DAS RELAÇÕES ENTRE ÉTICA E ESPIRITUALIDADE EM TEMOR E TREMOR DE KIERKEGAARD Rômulo Nunes Macêdo346 Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) E-mail: [email protected] Resumo: Kierkegaard, na obra Temor e Tremor, parte da análise de uma passagem da Torá na qual Abraão depara-se com um paradoxo: executar o sacrifício de seu próprio filho, Isaque, a pedido de Jah, tendo que escolher entre obedecer à ordem divina e conservar a vida de seu único descendente com Sara, sua esposa. Kierkegaard desenvolve uma reflexão sobre as relações da dimensão espiritual e o estádio da moralidade, a qual possui relevantes implicações no que tange à questão do indivíduo, visto que, conforme ele afirma na obra, a fé se constitui nesse paradoxo segundo o qual o indivíduo está acima do geral. Palavras-chave: fé, moralidade, indivíduo Temor e Tremor é uma obra singular da filosofia contemporânea. Bem ao modo patrístico/ escolástico, o ponto de partida das reflexões da obra é a questão da espiritualidade ou da fé, o que, de fato, se nos remete a um período da história da filosofia no qual a fé fornecia os conteúdos da razão, e a filosofia direcionava seus esforços no sentido de elucidação – na medida do possível- dos conteúdos da fé. Enquanto Tertuliano, um dos pioneiros da patrística latina, defendia a incompatibilidade e inconciliabilidade entre fé e razão, propondo o crer por ser absurdo, Agostinho de Hipona, defendeu o crer a fim de que se possa compreender, 482 ou seja, a razão, iluminada pela fé, atingiria sua plenitude desenvolvendo suas potencialidades ao se debruçar sobre os conteúdos da fé. Tal discussão no âmbito da filosofia deve ser entendida de maneira mais ampla, para além do partidarismo religioso, visto que o conceito de fé não necessariamente deve estar atrelado a um segmento religioso específico. Ele é mais 346 Graduado em filosofia (UESC) e pós-graduando na especialização em história (UESC). Atualmente, desenvolvendo, sob orientação do Prof. Dr. André, uma pesquisa no campo da estética, abrangendo a história da música popular brasileira, a qual discute a questão da emulação na Arte Retórica de Aristóteles relacionada com a era dos festivais na música popular brasileira e programas televisivos modernos como o The Voice Brasil, além das implicações dessa questão na abordagem do indivíduo em Kierkegaard. Esses trabalhos foram apresentados no evento História e Mídias (UESC), discutindo o Festival da Record de 1967, e a questão da emulação numa perspectiva ética e estética no SEFIL, Seminário de Pesquisa Interna de Filosofia (UESC). abrangente que isso. Muitos pesquisadores desenvolvem uma atitude de resistência e até mesmo preconceito em relação à história da filosofia medieval por associaremno imediatamente ao catolicismo romano, o qual marcou a história medieval com seus abusos, fundamentalismos, desmandos no âmbito político, o que, por sua vez, suscitou a Reforma posteriormente. A ala protestante, de igual modo, também incorreu em incoerências e contradições em relação a seus pressupostos teóricos, envolvendo-se em intolerâncias, lutas armadas e batalhas sangrentas, etc., razão pela qual, mais uma vez, muitos estudiosos possuem uma barreira no que se refere à dedicação a esse tipo de temática. Por isso é muito importante ressaltar que para a filosofia é fundamental separar discussões amplas como a das relações fé e razão e o partidarismo religioso. E ainda que tomemos como objeto a fé cristã, como no caso de Kierkegaard, o ensino revolucionário de Jesus Cristo sobre o amor, por exemplo, aclamado por muitos filósofos pós-medievais, de Pascal a Rousseau, pode ser naturalmente distinto das incongruências das guerras entre segmentos religiosos como católicos e protestantes. Importa, portanto, separar tais coisas e colhermos aquilo que de proveitoso há nessas reflexões. Kierkegaard aborda de maneira singular essa problemática afirmando em Temor e Tremor que de modo nenhum a fé seja algo medíocre, pelo contrário considerando-a a mais sublime de todas as coisas. Para ele, é indigno que a filosofia a substitua por outro objeto, convertendo-a em irrisão. Segundo Kierkegaard, a filosofia não pode nem deve dar a fé; sua tarefa é compreender-se a si mesma, saber aquilo que oferece. É exatamente isso que Kierkegaard faz em Temor e Tremor. Ele parte da análise de uma passagem da Torá ou Pentateuco (conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, atribuídos a Moisés), mais especificamente o livro das gênesis (tradução grega da Septuaginta para o título original hebraico “bereshit”), passagem na qual o patriarca da nação de Israel, Abraão, depara-se com um paradoxo: executar o sacrifício humano de seu próprio filho, Isaque, a pedido de Jah. Abraão teria que escolher entre obedecer à ordem de Javé e conservar a vida de seu único filho com Sara, sua mulher. Para aumentar o grau e tensão desse paradoxo esse filho que agora Yahweh estava lhe pedindo em sacrifício era o mesmo acerca de quem lhe 483 havia feito promessas concernentes à sua descendência ou posteridade, que se constituiria na nação de Israel. A partir dessa trama, Kierkegaard desenvolve uma interessante reflexão sobre as relações da dimensão espiritual e o estádio da moralidade, a qual possui relevantes implicações no que tange à questão do indivíduo, visto que, conforme ele próprio afirma na obra o caso de Abraão ou a fé é se constitui nesse paradoxo segundo o qual o indivíduo está acima do geral. Abraão estava, pois, sendo submetido a uma prova difícil, visto que teve um filho com sua escrava, Agár, todavia, sua esposa legítima, Sara, não concebia. Entretanto, mesmo em idade