospectiva
do pensamento: crítica, porque é pela reflexão que se torna possível avaliar
continuamente, pôr em causa, desconstruir os dados da experiência imediata, as
necessidades e interesses, os saberes e os poderes; prospectiva, enquanto, pela
reflexão, se recusa o fechamento no hic et nunc – aqui e agora – no urgente e no
Sobredotação e Filosofia
24
efémero, mas, pelo contrário, se abre para o futuro e para o projecto – condição de
humanidade e de sentido.
Portanto, é pela reflexão que o ser humano pode identificar o seu intransferível
modo de ser e, a partir dele, perspectivar o mundo e a vida de uma maneira
eminentemente pessoal, quer dizer, filosófica. Como tal, a filosofia ultrapassa um
modo de pensar e saber, concretiza-se num iniludível modo de viver, numa sabedoria
que ultrapassa a experiência e se ancora na reflexão.
2.1.3. Argumentação
A reflexão filosófica integra a argumentação. De facto, a aprendizagem
filosófica supõe aprender a argumentar. As intervenções e escritos não se devem
limitar à simples expressão de uma opinião, mas conduzem, muitas vezes a um
processo crítico de argumentação.
Quando argumentamos, defendemos o nosso ponto de vista e devemos ser
capazes de o justificar racionalmente. O ideal seria que a filosofia fosse um precioso
contributo que ajudasse na libertação dos discursos centrados em lugares-comuns,
das escolhas e preferências muitas vezes irracionais, e muitas vezes ditadas por
influências pouco fundamentadas.
Como se pode que tais justificações não sejam, muitas vezes, uma mera
reprodução de pensamentos e ideias dos outros? Esta dificuldade pode ser colmatada
com o treinamento das capacidades argumentativas.
De acordo com uma definição muito sumária, podemos dizer que argumentar é
defender uma ideia, uma opinião, apresentando um conjunto de razões que justifiquem
essa tomada de posição.
Efectivamente, a argumentação tem uma enorme importância no dia-a-dia, pois
muitas vezes somos obrigados, pelas circunstâncias, a apresentar as razões e
justificações dos comportamentos e posições. Apesar de haver situações em que não
é preciso argumentar, outras há em que é fundamental. São estas que
verdadeiramente interessam à filosofia, uma vez que constituem o terreno por
excelência para o exercício do discurso argumentativo. A este propósito refira-se
algumas das grandes questões que, provavelmente, nos preocupam enquanto seres
humanos: Devemos ou não autorizar o aborto? Devemos aceitar que existem raças
superiores e raças inferiores? “Quem somos nós?”, Qual o sentido disso tudo?”,
“Existe significado para a vida?”.
Sobredotação e Filosofia
25
Portanto, sejam questões mais ou menos abstractas e de carácter existencial,
são questões relativamente às quais podemos apresentar um razoável conjunto de
argumentos, uma vez que se trata de questões relativamente às quais não é possível
ter certezas absolutas. Pelo contrário, pressupõe sempre a livre discussão assente na
verosimilhança8.
Portanto, ao considerar-se as principais características do sobredotado que
habitualmente são estioladas no sistema educativo actual, verifica-se que estas se
constituem como um terreno fértil para o desenvolvimento e treino das competências
filosóficas e consequente enriquecimento e estímulo das suas capacidades.
Ora, é precisamente neste enquadramento que se estabelece, de forma
natural, a interdisciplinaridade entre a filosofia e a sobredotação e que nos propomos
analisar de seguida.
8
A palavra “verosimilhança” deriva de verosímil que significa o que parece verdadeiro, plausível, provável,
daí que digamos que algo tem verosimilhança quando parece verdadeiro.
Sobredotação e Filosofia
2.2.
26
Interdisciplinaridade Filosofia/Sobredotação
Sendo já ponto assente de que o sobredotado necessita de um atendimento
especial para fazer frente às suas necessidades cognitivas e emocionais.
Consideramos que esse atendimento poderá passar pela adopção de programas
curriculares mais adaptados e métodos/estratégias educativas que aproveitem e
desenvolvam as suas capacidades de forma harmoniosa, quer em áreas em que
sejam especialmente dotadas quer em áreas mais fracas. Só assim, segundo Joan
Freeman e Zenita Guenther (2000: 11), é que se poderá ajudar a reconhecer,
compreender, identificar, orientar e estimular o desenvolvimento de crianças e jovens
com sinais de capacidades e potencial acima da média. É que, e tal como qualquer
criança, as crianças sobredotadas também precisam de aprender, mas há que
reconhecer que este processo não deve passar por uma adaptação do aluno à escola,
na medida em esta está pensada para a “normalidade”, mas deverá antes passar por
uma adaptação da escola e dos seus currículos aos alunos com capacidades acima
da média.
