A ÉTICA PÓS-METAFÍSICA DE KIERKEGAARD: UMA LEITURA HABERMASIANA219 Josué Cândido da Silva 220 76F RESUMO: O presente trabalho investiga um aparente paradoxo na interpretação de Habermas sobre a ética de Kierkegaard, a saber, o de ser um dos primeiros filósofos pós-metafísicos, mas que se mantém nos marcos de um pensamento religioso. Tal posicionamento, segundo Habermas, seria desnecessário se partirmos de uma perspectiva deflacionada, ou seja, se admitirmos uma transcendência que não remete a nada de sagrado, mas que mesmo assim não deixa de ter validade intersubjetiva. Porém, ao confrontarmos a interpretação de Habermas com a de outros comentadores, vemos que a ideia de uma ética fundada religiosamente, não se sustenta, principalmente no que se refere à segunda ética. Pois em ambas as éticas, Kierkegaard constrói uma ética imanente, cujo fundamento encontra-se inteiramente no indivíduo. Palavras-chave: Pensamento pós-metafísico, ética, Kierkegaard. ABSTRACT: This paper investigates an apparent paradox in the interpretation of Habermas on the ethics of Kierkegaard, namely that the first post-metaphysical philosopher, remaining within the framework of a religious thought. This position, according to Habermas, would be unnecessary if we assume a deflationed perspective, ie, if we assume a transcendence that does not refer to anything sacred, but that still has intersubjective validity. However, when we compare the interpretation of Habermas with other commentators, we see that the idea of a religiously founded ethics, can not be sustained, especially as regards the second ethics. In both ethics, Kierkegaard constructs an inherent ethic, whose foundation lies entirely on the individual. 340 Keywords: post-metaphysical thinking, ethics, Kierkegaard. 1043B INTRODUÇÃO 219 . O presente trabalho é parte do projeto de pesquisa: Pensamento Pós-metafísico? Habermas e a intransitividade das ciências hermenêuticas, coordenado pelo Prof. Dr. Josué Cândido da Silva e insere-se no eixo temático de Filosofia. 220 . Josué Cândido da Silva é doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. 1044B O presente trabalho busca explorar um aparente paradoxo na interpretação que Habermas realiza da ética de Kierkegaard. Segundo Habermas, “Kierkegaard foi o primeiro a responder à questão ética fundamental sobre os êxitos e fracassos da própria vida com um conceito pós-metafísico do ‘poder ser si mesmo’” (HABERMAS, 2004, p.8). Apesar disso, Habermas considera que Kierkegaard permanece preso ainda a uma fundamentação religiosa da ética e daí o paradoxo: como a ética de Kierkegaard pode ser, simultaneamente, pós-metafísica e religiosa, ou mesmo teológica? 1045B Para desvelar essa trama, apresentaremos primeiro a conceituação habermasiana do pensamento pós-metafísico. Em seguida, veremos como Habermas interpreta a ética de Kierkegaard e, finalmente, discutiremos algumas dificuldades da interpretação de Habermas a luz das contribuições de outros especialistas no pensamento de Kierkegaard. 1046B O PENSAMENTO PÓS-METAFÍSICO 1047B Em sua obra Pensamento pós-metafísico, Habermas assim caracteriza o que é a metafísica: Deixando de lado a linha aristotélica e simplificando bastante, caracterizo como “metafísico, o Pensamento de um idealismo filosófico que se origina em Platão, passando por Plotino e o neoplatonismo, Agostinho e Tomás, Cusano e Pico de Mirandola, Descartes, Spinoza e Leibniz, chegando até Kant, Fichte, Schelling e Hegel. O materialismo antigo e o ceticismo, bem como o nominalismo da alta Idade Média e o empirismo moderno constituem movimentos anti-metafísicos que permanecem, porém, no interior do horizonte das possibilidades do pensamento da metafísica. (HABERMAS, 1990, p. 38). 1048B 1049B Como podemos observar, o pensamento metafísico cobre um vasto período da História da Filosofia, permanecendo vigente até hoje em várias correntes filosóficas, apesar do tantas vezes anunciado, fim da metafísica. Seus traços mais 341 característicos são: “o pensamento da identidade, a doutrina das ideias e o conceito forte de teoria” (HABERMAS, 1990, p. 38). 