340 A ÉTICA PÓS-METAFÍSICA DE KIERKEGAARD: UMA LEITURA

Propaganda
A ÉTICA PÓS-METAFÍSICA DE KIERKEGAARD: UMA LEITURA
HABERMASIANA219
Josué Cândido da Silva 220
76F
RESUMO: O presente trabalho investiga um aparente paradoxo na interpretação de
Habermas sobre a ética de Kierkegaard, a saber, o de ser um dos primeiros filósofos
pós-metafísicos, mas que se mantém nos marcos de um pensamento religioso. Tal
posicionamento, segundo Habermas, seria desnecessário se partirmos de uma
perspectiva deflacionada, ou seja, se admitirmos uma transcendência que não
remete a nada de sagrado, mas que mesmo assim não deixa de ter validade
intersubjetiva. Porém, ao confrontarmos a interpretação de Habermas com a de
outros comentadores, vemos que a ideia de uma ética fundada religiosamente, não
se sustenta, principalmente no que se refere à segunda ética. Pois em ambas as
éticas, Kierkegaard constrói uma ética imanente, cujo fundamento encontra-se
inteiramente no indivíduo.
Palavras-chave: Pensamento pós-metafísico, ética, Kierkegaard.
ABSTRACT: This paper investigates an apparent paradox in the interpretation of
Habermas on the ethics of Kierkegaard, namely that the first post-metaphysical
philosopher, remaining within the framework of a religious thought. This position,
according to Habermas, would be unnecessary if we assume a deflationed
perspective, ie, if we assume a transcendence that does not refer to anything sacred,
but that still has intersubjective validity. However, when we compare the
interpretation of Habermas with other commentators, we see that the idea of a
religiously founded ethics, can not be sustained, especially as regards the second
ethics. In both ethics, Kierkegaard constructs an inherent ethic, whose foundation
lies
entirely
on
the
individual.
340
Keywords: post-metaphysical thinking, ethics, Kierkegaard.
1043B
INTRODUÇÃO
219
. O presente trabalho é parte do projeto de pesquisa: Pensamento Pós-metafísico? Habermas
e a intransitividade das ciências hermenêuticas, coordenado pelo Prof. Dr. Josué Cândido da
Silva e insere-se no eixo temático de Filosofia.
220
. Josué Cândido da Silva é doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor titular da Universidade
Estadual de Santa Cruz – UESC.
1044B
O presente trabalho busca explorar um aparente paradoxo na interpretação
que Habermas realiza da ética de Kierkegaard. Segundo Habermas, “Kierkegaard foi
o primeiro a responder à questão ética fundamental sobre os êxitos e fracassos da
própria vida com um conceito pós-metafísico do ‘poder ser si mesmo’” (HABERMAS,
2004, p.8). Apesar disso, Habermas considera que Kierkegaard permanece preso
ainda a uma fundamentação religiosa da ética e daí o paradoxo: como a ética de
Kierkegaard pode ser, simultaneamente, pós-metafísica e religiosa, ou mesmo
teológica?
1045B
Para
desvelar
essa
trama,
apresentaremos
primeiro
a
conceituação
habermasiana do pensamento pós-metafísico. Em seguida, veremos como Habermas
interpreta a ética de Kierkegaard e, finalmente, discutiremos algumas dificuldades da
interpretação de Habermas a luz das contribuições de outros especialistas no
pensamento de Kierkegaard.
1046B
O PENSAMENTO PÓS-METAFÍSICO
1047B
Em sua obra Pensamento pós-metafísico, Habermas assim caracteriza o que é
a metafísica:
Deixando de lado a linha aristotélica e simplificando bastante,
caracterizo como “metafísico, o Pensamento de um idealismo
filosófico que se origina em Platão, passando por Plotino e o neoplatonismo, Agostinho e Tomás, Cusano e Pico de Mirandola,
Descartes, Spinoza e Leibniz, chegando até Kant, Fichte, Schelling e
Hegel. O materialismo antigo e o ceticismo, bem como o nominalismo
da alta Idade Média e o empirismo moderno constituem movimentos
anti-metafísicos que permanecem, porém, no interior do horizonte
das possibilidades do pensamento da metafísica. (HABERMAS, 1990,
p. 38).
1048B
1049B
Como podemos observar, o pensamento metafísico cobre um vasto período
da História da Filosofia, permanecendo vigente até hoje em várias correntes
filosóficas, apesar do tantas vezes anunciado, fim da metafísica. Seus traços mais
341
característicos são: “o pensamento da identidade, a doutrina das ideias e o conceito
forte de teoria” (HABERMAS, 1990, p. 38).