avançada, Sara engravida de Isaque. Isaque era, desse modo, o descendente legítimo, mas agora o mesmo Deus que lhe havia feito promessas acerca da terra para aonde deveria se deslocar (Canaã, atual região da Palestina) e promessas concernentes a esse descendente, o qual lhe daria numerosos descendentes, o mesmo Deus agora estava lhe pedindo esse mesmo filho em sacrifício. Há teólogos que, à maneira de Ambrósio, teólogo patrístico que atraiu com seus discursos Agostinho ao cristianismo, conforme o próprio Agostinho relata nas Confissões, empregam a hermenêutica alegórica nesse caso de Abraão. Ambrósio usava o método alegórico para esclarecer determinadas passagens do Antigo Testamento, o que influenciou Agostinho em sua saída da seita dos maniqueus. A ideia desse método alegórico aplicado ao caso de Abraão supõe que Jah, simbolicamente pediu a Abraão que se dispusesse a sacrificar seu único filho, tal 484 como um dia o próprio Deus sacrificaria o seu Unigênito (Monógenes), Jesus Cristo, pela humanidade. O fato é que Temor e Tremor se constitui numa obra singular da filosofia contemporânea por alguns motivos. Um deles é a temática da fé. Não necessariamente a da religião, o que competiria à filosofia da religião e ciência da religião, levando em consideração a distinção entre religião e espiritualidade. Como dito, à maneira dos patrísticos e escolásticos, Kierkegaard toma como ponto de partida de sua reflexão a fé. O texto base é um texto da revelação das Escrituras. A partir disso, ele vai desenvolver suas reflexões tanto teológicas como especificamente filosóficas, como no caso das relações entre o geral e o individual. Isso demonstra que tal discussão ultrapassa os limites históricos da filosofia medieval ou mesmo os da modernidade. Alguém poderia alegar que a discussão sobre a fé no Elogio da Loucura de Erasmo, na obra de Pascal, ou na de Malebranche, ou na metafísica de Leibniz, ou mesmo ainda nos elogios de Rousseau ao Evangelho, seriam resquícios das abordagens medievais, todavia, Kierkegaard, em contraposição ao sistema hegeliano, que representa o ápice das aspirações modernas do racionalismo, está partindo duma reflexão sobre a fé para defender o indivíduo como que acima do geral. Na própria obra, Kierkegaard afirma ironicamente que superar Hegel para muitos seria um feito prodigioso, enquanto superar Abraão seria uma bagatela. Ele, porém, admite que o caso do paradoxo da fé em Abraão deixa-o estagnado, sentindo-se incapaz de penetrar e compreender o pensamento de Abraão, seu silêncio ante Eliezer, Sara e o próprio Isaac, quando se dirigia ao Monte Moriá, o que, inclusive, é discutido por Kierkegaard no problema III da obra. Desse modo, a fé para Kierkegaard, ou o estádio da fé, que reside no âmbito da espiritualidade, estaria acima do da moralidade e de todos os demais. Como ele mesmo diz na obra ao analisar a questão da suspensão teleológica da moralidade. A moralidade estaria, em si, no geral, e a este título seria aplicável a todos. Permaneceria imanente em si mesma, sem nada externo que seja seu telos, sendo ela própria telos de tudo que lhe é externo. Considerado como ser imediato, sensível e psíquico, o indivíduo seria o indivíduo que tem seu telos no geral; sua tarefa moral seria exprimir-se constantemente, em despojar-se de seu caráter individual a fim de alcançar a generalidade. Erraria o indivíduo que reivindicasse sua individualidade ante o geral, e não poderia reconciliar-se com ele senão reconhecendo-o. Em cada momento que o indivíduo, depois de ter entrado no geral sentir-se inclinado a reivindicar sua individualidade, entraria numa crise da qual só poderia se libertar pela via do arrependimento, abandonando-se novamente, como indivíduo, no geral. Se tal é o fim supremo destinado ao homem e sua vida, a moralidade participa então da mesma natureza da eterna felicidade do homem, a qual constitui em cada momento, e para toda a eternidade, o seu telos, porque haveria contradição em afirmar-se que ela pode ser abandonada, ou seja, ser teleologicamente suspensa, uma vez que, desde quando é suspensa, perde-se, enquanto que estar suspensa não 485 significa perder-se, mas conservar-se na esfera superior que é o seu telos. Se desse modo acontece, quando Hegel determina o homem unicamente como indivíduo no seu capítulo “O bem e a consciência”, teria razão em considerar essa determinação como uma forma ética do mal que deveria ser suprimida na teleologia da moralidade, de maneira que o indivíduo que permanece nesse estádio erra ou incorre em crise. Pelo contrário, segundo Kierkegaard, erra ao falar da fé, erra também por não protestar em voz alta contra a glória de Abraão como pai da fé, visto que o seu processo deveria ser revisto para bani-lo como um assassino. Desse modo, Kierkegaard declara que a fé é esse paradoxo mediante o qual o indivíduo está acima do geral, mas de tal modo que o movimento se repita, e, por consequência, o indivíduo, depois de ter repousado no geral, se isole, logo a seguir, como indivíduo acima do geral. Segundo Kierkegaard, se não é esse o conteúdo da fé, Abraão está perdido, nunca houve fé no mundo, porque jamais ela passou do geral. Desse modo também, se o que é considerado moral ou virtuoso representa o supremo estádio, se não resta ao homem nada de incomensurável senão o mal, quer dizer, o particular que deve exprimir-se no geral, bastam-nos as categorias da filosofia grega ou as que dela logicamente se deduzem. 486 REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, 1973. KIERKEGAARD, S. A. Temor e temor. São Paulo: Abril, 1974. PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Abril, 1973. 487