Neste quadro, é fundamental prospectar uma pedagogia que assuma o desafio
de construir uma educação diferente, encaminhada à flexibilização e intervenção intra
e extra-escolar destas crianças e jovens. Assim, só mediante uma acção
vincadamente humanizante e inclusiva, é que criança poderá explorar plenamente
todas as suas potencialidades. É precisamente no âmbito de enriquecimento curricular
ou extra curricular, que consideramos que a transversalidade/interdisciplinaridade das
competências filosóficas se poderão constituir como um instrumento privilegiado de
trabalho.
Efectivamente, se considerar-mos as principais características do sobredotado,
capacidade de pensamento independente, uma postura aberta a coisas e situações
novas e pouco usuais, o gosto pelos conceitos abstractos e interesse nas suas
relações, uma postura criativa, inventiva e crítica em relação a si a ao que o rodeia,
curiosidade intelectual, e habilidade para argumentar, perguntar e raciocinar, desde
logo subjaz a sua interdisciplinaridade com as competências filosóficas.
Assim, num quadro rico e privilegiado para uma acção vincadamente filosófica
em que a inteligência do sujeito, na linha de Howard Gardner, é considerada como um
potencial múltiplo, optamos por centrar a intervenção na inteligência lógico-matemática
e na existencial. A primeira porque, na linha do programa de Matthew Lipman –
Sobredotação e Filosofia
27
Filosofia para crianças – se pode incidir a intervenção nos princípios do raciocínio
lógico
para
que
os
alunos
pensem
mais
logicamente,
criticamente
e
responsavelmente. E a segunda, porque ao ser uma preocupação com as questões
básicas da vida, parece-nos que deixa espaço para uma intervenção explicitamente
filosófica.
Assim, partindo da análise das especificidades de cada inteligência – lógicomatemática e existencial – tentaremos esboçar, na segunda parte deste trabalho,
alguns traços metodológicos que ao apontarem a possibilidade de uma relação
transversal entre a sobredotação e as competências filosóficas, possam contribuir para
o estímulo e enriquecimento das potencialidades do sobredotado.
2.2.1. A inteligência lógico-matemática
Esta inteligência revela-se na capacidade mental do ser humano apreender e
guardar e aplicar relações, nomeadamente numéricas, quantitativas e simbólicas e de
as usar no quotidiano de forma efectiva para raciocinar bem e resolver problemas. Ao
incluir sensibilidade a padrões e relacionamentos lógicos, afirmações e proposições
(se-então, causa-efeito), funções e abstracções, revela a capacidade do indivíduo criar
soluções factíveis.
Essas soluções são rapidamente formuladas pela mente e apresentam
coerência antes mesmo de serem representadas materialmente. Os processos que
permitem este tipo de inteligência incluem: categorizações, classificações, inferências,
generalizações, cálculos e testagem de hipóteses.
2.2.2. A inteligência existencial
A habilidade principal desta inteligência humana surge, segundo Gardner, da
capacidade humana de “se situar em relação aos limites extremos do mundo como o
infinito e o infinitesimal” (cit. in Armstrong, 2001:164).
Saliente-se que este ‘situar’ decorre do facto de ser inerente à condição
humana de existir e representar o mundo com significados sobre a vida, a morte, o
destino do mundo, o porquê do amor e o significado da felicidade.
Ao tratar-se de uma inteligência que se preocupa com a busca de respostas a
questões básicas da vida, tais como “Quem somos nós?”, “Existe significado para a
vida?”, e “Qual o sentido da morte?”, lida com informações sobre a condição humana
que criam conhecimentos que se implicam na orientação da vida social.
Sobredotação e Filosofia
28
Os indivíduos que desenvolvem esse tipo de inteligência assumem papéis
explicitamente filosóficos, científicos e religiosos; labutam na a elaboração de
princípios orientadores das sociedades; e tentam desconstruir paradigmas com a
elaboração de novas noções que validem os acontecimentos sociais.
Portanto, é nos âmbitos lógico-matemático e existencial aos quais são
inerentes e exigidas atitudes de indagação, questionamento e reflexão, que nos
propomos contribuir para a ampliação e enriquecimento das capacidades dos
sobredotados. Consideramos que, só mediante uma intervenção num plano
interdisciplinar, neste caso filosófico, é que será possível responder às necessidades
de aceleração e de complexificação essenciais no processo de ensino-aprendizagem
dos sobredotados. Esta complexificação assenta, nas palavras de Helena Serra,
“na ampliação e enriquecimento dos conteúdos curriculares pelo estudo de
questões, problemas e temas que pressuponham relações entre ideias, conexões
com outros assuntos, adopção de diferentes pontos de vista, prática de
interdisciplinaridade (…)” (2004: 28).
Efectivamente, é pressupondo um quadro de interdisciplinaridade/transversalidade que veiculamos a relação entre sobredotação e filosofia a uma dimensão
exploratória.