1050B
Os três pilares do pensamento metafísico começam a ruir vítimas de ataques
em vários frontes diferentes que têm curso no desenvolvimento da filosofia e ciência
modernas. No campo da ciência e da moral tornadas autônomas, a racionalidade é
reduzida
ao
aspecto
formal,
tornando-se
meramente
procedimental.
Tais
procedimentos visam resolver problemas empíricos e teóricos da comunidade
científica, cuja unidade é garantida pela reprodutibilidade dos experimentos como
critério de verificação das teorias e não mais por fundamentos a priori inabaláveis
frente às variáveis do mundo fenomênico. Também nos problemas práticos-morais
no Estado burocrático de direito, a racionalidade surge como resultado dos
procedimentos burocráticos que dão estabilidade às instituições através de regras
reconhecidas socialmente como legítimas. Tal método desonera a necessidade de
uma legitimação metafísica do Estado como, por exemplo, do direito divino, para
assentar-se unicamente no reconhecimento recíproco de regras comuns. Nessas
condições, “a racionalidade do procedimento não está mais em condições de garantir
uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos. Com a antecipação da
totalidade do ente cai também a perspectiva a partir da qual a metafísica conseguia
fazer uma distinção entre ser e aparência” (HABERMAS, 1990, pp. 44-45).
1051B
As teorias científicas que exemplificam os fenômenos não são mais capazes
de inserir-se em uma totalidade ordenada. Qualquer tentativa nesse sentido é vista,
ao contrário, como um avanço não autorizado para além do domínio dos fatos. A
342
advertência de Newton de que hypotheses non fingo, marca o limite das explicações
científicas em relação ao domínio das teorias metafísicas sem fundamento empírico.
Para ciência vale apenas o domínio dos dados objetivos da natureza, isentos dos
prejuízos dos cientistas através do controle experimental. Como observa Habermas,
“um conhecimento de essências, explicitador de contextos de sentido, ricocheteia
numa natureza objetivada; e o correspondente substituto hermenêutico oferece-se
somente naquela esfera do não-ente, na qual, entretanto, de acordo com a
compreensão metafísica, as essências ideais jamais devem fincar pé!” (HABERMAS,
1990, p. 45).
1052B
Por fim, o pensamento totalizador da metafísica vê sua legitimidade abalada
pela própria crítica interna da filosofia, que acaba por reconhecer os procedimentos
científicos como a fonte do conhecimento que faz progressos cumulativos, enquanto
a metafísica permanece enredada em debates intermináveis, distantes de qualquer
perspectiva de consenso. Dessa forma, a filosofia “precisa travar relações com a
auto-compreensão
falibilista
e
com
a
racionalidade
metódica
das
ciências
experimentais; ela não pode pretender um acesso privilegiado à verdade, nem um
método próprio ou um campo de objetos próprio, nem mesmo um estilo próprio de
intuição” (HABERMAS, 1990, p. 47). Daí para diante, a filosofia terá que alinhar sua
forma de conhecimento no sistema das ciências sem necessariamente renunciar à
relação com o todo.
1053B
Outro motivo do pensamento pós-metafísico é a crítica ao idealismo de tipo
hegeliano. Hegel, ao conceituar a realidade efetiva como unidade de essência e
existência acaba por marginalizar o que seria mais importante na modernidade, a
saber, “a transitoriedade do instante pleno de significados em que os problemas do
futuro sempre prementes se entrelaçam em um nó” (HABERMAS, 2002, p. 76). É
justamente o peso da existência, da faticidade e da contingência que será o ponto de
partida da crítica dos jovens hegelianos contra a auto-relação absoluta da razão.
“Feuerbach, Kierkegaard e Marx protestam, portanto, contra as falsas mediações,
efetuadas meramente no pensamento, entre natureza subjetiva e objetiva, entre
espírito objetivo e saber absoluto” (HABERMAS, 2002, p. 77). A crítica dos jovens
hegelianos abrirá caminho para filosofia existencialista e as diferentes correntes do
materialismo histórico. Todas estas tentativas para destrancendentalizar a razão,
entretanto,
“ficam
presas
ainda
a
pré-decisões
conceituais
da
filosofia
transcendental. As alternativas falsas caem somente quando há a passagem para um
novo paradigma, o do entendimento” (HABERMAS, 1990, p. 52).