1050B Os três pilares do pensamento metafísico começam a ruir vítimas de ataques em vários frontes diferentes que têm curso no desenvolvimento da filosofia e ciência modernas. No campo da ciência e da moral tornadas autônomas, a racionalidade é reduzida ao aspecto formal, tornando-se meramente procedimental. Tais procedimentos visam resolver problemas empíricos e teóricos da comunidade científica, cuja unidade é garantida pela reprodutibilidade dos experimentos como critério de verificação das teorias e não mais por fundamentos a priori inabaláveis frente às variáveis do mundo fenomênico. Também nos problemas práticos-morais no Estado burocrático de direito, a racionalidade surge como resultado dos procedimentos burocráticos que dão estabilidade às instituições através de regras reconhecidas socialmente como legítimas. Tal método desonera a necessidade de uma legitimação metafísica do Estado como, por exemplo, do direito divino, para assentar-se unicamente no reconhecimento recíproco de regras comuns. Nessas condições, “a racionalidade do procedimento não está mais em condições de garantir uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos. Com a antecipação da totalidade do ente cai também a perspectiva a partir da qual a metafísica conseguia fazer uma distinção entre ser e aparência” (HABERMAS, 1990, pp. 44-45). 1051B As teorias científicas que exemplificam os fenômenos não são mais capazes de inserir-se em uma totalidade ordenada. Qualquer tentativa nesse sentido é vista, ao contrário, como um avanço não autorizado para além do domínio dos fatos. A 342 advertência de Newton de que hypotheses non fingo, marca o limite das explicações científicas em relação ao domínio das teorias metafísicas sem fundamento empírico. Para ciência vale apenas o domínio dos dados objetivos da natureza, isentos dos prejuízos dos cientistas através do controle experimental. Como observa Habermas, “um conhecimento de essências, explicitador de contextos de sentido, ricocheteia numa natureza objetivada; e o correspondente substituto hermenêutico oferece-se somente naquela esfera do não-ente, na qual, entretanto, de acordo com a compreensão metafísica, as essências ideais jamais devem fincar pé!” (HABERMAS, 1990, p. 45). 1052B Por fim, o pensamento totalizador da metafísica vê sua legitimidade abalada pela própria crítica interna da filosofia, que acaba por reconhecer os procedimentos científicos como a fonte do conhecimento que faz progressos cumulativos, enquanto a metafísica permanece enredada em debates intermináveis, distantes de qualquer perspectiva de consenso. Dessa forma, a filosofia “precisa travar relações com a auto-compreensão falibilista e com a racionalidade metódica das ciências experimentais; ela não pode pretender um acesso privilegiado à verdade, nem um método próprio ou um campo de objetos próprio, nem mesmo um estilo próprio de intuição” (HABERMAS, 1990, p. 47). Daí para diante, a filosofia terá que alinhar sua forma de conhecimento no sistema das ciências sem necessariamente renunciar à relação com o todo. 1053B Outro motivo do pensamento pós-metafísico é a crítica ao idealismo de tipo hegeliano. Hegel, ao conceituar a realidade efetiva como unidade de essência e existência acaba por marginalizar o que seria mais importante na modernidade, a saber, “a transitoriedade do instante pleno de significados em que os problemas do futuro sempre prementes se entrelaçam em um nó” (HABERMAS, 2002, p. 76). É justamente o peso da existência, da faticidade e da contingência que será o ponto de partida da crítica dos jovens hegelianos contra a auto-relação absoluta da razão. “Feuerbach, Kierkegaard e Marx protestam, portanto, contra as falsas mediações, efetuadas meramente no pensamento, entre natureza subjetiva e objetiva, entre espírito objetivo e saber absoluto” (HABERMAS, 2002, p. 77). A crítica dos jovens hegelianos abrirá caminho para filosofia existencialista e as diferentes correntes do materialismo histórico. Todas estas tentativas para destrancendentalizar a razão, entretanto, “ficam presas ainda a pré-decisões conceituais da filosofia transcendental. As alternativas falsas caem somente quando há a passagem para um novo paradigma, o do entendimento” (HABERMAS, 1990, p. 52). 