Sobredotação e Filosofia
29
II PARTE
Investigação Empírica
Sobredotação e Filosofia
30
CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
1.1.
Objecto e Objectivos de Estudo
Tomando como objecto de estudo a realidade das crianças e jovens
sobredotadas, e adoptando como pergunta de partida a de saber de que forma a
sobredotação e as competências filosóficas podem ser abordadas numa perspectiva
transversal, remete-se, naturalmente, a investigação para o âmbito das ciências
sociais. Aliás, não podia deixar de o ser, na medida em que se centra numa
abordagem da inter-relação entre a sobredotação e a filosofia, isto é, assenta, acima
de tudo, na tentativa de conceber para tentar pôr em prática um dispositivo que, por
um lado, elucide mais eficazmente a realidade em estudo e, que por outro, contribua
para uma atitude mais interdisciplinar e assertiva por parte de todos intervenientes no
processo de ensino-aprendizagem dos sobredotados.
Portanto, é neste contexto de interdisciplinaridade, e convictos de que a
filosofia, com as suas competências transversais, poderá contribuir para uma alteração
das práticas pedagógicas em relação aos sobredotados, que consideramos que um
dos principais objectivos da investigação deverá ser o contributo que pode dar no
sentido de uma verdadeira inclusão9 desses alunos na realidade educativa.
Assim, aliando características intrínsecas do sobredotado às competências
filosóficas pretende-se demonstrar a sua interdisciplinaridade/transversalidade e,
simultaneamente, proporcionar ambientes estimulantes e contextos enriquecedores no
sentido destes poderem usufruir de uma educação diferenciada e potenciadora das
suas capacidades.
Por conseguinte, através da estimulação do pensamento abstracto, crítico e
lógico, da imaginação e especulação, da capacidade persuasiva e argumentativa e da
formação, clarificação e relacionação de conceitos, pretende-se consubstanciar no
plano prático os objectivos enunciados.
Claro que a exequibilidade destes pressupostos assenta, naturalmente, em
certos procedimentos metodológicos, sendo precisamente estes que nos propomos
desenvolver e apresentar de seguida.
9
É a estruturação do programa da escola de forma a dar resposta à diversidade dos alunos que atende.
Sobredotação e Filosofia
31
Claro está que a par destas motivações, expectativas e objectivos orientadores
e desejáveis de concretização prática, estamos cientes que teremos de lidar não só
com benefícios ou vantagens, mas também com problemas e dificuldades inerentes à
investigação. Neste quadro, se por um lado, se espera que uma das vantagens vá no
sentido de contribuir para impulsionar e dinamizar o desenvolvimento pleno das
potencialidades destas crianças e jovens, nomeadamente ao nível de uma melhor
adaptação, interesse e empenho nas actividades escolares, por outro lado, um dos
mais importantes problemas com que poderemos ter de lidar poderá ser a falta de
motivação e interesse dos próprios alunos, assim como a pouca disponibilidade para
lidarem com os novos desafios inerentes ao projecto.
Embora cientes destas dificuldades, esperamos que este projecto promova
novas perspectivas e posturas face à realidade da sobredotação.
Partindo destes pressupostos, impõe-se naturalmente a questão: Que fazemos
quando queremos saber ou conhecer algo? Perguntamos. Mas este processo de
indagação pelo conhecimento não é aleatório, obedece a regras rigorosas, com
procedimentos regulares claramente definidos e passíveis de repetição. Estas regras
constituem o método. Vejamos então, que papel assume nos processos investigativos.
1.2.
Importância do Método
Todo e qualquer método constitui-se como um instrumento, um guia ou o
caminho que se segue para alcançar um objectivo previamente estabelecido. Como
tal, o método é crucial na medida em que é o responsável pela eficácia da
investigação, dá credibilidade aos resultados obtidos e é um dos critérios que permite
distinguir os conhecimentos verdadeiramente científicos dos que o não são. Agora
impõe-se a pergunta: será que podemos afirmar que há um método científico único?
Sim e não.
Sim, se entendermos por método científico o conjunto de procedimentos
ordenados e sistematizados para ser adoptado pelo pesquisador na sua investigação.
Não, se considerarmos concretamente os procedimentos a adoptar em cada ciência
em particular.
Por conseguinte, a este propósito, saliente-se que não há um método único
que possa ser mecanicamente aplicado às diferentes áreas de investigação.
Efectivamente, ao determinar o seu campo de investigação, cada ciência define uma
perspectiva própria e um conjunto de objectivos e de procedimentos (métodos e
Sobredotação e Filosofia
32
técnicas) que lhe permitirão construir uma visão específica da realidade que se propõe
estudar.
Neste âmbito, parece óbvio que os procedimentos usados numa investigação
em ciências sociais e humanas serão diferentes dos usados noutros domínios de
investigação. Assim, partindo do pressuposto de que diferentes investigações exigem
diferentes considerações epistemológicas acerca da natureza do conhecimento
científico e de como adquiri-lo, faremos, de seguida, uma breve resenha pelas
metodologias quantitativa e qualitativa, para melhor fundamentarmos a metodologia
seleccionada para a investigação.