1054B
Por fim, o conceito forte de teoria da metafísica sempre postulou um acesso
privilegiado à verdade, enquanto caminho do conhecimento teórico continua vedado
à maioria, sendo próprio da vida contemplativa distante da experiência cotidiana. Tal
postulado permanece na filosofia moderna apesar de sustentar seu rompimento com
a metafísica clássica. Como observa Habermas, na modernidade “a independência da
condução teórica da vida sublima-se na moderna filosofia da consciência, assumindo
343
a forma de uma teoria que se fundamenta absolutamente a si mesma” (HABERMAS,
1990, p. 42).
1055B
Esse conceito forte de teoria distanciada da vida prática, também se vê
abalado pela crescente relevância dos contextos cotidianos do agir e da
comunicação. Isso fica patente na crescente relevância da linguagem como objeto da
reflexão filosófica que, no pensamento metafísico clássico, figurava apenas como
meio para transmissão de ideias entre os falantes. A guinada linguística a partir das
contribuições de Wittgenstein vão minar a ideia de um significado fixo das palavras
independente do contexto e de seus usuários para demonstrar justamente o
contrário, ou seja, que o significado varia de acordo com o jogo de linguagem em
que a palavra está sendo empregada em diferentes formas de vida. Assim, um saber
privilegiado ou intuitivo é colocado sob suspeita pelo argumento da impossibilidade
de uma linguagem privada, já que todo usuário da linguagem partilha de regras de
uso reconhecidas pelos outros participantes de sua comunidade, mesmo quando se
trata de um diálogo consigo mesmo.
1056B
Tendo apresentado os motivos principais do pensamento pós-metafísico,
exporemos como a ética de Kierkegaard situa-se nesse âmbito.
1057B
A ÉTICA PÓS-METAFÍSICA DE KIERKEGAARD
1058B
344
O problema da ética em Kierkegaard situa-se em uma subjetividade imanente
que não presta conta a nenhum dever transcendente ou heterônomo, mas que surge
unicamente da própria dialética da busca de encontrar-se a si mesmo. Essa busca
pode adquirir diferentes feições, a saber, ética, estética ou religiosa, como formas
arquetípicas da existência sem nenhuma pretensão de hierarquia entre elas ou de
desvelar uma suposta natureza humana. Trata-se de escolhas que cada indivíduo
deve realizar sabendo que qualquer justificativa social ou de outra ordem externa
representará apenas um subterfúgio de auto-convencimento do acerto de uma
deliberação já tomada previamente em seu íntimo.
1059B
O estádio estético refere-se a entrega do sujeito à contingência de prazeres
aleatórios, aceitando a efemeridade da existência e a impossibilidade de qualquer
projeto de vida, além da satisfação momentânea. Contudo, o indivíduo percebe-se
preso ao turbilhão de emoções e afastado de si. O resultado da vida estética é o
tédio, intensificado cada vez mais com a fuga em novas sensações. “O tédio é a
prisão do espírito. Quem é prisioneiro do tédio não tem presente a determinação do
espírito e, nesse caso, não se concretiza a dialética da liberdade no seu processo de
identificação da verdade com a liberdade na concretização da relação” (ALMEIDA;
VALLS, 2007, P. 39).
1060B
Essa situação pode levar o indivíduo a empreender uma busca de si através
da existência ética. Porém, segundo Habermas, o esforço próprio de uma vida ética
só pode ser estabilizado na relação do fiel para com Deus. Assim, Kierkegaard “chega
a deixar para trás a filosofia especulativa e passa a desenvolver um pensamento pósmetafísico, mas de maneira alguma pós-religioso” (HABERMAS, 2004, p. 11). Tal
procedimento se justifica, conforme Habermas, pela incapacidade de impulsionar a
vontade baseando-se apenas em bons argumentos. A sociedade esclarecida e
convencida de sua moralidade e, ao mesmo tempo, profundamente corrupta é um
exemplo disso. Portanto, o problema não é falta de conhecimento, mas de uma
corrupção do desejo. “As pessoas que melhor poderiam sabê-lo, não querem
compreender” (HABERMAS, 2004, p. 12, grifo do autor). O problema está em como
motivar-nos a sermos morais quando a moral institucionalizada já se mostrou
insuficiente para isso. Tal motivação pode surgir do desespero frente a
inautenticidade do indivíduo na sociedade moderna.
