RELATO DE CASO Existe relação entre cefaleia cervicogênica e síndrome de Eagle? Is there a relationship between cervicogenic headache and Eagle syndrome? Anúzia Fabíolla de Souza Albuquerque, Carolina Mendonça Moraes, Aline Rodrigues Maciel, Carolina Fonseca Reis de Souza, Larissa Paes Barreto Vieira, Rodrigo Souza Leão, Breno Jackson Carvalho de Lima, Fábio Coelho, Louana Cassiano da Silva, Daniella Araújo Oliveira, Marcelo Moraes Valença Hospital das Clínicas, Departamentos de Neuropsiquiatria e Cirurgia, Universidade Federal de Pernambuco Albuquerque AFS, Moraes CM, Maciel AR, Souza CFR, Vieira LPB, Leão RS, Lima BJC, Coelho F, Silva LC, Oliveira DA, Valença MM. Existe relação entre cefaleia cervicogênica e síndrome de Eagle? Migrâneas cefaleias 2008;11(4):256-259 RESUMO A síndrome de Eagle é caracterizada pelo desenvolvimento de sintomas associados ao alongamento do processo estiloide, ou à ossificação do ligamento estilo-hioide. Junto aos sintomas mais comuns pode ser encontrada dor cervical, que, em alguns casos, entra no diagnóstico diferencial com cefaleia cervicogênica. A finalidade desse trabalho foi relatar dois casos de pacientes com síndrome de Eagle, nos quais havia dor cervical ipsilateral aos sintomas da síndrome. É feita breve revisão da literatura sobre síndrome de Eagle e cefaleia cervicogênica. Palavras alavras-- chave: Síndrome de Eagle; cefaleia cervicogênica; processo estiloide; dor. ABSTRACT The Eagle's syndrome is characterized by the development of symptoms associated with elongated styloid process. In this report we described the cases of two patients with Eagle's syndrome associated with symptomatology similar to cervicogenic headache. Key words: Eagle's syndrome; cervicogenic headache; styloid process; pain. 256 INTRODUÇÃO A síndrome de Eagle, também denominada de estilalgia,1 é caracterizada pelo desenvolvimento de sinais e sintomas associados ao alongamento do processo estiloide do osso temporal, ou à ossificação do ligamento estilo-hioide.1-3 A principal causa do surgimento do quadro sintomatológico em pacientes com a apófise alongada ou o ligamento calcificado é o mecanismo de cicatrização presente após tonsilectomia. Entre os sintomas mais comuns estão disfagia, odinofagia, dor facial e orofaringeal, otalgia, cefaleia, sensação de corpo estranho na faringe e trismo.4 Além desses, pode ainda ser encontrada dor cervical.2,4 O processo estiloide tem um comprimento normal de 25 mm-30 mm e em cerca de 4% da população ele se encontra alongado, ultrapassando esse valor e chegando a medir mais de 40 mm.3-5 Dentre os indivíduos que apresentam a apófise alongada, 4% a 10% podem apresentar sintomas 4,5 devido a algum fator desencadeante, como a retirada cirúrgica das tonsilas, trauma cervical e compressão das artérias carótidas interna e externa. Os dois primeiros casos representam a síndrome de Eagle clássica e o último exemplo podemos denominar de síndrome da artéria carótida-apófise estiloide.4 A apófise estiloide mantém relações anatômicas com diversas estruturas, algumas das quais estão associadas Migrâneas cefaleias, v.11, n.4, p.256-259, out./nov/dez. 2008 EXISTE RELAÇÃO ENTRE CEFALEIA CERVICOGÊNICA E SÍNDROME DE EAGLE? ao surgimento dos sintomas descritos. Estas estruturas são: artérias carótidas interna e externa, nervo trigêmeo, nervo facial, nervo glossofaríngeo, nervo vago, músculos faríngeos e mucosa faríngea.4,5 O diagnóstico da síndrome de Eagle é baseado no quadro sintomatológico relatado pelo paciente, na palpação do processo estiloide através da loja tonsilar ou cervical alta e no estudo radiológico. A confirmação do diagnóstico é reforçada quando, após in- Figura 1. Imagens radiográficas mostrando o processo estiloide esquerdo (seta) alongado no paciente descrito como caso 1 filtração de anestésico na região tonsilar, há completo desaparecimento da dor.1-5 Alguns pacientes apresentam dor cervical muito semelhante à descrita na cefaleia cervicogênica.6 Esse tipo de cefaleia pode ser resultante de uma lesão cervical, mas também pode ocorrer na ausência de trauma. A incidência é maior em pacientes do sexo feminino e as dores podem ser acompanhadas de náuseas, fonofobia, fotofobia, tontura, visão turva e edema (mais na região periorbital) ipsilateralmente e disfagia.6,7 Os critérios para diagnosticar a cefaléia cervicogênica segundo a Cervicogenic Headache International Study Group e a International Headache Society (ICHD-II code 11.2.1) são: dores precipitadas por movimentação ou postura anormal do pescoço e/ou pressão externa exercida sobre as regiões occipital e cervical no lado sintomático; restrição dos movimentos cervicais; dor na região do ombro e/ou do braço ipsilateralmente; e dor não migrató- Figura 2. Tomografia computadorizada da transição crânio-facial mostrando a ria e que pode ser constante ou intermitente. presença de um grande processo estiloide à esquerda no paciente descrito como caso Também é comum a ocorrência de alterações 1. Note que nos painéis superiores apenas aparece a apófise esquerda anatômicas na musculatura cervical como modificações no tono, textura e contorno muscular. A confirviço médico obtendo o diagnóstico de síndrome de Eagle, devido ao alongamento do processo estiloide. mação do diagnóstico pode ser evidenciada por bloqueio 6,7 anestésico local com remissão dos sintomas. Os sintomas eram bem tolerados pela paciente, porém, há cerca de 4 anos, houve significativa piora O presente estudo é baseado no relato de dois cadesses, acompanhada da aparição de trismo, sensasos de pacientes com síndrome de Eagle. ção de corpo estranho na faringe e otalgia. Mediante essa situação, ela procurou novamente o serviço médiRELATO DE CASOS co, onde foi solicitada avaliação radiológica, a qual demonstrou que a apófise estiloide esquerda estava de Caso 1 tamanho aumentado (Figuras 1 e 2). Mulher, 48 anos, referiu ter se submetido à tonsiA paciente não quis se submeter ao tratamento cilectomia 30 anos atrás. Dez anos após o procedimento, rúrgico e os sintomas foram se agravando, além de ter relatou ter surgido dores nas regiões da face e da oroinício há um ano uma dor cervical de intensidade forte faringe do lado esquerdo, o que a fez procurar um serMigrâneas cefaleias, v.11, n.4, p.256-259, out./nov/dez. 2008 257 MARCELO MORAES VALENÇA E COLABORADORES ipsilateral aos demais sintomas. A dor cervical era constante e não associada a trauma, e provocava limitação dos movimentos, com precipitação de crises dolorosas por movimentação ou postura anormal do pescoço e também pela pressão digital nas regiões cervical e occipital. A dor irradiava para ombro e braço homolaterais. A região occipito-cervical esquerda foi infiltrada com lidocaína e dexametasona, havendo alívio imediato da dor, confirmando o diagnóstico de cefaleia cervicogênica. A paciente tornou-se assintomática por pelo menos os dois meses de acompanhamento após a infiltração. Caso 2 Homem, 33 anos, referia odinofagia, disfagia e sensação de corpo estranho na orofaringe. Ao procurar serviço médico, há cerca de 3 anos, foi confirmado o diagnóstico de tonsilite crônica caseosa, com eliminação de cáseo acompanhada de sintomas como halitose, sensação de corpo estranho e tonsilite de repetição.8 O paciente recebeu indicação para a realização de tonsilectomia na tentativa de obter alívio dos sintomas. Após a cirurgia o paciente relatou um agravamento dos sintomas acompanhado de surgimento de forte dor cervical ipsilateral. Mediante esse fato, o paciente regressou ao centro médico e, durante a anamnese não referiu nenhum trauma na região cervical. Como o procedimento não foi efetivo na melhora das queixas do paciente, foi feito um estudo radiológico para pesquisar outras possíveis causas que justificassem os sintomas, bem como a piora destes após tonsilectomia. As imagens mostraram o processo estiloide alongado, conduzindo ao diagnóstico de síndrome de Eagle. Foi solicitada uma tomografia computadorizada para reconstrução da apófise alongada (Figura 3) e então foi feita abordagem cirúrgica intraoral com retirada do processo estiloide (Figura 4) havendo, então, remissão dos sintomas, incluindo a dor cervical. DISCUSSÃO Ao desconhecer a história clínica dos dois casos, inicialmente se poderia considerar a probabilidade de síndrome de Eagle e a cefaleia cervicogênica terem sido consequência de um trauma cervical.4,6,7 Entretanto, ambos os pacientes negaram a ocorrência de quaisquer lesões nessa