1.3.
Metodologia Adoptada
Os procedimentos da pesquisa educacional são, efectivamente, determinados
pelo tipo de pressupostos considerados. Assim, de uma forma simples podemos dividir
estes procedimentos em dois tipos de paradigmas10: o quantitativo e o qualitativo.
Enquanto o primeiro está, tradicionalmente, associado ao positivismo, assenta
na assumpção de que o meio social constitui uma realidade independente e
relativamente constante no tempo e lugar, por seu turno, o segundo, que se associa
ao pós-positivismo, considera que os factos do meio social são construídos pelas
interpretações dos indivíduos sendo, por isso, transitórias e situacionais. Daqui resulta
a designação de Paradigma interpretativo, pois de acordo com Léon Bennier, “não
existe melhor porta de entrada para as realidades humanas e as práticas sociais do
que as interpretações que os seres humanos formulam” (cit. in Lessard-Herbert (1994:
14).
Portanto, para o quadro positivista, que considera que a descoberta e a
verificação de leis gerais fundamentando-se exclusivamente na observação exterior
objectiva, apenas o mundo dos factos é cientificamente analisável. O mundo social e
humano, na sua essência, é tido como inacessível, isto é, o mundo subjectivo da
consciência e dos valores escapa a toda e a qualquer tentativa de cientificação, é
considerado como não tendo interesse significativo em si mesmo.
Já o paradigma qualitativo põe a tónica no interesse conferido pelos
investigadores às acções nas quais se empenham, a que Erickson (1986) chama de
«investigação interpretativa».
Neste quadro, a interpretação desempenha um papel-chave na vida e nos
fenómenos sociais, na medida em que os significados que os sujeitos criam estão
10
Modelo de pensar e de descrever a realidade, de interpretar e explicar o mundo.
Sobredotação e Filosofia
33
ligados à variabilidade subjacente às percepções das suas interacções sociais. Como
tal, parafraseando Erickson, a investigação incidirá sobre o modo como se
desenvolvem e mantêm os sistemas de significado e não sobre os comportamentos
observáveis.
Efectivamente, se atendermos à tradição da investigação qualitativa em causas
sociais, verifica-se que consiste, essencialmente, em estudar e em interagir com as
pessoas no seu terreno, através da sua linguagem, sem recorrer a um afastamento, o
que acarretaria o emprego de formas simbólicas, estranhas ao seu meio.
Além do mais, o próprio termo “qualitativo” sublinha a importância que o
carácter de proximidade entre o investigador e os participantes têm no processo
investigacional.
Portanto, a propósito das duas metodologias analisadas de forma sucinta,
saliente-se que, apesar de terem como subjacente dois paradigmas diferentes, na
prática podem utilizar-se as duas pois complementam-se. Por exemplo, pode
começar-se com um estudo exploratório qualitativo, depois recorrer a uma técnica
quantitativa de recolha de dados para depois testar o modelo na realidade. Ou, então,
após um estudo quantitativo podem ter-se detectado relações entre variáveis difíceis
de discriminar e isolar e, daí, partir para um estudo qualitativo. Efectivamente, e
parafraseando Bruce Biddle e Donald Anderson, não é adequado comparar a eficácia
das duas metodologias, visto cada uma ter diferentes objectivos, e muitas vezes
precisamos de ambas.
Ora, ao perspectivar-se no campo de uma abordagem transversal da
sobredotação e das competências filosóficas, o presente trabalho exige a procura de
processos de objectivação que permitam construir um quadro mais compreensivo e
explicativo dos sujeitos para assim se conhecer as suas reflexões, interpretações,
motivações e interesses acerca da realidade que os envolve.
Neste quadro de subjectividade, consideramos que a metodologia que melhor
poderá permitir estudar interpretar e compreender a realidade da sobredotação será a
qualitativa. De facto, segundo Van der Manen,
“a investigação no campo da Educação só dificilmente é verificativa; ela não se
pode verdadeiramente submeter às exigências de uma perspectiva quantitativa.
Se se pretender que a investigação seja consistente com as características do
objecto e com os obstáculos do campo, ela será sempre explorativacompreensiva” (cit. in Lessard-Herbert (1994: 2).
Trata-se, por isso, de uma metodologia que, além de permitir lidar com os
participantes no seu contexto, privilegiando os processos, também visa centrar os
seus procedimentos na mudança. O que em última análise pressupõe uma
Sobredotação e Filosofia
34
investigação pedagógica na medida em que o investigador, como agente da prática
pedagógica, pretende utilizar esta abordagem para optimizar o seu plano de acção.