1061B
Depois de experimentar diferentes modos de existência, o indivíduo
finalmente reconhece que o problema não está nas circunstâncias de sua vida, mas
em sua inautenticidade. “Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste
se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si próprio, querendo ser
ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até o poder que o
criou” (KIERKEGAARD, 1988, p. 196). Embora Kierkegaard não funda religiosamente
o poder ser si mesmo, insiste porém que o ser finito só pode sobreviver ao
desespero absoluto “sob a forma de um fiel, que, ao se relacionar consigo mesmo,
relaciona-se também com um absolutamente outro, ao qual ele tudo deve”
(HABERMAS, 2004, p. 14).
345
1062B
Ao
contrário
da
tradição
metafísica,
Kierkegaard
não
vê
nenhuma
possibilidade de nosso intelecto finito ter qualquer conceito consistente sobre Deus.
Qualquer tentativa de um intelecto finito definir o outro absoluto redundaria
invariavelmente em fracasso. Logo, não resta outra alternativa que reconhecer que a
conduta da vida ética depende de um poder que não está disponível para nós. A
solução está em aceitar o paradoxo da fé que escapa à compreensão. Pois, a “fé é
um milagre; no entanto ninguém dela está excluído; porque é na paixão que toda a
vida humana encontra a sua unidade, e a fé é uma paixão” (KIERKEGAARD, 1988b,
p. 149).
1063B
Habermas argumenta que o salto da filosofia à religião, realizado por
Kierkegaard, é desnecessário e que o filosofo dinamarquês poderia muito bem
inscrever-se
no
pensamento
pós-metafísico
se
reconhece-se
que
do
que
dependemos e não nos está disponível não é um “Deus no tempo”, mas a
linguagem.
A mudança linguística permite uma interpretação deflacionista do
“totalmente outro”. Enquanto seres históricos e sociais, encontramonos desde sempre num mundo da vida estruturado linguisticamente.
Já nas formas de comunicação das quais nos entendemos uns com os
outros sobre acontecimentos do mundo e sobre nós mesmos,
deparamos com um poder transcendental. A língua não é uma
propriedade privada. Ninguém dispõe exclusivamente do meio
comum de compreensão, o qual devemos compartilhar
intersubjetivamente (HABERMAS, 2004, pp. 15-16).
1064B
1065B
346
Nessa perspectiva, a intersubjetividade é anterior às subjetividades que a
sustentam, ou seja, o sujeito se constitui ele próprio ao interior de uma comunidade
linguística sujeito às regras do jogo de linguagem e às formas de vida, no interior
das quais se constitui sua identidade e formas de agir. Assim o sujeito participa na
constituição do entendimento intersubjetivo sobre o mundo, mas isoladamente não o
constitui, pois, como diria Wittgenstein, não existe uma linguagem privada. “A partir
dessa perspectiva, aquilo que nosso ser si mesmo torna possível surge antes como
um poder transubjetivo do que como um poder absoluto” (HABERMAS, 2004, p. 16).
1066B
Com sua versão “deflacionada” da filosofia de Kierkegaard, Habermas poderia
reconhecê-lo como um filósofo pós-metafísico de pleno direito sem a necessidade de
nenhum recurso à teologia. A questão que se coloca é se realmente a ética de
Kierkegaard realmente se fundamenta na religião ou se poderíamos descrevê-la de
modo completamente imanente, que é o que iremos investigar a seguir.
1067B
ÉTICA E IMANÊNCIA
1068B
Em seu livro sobre Kierkegaard Jorge M. de Almeida e Álvaro L. M. Valls
defendem a existência de duas éticas em Kierkegaard (Cf. ALMEIDA; VALLS, 2007, p.
43). A primeira tem sua aparição na obra Enten/eller em que Kierkegaard assume o
heterônimo do Juiz Guilherme, enquanto a segunda ética aparece nas Obras do
Amor, nos Discursos edificantes e nos Discursos cristãos. Restaria investigar se em
cada uma delas é possível uma fundamentação não religiosa, o que confrontaria a
tese de Habermas de uma fundamentação religiosa da ética de Kierkegaard.
1069B
No caso da primeira ética, essa hipótese parece bastante plausível. A vida
ética é implicada na escolha de si mesmo, por isso, “a ética é a subjetividade
encarnada que constitui no esforço em edificar a si mesmo no âmago da
interioridade a singularidade humana” (ALMEIDA, 2011, p. 103). Ela contrasta com o
estádio estético que caracteriza-se justamente por não escolher. O esteta vive o
momentâneo e é levado na vaga dos acontecimentos no qual se perde. Por isso, o
estádio estético é amoral, no sentido de que é prévio à escolha pelo bem ou mal,
que implica já uma posição do sujeito.