1054B Por fim, o conceito forte de teoria da metafísica sempre postulou um acesso privilegiado à verdade, enquanto caminho do conhecimento teórico continua vedado à maioria, sendo próprio da vida contemplativa distante da experiência cotidiana. Tal postulado permanece na filosofia moderna apesar de sustentar seu rompimento com a metafísica clássica. Como observa Habermas, na modernidade “a independência da condução teórica da vida sublima-se na moderna filosofia da consciência, assumindo 343 a forma de uma teoria que se fundamenta absolutamente a si mesma” (HABERMAS, 1990, p. 42). 1055B Esse conceito forte de teoria distanciada da vida prática, também se vê abalado pela crescente relevância dos contextos cotidianos do agir e da comunicação. Isso fica patente na crescente relevância da linguagem como objeto da reflexão filosófica que, no pensamento metafísico clássico, figurava apenas como meio para transmissão de ideias entre os falantes. A guinada linguística a partir das contribuições de Wittgenstein vão minar a ideia de um significado fixo das palavras independente do contexto e de seus usuários para demonstrar justamente o contrário, ou seja, que o significado varia de acordo com o jogo de linguagem em que a palavra está sendo empregada em diferentes formas de vida. Assim, um saber privilegiado ou intuitivo é colocado sob suspeita pelo argumento da impossibilidade de uma linguagem privada, já que todo usuário da linguagem partilha de regras de uso reconhecidas pelos outros participantes de sua comunidade, mesmo quando se trata de um diálogo consigo mesmo. 1056B Tendo apresentado os motivos principais do pensamento pós-metafísico, exporemos como a ética de Kierkegaard situa-se nesse âmbito. 1057B A ÉTICA PÓS-METAFÍSICA DE KIERKEGAARD 1058B 344 O problema da ética em Kierkegaard situa-se em uma subjetividade imanente que não presta conta a nenhum dever transcendente ou heterônomo, mas que surge unicamente da própria dialética da busca de encontrar-se a si mesmo. Essa busca pode adquirir diferentes feições, a saber, ética, estética ou religiosa, como formas arquetípicas da existência sem nenhuma pretensão de hierarquia entre elas ou de desvelar uma suposta natureza humana. Trata-se de escolhas que cada indivíduo deve realizar sabendo que qualquer justificativa social ou de outra ordem externa representará apenas um subterfúgio de auto-convencimento do acerto de uma deliberação já tomada previamente em seu íntimo. 1059B O estádio estético refere-se a entrega do sujeito à contingência de prazeres aleatórios, aceitando a efemeridade da existência e a impossibilidade de qualquer projeto de vida, além da satisfação momentânea. Contudo, o indivíduo percebe-se preso ao turbilhão de emoções e afastado de si. O resultado da vida estética é o tédio, intensificado cada vez mais com a fuga em novas sensações. “O tédio é a prisão do espírito. Quem é prisioneiro do tédio não tem presente a determinação do espírito e, nesse caso, não se concretiza a dialética da liberdade no seu processo de identificação da verdade com a liberdade na concretização da relação” (ALMEIDA; VALLS, 2007, P. 39). 1060B Essa situação pode levar o indivíduo a empreender uma busca de si através da existência ética. Porém, segundo Habermas, o esforço próprio de uma vida ética só pode ser estabilizado na relação do fiel para com Deus. Assim, Kierkegaard “chega a deixar para trás a filosofia especulativa e passa a desenvolver um pensamento pósmetafísico, mas de maneira alguma pós-religioso” (HABERMAS, 2004, p. 11). Tal procedimento se justifica, conforme Habermas, pela incapacidade de impulsionar a vontade baseando-se apenas em bons argumentos. A sociedade esclarecida e convencida de sua moralidade e, ao mesmo tempo, profundamente corrupta é um exemplo disso. Portanto, o problema não é falta de conhecimento, mas de uma corrupção do desejo. “As pessoas que melhor poderiam sabê-lo, não querem compreender” (HABERMAS, 2004, p. 12, grifo do autor). O problema está em como motivar-nos a sermos morais quando a moral institucionalizada já se mostrou insuficiente para isso. Tal motivação pode surgir do desespero frente a inautenticidade do indivíduo na sociedade moderna. 