Neste contexto, considera-se que o estudo de caso do tipo observacional, será
aquele que mais fielmente nos permitirá alcançar os objectivos traçados. Assim, a
partir de um conjunto de instrumentos, designadamente inquéritos e documentos que
privilegiem
as
competências
filosóficas,
nomeadamente
as
classificações
e
categorizações, a resolução de dilemas e o questionamento socrático, pretende-se
contribuir e proporcionar às crianças e jovens sobredotados ambientes e contextos
estimulantes, enriquecedores e motivadores, para desenvolverem plenamente as suas
potencialidades.
Sobredotação e Filosofia
35
CAPÍTULO 2. ETAPAS METODOLÓGICAS
2.1.
Formulação do Problema e das Hipóteses
Terminamos o capítulo anterior vendo como proceder à exploração e execução
dos propósitos do trabalho. Trata-se agora de precisar e formular uma problemática
bem como as hipóteses relacionadas com a pergunta de partida: de que forma a
sobredotação e as competências filosóficas podem ser abordadas numa perspectiva
transversal?
Efectivamente, é à luz da problemática escolhida que a pergunta de partida
ganhará o sentido particular e preciso, bem como a orientação específica na qual se
procurará uma resposta, isto é, a finalidade do projecto.
Por conseguinte, ao escolhermos a problemática estaremos, ao mesmo tempo,
a tentar definir com mais precisão e a optar por um determinado modo de abordagem
do objecto de estudo da investigação. Assim, e dado que estes planos se cruzam,
pode-se produzir várias possibilidades de afrontar a questão e conceber outras
abordagens possíveis.
Vejamos então como escolher concretamente a nossa problemática. Tendo em
linha de conta a orientação esboçada pela pergunta de partida, constitui-se como
problema o modo como poderemos encontrar respostas específicas às necessidades,
interesses e motivações das crianças e jovens sobredotados, num quadro de
enriquecimento das inteligências lógico-matemática e existencial.
Ora, esta problematização para ser elucidada tem de ser desenvolvida e
confrontada com a realidade, é que a mera conceptualização nada dizem sobre a
maneira de a estudar e compreender. Tal função é assegurada pelas hipóteses.
Constituem-se, de certo modo, como respostas provisórias e relativamente sumárias
que inspirarão a fase subsequente da investigação, a recolha e análise dos dados que
serão, posteriormente, testados, corrigidos e aprofundados.
De facto, a organização de uma investigação em torno de hipóteses de
trabalho constitui a melhor forma de conduzir com ordem e rigor a descoberta.
Atendendo à pergunta de partida e à problemática já formulada, julgamos que
algumas hipóteses surgem de forma natural. Assim, consideramos que:
Sobredotação e Filosofia
36
1. As crianças e jovens sobredotados, dadas as suas características intelectuais e
mediante uma intervenção diferenciada, não sentirão a necessidade de reprimir
as suas capacidades excepcionais.
2. As crianças e jovens sobredotados, dadas as suas características intelectuais e
mediante uma intervenção diferenciada, sentir-se-ão mais acompanhadas e
respeitadas pelo sistema escolar.
3. As crianças e jovens sobredotados, dadas as suas características intelectuais e
mediante uma intervenção diferenciada, sentir-se-ão mais motivadas pelo
estudo e pela indagação.
Portanto, as hipóteses são efectivamente cruciais em qualquer investigação.
Estas apresentam-se, como afirma Raymond Quivy, “como movimentos de vaivém
entre uma reflexão teórica e um trabalho empírico. As hipóteses constituem as
charneiras deste movimento; dão-lhe a sua amplitude e asseguram a coerência entre
as partes do trabalho” (1992: 120).
Claro que para prosseguir a investigação não basta determinar o tipo de dados
que deverão ser considerados, é fundamental circunscrever o campo das noções
subjacentes às hipóteses estabelecidas.
2.2.
Explicitação das Noções das Hipóteses
Sendo que ao construirmos hipóteses não estamos simplesmente a imaginar
uma relação entre dois termos ou duas variáveis isoladas, trata-se sim, de uma
operação mais complexa: explicitar a lógica das relações que unem as noções
evocadas: crianças e jovens sobredotados, características intelectuais, intervenção
diferenciada, repressão das suas capacidades excepcionais e motivação.
Efectivamente, estas noções evocadas em cada hipótese são uma construção
abstracta que visam dar conta do real. Claro que nelas não estão contidos todos os
aspectos da realidade em questão, mas apenas aqueles que se consideram
essenciais para a realidade em estudo.
Por conseguinte, vejamos quais as dimensões que constituem as várias
noções utilizadas para, de seguida, se precisar os instrumentos e indicadores que
permitirão a sua medição.