1070B
No estádio ético, o sujeito escolhe querer escolher e tornar-se “capaz de
decidir a respeito de sua conduta em relação a si próprio e aos outros. Desse modo,
o indivíduo compromete-se com a existência estando em condições de realizar-se
concretamente, uma vez que escolheu a si mesmo, assumindo conscientemente a
responsabilidade por si e por suas ações” (SAMPAIO, 2010, p. 68). Trata-se,
portanto, de uma ética imanente em que o descobrir-se a si mesmo é o que
determinará a sua ação. O voltar-se para si mesmo implica a busca de uma autotranscendência em que o sujeito opera uma transformação de si tendo em vista um
“eu ideal” como uma projeção de quem ele almeja tornar-se. Este eu ideal não é um
dado, tampouco, se confunde com uma construção social ou heterônoma a qual
347
deve conformar-se, mas é uma escolha consciente a partir de uma verdade subjetiva
plenamente assumida.
1071B
O indivíduo ético aceita a contingência da existência e busca realizar-se
através dela no trabalho, na família e na sociedade que o colocam diante da
alteridade da lei. Mas isso não significa uma redução da liberdade, já que o sujeito
ético escolheu a si mesmo e, ao mesmo tempo, a humanidade, colocando-se na
condição dialética de realizar-se a si mesmo e o universal. Como explica Kierkegaard
em Temor e tremor, “a moralidade é, como tal, o geral e a este último título ainda o
manifesta. Definido como ser imediatamente sensível e psíquico, o Indivíduo é ser
oculto. A sua tarefa moral consiste então em se libertar do secreto para manifestarse no geral” (KIERKEGAARD, 1988b, p. 159).
1072B
Voltando a Habermas, é correto afirmar que em Kierkegaard a moralidade
tem um fundamento religioso, como o deixa claro em outra passagem de Temor e
tremor: “A moralidade é o geral e, como tal, também divino. Por conseguinte, há
razão em dizer que todo o dever é, no fundo, dever para com Deus; mas se não se
pode acrescentar mais nada, limito-me a dizer, ao mesmo tempo, falando com
propriedade, que não tenho nenhum dever para com Deus” (KIERKEGAARD, 1988a,
p. 150).
1073B
Ou seja, no fundo, a questão de ser ou não moral é algo que depende
exclusivamente do indivíduo e permanecer nela também. Naturalmente, nem sempre
haverá coincidência entre o individual e o universal, trata-se (como tantos outros
aspectos da filosofia de Kierkegaard) de uma relação tensional, pois para que o
348
indivíduo possa tornar-se moral, precisa despojar-se de sua interioridade para
exprimir algo de exterior. Ora, a ética é justamente a afirmação de si e, enquanto
tal, como poderia negar-se a si mesma no universal?
1074B
O melhor exemplo desta tensão é Sócrates. “Sócrates sustenta aqui a
proposição de que é justo quem obedece as leis, e o sustenta mesmo contra a
objeção de que isto afinal não poderia ser o absoluto, dado que o povo e os regentes
alteram as leis” (KIERKEGAARD, 1991, p. 176). Assim, aceita sua condenação à
morte para cumprir as leis do Estado, mesmo reconhecendo que o Estado não
encarna o infinito da idealidade ética, ou seja, o universal. O limite da ética socrática
está em considerar o ser humano e a própria ética abstratamente “e não como parte
intrínseca da própria personalidade do indivíduo singular, que deve ser transparente
a si mesmo, como condição de decidir por si mesmo em assumir a responsabilidade
assimétrica em relação ao próximo. (KIERKEGAARD, 1991, p. 118)
1075B
A tensão entre a subjetividade e a objetividade não pode ser resolvida na
primeira ética permanecendo como um paradoxo em que a tentativa de escolher a si
mesmo tem como consequência a negação de sua interioridade. Como observa
Almeida, “se a objetividade pura compreende o indivíduo consciente de si como
razão e se a razão é puramente objetiva, significa que o indivíduo só se reconhece a
si mesmo na pura objetividade; dessa forma, o indivíduo singular é sacrificado
naquilo que constitui o fundamento da sua razão de ser: existir enquanto escolhe a si
mesmo no interior da existência, existir eticamente.” (ALMEIDA, 2011, 116)
1076B
A segunda ética busca pôr fim a este paradoxo afirmando que a ética não se
identifica com a objetividade, ou melhor, a coincidência ou não entre subjetividade e
objetividade já não constitui mais o centro da eticidade, já que a “ética é a
subjetividade encarnada que constitui no esforço em edificar a si mesmo no âmago
da interioridade a singularidade humana” (ALMEIDA, 2011, p. 103). Dessa forma, a
segunda ética não se efetiva como lei e nada do que lhe é exterior pode justificá-la,
ela realiza-se como um salto na relação assimétrica do amor em que o sujeito arrisca
toda a sua existência sem nada esperar em troca. “Daí segue que a relação de amor,
enquanto tal, pode constituir-se no sacrifício que é exigido. A interioridade do amor
deve estar disposta ao sacrifício, e mais: sem exigir nenhuma recompensa”
(KIERKEGAARD, 2005, p. 156).