1061B Depois de experimentar diferentes modos de existência, o indivíduo finalmente reconhece que o problema não está nas circunstâncias de sua vida, mas em sua inautenticidade. “Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até o poder que o criou” (KIERKEGAARD, 1988, p. 196). Embora Kierkegaard não funda religiosamente o poder ser si mesmo, insiste porém que o ser finito só pode sobreviver ao desespero absoluto “sob a forma de um fiel, que, ao se relacionar consigo mesmo, relaciona-se também com um absolutamente outro, ao qual ele tudo deve” (HABERMAS, 2004, p. 14). 345 1062B Ao contrário da tradição metafísica, Kierkegaard não vê nenhuma possibilidade de nosso intelecto finito ter qualquer conceito consistente sobre Deus. Qualquer tentativa de um intelecto finito definir o outro absoluto redundaria invariavelmente em fracasso. Logo, não resta outra alternativa que reconhecer que a conduta da vida ética depende de um poder que não está disponível para nós. A solução está em aceitar o paradoxo da fé que escapa à compreensão. Pois, a “fé é um milagre; no entanto ninguém dela está excluído; porque é na paixão que toda a vida humana encontra a sua unidade, e a fé é uma paixão” (KIERKEGAARD, 1988b, p. 149). 1063B Habermas argumenta que o salto da filosofia à religião, realizado por Kierkegaard, é desnecessário e que o filosofo dinamarquês poderia muito bem inscrever-se no pensamento pós-metafísico se reconhece-se que do que dependemos e não nos está disponível não é um “Deus no tempo”, mas a linguagem. A mudança linguística permite uma interpretação deflacionista do “totalmente outro”. Enquanto seres históricos e sociais, encontramonos desde sempre num mundo da vida estruturado linguisticamente. Já nas formas de comunicação das quais nos entendemos uns com os outros sobre acontecimentos do mundo e sobre nós mesmos, deparamos com um poder transcendental. A língua não é uma propriedade privada. Ninguém dispõe exclusivamente do meio comum de compreensão, o qual devemos compartilhar intersubjetivamente (HABERMAS, 2004, pp. 15-16). 1064B 1065B 346 Nessa perspectiva, a intersubjetividade é anterior às subjetividades que a sustentam, ou seja, o sujeito se constitui ele próprio ao interior de uma comunidade linguística sujeito às regras do jogo de linguagem e às formas de vida, no interior das quais se constitui sua identidade e formas de agir. Assim o sujeito participa na constituição do entendimento intersubjetivo sobre o mundo, mas isoladamente não o constitui, pois, como diria Wittgenstein, não existe uma linguagem privada. “A partir dessa perspectiva, aquilo que nosso ser si mesmo torna possível surge antes como um poder transubjetivo do que como um poder absoluto” (HABERMAS, 2004, p. 16). 1066B Com sua versão “deflacionada” da filosofia de Kierkegaard, Habermas poderia reconhecê-lo como um filósofo pós-metafísico de pleno direito sem a necessidade de nenhum recurso à teologia. A questão que se coloca é se realmente a ética de Kierkegaard realmente se fundamenta na religião ou se poderíamos descrevê-la de modo completamente imanente, que é o que iremos investigar a seguir. 1067B ÉTICA E IMANÊNCIA 1068B Em seu livro sobre Kierkegaard Jorge M. de Almeida e Álvaro L. M. Valls defendem a existência de duas éticas em Kierkegaard (Cf. ALMEIDA; VALLS, 2007, p. 43). A primeira tem sua aparição na obra Enten/eller em que Kierkegaard assume o heterônimo do Juiz Guilherme, enquanto a segunda ética aparece nas Obras do Amor, nos Discursos edificantes e nos Discursos cristãos. Restaria investigar se em cada uma delas é possível uma fundamentação não religiosa, o que confrontaria a tese de Habermas de uma fundamentação religiosa da ética de Kierkegaard. 1069B No caso da primeira ética, essa hipótese parece bastante plausível. A vida ética é implicada na escolha de si mesmo, por isso, “a ética é a subjetividade encarnada que constitui no esforço em edificar a si mesmo no âmago da interioridade a singularidade humana” (ALMEIDA, 2011, p. 103). Ela contrasta com o estádio estético que caracteriza-se justamente por não escolher. O esteta vive o momentâneo e é levado na vaga dos acontecimentos no qual se perde. Por isso, o estádio estético é amoral, no sentido de que é prévio à escolha pelo bem ou mal, que implica já uma posição do sujeito. 