Assim, quando nas hipóteses enunciadas fazemos uso das noções “crianças e
jovens sobredotados” e “características intelectuais”, recuperamos, por um lado, a
noção de sobredotação anteriormente explorada: conjunto de características
diferenciais únicas que resultam das dimensões afectiva, social, cognitiva, e que
Sobredotação e Filosofia
37
devem ser, na linha de Alencar, inferidas a partir das especificidades de cada indivíduo
e, por outro, torna-se, mais uma vez presentes as suas capacidades intelectuais,
nomeadamente: a facilidade na compreensão de informação e conceitos novos e em
fazer novas aprendizagens, a facilidade na compreensão de ideias complexas e
abstractas, a habilidade para argumentar, perguntar e raciocinar e a curiosidade
intelectual.
De seguida a tónica é colocada na noção de “intervenção diferenciada”, para
tentar destacar em que medida as crianças sobredotadas têm necessidade de
contextos escolares e familiares estimulantes e enriquecidos de forma a conseguirem
mostrar-se na sua plenitude e a poder explorar e desenvolver ao mais alto nível todas
as suas potencialidades.
Neste âmbito, consideramos que uma intervenção no plano das competências
filosóficas, em geral, e, em particular, ao nível das inteligências lógico-matemática e
existencial, será um meio capaz de responder adequadamente às diferentes
capacidades, interesses e necessidades do aluno, sobretudo num quadro prático onde
muitas destas capacidades podem ser reprimidas, dissimuladas e escondidas pela
criança na tentativa de que, ao assemelhar-se aos colegas, seja aceite e assim não
esteja sujeita à sua hostilidade.
A este contexto subjaz, naturalmente, a noção de motivação. De modo efectivo,
ela constitui-se não só como um dos objectivos de toda a intervenção, mas também de
toda a investigação: contribuir para que as crianças e jovens sobredotados se sintam
motivados pela e para a aprendizagem.
Por conseguinte, uma vez explicitadas e/ou esclarecidas as dimensões das
noções constituintes das hipóteses, poderemos agora precisar os indicadores/sinais a
partir dos quais estas dimensões poderão ser trabalhadas, pois, tendo em vista os
objectivos traçados, são eles que apontarão o caminho a seguir.
Porém, só mediante a construção de instrumentos de recolha de dados
pertinentes, é que se poderá desenhar a verificação das hipóteses avançadas e a
especificação dos conceitos a elas subjacentes.
2.3.
Instrumentos de Recolha de Dados
Tendo por base os intentos previamente estabelecidos, na linha de Joseph S.
Renzulli, optou-se pela construção, elaboração e aplicação de três inquéritos por
questionários, às crianças e jovens sobredotados, aos pais e aos professores.
Sobredotação e Filosofia
38
Escolheu-se este instrumento de recolha de informações dado o seu o seu
carácter formal e preciso se prestar a uma utilização prático-pedagógica.
A – Inquérito às crianças e jovens sobredotados*
Este inquérito tem como objectivo fundamental auscultar os seus interesses e
motivações bem como conhecer a percepção que eles têm de si mesmo,
nomeadamente a nível cognitivo.
B – Inquérito aos pais*
Dado que as representações que os pais têm dos filhos se repercutem aos
mais variados níveis: afectivo-emocional, social e escolar, pareceu-nos naturalmente
profícua a sua colaboração.
C – Inquérito aos professores*
Para se alcançar um conhecimento mais profundo da realidade em estudo, não
podíamos deixar de auscultar a opinião dos professores. Considera-se que o professor
é um elemento essencial no processo educativo, na medida em que dele depende
parte do sucesso ou insucesso educativo da criança, será um elemento incontornável
para se conhecer as suas opiniões quanto à criança, quanto ao seu atendimento pela
escola e quanto aos estímulos que lhe são proporcionados.
Atendendo ao contexto específico em estudo, consideramos imprescindível
fazer, de seguida, uma auscultação dos principais agentes envolvidos, na medida em
que as suas respostas se revelam fundamentais para a consecução dos objectivos
estabelecidos.
2.4.
Selecção da Amostra
Convictos de que as competências filosóficas poderão contribuir de modo
pertinente para o desenvolvimento e estímulo das potencialidades dos sobredotados,
isto é, para alcançar os objectivos traçados, seleccionamos uma amostra de crianças
e jovens cujas idades estão compreendidas entre 12 e os 16 anos.
O interesse por esta amostra prende-se com o facto de serem jovens que, à
partida, já se encontrarão no último estádio de desenvolvimento cognitivo considerado
por Piaget – estádio das operações formais. Este estádio caracteriza-se pelo
aparecimento de um novo tipo de pensamento: um pensamento abstracto, lógico e
formal. Diferentemente do estádio das operações concretas – operar com suporte no
concreto –, a criança já é capaz de resolver problemas e realizar operações formais.
*
Anexo I
Anexo II
*
Anexo III
*
Sobredotação e Filosofia
39
Coloca mentalmente as hipóteses, deduzindo as consequências: raciocínio hipotéticodedutivo11. Pensa abstractamente, formula e verifica hipóteses.