349
1077B
CONCLUSÃO
1078B
Como vimos, Habermas faz um curioso diagnóstico da ética de Kierkegaard
que instaura-se ao mesmo tempo como uma ética pós-metafísica, mas não pósreligiosa, na medida em que a relação com Deus permanece como o substrato capaz
de orientar a vontade. A solução apresentada por Habermas é deflacionar a ética de
Kierkegaard
reconhecendo
uma
transcendentalidade
ao
interior
da
própria
linguagem, com suas regras intersubjetivamente reconhecidas. Ao examinarmos a
primeira e segunda ética em Kierkegaard, notamos que ambas não têm Deus como
fundamento. Pois ambas têm em comum o fato de constituírem-se como éticas
imanentes, que partem de uma irrevogável decisão subjetiva de realizar-se
existencialmente. O que leva o sujeito a decidir-se por uma vida ética é a angústia
de uma existência em que o sujeito perdeu-se de si mesmo. Ao assumir a existência
como projeto, o sujeito não tem garantia alguma nem de seu destino, nem do
caminho a percorrer. Semelhante ao estádio religioso, o estádio ético exige do
sujeito um salto no qual conhecimento objetivo algum pode ampará-lo e nem há
lógica que o explique.
1079B
É claro que Kierkegaard é um filósofo cristão e que os problemas religiosos
permeiam toda sua obra; afinal seria uma incoerência falar de autenticidade e
verdade de si mesmo sem vivê-la ele próprio. Ao contrário de muitos filósofos
modernos que podem simplesmente “suspender” as questões éticas e escrever uma
filosofia e viver outra, a filosofia de Kierkegaard é inseparável dos dramas individuais
que falam diretamente aos sentimentos do homem comum e aos próprios
sentimentos do filósofo que ganham vazão em múltiplos heterônimos, uma tentativa
de dar conta da própria complexidade da alma humana. Entretanto, ele não faz,
como os filósofos medievais, de Deus um objeto de conhecimento, tampouco usa a
religião para fundamentar a ética. Sua ética é completamente imanente, ela surge e
se realiza na interioridade do ser humano no drama da existência. Nesse sentido,
Kierkegaard situa-se como um filósofo pós-metafísico de pleno direito, já que não
350
busca uma fundamentação metafísica da existência capaz de aprisioná-la em
conceitos. Afirma é justamente o contrário: a irredutibilidade da existência frente a
qualquer tentativa de subsumi-la em um universalismo abstrato.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, J. M. Assimetria ética em Kierkegaard como fundamento da segundaética. Pensamento – Revista de Filosofia, UFPI, vol. 2, n° 4, 2011.
1081B
1082B
ALMEIDA, J. M. & VALLS, A. L.M. Kierkegaard, Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
1083B
1084B
1085B
_____. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
KIERKEGAARD, S. O conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates.
Apresentação e tradução de Álvaro L. M. Vozes: Petrópolis, 1991.
1086B
_____. O desespero humano. São Paulo: Nova Cultural, 1988a (Col. Os
Pensadores).
1087B
1088B
_____. Temor e tremor. São Paulo: Nova Cultural, 1988b (Col. Os Pensadores).
SAMPAIO, L. C. F. A existência ética e religiosa em Kierkegaard:
continuidade ou ruptura? [Tese de doutorado em Filosofia], Universidade Federal
de São Carlos, 2010.
1089B
351
Download