1070B No estádio ético, o sujeito escolhe querer escolher e tornar-se “capaz de decidir a respeito de sua conduta em relação a si próprio e aos outros. Desse modo, o indivíduo compromete-se com a existência estando em condições de realizar-se concretamente, uma vez que escolheu a si mesmo, assumindo conscientemente a responsabilidade por si e por suas ações” (SAMPAIO, 2010, p. 68). Trata-se, portanto, de uma ética imanente em que o descobrir-se a si mesmo é o que determinará a sua ação. O voltar-se para si mesmo implica a busca de uma autotranscendência em que o sujeito opera uma transformação de si tendo em vista um “eu ideal” como uma projeção de quem ele almeja tornar-se. Este eu ideal não é um dado, tampouco, se confunde com uma construção social ou heterônoma a qual 347 deve conformar-se, mas é uma escolha consciente a partir de uma verdade subjetiva plenamente assumida. 1071B O indivíduo ético aceita a contingência da existência e busca realizar-se através dela no trabalho, na família e na sociedade que o colocam diante da alteridade da lei. Mas isso não significa uma redução da liberdade, já que o sujeito ético escolheu a si mesmo e, ao mesmo tempo, a humanidade, colocando-se na condição dialética de realizar-se a si mesmo e o universal. Como explica Kierkegaard em Temor e tremor, “a moralidade é, como tal, o geral e a este último título ainda o manifesta. Definido como ser imediatamente sensível e psíquico, o Indivíduo é ser oculto. A sua tarefa moral consiste então em se libertar do secreto para manifestarse no geral” (KIERKEGAARD, 1988b, p. 159). 1072B Voltando a Habermas, é correto afirmar que em Kierkegaard a moralidade tem um fundamento religioso, como o deixa claro em outra passagem de Temor e tremor: “A moralidade é o geral e, como tal, também divino. Por conseguinte, há razão em dizer que todo o dever é, no fundo, dever para com Deus; mas se não se pode acrescentar mais nada, limito-me a dizer, ao mesmo tempo, falando com propriedade, que não tenho nenhum dever para com Deus” (KIERKEGAARD, 1988a, p. 150). 1073B Ou seja, no fundo, a questão de ser ou não moral é algo que depende exclusivamente do indivíduo e permanecer nela também. Naturalmente, nem sempre haverá coincidência entre o individual e o universal, trata-se (como tantos outros aspectos da filosofia de Kierkegaard) de uma relação tensional, pois para que o 348 indivíduo possa tornar-se moral, precisa despojar-se de sua interioridade para exprimir algo de exterior. Ora, a ética é justamente a afirmação de si e, enquanto tal, como poderia negar-se a si mesma no universal? 1074B O melhor exemplo desta tensão é Sócrates. “Sócrates sustenta aqui a proposição de que é justo quem obedece as leis, e o sustenta mesmo contra a objeção de que isto afinal não poderia ser o absoluto, dado que o povo e os regentes alteram as leis” (KIERKEGAARD, 1991, p. 176). Assim, aceita sua condenação à morte para cumprir as leis do Estado, mesmo reconhecendo que o Estado não encarna o infinito da idealidade ética, ou seja, o universal. O limite da ética socrática está em considerar o ser humano e a própria ética abstratamente “e não como parte intrínseca da própria personalidade do indivíduo singular, que deve ser transparente a si mesmo, como condição de decidir por si mesmo em assumir a responsabilidade assimétrica em relação ao próximo. (KIERKEGAARD, 1991, p. 118) 1075B A tensão entre a subjetividade e a objetividade não pode ser resolvida na primeira ética permanecendo como um paradoxo em que a tentativa de escolher a si mesmo tem como consequência a negação de sua interioridade. Como observa Almeida, “se a objetividade pura compreende o indivíduo consciente de si como razão e se a razão é puramente objetiva, significa que o indivíduo só se reconhece a si mesmo na pura objetividade; dessa forma, o indivíduo singular é sacrificado naquilo que constitui o fundamento da sua razão de ser: existir enquanto