região. Ademais, a evolução cronológica dos sintomas, nesses casos, também contribui para descartar essa possibilidade de trauma, uma vez que as dores cervicais surgiram após intensificação dos sintomas da síndrome de Eagle, e não conjuntamente, como se esperaria na presença de um fator deflagrador. Outra proposição que explicaria o caso Figura 3. Tomografia computadorizada do crânio em 3-D mostrando comparativaseria o desenvolvimento dos sintomas da mente os processos estiloides direito e esquerdo destacando o tamanho aumentado cefaleia cervicogênica secundariamente à no lado esquerdo, no paciente descrito como caso 2 síndrome de Eagle, pois a dor cervical parece surgir como consequência da primeira. Anatomicamente, a apófise estiloide mantém contato com as vias nociceptivas do nervo trigêmeo. O alongamento dessa apófise, poderia, a longo prazo, ter lesionado algumas dessas fibras e ter originado as dores cervicais.6 A convergência dessas vias nociceptivas trigeminais descendentes com fibras sensitivas medulares cervicais poderia, de alguma forFigura 4. Processo estiloide alongado retirado cirurgicamente, no paciente descrito como caso 2. ma, gerar dor para o pescoço e cabeça, ca258 Migrâneas cefaleias, v.11, n.4, p.256-259, out./nov/dez. 2008 EXISTE RELAÇÃO ENTRE CEFALEIA CERVICOGÊNICA E SÍNDROME DE EAGLE? racterizando a cefaleia cervicogênica observada em nossos pacientes.6 Essas vias trigeminais nociceptivas advêm do núcleo trigeminal caudal, também denominado núcleo trigêmino-cervical, pois suas fibras são contínuas com a coluna cinzenta dorsal da medula ao nível de C3 e C4. Interneurônios dentro do núcleo trigêmino-cervical permitem uma troca de informações sensoriais entre raízes da medula cervical superior e o nervo trigêmeo.6 Portanto, isso reforça a hipótese da cefaleia cervicogênica ser desencadeada por lesão dessas fibras trigeminais. 8. Passos CAC, Oliveira FMZ, Nicola JH, Nicola EMD. Criptolise por coagulação com laser de CO2 em tonsilite crônica caseosa: método conservador e resultados. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, 2002; 68: 405-410. Endereço para correspondência alença Dr.. Marcelo Moraes V Valença Dr Hospital das Clínicas, Departamentos de Neuropsiquiatria e Cirurgia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Ciências da Saúde Av. Prof. Moraes Rego,1235, Cidade Universitária 50670-901 - Recife, PE - Brasil. [email protected] CONCLUSÃO Teoricamente, a evolução clínica dos casos e a ausência de outros fatores desencadeantes apontam para a mais íntima correlação, nesses e em outros possíveis casos, entre a síndrome de Eagle e o desencadear da cefaleia cervicogênica não-traumática. Nesses pacientes, surgem de início os sinais e sintomas da síndrome de Eagle, para posteriormente aparecem os da cefaleia cervicogênica. O segundo caso sugere que o tratamento se baseia na eliminação da suposta causa base da cefaleia, através de abordagem cirúrgica da apófise estiloide alongada, uma vez que isso promoveu remissão não só da cefaleia, como também dos demais sintomas da síndrome de Eagle. REFERÊNCIAS 1. Prasad KC, Kamath MP, Reddy KJ, Raju K, Agarwal S. Elongated styloid process (Eagle's syndrome): a clinical study. J Oral Maxillofac Surg. 2002;60(2):171-5. 2. Sun CK, Mercuri V, Cook MJ. Eagle syndrome: an unusual cause of head and neck pain. Arch Neurol. 2006;63(2):294-5. 3. Monti LM, França DCC, Trento CL, Tiano GC, Castro AVL. Síndrome de Eagle: relato de caso clínico. Revista Odontológica de Araçatuba, 2005; 26: 32-35. 4. Tiago RSL, Filho MFM, Maia CAS, Santos OFS: Síndrome de Eagle: avaliação do tratamento cirúrgico. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, 2002; 68:196-201. 5. Fini G, Gasparini G, Filippini F, Becelli R, Marcotullio D. The long styloid process syndrome or Eagle's syndrome. J Craniomaxillofac Surg. 2000;28(2):123-7. 6. Biondi DM. Cervicogenic headache: mechanisms, evaluation, and treatment strategies. J Am Osteopath Assoc. 2000;100(9 Suppl):S7-14. 7. Sjaastad O, Fredriksen TA, Pfaffenrath V. Cervicogenic headache: diagnostic criteria. The Cervicogenic Headache International Study Group. Headache. 1998;38(6):442-5. Migrâneas cefaleias, v.11, n.4, p.256-259, out./nov/dez. 2008 259