Ora estas capacidades, que abrem caminho à reflexão filosófica, afiguram-se
essenciais para, através das inteligências lógico-matemática e existencial, se estimular
e potenciar as capacidades intelectuais do sobredotado.
Portanto, é precisamente a partir deste pressuposto que se impõe verificar se a
criança e jovem, que neste estádio já é capaz de raciocinar sobre hipóteses
abstractas, apresentar e defender pontos de vista por via lógico-argumentativa, e
capaz de ter preocupações e questões de ordem existencial, será receptiva e
permeável a estímulos no plano filosófico.
Claro que neste processo não podíamos deixar de considerar outros agentes,
nomeadamente os pais e os professores da criança e jovem, na medida em que, dada
sua relação proximal, em contexto familiar e escolar respectivamente, poderão
fornecer indicadores valiosos para melhor se poder delinear uma acção filosófico-interventiva.
2.5.
Procedimentos
Criados os inquéritos, de seguida foram veiculadas condições de aplicabilidade
de forma a permitir fazer a triangulação entre as respostas obtidas das diferentes
fontes: sobredotados, pais e professores, e desse modo pôr em andamento toda a
investigação empírica.
Assim, a recolha dos dados por questionários obedeceu a algumas condições
de
realização
previamente
estabelecidas
para
garantir
que
não
houvesse
enviesamentos dos dados recolhidos.
Antes da distribuição genérica dos questionários, foi efectuado um pré-teste
com a colaboração de um aluno e respectivo encarregado de educação e de um
professor, de forma a evidenciar as possíveis deficiências das questões constantes
nos inquéritos.
A este procedimento seguiu-se a entrega pessoal dos questionários às
crianças e aos professores. Foi ainda obtida a colaboração dos directores de turma no
sentido de serem distribuídos os questionários aos pais das crianças. Foi explicado,
oralmente e por escrito, o que se pretendia dos inquiridos, o fim a que se destinavam
os dados obtidos bem como o prazo para preenchimento e entrega dos respectivos
11
Um processo de raciocínio através do qual uma regra geral é inferida a partir de casos específicos e do
uso de observações, conhecimentos, experiências e crenças.
Sobredotação e Filosofia
40
questionários. Acrescente-se ainda que se deu a conhecer à amostra a condição de
anonimato e de confidencialidade a que estariam sujeitos os dados recolhidos.
No que diz respeito aos alunos, depois de obtidas informações sobre a
distribuição da componente lectiva e a carga horária, os inquéritos foram realizados
durante 90 minutos e em contextos individuais e reservados, previamente combinados.
Foram efectuados em ambiente de silêncio e tranquilidade para garantir as condições
que se consideram mais adequadas à sua realização.
No que concerne aos professores, foi convencionado o prazo de três dias para
o preenchimento e entrega, em mão, ao avaliador dos respectivos inquéritos. Quanto
aos pais, também foi convencionado o mesmo prazo, mas fazendo-se a entrega dos
inquéritos através do director de turma da criança.
Portanto, uma vez consertados os procedimentos tratou-se, em seguida, de
verificar se as informações recolhidas corresponderiam aos resultados veiculados
pelas hipóteses.
2.6.
Tratamento de Dados
Após a recolha dos dados considerados nos respectivos inquéritos, procedeu-
se ao respectivo tratamento.
Para facilitar e agilizar este processo de análise construíram-se e elaboraramse, na linha de Joseph S. Renzulli, escalas de tratamento e análise das características
comportamentais de crianças e jovens sobredotados, observadas pelos próprios e
pelos pais e pelos professores*.
Uma vez efectuado o tratamento e análise do conteúdo dos dados recolhidos e
tendo-se concluído que a criança necessita, de forma efectiva, de uma intervenção
diferenciada orientada, principalmente, para a estimulação e enriquecimento das suas
competências lógico-matemáticas e existenciais, intentaremos delinear algumas linhas
orientadoras das estratégias e actividades para a intervenção.
*
Anexo IV
Sobredotação e Filosofia
41
CAPÍTULO 3. INTERVENÇÃO
3.1.
Estratégias/Actividades
O facto destas crianças e jovens sobredotadas apresentarem uma série de
características intelectuo-comportamentais nem sempre consideradas nos programas
e currículos educativos, torna necessário tomar medidas que tenham em conta estas
diferenças
de
capacidades,
para
assim
lhes
permitir
alcançar
o
melhor
desenvolvimento de todas as suas potencialidades.
A nível da intervenção educativa a resposta pode ser encontrada na utilização
de algumas estratégias, nomeadamente a aceleração, o agrupamento e o
enriquecimento curricular.