escolhe a si mesmo no interior da existência, existir eticamente.” (ALMEIDA, 2011, 116) 1076B A segunda ética busca pôr fim a este paradoxo afirmando que a ética não se identifica com a objetividade, ou melhor, a coincidência ou não entre subjetividade e objetividade já não constitui mais o centro da eticidade, já que a “ética é a subjetividade encarnada que constitui no esforço em edificar a si mesmo no âmago da interioridade a singularidade humana” (ALMEIDA, 2011, p. 103). Dessa forma, a segunda ética não se efetiva como lei e nada do que lhe é exterior pode justificá-la, ela realiza-se como um salto na relação assimétrica do amor em que o sujeito arrisca toda a sua existência sem nada esperar em troca. “Daí segue que a relação de amor, enquanto tal, pode constituir-se no sacrifício que é exigido. A interioridade do amor deve estar disposta ao sacrifício, e mais: sem exigir nenhuma recompensa” (KIERKEGAARD, 2005, p. 156). 349 1077B CONCLUSÃO 1078B Como vimos, Habermas faz um curioso diagnóstico da ética de Kierkegaard que instaura-se ao mesmo tempo como uma ética pós-metafísica, mas não pósreligiosa, na medida em que a relação com Deus permanece como o substrato capaz de orientar a vontade. A solução apresentada por Habermas é deflacionar a ética de Kierkegaard reconhecendo uma transcendentalidade ao interior da própria linguagem, com suas regras intersubjetivamente reconhecidas. Ao examinarmos a primeira e segunda ética em Kierkegaard, notamos que ambas não têm Deus como fundamento. Pois ambas têm em comum o fato de constituírem-se como éticas imanentes, que partem de uma irrevogável decisão subjetiva de realizar-se existencialmente. O que leva o sujeito a decidir-se por uma vida ética é a angústia de uma existência em que o sujeito perdeu-se de si mesmo. Ao assumir a existência como projeto, o sujeito não tem garantia alguma nem de seu destino, nem do caminho a percorrer. Semelhante ao estádio religioso, o estádio ético exige do sujeito um salto no qual conhecimento objetivo algum pode ampará-lo e nem há lógica que o explique. 1079B É claro que Kierkegaard é um filósofo cristão e que os problemas religiosos permeiam toda sua obra; afinal seria uma incoerência falar de autenticidade e verdade de si mesmo sem vivê-la ele próprio. Ao contrário de muitos filósofos modernos que podem simplesmente “suspender” as questões éticas e escrever uma filosofia e viver outra, a filosofia de Kierkegaard é inseparável dos dramas individuais que falam diretamente aos sentimentos do homem comum e aos próprios sentimentos do filósofo que ganham vazão em múltiplos heterônimos, uma tentativa de dar conta da própria complexidade da alma humana. Entretanto, ele não faz, como os filósofos medievais, de Deus um objeto de conhecimento, tampouco usa a religião para fundamentar a ética. Sua ética é completamente imanente, ela surge e se realiza na interioridade do ser humano no drama da existência. Nesse sentido, Kierkegaard situa-se como um filósofo pós-metafísico de pleno direito, já que não 350 busca uma fundamentação metafísica da existência capaz de aprisioná-la em conceitos. Afirma é justamente o contrário: a irredutibilidade da existência frente a qualquer tentativa de subsumi-la em um universalismo abstrato. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, J. M. Assimetria ética em Kierkegaard como fundamento da segundaética. Pensamento – Revista de Filosofia, UFPI, vol. 2, n° 4, 2011. 1081B 1082B ALMEIDA, J. M. & VALLS, A. L.M. Kierkegaard, Rio de Janeiro: Zahar, 2007. HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 1083B 1084B 1085B _____. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. KIERKEGAARD, S. O conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates. Apresentação e tradução de Álvaro L. M. Vozes: Petrópolis, 1991. 1086B _____. O desespero humano. São Paulo: Nova Cultural, 1988a (Col. Os Pensadores). 1087B 1088B _____. Temor e tremor. São Paulo: Nova Cultural, 1988b (Col. Os Pensadores). SAMPAIO, L. C. F. A existência ética e religiosa em Kierkegaard: continuidade ou ruptura? [Tese de doutorado em Filosofia], Universidade Federal de São Carlos, 2010. 1089B 351