Situando a investigação no âmbito filosófico, e atendendo à avaliação dos
dados recolhidos junto dos principais intervenientes – o sobredotado, os pais e os
professores – a estratégia que nos propomos desenvolver é a de enriquecimento
A opção por esta estratégia prende-se com o facto de se considerar que ela é a
que melhor permitirá estabelecer parâmetros de intervenção mais adequados de forma
a serem evitados desajustes emocionais, inibição intelectual, e do que é mais
importante: “respetar el derecho a la diversidad y a la igualdad de oportunidades,
dando a cada alumno/a lo que necesita para um adecuado desarrollo” (Alonso y
Benito, 1996: 206).
Neste enquadramento, considera-se que o enriquecimento, no plano de uma
acção filosófico-interventiva, deverá passar pelo planeamento e definição de
estratégias/actividades transversais aos domínios em estudo: sobredotação e
filosofia*.
Assim, a partir da conformidade entre estratégias/actividades filosóficas e os
interesses e motivações do sobredotado, consideramos que a resolução de problemas
lógicos e de exercícios de pensamento crítico, a análise de casos/dilemas e o
estabelecimento de suposições, poderão servir de instrumentos facilitadores ao
estímulo das suas inteligências lógico-matemática e existencial* e, consequentemente,
contribuir para enriquecer suas potencialidades intelectuais.
*
*
Anexo V
Anexo VI e VII
Sobredotação e Filosofia
3.2.
42
Antecipação dos Resultados
A exequibilidade dos pressupostos teóricos nos quais assenta este projecto,
depende grandemente das práticas educativas bem como das políticas educativas
orientadas para a inclusão bem sucedida de todas as crianças.
Assim, se em termos legislativos é afirmado o direito de todos à educação, na
prática é possível detectar-se problemas e inconsistências, designadamente a nível
humano e material.
Como tal, se por um lado a escola não possui espaços específicos nem meios
financeiros para poder prestar um acompanhamento mais individualizado às crianças,
em geral, e às crianças e jovens sobredotados, em particular, por outro lado,
deparamo-nos com uma falta de preparação para lidar com as especificidades dos
alunos, em particular dos sobredotados. Assim, se é verdade que ainda existe pouca
sensibilidade face à realidade da sobredotação, quer por parte dos professores quer
por parte dos pais, também não é menos verdade que muito se tem feito no sentido de
se melhorar a percepção desta realidade.
Portanto, num quadro educativo onde muitas vezes as dificuldades e
burocracias se sobrepõem aos interesses dos alunos e, consequentemente, ao
objectivo prioritário da construção de uma escola mais humanizada, impõe-se construir
com sucesso uma escola inclusiva assente em pressupostos diferenciados consoante
as realidades imensamente abrangentes que abarca.
Sobredotação e Filosofia
43
REFLEXÕES FINAIS
Imbuídos no espírito de uma sociedade contemporânea que teoricamente faz a
apologia da inclusão – ‘todos diferentes mas todos iguais’ – mas que na prática é
reveladora de comportamentos e atitudes de exclusão que acentuam as diferenças, a
escola, em geral, e os intervenientes educativos, em particular, devem ter uma palavra
a dizer.
Ora, foi com base neste propósito que orientamos a acção. Assim, acreditando
que a versatilidade e transversalidade inerentes ao campo filosófico poderia contribuir
de forma efectiva para complementar e enriquecer os percursos das crianças e jovens
sobredotados a nível individual e ao nível dos seus desempenhos escolares,
propusemos algumas actividades com vista a uma intervenção diferenciada.
A este propósito, não deixamos de notar que a falta de um feedback da
aplicabilidade prático-interventiva não permitiu ir além de meras conjecturas e,
consequentemente, fazer reajustes à intervenção.
Assim, embora cientes das limitações inerentes aos domínios teóricos e
práticos do trabalho, pretendeu-se abordar a transversalidade entre a sobredotação e
a filosofia no campo da estimulação das inteligências lógico-matemática e existencial,
não de forma estanque, mas pelo contrário, ‘dar um pequeno passo’ em direcção a
uma intervenção mais alargada – que contemple outras inteligências.
Neste quadro, cremos que só mediante uma acção diferenciada capaz de
assumir o desafio de construir uma educação diferente, encaminhada à flexibilização e
intervenção intra e extra-escolar destas crianças e jovens, é que será possível
construir uma escola realmente inclusiva – “uma escola onde toda a criança é
respeitada e encorajada a aprender até ao limite das suas capacidades” (Correia/
Martins, 2002: 13).
Efectivamente, através dos seus profissionais, a escola deve cultivar cada vez
mais uma filosofia inclusiva, isto é, uma filosofia que cada vez mais insira no seu seio
todos os alunos, sejam quais forem as suas características e necessidades.
Por conseguinte, ressalte-se que educar na diversidade não deve ser apenas
uma frase feita, mas uma realidade que devemos ir construindo pouco a pouco numa
acção multidisciplinar. Pois só mediante uma acção vincadamente humanizante e
inclusiva é que a criança poderá explorar plenamente todas as suas potencialidades.
Sobredotação e Filosofia
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